sábado, 29 de agosto de 2020

Na pandemia, Jair age como um tecelão de oxímoros

No dia em que o Brasil contabilizava 115 mil mortes por Covid-19 —o que representa uma taxa de óbitos por 100 mil habitantes 47 vezes maior que a do vizinho Uruguai—, Jair Bolsonaro promoveu um evento em que arrebanhou ministros e alguns médicos para juntos enaltecerem a cloroquina. O nome escolhido para a cerimônia foi "Brasil vencendo a Covid-19".

É genial. Com essa, Bolsonaro conquistou um lugar no panteão dos oximoristas, as pessoas que criam nomes ou expressões que aglutinam conceitos contraditórios ou absurdos. Meu exemplo favorito é o Sacro Império Romano Germânico (a designação dada ao mosaico de Estados alemães que conviveram entre 963 e 1806), que, como observou Voltaire, não era sacro, nem era um império e também não era romano. Ao menos era germânico. Uma lista mais tradicional de oxímoros inclui: silêncio eloquente, instante eterno, crescimento negativo e inteligência militar.


Contradições à parte, não surpreende que Bolsonaro aja como Bolsonaro. O que me preocupa mais é que existam médicos que aceitam participar de uma pantomima eleitoreira que nega o método científico pelo qual a medicina deveria se pautar.

De fevereiro até abril, fazia sentido depositar esperanças na cloroquina. Havia uma hipótese teórica a justificar sua ação contra a Covid-19 e alguns trabalhos indicando efetividade. Mas a ciência fez o que tinha de fazer e procedeu a testes mais rigorosos. Nunca uma droga foi alvo de tanta pesquisa.

E a conclusão a que se chegou é a de que nem a cloroquina nem a hidroxicloroquina são fármacos muito úteis contra a doença (ainda não dá para descartar que produzam efeitos muito modestos) e ainda trazem o risco de danos colaterais, que se tornam uma certeza se distribuídos a grandes populações.

O médico que não aceita os resultados de ensaios clínicos controlados não entendeu como a medicina se relaciona com o método científico.

Imagem do Dia

 

 A pequena Julia*, 7 anos, se desdobra para vender os últimos cinco panos de prato que carrega em seus braços numa rua movimentada da capital paulista:— Compra os últimos panos de prato, tia, por favor, para eu poder voltar para casa. A menina vive com a família em um prédio abandonado na esquina das ruas Oscar Freire e Peixoto Gomide, na badalada região dos Jardins, bairro nobre de São Paulo

Os pobres de Bolsonaro

O súbito interesse do presidente Jair Bolsonaro pelos pobres do País, jamais demonstrado em seu passado como parlamentar e ausente na campanha que o elegeu em 2018, deveria ser motivo de aplausos. Afinal, quando um presidente da República usa a força de seu cargo para colocar a pobreza entre suas principais preocupações, tende a transformar a superação da desigualdade em prioridade na agenda política.

No entanto, é notável o contraste entre o empenho de Bolsonaro em criar um generoso programa de transferência de renda e seu desinteresse patente em promover reformas que criem condições para o desenvolvimento e a geração de empregos. Ao agir assim, o presidente não demonstra real interesse na superação da pobreza, que só será possível com mudanças estruturais que deem ao Estado capacidade efetiva de prover, de maneira sustentável, o mínimo necessário para que milhões de brasileiros deixem efetivamente de ser pobres.


Se estivesse realmente interessado em transformar a vida dos pobres, o presidente Bolsonaro estaria, desde seu primeiro dia no governo, engajado na promoção dessas reformas estruturais. Contudo, malgrado as retumbantes promessas eleitorais de uma revolução no Estado, Bolsonaro nada fez ou faz, de fato, para liderar os debates sobre essas reformas. Ao contrário, sempre que instado a se posicionar, ou cria dificuldades como na reforma da Previdência, em que agiu como sindicalista em favor de algumas categorias de servidores ou simplesmente engaveta projetos, caso da urgente reforma administrativa.

A superação da pobreza não se dará apenas pela suposta vontade do presidente. Num passado não muito distante, os governos petistas alardearam ter acabado com a pobreza a partir de programas de transferência de renda, em especial o Bolsa Família. De fato, durante algum tempo, o complemento de renda para famílias muito pobres foi essencial para lhes dar um pouco de dignidade em meio à miséria, mas o Estado "inchado, ineficiente e perdulário" não conseguiu lhes proporcionar nada além disso. Como resultado, esses vulneráveis voltaram à miséria assim que começou o recente processo de degradação econômica do País, fruto das lambanças lulopetistas.

Ao que consta, Bolsonaro não foi eleito para repetir os erros daquela desastrosa gestão, e no entanto a cada dia que passa se parece mais com os demagogos que as urnas puniram na eleição passada. O roteiro é muito parecido: recusa-se a tocar nos privilégios dos servidores públicos; não se engaja em privatizações nem em redução da máquina do Estado; quer gastar um dinheiro que não existe, flertando com a irresponsabilidade fiscal; e agora inventa um programa de transferência de renda com o óbvio objetivo de sustentar sua popularidade em patamares suficientes para manter suas chances de reeleição.

O caminho para vencer a pobreza crônica no Brasil não tem atalhos. É longo e demanda do presidente da República uma imensa capacidade de articulação política. Junto com os programas de transferência de renda, devem vir medidas concretas para que seus beneficiários deixem de depender do auxílio no prazo mais curto possível. Para isso, é preciso que haja uma educação pública de qualidade, capaz de dar horizontes reais de crescimento para os filhos dessas famílias pobres. É preciso também lhes proporcionar uma boa saúde pública e, de uma vez por todas, cobertura universal de saneamento básico. Para sustentar tudo isso, é preciso que o Estado deixe de dragar recursos públicos escassos para satisfazer os privilegiados de sempre, a título de “direitos”, e facilite a vida de quem empreende e gera empregos.

Com um presidente que transformou o Ministério da Educação em piada de mau gosto, que trocou ministros da Saúde em plena pandemia por capricho pessoal, que não quer nem ouvir falar em reforma administrativa, que sabota os esforços do Ministério da Economia para respeitar o teto de gastos e cuja única preocupação é com sua reeleição, tudo indica infelizmente que os pobres continuarão pobres, e com eles o Brasil.

Resistência do absurdo

Ando furioso por tudo ser provisório na vida exceto a tirania...
José Gomes Ferreira, "Dias Comuns - A idade do malogro"

 


Palavrões e desrazão

A contragosto, voltemos a isso. Voltemos porque o falastrão voltou a atacar. Nesta semana, como que regressando à ativa, o presidente da República restabeleceu sua velha forma prosódica e deu de insultar gente honesta com termos chulos. No domingo, a um repórter do jornal O Globo que lhe perguntou sobre os R$ 89 mil depositados na conta da primeira-dama, respondeu com um bodoque vocabular: “Vontade de encher sua boca de porrada”.

Tente imaginar, por alguns segundos, que tipo de ser humano se expressa nesse léxico. É chocante. Em mau português, essas palavras materializam o soco na cara do interlocutor. O simples enunciado já fere, já tira sangue da honra do outro. O ato violento é a própria fala, que nem precisa se traduzir em gesto físico para machucar. Sete palavras que ofendem e, acima disso, enxovalham um cargo público de alto a baixo. Mais uma vez. Voltemos a isso, então.



Na segunda-feira, mais barbaridades. Ao defender publicamente o emprego de substâncias exóticas para tratar a covid-19, a mesma autoridade voltou a se gabar do alegado “histórico de atleta” e se vangloriou de não ter desenvolvido sintomas graves da doença.

Aproveitou e disse que, quando o paciente é um jornalista, o quadro é pior. Mas ele não disse isso assim, com essa reles e preconceituosa falta de educação. Ele foi além. Abusou da vulgaridade. Ao se referir a um jornalista genérico – um jornalista qualquer que venha a ser acometido pelo vírus –, o autoproclamado atleta imune preferiu dizê-lo de modo mais torpe: “Quando pega num bundão de vocês a chance de sobreviver é bem menor”.

Diante de tal postulado podemos dizer que, segundo o presidencial juízo, aqui escreve um “bundão”. Todos os que exercem o ofício de jornalista acabam de ser tachados com esse qualificativo por ninguém menos que o governante do nosso país. Como reagir? Devolver o xingamento resolve? Falar na mesma frequência ajuda? Anula o dano? Difícil saber.

O que sabemos com segurança é que o palavrão foi alçado à condição de norma linguística da alta administração pública federal. A nova norma inculta alcançou o apogeu na reunião ministerial de 22 de abril – aquela que teve sua gravação em vídeo divulgada por força de decisão judicial –, quando presidente interpelou os seus subordinados aos berros, desfiando, um a um, todos os vocábulos de baixo calão disponíveis no dicionário.

O Brasil inteiro viu o ritual de baixezas exclamatórias na televisão e na internet. Uns ficaram aturdidos porque o chefe de governo declarou que queria armar a população (como vem armando, mas só a população que gosta de se armar). Outros se espantaram com o despudor de um ministro da Educação (parece que era isso) afirmando que os ministros do Supremo Tribunal Federal deveriam ser encarcerados. Mas o mais aterrador de tudo, o mais aviltante, não eram as atrocidades que aqueles seres pronunciavam, mas as palavras que eles usavam para pronunciá-las. O mais apocalíptico de tudo era a linguagem.

Que espírito de justiça, que sentimento de solidariedade, que elevação moral, que virtude humanitária, que cultura e que inteligência podem existir numa cúpula de Estado que se comunica nessa base? O que esperar de um suposto estadista que fala na língua das quadrilhas de traficantes com a desenvoltura dos capangas encapuzados em esquadrões da morte? O que ver de positivo num Ministério que se sujeita a ser tratado com o que pode haver de mais vil e de mais ultrajante no vernáculo?

O resultado é que estamos aí com essa persona investida de poder dedicada a nos xingar, e xingar de novo, todos os dias, com suas palavras e com seus silêncios. Fomos condenados a nos acostumarmos com isso aí, pois muita gente apoia isso aí. Entre outros setores, boa (má) parte da elite financeira do Brasil apoia. É inacreditável. Uns até fingem que é normal.

Tempos atrás, o endinheirado conformismo pátrio se resignava na base do “rouba, mas faz”. Agora, as mesmas forças (fracas) se rendem a coisa pior: “Xinga, mas diz que vai fazer as ‘reformas”. Essa turma deu de apoiar qualquer coisa em troca de umas promessas de “reformas” – promessas capengas, entremeadas de infâmias, não importa. Os dependentes químicos do substantivo “reformas” apoiam xingamentos, intimidações, apoiam latidos. Não cessam de incensar aquele que diz que vai fazer “as reformas” e não faz, aquele que cultiva e profere absurdos inomináveis.

Sim, absurdos inomináveis – absurdos às toneladas. Pense bem o improvável leitor: que tipo de batatada vai na cabeça de quem se jacta aos brados de não ter tido sintomas graves de uma doença que já matou 120 mil brasileiros? Na desordem mental da pessoa que diz tais coisas, a doença só derruba os mais fracos, os que não têm “histórico de atleta”, os pesos mortos. Logo, ela esnoba a enfermidade, que chama de “gripezinha” ou de “chuva”. A tal pessoa não se compadece da dor alheia, não conhece a empatia e, o que mais constrange, não alcança a razão. O palavrão estulto nos governa.

O bundão (‘Asinus magnum’)

Hoje vamos estudar o espécime Asinus magnum, conhecido popularmente como “bundão”, que vem tendo crescimento expressivo nos últimos anos no Brasil. 

Os bundões andam em bandos e se alimentam de mentiras, fake news e dinheiro público. São mamíferos roedores, e seu habitat natural é o Brasil, de norte a sul. Não são de natureza pacífica e, ao contrário de outras espécies, não precisam ser ameaçados para atacar e arriscam a vida para proteger seus filhotes. Seu alimento favorito é grana.

Quando em posição de poder, o bundão se mostra prepotente e irritadiço, se sentindo superior aos outros, que ele chama de bundões. Mas, quando acovardado por alguma ameaça real ou paranoica, o bundão amolece e se mistura com a variedade do bunda-mole (Asinus mollis), no caso, um bundão-mole. Outra variedade é a dos bundões-bundinhas, que se caracterizam pela roupa de grife, mocassins e o indispensável cashmere sobre os ombros. Muito encontrado em São Paulo. 


O bundão raiz se vangloria de sua macheza, como se a violência, a estupidez e a boçalidade fossem atributos masculinos, ofende e despreza as mulheres, achando que as usa e abusa, mas, sendo usado por elas, que saem com a bolsa recheada de seus acasalamentos com bundões, às vezes até com empregos públicos.

Contra todas as evidências, o bundão se acha engraçado. Todos conhecem alguém assim. Não há bundão que não se considere engraçado, mas todos os comediantes e humoristas realmente engraçados vivem de debochar dos bundões.

Sim, todo mundo mente, mas o bundão mente mais — e mente mal. Seu estilo é esfarrapado, não convence ninguém, mas ele não liga. Sempre sabe tudo, ouviu falar, tem certeza, mas nunca prova nada, só espera que esqueçam.

O Asinus magnum confunde autoridade com autoritarismo, o público com o privado, o familiar com o estadual, municipal e federal. E acha que somos todos, além de bundões, burros.

O bundão é do seu jeitão, espontâneo, autêntico, indomável, não se adapta à educação e à civilização, mas sobrevive bem em cativeiro.

Covardia

Quando o ex-capitão diz a um jornalista que está com vontade de lhe dar umas porradas na boca, ele está sendo, sem sombra de dúvida, um grande covarde pois ele sabe que o profissional da Imprensa não vai poder reagir contra o presidente da República.

Da mesma forma quando ele chama o profissional de otário.

Otário não é o repórter que está ali a serviço. Otários são os eleitores que puseram no Planalto um indivíduo inteiramente despreparado para o cargo. Otários são os abobados que se reúnem em torno do cercadinho no Alvorado para ver e ouvir Bolsonaro dizer as mil e uma tolices que diz.


Otários somos nós que acreditamos que Bolsonaro deixara de ser grosseiro e passara a ser um presidente civilizado. Pois sim! Isso durou menos de uma semana e logo ele voltou a agir como agia desde que era soldado, a ponto de ter sido expulso do Exército.

Esse homem conseguiu o impensável. Envergonhou o país diante da comunidade das nações. Somos tidos como um país sem categoria, sem classe, grosso e ignorante. Nossa fama de país amável, alegre, bem humorado, simpático, foi para o espaço!

Bolsonaro insiste em dizer e fazer asneiras. Por exemplo, deu-se ao luxo de dizer que o coronavírus com ele não teria chance pois seu currículo de atleta assustaria o vírus. Para ser desmentido quase que em seguida por um verdadeiro atleta, Usain Bolt, que não escapou da Covid 19.

Andou dizendo, em privado, aos seguidores, que usar máscara era coisa de viado. Isso não teve influência nos brasileiros que respeitam o uso da máscara por temer essa doença maligna. Mas influenciou seus Zeros, pobres filhos cuja educação deixou muito a desejar. Flávio, o homem que dos chocolates fez uma mina de dinheiro, viajou de avião sem máscara, apesar do pedido das aeromoças. Melhor pegar o coronavírus do que ser tido como viado, não é não? Assim pensam os Zeros que como todo zero à esquerda, são apenas um zero à esquerda!
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

Construindo o 'Novo Brasil'


 

Guedes e Bolsonaro são reacionários desiguais e combinados

Paulo Guedes salta na frigideira porque seu modo de ser reacionário não combina com o de seu chefe, Jair Bolsonaro. O tal "Big Bang" do ministro da Economia —o dito "plano econômico-social"— promove uma redistribuição da pobreza entre os pobres. Seu chefe achou a coisa explícita demais, com potencial eleitoral danoso.

No universo recriado por Guedes, o Brasil continuará a ser o país em que, segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, os 10% mais ricos ficam com 55% da renda. O problema não está aí. Ocorre que o 1% dos ricos de verdade —coisa de 1,4 milhão de adultos— ficam com mais da metade: 28,3%.

Não fiz a conta. Talvez seja o caso de saber quanto detêm do tal bolo aqueles que formam o 0,1%, a "crème de la crème" da concentração de renda. Os liberais de fancaria que andam por aí a vomitar obscenidades logo vociferam: "Ninguém é pobre porque o outro é rico. É preciso esforço!".

Fruto da indolência, quem sabe?, os 50% mais pobres têm de se contentar com 13,9% do conjunto de todos os rendimentos. A seu modo, Guedes até quer fazer alguma correção. Pretende acabar com a dedução no Imposto de Renda dos gastos com saúde e educação. Topa mexer naqueles 10% que concentram 55% da renda, mas nunca no 1% que abocanha 28,3%. Quanto ao 0,1%, bem...


O ministro é um reacionário antipopulista. E é aí que seu modo de fazer o Brasil andar para trás se choca com o do chefe. O "Mito" descobriu o potencial eleitoral do assistencialismo agressivo e precisa do voto de milhões. Ao comandante da Economia, basta o apoio da Faria Lima, com a concordância, é certo!, do presidente.

A questão, por enquanto sem resposta, é como "tirar dos pobres para dar aos paupérrimos" sem que os primeiros reajam nas urnas. Será Bolsonaro, no confronto com Guedes, um pouco mais, digamos, "progressista"? Respondo com um fato. Na terça (25), ao falar na abertura do congresso nacional da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), o presidente lembrou que começou a trabalhar aos dez anos, num boteco, por decisão de seu pai, e fez a defesa aberta do trabalho infantil.

Com gramática sempre peculiar, mandou brasa: "Meu primeiro emprego, sem carteira assinada obviamente, eu tinha dez anos de idade. Foi no bar do seu Ricardo, em Sete Barras, no Vale do Ribeira. (...) E bons tempos, né?, onde (sic) menor podia trabalhar. Hoje ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar um paralelepípedo de crack, sem problema nenhum". Aplausos.

Antes ainda da posse, em dezembro de 2018, Guedes afirmou que os 30 anos de ineficiência da social-democracia seriam interrompidos por ao menos quatro anos de liberalismo associado ao conservadorismo. É mesmo?

Numa democracia, conservadores aceitam o progresso social e buscam conservar o molde institucional. Já os reacionários pretendem fazer o país marchar para trás, conservando não instituições, mas iniquidades —e, se possível, ressuscitando fantasmas. A depender do caso, podem ser disruptivos, golpistas.

No idílio passadista bolsonariano, filho de pobre trabalha e o do rico estuda, reproduzindo, assim, um e outro, o ciclo de desigualdade. Nessa perspectiva, dispensa-se um Estado que possa já nem se diga corrigir as injustiças, mas, ao menos, capacitar um pouco mais a criança pobre para uma disputa de... desiguais.

Ainda que aos trancos e barrancos e, às vezes, recuos, o mundo caminha tendo como norte a justiça social. Logo, toda ação reacionária será sempre contra os desvalidos, os que podem menos, os injustiçados. Existe, sim, o bom conservador. Mas inexiste o reacionário virtuoso.

Bolsonaro cobra de Guedes que coloque uns tostões a mais no bolso dos pobres para que as urnas sustentem seu propósito de resgatar aquele passado idílico, em que filho de pobre trabalha feliz para honrar a sujeição histórica de seu pai. Vivemos o momento glorioso de uma tensão entre reacionarismos distintos e combinados.

Grande queima

Não podemos adicionar penas ao livro. O livro precisa ser libertário. É preciso que o livro chegue ao povo
Nélida Piñon 

Universo em desencanto

Um amigo da família, publicitário da Kibon, era responsável por batizar os novos produtos da marca. Estava com especial dificuldade para o nome de um sorvete de frutas. Inquieto, taciturno, trancado em seu escritório, não queria ouvir um pio das crianças brincando. E nós, amedrontadas, obedecíamos. Até que um dia ele sai eufórico pela casa gritando: “Jajá de coco”, enquanto socava o ar como Pelé.

Essa lembrança me veio à cabeça logo que soube do nome do novo plano do governo, a ser lançado em um Big Bang Day. Imagino um grupo de técnicos reunidos em uma mesa na Esplanada a socar o ar, eufóricos com o grande achado.



O suposto plano é apenas um apanhado de iniciativas dispersas. Mistura assuntos emergenciais com questões estruturais. Não traz respostas de curto prazo para a saída da pandemia, nem projeto de longo prazo de crescimento. Nada de abertura comercial, redução drástica nos gastos tributários, revisão de regime especial do IR, abertura comercial, privatização ampla e reforma administrativa. E um choque educacional, nem pensar. Ainda tem a CPMF, é claro.

Mantém a aparência de um discurso de responsabilidade fiscal, ao mesmo tempo que acena com obras públicas e ampliação de programas como 0 Minha Casa, Minha Vida. Tudo com foco no Nordeste, mesmo sendo o déficit habitacional maior no Sudeste. Populismo é tudo igual. A exploração da tragédia social segue como a principal política econômica do País.

O teto se mantém como ficção. O pacote não estabelece claramente os mecanismos e gatilhos que o preservariam. Mesmo porque o presidente não está preocupado com o assunto. O teto vai morrendo por falência múltipla dos órgãos, em decorrência da doença crônica do clientelismo brasileiro.

Os saudosos do nacional desenvolvimentismo têm a romântica ideia de que gasto não importa, desde que se faça direito. Gastar bem no Brasil, isso sim, seria um novo Big Bang. O vice Mourão acaba de anunciar a compra de um satélite desnecessário. A desculpa é sempre a tal da soberania nacional, que também justifica a permanência de tantas estatais nas mãos do governo. A Valec deve atender a algum critério de soberania que me escapa.

Na reciclagem de ideias, até a capitalização da Eletrobrás, que perambula desde 2017, entrou na lista. Deverá ser modificada no Senado. E aposto que sai piorada. O Tesouro vai acabar pagando por ela em vez de receber. Nem sua privatização, nem a venda antecipada dos contratos da PPSA, vão transformar o modus operandi do Estado brasileiro.

Muda o governo e só muda o cliente. Empresas que interessam aos militares se mantêm intocadas e ainda recebem reforços financeiros. O expediente de capitalização de estatais é outra peneira oficial no teto. No apagar de 2019, foram R$ 10 bilhões em uma tacada. Agora, governo pede mais R$ 500 milhões ao Congresso. Mais uma vez, entre as contempladas, está a Emgepron. Corvetas e fragatas é a pauta prioritária.

O esforço de marketing não resolve. O plano está mais para a teoria do estado estacionário. De todo jeito, o dia do Big Bang foi adiado para a semana que vem ou por 13,7 bilhões de anos. Tendo o ministro da Economia como átomo primordial, talvez melhor não arriscar mesmo. Vai quê.

Bolsonaro parece que não gostou das propostas. Claro, só pensa na reeleição. O que importa é a continuidade do auxílio, o resto é perfumaria. Quer um programa assistencialista de fácil entendimento para oferecer. A diferença de R$ 30 no valor do auxílio, combinado com o fim do abono salarial, inviabilizou o anúncio do plano. Não foi o ambiente pesado no Senado, por conta de mais uma declaração desastrosa de Guedes, nem mesmo o crime de ameaça física do presidente da República a um repórter que fez a pergunta que não vai calar: “Por que sua esposa recebeu R$ 89 mil de Queiroz?”.

Quanto mais confusão na economia, melhor. Muda o foco. STF, trapalhadas dos filhos e a ameaça Queiroz o calaram, mas ele não mudou. Segue firme na agenda: militares, assistencialismo e obscurantismo. Contando com a fidelidade de todos seus ministros, inclusive Guedes, que não está sendo fritado. Apoia o projeto ideológico clientelista e só sai quando não for mais útil para o chefe. Vai taxando livros, coisa de elite, enquanto isenta a linha branca e mantém a Zona Franca.

Bolsonaro reclama da imprensa. Mas não foi cobrado pela passividade da Damares diante dos ataques de fanáticos religiosos a uma criança; pelo envio do quadro de Djanira, “Orixás”, para os porões do Palácio do Planalto nem mesmo pelo uso do avião da FAB por garimpeiros ilegais. A invasão da Cinemateca passou batida. Lá, além dos filmes nacionais, estão as imagens que carregam a memória do nosso País. Correm o risco de se perderem.

A vontade de apagar a História, o desprezo pela cultura, pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos andam juntos em governos autoritários como este. Um cidadão que pensa, imagina, cria e desenvolve senso crítico, incomoda muito. Deve dar mesmo vontade de encher a boca de cada um de porrada.

Constantino

Lá pelos séculos IV e V aconteceram mudanças na história cultural e intelectual do Ocidente que podem ser descritas, simplificando um pouco, como substituições no futebol: saem paganismo e racionalismo gregos, entram empiricismo romano e cristianismo. O apóstolo Paulo já fizera pouco nas suas pregações da “sapiência dos sábios” gregos e da “lógica vazia dos seus filósofos”, em contraste com a sabedoria do Cristo, iniciando a conquista do pensamento ocidental pelo cristianismo, que avançaria no começo do século IV com o imperador Constantino abrindo caminho para a cristã ser a única religião do império.



Para garantir o apoio dos teólogos e praticantes da nova e triunfante religião, Constantino iniciou outra tradição da Igreja, além do anti-intelectualismo de Paulo e dos conflitos reincidentes entre doutrina cristã e ciência: estabeleceu que nem o clero nem as autoridades mais altas da Igreja precisavam pagar impostos. Assim, além do prestígio e do poder na Terra e da certeza de um lugar no Céu pela eternidade, os bispos tinham acesso a prazeres mundanos e riquezas não tributáveis. Bispos disputavam entre si os favores de patronos ricos e do próprio imperador do momento.

Pelo que se sabe dele, Constantino foi um bom imperador, bom na guerra, bom e generoso na vitória e competente como administrador do seu império, que manteve unido por mais tempo do que qualquer outro “césar” depois de Augusto. Não se sabe se foi um cristão convicto ou se usou a Igreja para fins políticos e práticos, mas o fato é que a grande migração da história, do racionalismo grego para o irracionalismo romano, para o que um estudioso da época chamou de “mistério, mágica e autoridade” da Igreja de Roma, não teria acontecido sem ele. E olha aí, Paulo Guedes: taxar igrejas em vez de livros. Não é uma boa ideia?

Meu amigo Waldemar

Estou em Inhambane. Sento-me num estreito banco de pedra para assistir ao espetáculo das baleias brincando no mar. Faz agosto, um vento frio arrepia a luminosa pele do Índico. Waldemar Bastos morreu há poucos dias e ainda não consegui assimilar a má notícia. Coloco os fones e, enquanto o ouço cantar Sofrimento, vejo a vida fluir, como um rio sonâmbulo: os dias felizes e os dias ferozes, a luz e as sombras de um país chamado Angola, desde a independência até ao estranho presente em que continuamos confinados.

Lembro-me com precisa clareza da primeira vez que escutei a música de Waldemar Bastos, no álbum Estamos Juntos. Foi em 1983. Eu estudava Agronomia em Lisboa. Aquele disco foi uma revelação e um bálsamo, ao abrir imprevistas janelas de luz sobre uma Angola sufocada por uma guerra interminável. Waldemar traduzia em sons uma fina rede de afetos, que começava em Liceu Vieira Dias e os seus maravilhosos Ngola Ritmos, fundadores da música popular urbana de Angola, e terminava, do outro lado do oceano, em Chico Buarque.

Susa Monteiro

A partir dos anos 1990, passei a encontrar Waldemar, com certa frequência, em eventos culturais, reuniões e manifestações de angolanos, ou no restaurante que manteve por alguns anos no Bairro Alto, o Água do Bengo, onde Laureana, a sua companheira de sempre, servia o melhor funge de Lisboa.

Waldemar não escondia a revolta e o desgosto de ver o país dividido, saqueado e desgovernado. Durante décadas, enfrentou pressões do regime de José Eduardo dos Santos, que incluíam desde a interdição das suas canções nas emissoras públicas a violentas campanhas de insultos e calúnias, a par com inúmeras tentativas de aliciamento. Nunca se calou. Nunca se deixou comprar, nem pelo regime, nem pela principal força da oposição. Ao mesmo tempo, foi apoiando sempre todas as iniciativas visando a pacificação e a democratização do país. Marchei ao lado dele, em manifestações que não reuniam mais de quinze almas inconformadas, e noutras, muito mais raras, entre centenas de pessoas, como em Lisboa, em 2015, nos protestos contra a prisão de Luaty Beirão e dos seus companheiros.

(...) mostra o desconforto com que uma parte da sociedade angolana continua a encarar um artista cujas opiniões diretas e fortes, não só em relação à política mas também à cultura, chocavam com o discurso oficial ou dominante

Em 2018, Waldemar Bastos recebeu o Prémio Nacional de Cultura, que é, em Angola, o mais importante reconhecimento público da obra de um artista. Há muitos anos que a qualidade do seu trabalho vinha sendo admirada no exterior. O seu melhor álbum, Pretaluz (1997), foi produzido por Arto Lindsay e publicado pela Luaka Bop, a editora de David Byrne especializada em música do mundo. Classics of my soul (2017), que junta alguns temas clássicos do cancioneiro angolano, como Muxima, Mbiri! Mbiri! e Humbi-Humbi, com outros da autoria do próprio Waldemar, como Velha Chica ou Teresa Ana, foi gravado com a colaboração da Orquestra Sinfónica de Londres. Richard Bona, o famoso baixista camaronês, considerava-o o melhor cantor e compositor angolano.

O Jornal de Angola deu grande destaque à morte do cantor, com um título que soa quase como um pedido de desculpa: “Morreu o músico que fazia arte para melhorar a política”. Um dia mais tarde, contudo, a bancada do MPLA na Assembleia Nacional inviabilizou um voto de pesar pela morte de Waldemar, apresentado pelo maior partido da oposição, a UNITA. O gesto, em bizarra contradição com a política de pacificação e reconciliação de João Lourenço, expõe as divisões no partido governamental e mostra o desconforto com que uma parte da sociedade angolana continua a encarar um artista cujas opiniões diretas e fortes, não só em relação à política mas também à cultura, chocavam com o discurso oficial ou dominante.

Dói-me a morte de Waldemar, porque sei que partiu cedo demais, quando ainda tinha para nos dar tantas canções. Vou sentir a falta dele, da sua paixão, das suas opiniões tantas vezes excessivas e contraditórias, da sua ironia, da sua alegria, do seu carinho pelo povo mais humilde de Angola.

Esta tarde, as baleias não vieram. Tiro os fones, levanto-me e afasto-me a assobiar a melodia de Sofrimento. Um homem cruza o meu caminho. É alto, com um chapéu preto tombado sobre o rosto. A última luz do dia atira a sua sombra para longe, de encontro aos coqueiros, que se inclinam numa vénia, voltados para o mar. Suspendo o assobio e logo o homem recomeça onde eu parei. Senha e contrassenha.

Corpos decaem e morrem — a música não. Música é ar em movimento, luz em movimento. Waldemar deixou-nos toda essa luz, que caminha agora à nossa frente.

Obrigado, Waldemar. Meu amigo Waldemar.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Pensamento do Dia

 


Nove milhões de brasileiros deixaram de comer por falta de dinheiro durante a pandemia

A pandemia do novo coronavírus afetou a qualidade e a quantidade de comida que as crianças e adolescentes brasileiros estão consumindo. Além disso, em diversos outros aspectos, os lares onde eles vivem foram mais afetados pela crise econômica e social que se instalou após a chegada do vírus no Brasil. É o que concluiu pesquisa do Ibope e Unicef realizada com adultos que vivem com adolescentes e crianças entre 4 e 17 anos. De acordo com o levantamento, 21% dos entrevistados afirmaram que vivenciaram momentos em que os alimentos acabaram e não havia dinheiro para comprar mais. Entre os que vivem com crianças e adolescentes em casa, esse percentual foi de 27%. Sem ter a quem recorrer, como programas de distribuição de alimentos, 6% disseram que a única saída foi deixar de comer, o que representa cerca de nove milhões de brasileiros deixando de realizar alguma refeição por falta de dinheiro. Nos lares com crianças e adolescentes, esse percentual sobe para 8%.

O estudo ainda mostra que a comida, quando tem, é de pior qualidade em muitos casos. Quase metade (49%) dos brasileiros sofreu alguma mudança nos hábitos alimentares neste período de quarentena. Entre as famílias que vivem com crianças ou adolescentes o impacto foi ainda maior: 58%. Isso inclui o aumento do consumo de alimentos industrializados, refrigerantes e fast food, o que contribuiu para a evolução de uma outra epidemia, explica Cristina Albuquerque, chefe de saúde do Unicef Brasil. “A covid-19 pode trazer um agravamento da epidemia da obesidade entre crianças, adolescentes e nas famílias”, afirmou.


A mesa vazia é reflexo direto da crise econômica que abalou principalmente as famílias mais pobres durante a pandemia. Mais da metade dos entrevistados (55%) disse que o rendimento caiu desde o início da pandemia. Em muitos casos, a redução se deu por causa das demissões, já que 64% afirmaram que estavam trabalhando antes da chegada do coronavírus ao Brasil, mas, no momento da pesquisa, realizada em julho, este percentual havia caído para 50%. Já os lares com crianças e adolescentes foram especialmente afetados também neste campo: nessas casas, 63% afirmaram que o rendimento caiu. Em 25% desses lares, a renda diminui pela metade. Já nas casas sem crianças, a mesma redução foi observada por 14%.

O levantamento mediu também o impacto da pandemia na educação e revelou um dado um tanto surpreendente: 91% afirmaram que as crianças e adolescentes continuaram realizando as atividades escolares durante a pandemia. O percentual chamou a atenção das autoridades do Unicef que apresentaram os dados para a imprensa na manhã desta terça-feira. Mas, por outro lado, foi frisado que é preciso questionar a qualidade desse vínculo escolar que foi mantido remotamente nos últimos meses. “A grande questão é entender a qualidade com que essa frequência de atividades tem sido realizada”, afirmou Ítalo Dutra, chefe de educação do Unicef Brasil.

Deste grupo que seguiu realizando as atividades escolares mesmo de casa, a pesquisa registrou disparidade entre a rede pública e a particular. Enquanto 94% dos alunos da escola privada seguiu realizando as atividades, na rede pública foram 89%. A Internet foi o meio utilizado por 97% dos estudantes da rede particular para seguir estudando, e para 81% da rede pública.

As aulas e atividades remotas, no entanto, não demandaram dedicação somente dos estudantes. A maioria (73%) afirmou que eles tiveram ajuda de alguém em casa para realizar as atividades. E 63% receberam tarefas cinco dias por semana para serem cumpridas.

A pesquisa foi realizada entre os dias 3 e 18 de julho, com entrevistas por telefone feitas com 1.516 pessoas acima de 18 anos de todas as regiões do país.

'Vitória' do Mito


 O Brasil já está num platô há dois meses e meio e parte do erro é irrecuperável. Vamos ter ainda um grande número de mortes por um tempo, até que uma hora vai cair, vamos ter uma imunidade coletiva forçada. É uma tristeza, um dos experimentos mundiais mais dolorosos já feitos

Sai Friedman, entra Samuelson

O principal guru do ministro da Economia, Paulo Guedes, é o grande patrono da Chicago School of Monetary Economics: o economista ultraliberal Milton Friedman, nascido e criado no Brooklyn, em Nova York, filho de um casal de judeus imigrantes da Ucrânia. Friedman queria estudar matemática, mas os professores Arthur F. Burns e Homer Jones o influenciaram a estudar economia. Burns, pela dedicação à pesquisa; Jones, porque conseguiu uma bolsa de US$ 300 para ele estudar na Universidade de Chicago, da qual se tornou professor em 1946, por 30 anos. Em 1962, no livro Capitalismo e Liberdade, no qual reuniu suas principais conferências, defendeu a abolição de subsídios agrícolas, tarifas/cotas de importação, controle de aluguéis, salário mínimo, moradia subsidiada, licenciamento profissional, seguridade social, monopólio estatal dos correios, agências regulatórias e alistamento militar obrigatório. Vendeu 500 mil exemplares.

Em 1976, Friedman ganhou o Nobel de Economia, para o qual foi fundamental sua atuação no Chile, como conselheiro dos economistas chilenos egressos da Universidade de Chicago que implantaram as reformas liberais do general Augusto Pinochet, o ditador chileno que havia deposto Salvador Allende, em 1973, equipe da qual o ministro Guedes fez parte. Vem daí a associação de Friedman ao autoritarismo — as reformas somente foram possíveis depois de um banho de sangue —; porém, ele teve uma única conversa com Pinochet. Entretanto, suas palestras fizeram grande sucesso e seus conselhos foram seguidos à risca: cortes rápidos e severos nos gastos do governo para conter a inflação, instituições mais abertas ao comércio internacional e políticas compensatórias para aliviar a vida das classes mais pobres.


Ontem, o presidente Jair Bolsonaro assinou medida provisória que cria um novo programa de habitação do governo federal, batizado de Casa Verde e Amarela, concebido para substituir o programa Minha casa, Minha Vida, criado em 2009, no governo Lula, para ser o carro-chefe da eleição da presidente Dilma Rousseff. Além de financiamento de imóveis, o programa de Bolsonaro prevê ações voltadas à regularização fundiária, à reforma de imóveis e à retomada de obras. Os juros do financiamento das habitações do programa serão menores nas regiões Norte e Nordeste.

A previsão do governo é gastar R$ 25 bilhões do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e R$ 500 milhões do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS, fundo privado, mantido por bancos) e gerar 2,3 milhões de novos postos de trabalhos até 2024, entre diretos, indiretos e induzidos. O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, será o responsável pelo programa, que vai ampliar o número de famílias beneficiadas mediante redução na taxa de juros do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço “para a menor da história”, além de mudanças na remuneração dos agentes financeiros.

Político hábil, Marinho convenceu o presidente Jair Bolsonaro e ganhou a queda de braço com Guedes. Economista, é um desenvolvimentista. Investimentos em habitação, ou seja, na construção civil, setor mais dinâmico da economia das cidades e grande empregador de mão de obra direta, têm grande “efeito multiplicador” na economia. É aí que entra o Paul Samuelson, ganhador do prêmio Nobel de 1970, um dos economistas mais influentes do século, defensor da aplicação desse conceito na política econômica. Físico e economista, Samuelson é autor de Fundamentos da Análise Econômica, ou Economics, um clássico da teoria econômica, que extrapola o campo da matemática na análise da complexidade da econômica.

O “multiplicador” é um efeito de segunda ordem sobre o sistema econômico criado pelo investimento. A expansão de um componente específico da renda nacional gera um resultado final maior do que o inicial para o PIB total. Qualquer alteração nas contas de consumo, investimento, gastos governamentais ou exportações impacta os indicadores de crescimento. Há três tipos de multiplicadores: o monetário, o fiscal e o keynesiano. O “multiplicador monetário” ocorre por meio do sistema bancário que, ao emprestar o que recebe através dos depósitos do público, multiplica a base monetária da economia, ou seja, o total de moeda disponível. O tomador do empréstimo vai investir esse dinheiro em produção para obter lucros superiores aos juros negociados com o banco. A poupança vira investimento e aumenta a renda. Já o “multiplicador fiscal” é uma mudança nos gastos governamentais, que impactará toda a renda nacional, com progressivo aumento no consumo e da renda, impactando generalizadamente na demanda agregada. Ou seja, a expansão do gasto público.

O “multiplicador keynesiano” refere-se ao impacto gerado pelo investimento. Quando há um aumento dos investimentos produtivos das empresas, haverá aumento na produção e mais contratação de mão de obra. Essa renda se reverte em consumo e poupança, sendo que o consumo é reinjetado na produção, aumentando ainda mais a renda nacional. A poupança será utilizada na sequência para investir em mais produção (por meio do multiplicador bancário) que será puxada pela demanda, com a ampliação do consumo. Ou seja, cada aumento na equação do PIB — consumo, investimento, gastos do governo ou exportações líquidas — gera um aumento na renda nacional. O problema é que essa conta não fecha numa situação como a que o Brasil está vivendo, sem poupança interna nem capacidade de endividamento. O próximo passo será “furar o teto” dos gastos públicos e emitir moeda.

Um cenário de colapso social?

O que ocorre com as condições de vida das pessoas econômica e socialmente vulneráveis nos períodos seguintes às pandemias? Walter Scheidl, historiador da Universidade de Stanford, analisou a evolução global das desigualdades sociais e econômicas da humanidade desde o período da Idade da Pedra (fase da pré-história) até o século XXI. Dedicou uma parte do livro para avaliar como as epidemias impactaram as desigualdades em diferentes períodos históricos.

Embora tenha dado especial atenção à investigação sobre a devastadora Peste Negra, com mortes estimadas que variaram de 50 milhões a 200 milhões de pessoas durante o século XIV na Eurásia, dedicou sua análise também para outras experiências históricas de pandemias. Como as epidemias são consideradas um fenômeno recorrente da história mundial, deixaram-nos algumas lições sobre as questões econômicas e sociais que emergem ao final de seu ciclo.

Entre essas lições, destaca-se que em todas elas ocorreram: 1) a extraordinária perda de milhares ou milhões de vidas; 2) sacrifícios inusitados no bem-estar social das populações e no atendimento de suas necessidades básicas; 3) empobrecimento generalizado das sociedades, com queda persistente da renda e do emprego; 4) intensificação dos conflitos distributivos da renda e da riqueza entre os diferentes grupos sociais; 5) a eliminação, ao longo do tempo, pelas estruturas institucionais prevalecentes, da descompressão das desigualdades sociais através do nivelamento das perdas.



Mas a principal lição da história se refere à constatação de que as cicatrizes econômicas e sociais das mazelas pós-pandemias serão mais ou menos profundas dependendo do contexto histórico de três fatores: o estado geral da nação no período pré-pandemia; a intensidade e a duração da fase das contaminações e das mortes; e o conjunto de ações e intervenções de natureza mitigatória e compensatória das autoridades estabelecidas.

No caso brasileiro, o período pré-pandemia não era nada favorável. A economia crescia lentamente; o número de pobres e miseráveis posicionava o Brasil como o sétimo país mais desigual no Mundo; o número de desempregados, subempregados e desalentados chegava a 28 milhões; o percentual das famílias brasileiras endividadas era superior a 65%. Vale dizer, um ponto de partida com elevado passivo social, ao qual iria se somar a degradação dos indicadores de desenvolvimento humano durante o ciclo da pandemia.

Durante esse ciclo, a situação socioeconômica dos brasileiros tornou-se menos dramática por causa dos auxílios emergenciais, trabalhistas e de financiamentos favorecidos pelo governo federal. Contudo, não se pode subestimar a crise socioeconômica para a qual estamos caminhando no período pós-pandemia, o que nos leva a pensar até mesmo em um cenário de colapso social, dentro do princípio da precaução no processo de planejamento.

Para evitar que esse cenário venha a ocorrer são necessárias pelo menos três ações programáticas: a manutenção do auxílio emergencial em valores justos e realistas enquanto os mercados de trabalho não reagirem; a manutenção das atuais políticas sociais compensatórias institucionalizadas; e a formulação e a implementação de uma estratégia de retomada do crescimento econômico multissetorial e multirregional.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Perdemos o trem

O trem que conduz ativistas, chefes de Estado, jornalistas e empresários à idílica cidade de Davos, nos Alpes suíços, funciona como uma metáfora do caminho que o documentário O Fórum, recém-lançado nas plataformas de streaming, mostra, de um mundo em lenta, mas inexorável transformação. E o Brasil que aparece na tela perdeu o trem e ficou perdido na estação.

Não é só a cena da conversa que mais parece uma brincadeira de telefone sem fio entre Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore, que viralizou nas redes sociais como um teaser do documentário, que mostra o quão deslocado o País está. São todos os aspectos abordados, da quarta revolução industrial às emergências climáticas. Somos párias, motivo de piada e preocupação por parte dos atores mais relevantes.


O filme tem duas partes. Uma mais otimista mostra um fórum concorrido em 2018, com Donald Trump posando de dono do mundo, Theresa May ainda não derrotada e um sorridente e galante Emmanuel Macron exalando charme pelos corredores. A edição de 2019 é mais melancólica e cercada de ceticismo, após o Brexit, com a crise comercial entre Estados Unidos e China já deflagrada e com Macron cercado pelos coletes amarelos. Nesse cenário, a presença de Bolsonaro é um constrangimento para todos.

A equipe do premiado diretor alemão Marcus Vetter teve acesso pleno a reuniões preparatórias de Klaus Schwab, fundador e figura central do Fórum, com sua equipe, empresários, ativistas para as duas edições que o filme retrata. Também acompanhou os bastidores, as conversas informais e as iniciativas que acontecem off-Davos, a partir do que é tratado ali.

 

Schwab tenta fugir de todas as formas do mico de ter de moderar o painel com Bolsonaro. Tenta passar o fardo para o presidente mundial da Nestlé, que declina gentilmente. Sua preocupação com a chegada do presidente brasileiro é mostrada em detalhes. Até que, já nos 15 minutos finais do filme, Bolsonaro entra em cena. Seu bizarro discurso de dois minutos na abertura do evento é mostrado na íntegra, com cenas intercaladas da plateia atônita e o filho 03, Eduardo, filmando tudo com cara de “meu paipai” na primeira fila.

A cena da conversa com Gore dá ainda mais vergonha quando mostrada sem cortes. Bolsonaro está na sala de café absolutamente deslocado, acompanhado apenas de Ernesto Araújo. Na conversa com Gore, além de tratar Alfredo Sirkis como seu “inimigo na luta armada”, uma mentira completa e desnecessária, ainda termina o breve e desastrado encontro dizendo que sabe quem o ex-vice-presidente norte-americano é, e não o tem como inimigo.

Em seguida Bolsonaro é abordado por Jennifer Morgan, diretora-executiva global do Greenpeace, que diz que ficou satisfeita em ouvir seu compromisso com a preservação da Amazônia. Bolsonaro não a olha nos olhos, não responde e diz só um “thank you” enfezado ao final. Em seguida, ela tira sarro com uma colega ativista por ter conversado com o presidente brasileiro, e a interlocutora ri de sua “coragem”.

É esta a imagem do Brasil que emerge de um filme que mostra ainda outros líderes mundiais em ação para mitigar os efeitos crise ambiental no mundo. “Pronta?”, pergunta Schwab a Angela Merkel. “Estou sempre pronta”, responde ela, sem a enorme entourage do presidente brasileiro (outro motivo de chacota dos organizadores).

O documentário deixa claro que as discussões sobre mudança de mentalidade de nações e empresas em relação ao meio ambiente não são acessórias, mas essenciais. Isso era verdade no pré-pandemia e será no pós. O Brasil não está no mesmo vagão de todos os demais tomadores de decisões, inclusive os investidores. Passamos vergonha e ficamos perdidos na estação junto com Bolsonaro.

Bolsonaro infecta pelo ouvido

Jair Bolsonaro não se contenta em ser visto como desumano, mentiroso, sem compostura, incapaz de governar, conivente com a corrupção, destruidor do meio ambiente, defensor da tortura, amigo de milicianos, subornador de militares, golpista, genocida e cínico. Também é uma ameaça pessoal à saúde pública. Por seu passado de atleta —como ele define sua carreira de terrorista no Exército—, gaba-se de ser inexpugnável à Covid, chamando de bundões os 115 mil brasileiros que já morreram e quem não tem um serviço médico como o dele, pago com o nosso dinheiro.

Suspeita-se de que, ao circular infectado e sem máscara pelo país, Bolsonaro contaminou uma multidão. A prova é a de que as pessoas ao seu redor, constrangidas a não usar máscara, vivem pegando a doença —só os funcionários do Planalto a contraem à média de três por dia. O mais novo infectado é o seu filho Flávio “Queiroz” Bolsonaro. Mas isso não é causa de preocupação porque, por ser filho de quem é, ele está proibido de reagir como um bundão.


Para mim, quem mais corre perigo com Bolsonaro é aquele pobre intérprete de libras que se vê ao seu lado —também sem máscara— nas declarações oficiais. Não sei o nome, idade ou histórico de atleta do tal senhor, mas espero que ele sobreviva aos perdigotos de Bolsonaro, ao tentar converter em sinais os coices do chefe contra as instituições e a verdade.

Por seu visual sóbrio, parece um homem de família, de sólida formação moral, talvez evangélico. Como será, para ele, dizer “bundão” em libras? E como será quando tiver de traduzir expressões como “porra”, “bosta”, “merda”, “putaria”, “filho da puta” e “puta que pariu”, como as que Bolsonaro ejaculou 28 vezes na reunião ministerial de 22 de abril? E o recente “encher tua boca com porrada”?

É o que me faz temer pela saúde do intérprete de libras. Afinal, certas infecções penetram também pelo ouvido.
Ruy Castro

Brasil, o retorno

 


Última trincheira da escravidão

A escravidão era aceita tão naturalmente, que nem os escravos lutavam pela Abolição; alguns reagiam, mas sem imaginar um mundo em que brancos e negros tivessem os mesmos direitos, fugiam do inferno em que viviam, mas sem imaginar o paraíso da liberdade. Por isso, alguns historiadores dizem que havia escravos até nos quilombos. Intelectuais, políticos, padres, empresários, trabalhadores, viam a escravidão dos negros com a mesma naturalidade como hoje vemos a desigualdade na qualidade da educação, conforme a renda e o endereço da criança.

Demorou para surgirem reações contra maus tratos que sofriam os escravos, tais como a proibição do tráfico, o ventre livre, a liberdade dos sexagenários, mas sem tocar na estrutura escravocrata. Da mesma maneira, nas últimas décadas implantamos medidas favoráveis à educação pública, mas sem a meta de assegurar que o filho do pobre tenha acesso à mesma escola do filho do rico.

A defesa da Abolição só surgiu depois de três séculos de escravidão inspirada desde o exterior, e sob a desconfiança geral da sociedade: por ser vista como uma utopia impossível, desnecessária, contra a natureza das coisas e ameaçadora do estabelecimento social. Os humanistas que eram contra os maus tratos não conseguiam ver a possibilidade, nem a razão, para o fim do sistema arraigado sob visão hegemônica de que a desigualdade entre raças era natural, como hoje é aceita a desigualdade educacional por renda.

Até o final da luta, a bandeira da Abolição foi carregada por poucos. A trincheira contra ela tentou adiar a data e indenizar os donos, mas perdeu. Mesmo assim, quando ela chegou, os não-escravos não aceitaram dar os mesmos direitos aos ex-escravos e seus filhos, negando-lhes terra e escola. Continua resistindo na última trincheira da escravidão: a escola como privilégio para poucos, ricos, na maior parte brancos. A luta atual pela igualdade na qualidade da educação tem este mesmo lento ritmo. As pessoas começam a ter sentimentos de vergonha pelo atraso educacional no país, a perceber que a evolução tecnológica está exigindo conhecimento, mas sem aceitar a ideia de que a escola deve ser a mesma para ricos ou pobres.




Quase 100 anos depois da Abolição, criamos um sistema de escolas públicas municipais, programas para merenda e livro didático, Emenda Calmon; determinamos obrigatoriedade de matrícula dos 6 aos 14 anos, depois, desde os 4 aos 17 anos; implantamos Fundef, Fundeb, PNE-I, PNE-II, Piso Nacional Salarial, mas não nos atrevemos a uma estratégia educacionista. Nenhum partido, nenhum governo, de direita ou de esquerda, defendem e se comprometem com uma estratégia com duas metas: o Brasil ter educação com a qualidade das melhores do mundo, e toda criança ter acesso igual a essa educação, independentemente da renda ou do endereço de sua família. Eleitores e eleitos, não acreditam ou não querem, tanto quanto na escravidão muitos não queriam a Abolição e outros não acreditavam que ela fosse possível.

A igualdade escolar é o gesto que ficou faltando na Abolição. A desigualdade na qualidade da escola é um resquício da escravidão, a última trincheira. Mas a ideia educacionista não seduz a opinião pública. Nem mesmo o movimento negro tem essa bandeira para completar a Abolição, porque se concentra na luta correta, mas insuficiente, para beneficiar os afrodescendentes que terminaram o ensino médio e querem entrar na universidade, mas sem lutar pela alfabetização dos pobres na idade certa, pela erradicação do analfabetismo que ainda tortura 12 milhões de adultos, e garantir a cota de 100% dos jovens brasileiros concluírem o ensino médio com qualidade e qualidade igual. Comportamento parecido com o dos humanistas contra maus tratos, mas sem aceitar a Abolição.

A última trincheira da elite social e econômica é manter para seus filhos o privilégio de uma escola com mais qualidade do que a escola dos filhos dos pobres. Por isso, é difícil um pacto social para uma estratégia que objetive colocar a educação brasileira entre as melhores do mundo, e que todas as escolas sejam concessão pública, abertas para todos os alunos. Mesmo assim, seguindo o exemplo dos abolicionistas, não podemos deixar de lutar por essa bandeira, ainda sabendo que até mesmo aqueles que se incomodam com o vergonhoso quadro de nossa educação vão continuar defendendo os paliativos que caracterizavam os humanistas-contra-os-maus-tratos. E não podemos ficar contra eles, mesmo sabendo a insuficiência.

Chibata nas crianças!

E bons tempos, né?, onde menor podia trabalhar. Hoje, ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar um paralelepípedo de crack, sem problema nenhum 
Jair Bolsonaro em congresso nacional da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). Durante a campanha eleitoral de 2018, o então candidato ja havia declardo que "o ECA tem que ser rasgado e jogado na latrina" por ser "um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil"

 

Não quero ouvir que o vírus vai nos ensinar uma lição

Um. Um bom amigo morreu no começo da epidemia. Era um narrador maravilhoso e o dono do café de Jerusalém Tmol Shilshom. Nesse café ocorreu o segundo encontro com a que hoje é minha esposa. Fomos ouvir David Grossman e depois, enquanto caminhávamos pela rua, ela me disse que seu sonho era se casar com um escritor (não tive outra escolha, portanto). Também ocorreu no mesmo café, meu primeiro encontro com o público como escritor. Cinco pessoas apareceram, mas graças à atenção e às perguntas formuladas pelo dono lembro como uma boa experiência. Com o passar dos anos, eu e o proprietário nos tornamos amigos. E tive o privilégio de aproveitar sua especial habilidade para entabular conversas íntimas. Conversas espirituais e honestas após as quais você se sente melhor. Morreu enquanto dormia. Ao que parece, de um ataque do coração. Ainda que, de fato, ele é uma das vítimas do coronavírus. De noite sentiu dores no peito, mas não quis ir ao hospital por medo do contágio. Era relativamente jovem. Tenho certeza de que, se não fosse pelo vírus, ainda estaria com vida. E eu ainda teria meu amigo. Quando soube de sua morte, tive um grande desejo de estar em companhia das pessoas que o amavam. Perguntei onde seria o funeral. Pela situação, me responderam, a cerimônia ocorreria na mais estrita intimidade familiar. Perguntei pela shivá. E me disseram que seria no domingo à noite pelo Zoom. Uma shivápor Zoom?, disse a minha mulher, chorando. Que terrível. Vírus odioso, acrescentei. Eu o odeio. Não estou disposto a escutar mais ninguém dizendo que o vírus “vai nos ensinar uma lição”, e que “vai nos fazer retornar a uma vida mais simples”. O vírus é um filho da puta.


Dois. Outro amigo meu é ator. Quando éramos adolescentes fomos a aulas de teatro juvenil e após duas lições ficou claro quem tinha talento e quem faria melhor procurando outro caminho para expressar suas angústias. Agora, meu amigo ator está sem trabalho. Pelo vírus já faz meio ano que os teatros estão fechados. Na semana passada, a caixa do supermercado não aceitou seu cartão de crédito. Ele me ligou para me contar que acaba de sair de uma entrevista na escola de sua filha para ocupar uma vaga de professor substituto. O que acontece é que a escola é das “democráticas”, de modo que na comissão de admissão de professores substitutos também há alunos. E na entrevista encontrou com duas amigas de suas filhas, garotas de 10 anos que frequentemente vão a sua casa para comer bolinhos e que lhe fizeram perguntas como: Por que você quer ser professor substituto?, e Quais são seus pontos fracos? E que ouviam suas respostas com rostos sérios. Rimos dessa história, em vez de começar a chorar.

Três. Saí com meu amigo músico para caminhar à uma da madrugada. Caminhamos pelos campos nos arredores da cidade e uivamos à Lua. Observei que quando ela não aparece, ele vai mais devagar. Eu sugiro que, enquanto a epidemia durar, ele faça shows ao vivo no Facebook. E me responde que não pode cantar sem ter o público diante dele. Simplesmente, não consegue. Eu lhe sugiro que aproveite o tempo livre para trabalhar em algo novo. Diz que tenta, mas tudo o que escreve lhe parece irrelevante, pertencente a um mundo que já não existe. Durante o passeio, sem perceber tiramos a máscara e, quando nos aproximamos da cidade, um carro de polícia para ao nosso lado e nos repreende pelo megafone: por que estão sem máscaras? Estamos praticando esporte. Isso é esporte?, caçoa o policial. Vão em passo de tartaruga. E qual é o problema? Responde, irritado, meu amigo. Quando era adolescente já tinha a tendência a se meter em confusões. O policial sai do carro, furioso. Digo sussurrando que cale a boca, mas ele grita para o policial: veja, veja, senhor policial, vamos colocar as máscaras. O policial se aproxima, cassetete nas mãos. Seu olhar diz que passaremos a noite no xadrez. Mas, então, algo muda em seu rosto. Para. Observa detalhadamente meu amigo e diz: um momento, você não é...? Meu amigo admite e o policial diz: adoro suas músicas. Vai lançar coisas novas? Está preparando algo? Meu amigo baixa a cabeça timidamente: sim, estou trabalhando em um novo disco. O policial diz, sensacional, sensacional, nesse momento precisamos de uma boa sacudida. Depois, volta a si, entra em seu papel, ergue um dedo de reprovação a ambos e lança um: cuidado ao não usar máscaras, hein? Há uma segunda onda!

Quatro. Meu amigo ginecologista está contente. Pela segunda onda do vírus menos mulheres vão ao hospital. Por medo do contágio, poucas mulheres se submetem a tratamentos de fertilidade. De repente, sua agenda está vazia e tem muito mais tempo para se dedicar a sua mulher e seus dois filhos. Descobre que, de fato, isso é o que mais gosta de fazer. Em uma das videoconferências me pede: me recomende um livro, por fim tenho tempo para ler. Eu sugiro "O Sol Desvelado", de Isaac Asimov, cuja ação ocorre em um planeta em que as pessoas se relacionam entre si somente através de telas por medo de se infectar com um vírus. Como aperitivo, li para ele uma frase do livro: “Na ausência de contato entre os seres humanos perdemos o interesse central pela vida, desaparecem muitos interesses intelectuais, em grande medida nos abandona a razão de viver. Ver não pode substituir o olhar”.

115 mil ‘bundões’?

Tardou, mas não falhou. O Jairzinho Paz e Amor jogou a toalha e, no domingo, emblematicamente à entrada da Catedral de Brasília, foi o que ele nunca deixou e nunca deixará de ser: Jair Messias Bolsonaro, sempre no ataque, beligerante, grosseiro, despejando sua ira nos repórteres que deixam famílias e amores em casa e enfrentam a covid-19 para cobrir as atividades do presidente-candidato até aos domingos. E ele não deixou barato. Ontem, voltou à carga.

Um repórter fez uma pergunta não só válida, mas obrigatória, e Bolsonaro reagiu à la Bolsonaro: “Vontade de encher a tua boca de porrada”. Pior para ele. A pergunta viralizou, replicada em mais de um milhão de posts em português e outras línguas – “Presidente, por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil do Fabrício Queiroz?”. De boca calada, Bolsonaro some das manchetes e sua popularidade sobe. Quando fala, volta às manchetes, choca o País e passa vergonha no mundo.



Apoiadores registraram o golpe e, na tentativa de se contrapor ao tsunami da internet, editaram o vídeo, sem a pergunta do repórter e deturpando a fala de um feirante. Ele convidava Bolsonaro para visitar “a feirinha na catedral”, mas a legenda diz que é para visitar “a filha na cadeia”. Daí a reação do presidente. Feirante, filha, feira, cadeia... Uma lambança. Mas há quem acredite!

Bolsonaro continuou sem explicar os depósitos e não cogitou pedir desculpas ao jornalista, mas poderia ao menos ficar calado. Até ficaria, não fosse Bolsonaro. E, assim, um evento ontem no Planalto virou um festival de vexames. Começa pelo nome: “Vencendo a covid-19”. Vencendo o quê? Com mais de 115 mil mortos e 3,5 milhões contaminados, o Brasil é o segundo País mais atingido pela pandemia no mundo e virou referência de erros, descaso e falta de coordenação federal. Até o “amigão” Donald Trump já disse isso mais de uma vez.

Segundo: como fazer um evento sobre a pandemia sem dar uma palavra sobre os muitos milhares de mortos? Sem conforto para as famílias e amigos? Sem solidariedade aos que pegaram o vírus, muitos com sequelas graves? A quem o presidente pensa que está enganando ao esconder a realidade? Aliás, ele continua enganando e se enganando quando diz que “sempre foi um atleta das Forças Armadas”. “Sempre”? Como assim? Ele foi do Exército há bem mais de 30 anos e saiu pela porta dos fundos, depois de alucinações com bombas em quartéis.

Numa cerimônia de derrotados para comemorar uma vitória imaginária, não poderia faltar cloroquina. Catados a dedo, compareceram bolsonaristas dispostos a corroborar o constrangedor “Vencendo a covid-19”, badalar um medicamento que não tem comprovação contra esse vírus em lugar nenhum do mundo e dizer amém a qualquer outra barbaridade do presidente.

No triste espetáculo, Bolsonaro se vangloriou do “histórico de atleta” e de ter tido uma forma amena da covid-19, para provocar os jornalistas:

“Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”. Assim, ele atacou não só os jornalistas, a quem quer “encher de porrada”, mas os 115 mil que morreram e os que pegaram a forma mais grave – os fracotes, “bundões”. Como já ensinou Bolsonaro, “tem de enfrentar o vírus como homem, não como moleque”. Ou seja, cara a cara, sem isolamento, aglomerado, sem máscara, sem álcool em gel. Tudo frescura.

A ameaça de “dar porrada” foi diante da Catedral de Brasília e o título do vídeo deturpado, sem a pergunta do repórter sobre o “Queiroz”, é um versículo da Bíblia: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Nada mais apropriado ao momento que vive o Brasil. A verdade está aí, escancarada, à vista de todos. Pena que milhões se recusam a admiti-la e a se libertar.