quinta-feira, 20 de julho de 2023
Filantropia de canalhas
Não gosto de um mundo que depende de gente rica para dar do que as pessoas deviam ter por direito
Giulio Boccaletti, o autor de "Água: Uma Biografia" diz que o problema da falta de água, sobretudo nos países menos desenvolvidos, se deve a falhanços estruturais dos Estados – coisa que não se resolve com filantropia
Classe ou parentesco?
Um leitor interessado na questão há de perguntar: trata-se de uma reflexão ou de uma escolha? No que eu replico: as duas coisas! Porque estou focando um sistema cultural reacionário (contrarreformista, pós-aristocrata, escravista, elitista, mesquinho e autoritário) que, a partir das consequências engendradas pela Revolução Industrial e pelo ambíguo triunfo do liberalismo, funciona por meio de um sistema de classes contratualista, mas continua inevitavelmente enredado numa cadeia de relacionamentos imperativos, definidores irredutíveis de identidade e posicionamento social axiomático, como rezam as nossas sacralizadas certidões de nascimento. Esse “papel” que legalmente nos inaugura e atesta legalmente a nossa origem. Documento “mãe” que informa e legitima nossa entrada como atores neste palco que — como dizia Shakespeare — é a existência.
No caso das sociedades tidas como homogêneas (em termos de etnia ou aparência física — esses eufemismos para “raça”), havia o pressuposto segundo o qual a posição numa escala econômica de “dominação de classe” predominava, alienando o universo humano dos laços sociais. O inverso seria o caso dos sistemas subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o brasileiro.
Num sistema moderno e plenamente capitalista, as normas impessoais do mundo público (economia + política + Estado + religião civil) teriam — na vida pública — predominância sobre os laços de família, compadrio e amizade. Vale dizer, conforme propôs Henry Sumner Maine no livro “Ancient Law”, em 1861 — e eu furtei em a “A casa & a rua” em 1985 —, que as relações consagradas no espaço social da família, com origem na morada, canibalizavam cargos e éticas, exigidas pelo aparato do “Estado” e da cidadania, o universo da rua.
O caso de Pedro Honorato é emblemático. Eleito prefeito de sua cidade, ele — um raro fiel da ética republicana feita de igualdade, impessoalidade e competência e alerta para o fato de que, como prefeito, administrava algo que era coletivo e não da sua casa ou partido — não nomeou nenhum parente ou amigo. Foi imediatamente posto de quarentena amorosa por sua esposa (dizem que ela queria nomear o irmão como secretário municipal) — e exprobrado como ingrato, indiferente e mal-agradecido. Para os membros de sua comunidade, o republicanismo de Pedro Honorato não era virtude, era insensibilidade, posto que traía os mandamentos não escritos que governavam o universo das “pessoas” dos que estavam mutuamente ligados por condescendência, sangue e empenho. O resultado, conforme definiu um dos seus ex-compadres, o Coronel Furtado, o levou a um isolamento moral (hoje chamado de “cancelamento”) e à expulsão muda da autocongratulatória consciência festiva das elites locais, porque Pedro Honorato tornou-se inclassificável. Não seguia o padrão de apadrinhar amigos em nome de um partido formalmente popular; mas também não seguia o padrão polarizador inconsciente do “agora somos nós”, dos “donos do poder” de nomear e enriquecer pela lógica do “toma lá dá cá” à custa do Estado. Individualizado, morreu sozinho na tal “rua da amargura” de que minha mãe tanto falava e que tantos bandidos disfarçados de políticos mereciam.
Chamei tais sistemas de “relacionais” porque neles a filiação, o parentesco e os laços modelados pela reciprocidade (o circuito do dar para receber) contrastavam com o conjunto de ideais impessoais que simultaneamente governam o mundo republicano e democrático, mas, é preciso lembrar, não têm o mesmo valor.
O dilema da competência que pode ser antipaticamente impessoal tem muitas variantes que a nossa sociologia dialética ignorou. Nessa questão, cabe explicitar novamente as premissas ou axiomas da nossa “ética relacional”, que é muito mais forte do que pensa a nossa otimista ideologia mudancista e polarizadora, pois ela dorme dentro de cada um de nós, ao passo que o nobre “comunismo”, cristão ou materialista, chega de fora para dentro e tem a leveza do livro do Milan Kundera repleto desses dilemas entre o formal da estrutura ideológica e a plasticidade das pessoalidades que estruturam esse “humano” sempre surpreendente.
Graciliano Ramos, em Palmeiras dos Índios (AL) |
No caso das sociedades tidas como homogêneas (em termos de etnia ou aparência física — esses eufemismos para “raça”), havia o pressuposto segundo o qual a posição numa escala econômica de “dominação de classe” predominava, alienando o universo humano dos laços sociais. O inverso seria o caso dos sistemas subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o brasileiro.
Num sistema moderno e plenamente capitalista, as normas impessoais do mundo público (economia + política + Estado + religião civil) teriam — na vida pública — predominância sobre os laços de família, compadrio e amizade. Vale dizer, conforme propôs Henry Sumner Maine no livro “Ancient Law”, em 1861 — e eu furtei em a “A casa & a rua” em 1985 —, que as relações consagradas no espaço social da família, com origem na morada, canibalizavam cargos e éticas, exigidas pelo aparato do “Estado” e da cidadania, o universo da rua.
O caso de Pedro Honorato é emblemático. Eleito prefeito de sua cidade, ele — um raro fiel da ética republicana feita de igualdade, impessoalidade e competência e alerta para o fato de que, como prefeito, administrava algo que era coletivo e não da sua casa ou partido — não nomeou nenhum parente ou amigo. Foi imediatamente posto de quarentena amorosa por sua esposa (dizem que ela queria nomear o irmão como secretário municipal) — e exprobrado como ingrato, indiferente e mal-agradecido. Para os membros de sua comunidade, o republicanismo de Pedro Honorato não era virtude, era insensibilidade, posto que traía os mandamentos não escritos que governavam o universo das “pessoas” dos que estavam mutuamente ligados por condescendência, sangue e empenho. O resultado, conforme definiu um dos seus ex-compadres, o Coronel Furtado, o levou a um isolamento moral (hoje chamado de “cancelamento”) e à expulsão muda da autocongratulatória consciência festiva das elites locais, porque Pedro Honorato tornou-se inclassificável. Não seguia o padrão de apadrinhar amigos em nome de um partido formalmente popular; mas também não seguia o padrão polarizador inconsciente do “agora somos nós”, dos “donos do poder” de nomear e enriquecer pela lógica do “toma lá dá cá” à custa do Estado. Individualizado, morreu sozinho na tal “rua da amargura” de que minha mãe tanto falava e que tantos bandidos disfarçados de políticos mereciam.
Chamei tais sistemas de “relacionais” porque neles a filiação, o parentesco e os laços modelados pela reciprocidade (o circuito do dar para receber) contrastavam com o conjunto de ideais impessoais que simultaneamente governam o mundo republicano e democrático, mas, é preciso lembrar, não têm o mesmo valor.
O dilema da competência que pode ser antipaticamente impessoal tem muitas variantes que a nossa sociologia dialética ignorou. Nessa questão, cabe explicitar novamente as premissas ou axiomas da nossa “ética relacional”, que é muito mais forte do que pensa a nossa otimista ideologia mudancista e polarizadora, pois ela dorme dentro de cada um de nós, ao passo que o nobre “comunismo”, cristão ou materialista, chega de fora para dentro e tem a leveza do livro do Milan Kundera repleto desses dilemas entre o formal da estrutura ideológica e a plasticidade das pessoalidades que estruturam esse “humano” sempre surpreendente.
Como ser milionário
As pessoas, de uma maneira geral, ficam deslumbradas com os grandes milionários, com os “empresários de sucesso”, que têm muitos carros, muitas casas, fazem viagens submarinas e estratosféricas, que custam milhões, e gostam de aparecer nos locais onde se gosta de aparecer. Mesmo os políticos provincianos não escondem o seu deslumbramento e subserviência, perante o prestígio do dinheiro. Presume-se que, para se chegar ao topo dessa pirâmide, é preciso ter uma inteligência fenomenal e uma genial capacidade de empreendimento. Quando nos aproximamos, um bocadinho de mais perto, destas estátuas a haver, verificamos, com surpresa e quase desilusão, que não é desta massa que se fazem nem as grandes ideias nem as grandes descobertas. O principal ingrediente das grandes fortunas não é nem a inteligência nem uma intuição genial. Isso anda quotidianamente documentado, nas trafulhices destapadas pelo Ministério Público, fora as ainda não destapadas. Quem dispõe de bons advogados, de economistas espertos e de uma razoável falta de escrúpulos, faz bom caminho, mesmo com uma inteligência nada invulgar. Dizia o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, que não há fortunas honestas. E, de certo modo, isto é verdade. O rigor da honestidade raramente convida ao enriquecimento milionário. E, quanto a deslumbramento perante a inteligência de alguém, nunca se há de ver um espertalhão rico a congeminar uma teoria da relatividade ou uma lei da gravitação universal. E, se o ricaço fácil e muito aquém da verdadeira inteligência e todas as “glórias do momento” vão ser esquecidos pelo fluir inexorável do tempo, será talvez “o parvo dum poeta” ou “um geómetra maduro”, com augurava Pessoa, quem vai deixar rasto mais duradouro.
Mas tenho más notícias para os grandes ricaços: nenhum deles passará pelo orifício de uma agulha, quanto mais entrar no reino dos céus. Disse-o o parvo de um profeta há mais de dois mil anos.
Eugénio Lisboa
Mas tenho más notícias para os grandes ricaços: nenhum deles passará pelo orifício de uma agulha, quanto mais entrar no reino dos céus. Disse-o o parvo de um profeta há mais de dois mil anos.
Eugénio Lisboa
Cadáveres indigestos
Há uma crise de abutres na Índia: dos 40 milhões de aves que existiam há 30 anos, restam pouco mais de 20 mil. Desde que os dinossauros foram extintos, nenhum outro animal correu o risco de sumir tão rapidamente da face da Terra, nem mesmo o dodo, que levou 64 anos entre ser descoberto pelos seres humanos e desaparecer por completo.
O declínio dos abutres indianos começou a ser notado em fins dos anos 1990. Até então, eles viviam como reis — imaginem um país predominantemente vegetariano, onde as vacas são sagradas e os porcos são tabu para as duas principais religiões.
Era banquete em cima de banquete.
Quando os abutres começaram a sumir, todo mundo pensou nos suspeitos de sempre, do uso de agrotóxicos a doenças infecciosas, passando pela urbanização desenfreada e pela destruição do meio ambiente; mas nada explicava uma queda de população tão catastrófica.
Foi difícil esclarecer o caso: a legislação indiana proíbe o abate dessas aves, ainda que por motivos científicos, e encontrar corpos mortos em condições próprias para pesquisa é quase impossível. Em 2003, finalmente, um time do The Peregrine Fund, ONG especializada em rapineiras, chegou ao culpado: o diclofenaco, anti-inflamatório bem tolerado pelo gado, mas letal para aves que eventualmente se alimentam dos restos de bois e vacas medicados.
Diclofenaco é o nome científico do nosso velho conhecido Voltaren.
O seu uso veterinário foi proibido na Índia em 2006, mas aí mais de 99% da população de abutres já havia sido dizimada. No momento, há oito centros de criação espalhados pelo país para tentar reverter a situação.
A falta dos abutres (não confundir com urubus) é um desastre ecológico. Na sua ausência, carcaças apodrecem em áreas públicas nas aldeias e contaminam o solo e a água, enquanto outros animais carniceiros, como ratos e cães vadios, proliferam. A questão é que não só eles não são faxineiros tão eficientes, como, ainda por cima, podem se contaminar com as carcaças em decomposição, tornando-se transmissores de doenças sérias.
Mas ninguém na Índia está sentindo tanto essa crise quanto os parsis, uma minoria étnico-religiosa que depende desses pássaros para dar fim aos seus mortos. Descendentes dos antigos persas zoroastrianos, eles acreditam que os cadáveres, impuros, não podem entrar em contato com a água, a terra ou o fogo, elementos sagrados.
Quando alguém morre, portanto, é logo levado para a Dakhma, ou Torre do Silêncio, onde os corpos nus são depositados ao relento, sobre placas de pedra — e rapidamente devorados pelas aves.
Antes do diclofenaco, os abutres resolviam a questão em menos de uma hora. Os ossos limpos eram curados pelo sol e pelo vento, e recolhidos num poço onde o tempo e a cal cuidavam deles. Um sistema prático e limpo, que evitava a decomposição, alimentava as aves e igualava ricos e pobres num mesmo ritual.
Sem os abutres, os corpos levam meses para se desintegrar.
Os parsis já tentaram instalar painéis solares nas torres para acelerar o processo, assim como criar essas aves em cativeiro na sua vizinhança, mas sem muito sucesso.
Assim como os abutres, os parsis são, eles também, uma espécie em extinção. A maioria vive em Mumbai e, mesmo lá, não chegam a 50 mil pessoas. Formam uma comunidade rica e influente que, ainda assim, está em declínio, às voltas com poucos nascimentos e com a imigração dos jovens.
O declínio dos abutres indianos começou a ser notado em fins dos anos 1990. Até então, eles viviam como reis — imaginem um país predominantemente vegetariano, onde as vacas são sagradas e os porcos são tabu para as duas principais religiões.
Era banquete em cima de banquete.
Quando os abutres começaram a sumir, todo mundo pensou nos suspeitos de sempre, do uso de agrotóxicos a doenças infecciosas, passando pela urbanização desenfreada e pela destruição do meio ambiente; mas nada explicava uma queda de população tão catastrófica.
Foi difícil esclarecer o caso: a legislação indiana proíbe o abate dessas aves, ainda que por motivos científicos, e encontrar corpos mortos em condições próprias para pesquisa é quase impossível. Em 2003, finalmente, um time do The Peregrine Fund, ONG especializada em rapineiras, chegou ao culpado: o diclofenaco, anti-inflamatório bem tolerado pelo gado, mas letal para aves que eventualmente se alimentam dos restos de bois e vacas medicados.
Diclofenaco é o nome científico do nosso velho conhecido Voltaren.
O seu uso veterinário foi proibido na Índia em 2006, mas aí mais de 99% da população de abutres já havia sido dizimada. No momento, há oito centros de criação espalhados pelo país para tentar reverter a situação.
A falta dos abutres (não confundir com urubus) é um desastre ecológico. Na sua ausência, carcaças apodrecem em áreas públicas nas aldeias e contaminam o solo e a água, enquanto outros animais carniceiros, como ratos e cães vadios, proliferam. A questão é que não só eles não são faxineiros tão eficientes, como, ainda por cima, podem se contaminar com as carcaças em decomposição, tornando-se transmissores de doenças sérias.
Mas ninguém na Índia está sentindo tanto essa crise quanto os parsis, uma minoria étnico-religiosa que depende desses pássaros para dar fim aos seus mortos. Descendentes dos antigos persas zoroastrianos, eles acreditam que os cadáveres, impuros, não podem entrar em contato com a água, a terra ou o fogo, elementos sagrados.
Quando alguém morre, portanto, é logo levado para a Dakhma, ou Torre do Silêncio, onde os corpos nus são depositados ao relento, sobre placas de pedra — e rapidamente devorados pelas aves.
Antes do diclofenaco, os abutres resolviam a questão em menos de uma hora. Os ossos limpos eram curados pelo sol e pelo vento, e recolhidos num poço onde o tempo e a cal cuidavam deles. Um sistema prático e limpo, que evitava a decomposição, alimentava as aves e igualava ricos e pobres num mesmo ritual.
Sem os abutres, os corpos levam meses para se desintegrar.
Os parsis já tentaram instalar painéis solares nas torres para acelerar o processo, assim como criar essas aves em cativeiro na sua vizinhança, mas sem muito sucesso.
Assim como os abutres, os parsis são, eles também, uma espécie em extinção. A maioria vive em Mumbai e, mesmo lá, não chegam a 50 mil pessoas. Formam uma comunidade rica e influente que, ainda assim, está em declínio, às voltas com poucos nascimentos e com a imigração dos jovens.
Assinar:
Postagens (Atom)