domingo, 16 de fevereiro de 2025
Matéria de que se faz democracia
Com um livro de memórias, Bill Gates vem a público para se dizer surpreso com a fragilidade da democracia norte-americana. Achava que fosse condição possível a qualquer país do mundo, menos ao seu. A declaração é de uma candura também surpreendente, vinda do bilionário, filantropo, fundador da Microsoft, alinhado entre os homens mais influentes do século. Mas relevante, porque espelha o sentimento de metade das pessoas que não votaram na ameaça a essa democracia. Inaugura a preocupação dos americanos de bom senso com a sua própria estabilidade institucional.
Um caminho simples para se compreender a cândida confiança nos alicerces democráticos da América é recorrer ao modo como isso é figurado no imaginário, matriz de crenças e convicções arraigadas. Com este foco, vale rever dramatizações de júris no cinema para identificar sketches ideológicos da democracia liberal em que a verdade na balança da Justiça parece transparecer na argumentação igualitária dos advogados, ponderada pelo juiz. Mas uma lógica utilitarista de negócios orienta (nos acordos) a redução de sentenças. E a garantia última de justiça é a Constituição, ratificada pela Bíblia. O "grand jury", tribunal de instrução, é um teatro ideológico, que faz igualdade, princípio ético constitucional, equivaler politicamente a liberdade, embora sejam conceitos diferentes.
A crer na encenação hollywoodiana, é nas delegacias e nos tribunais que se visibiliza a essência da república, uma igualdade pró-forma, cúmplice da escravidão e da discriminação dos não brancos, encoberta pela potência material. Já em 1938, Roosevelt temia: "Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país". Ou seja, o fascismo sempre esteve latente no senso comum.
Por isso, cresceu, reinventando-se no neofascismo moldado pela IA. A democracia vendida ao resto do mundo, quando não imposta por força militar, é como o quadro falso de um pintor, sem potência própria, sustentando numa bolha de ar as ilusões da cidadania americana. Agora, sinais de algo errado. Parece ter chegado ao ponto de saturação a forma social que abrigava no formalismo igualitário a formatação do simulacro de liberdade.
Noam Chomsky e outros críticos argutos sempre suspeitaram da corrida desenfreada para os extremos como um modo de encadeamento de coisas que só pode resultar em acontecimentos fatais. A ragilidade percebida por Gates é a fatalidade de um modelo em declínio, não ainda o estertor, mas um índice de sua inanidade. Democracia já é palavra incômoda, assim como diversidade e direitos humanos.
Donald Trump emerge da fossa moral cavada pela saturação. Criatura tóxica, impregna, inundando, espaços vulneráveis, afinado com Steve Bannon, que autodefine o seu método como "flood the zone with shit", isto é, "inundar a área com merda". A proposição expõe o bombardeio circense de ondas escatológicas sobre os cérebros da "parte errante" da população, imigrantes não brancos, minorias em busca de voz pública. Um hipercirco a ser levado a sério: Trump não é mero palhaço, é um elefante "shitting" no picadeiro. A estratégia de Bannon soa definitiva: sua é a matéria em que se transforma a democracia americana.
Um caminho simples para se compreender a cândida confiança nos alicerces democráticos da América é recorrer ao modo como isso é figurado no imaginário, matriz de crenças e convicções arraigadas. Com este foco, vale rever dramatizações de júris no cinema para identificar sketches ideológicos da democracia liberal em que a verdade na balança da Justiça parece transparecer na argumentação igualitária dos advogados, ponderada pelo juiz. Mas uma lógica utilitarista de negócios orienta (nos acordos) a redução de sentenças. E a garantia última de justiça é a Constituição, ratificada pela Bíblia. O "grand jury", tribunal de instrução, é um teatro ideológico, que faz igualdade, princípio ético constitucional, equivaler politicamente a liberdade, embora sejam conceitos diferentes.
A crer na encenação hollywoodiana, é nas delegacias e nos tribunais que se visibiliza a essência da república, uma igualdade pró-forma, cúmplice da escravidão e da discriminação dos não brancos, encoberta pela potência material. Já em 1938, Roosevelt temia: "Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país". Ou seja, o fascismo sempre esteve latente no senso comum.
Por isso, cresceu, reinventando-se no neofascismo moldado pela IA. A democracia vendida ao resto do mundo, quando não imposta por força militar, é como o quadro falso de um pintor, sem potência própria, sustentando numa bolha de ar as ilusões da cidadania americana. Agora, sinais de algo errado. Parece ter chegado ao ponto de saturação a forma social que abrigava no formalismo igualitário a formatação do simulacro de liberdade.
Noam Chomsky e outros críticos argutos sempre suspeitaram da corrida desenfreada para os extremos como um modo de encadeamento de coisas que só pode resultar em acontecimentos fatais. A ragilidade percebida por Gates é a fatalidade de um modelo em declínio, não ainda o estertor, mas um índice de sua inanidade. Democracia já é palavra incômoda, assim como diversidade e direitos humanos.
Donald Trump emerge da fossa moral cavada pela saturação. Criatura tóxica, impregna, inundando, espaços vulneráveis, afinado com Steve Bannon, que autodefine o seu método como "flood the zone with shit", isto é, "inundar a área com merda". A proposição expõe o bombardeio circense de ondas escatológicas sobre os cérebros da "parte errante" da população, imigrantes não brancos, minorias em busca de voz pública. Um hipercirco a ser levado a sério: Trump não é mero palhaço, é um elefante "shitting" no picadeiro. A estratégia de Bannon soa definitiva: sua é a matéria em que se transforma a democracia americana.
A mentira é a base da civilização moderna
É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc... A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. ...
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António, os Gavroches, e os moujiks da Rússia nos tempos de hoje. Porque é que só a gente sincera, inculta e bárbara sabe realizar a obra que o génio anuncia? Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo António? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens moujiks? A enxada será irmã da pena? A fome de pão paracer-se-à com a fome de luz?...
Teixeira de Pascoaes, "A Saudade e o Saudosismo"
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. ...
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António, os Gavroches, e os moujiks da Rússia nos tempos de hoje. Porque é que só a gente sincera, inculta e bárbara sabe realizar a obra que o génio anuncia? Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo António? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens moujiks? A enxada será irmã da pena? A fome de pão paracer-se-à com a fome de luz?...
Teixeira de Pascoaes, "A Saudade e o Saudosismo"
Suspensão da lei antissuborno dos EUA afeta América Latina
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, suspendeu por 180 dias, para análise e possível modificação, uma lei que proíbe as empresas americanas de oferecerem propina a autoridades estrangeiras para obter acordos comerciais.
A Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA, na sigla em inglês) foi promulgada em 1977, após o escândalo de Watergate. Os EUA vêm aplicando-a vigorosamente contra o suborno há décadas.
A FCPA é fundamental, pois permite a investigação de corrupção em grandes grupos corporativos de todo o mundo que estão listados na bolsa de valores dos EUA, assim como em empresas que fazem negócios nos EUA e movimentam milhões de dólares.
"Os Estados Unidos têm uma aplicação de suas leis que frequentemente ultrapassa fronteiras devido ao seu papel na economia global e ao seu sistema bancário, onde é processado o maior número de transações do mundo", explica Cristián Francos, advogado de Washington especializado em anticorrupção e crimes financeiros complexos.
Francos menciona o caráter "exemplar" da FCPA dos EUA para outros países.
A Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA, na sigla em inglês) foi promulgada em 1977, após o escândalo de Watergate. Os EUA vêm aplicando-a vigorosamente contra o suborno há décadas.
A FCPA é fundamental, pois permite a investigação de corrupção em grandes grupos corporativos de todo o mundo que estão listados na bolsa de valores dos EUA, assim como em empresas que fazem negócios nos EUA e movimentam milhões de dólares.
"Os Estados Unidos têm uma aplicação de suas leis que frequentemente ultrapassa fronteiras devido ao seu papel na economia global e ao seu sistema bancário, onde é processado o maior número de transações do mundo", explica Cristián Francos, advogado de Washington especializado em anticorrupção e crimes financeiros complexos.
Francos menciona o caráter "exemplar" da FCPA dos EUA para outros países.
Para o advogado, a suspensão da lei vai "na direção errada", já que isso deve ter como efeito colateral o enfraquecimento de práticas anticorrupção nos países latino-americanos. "Porque durante esse período não haveria investigações dos EUA contra empresas que oferecem subornos", diz. E ainda não se sabe quais serão as consequências de uma emenda à FCPA ou de seu completo revogamento, acrescenta.
"Mais de 40 países têm leis inspiradas na FCPA, e os EUA têm sido líderes nessa questão, de modo que a medida de Trump tem um forte caráter simbólico", ressalta Jonas von Hoffmann, cientista político e pesquisador do Instituto Alemão para Estudos Globais e Locais (Giga, na sigla em inglês) em Hamburgo.
Segundo ele, a suspensão parece indicar que, para Trump, "o principal compromisso é com os negócios e com a competitividade dos Estados Unidos, e não com o combate à corrupção ou o fortalecimento do Estado de Direito".
"Essa lei é uma ferramenta central na luta contra o suborno transnacional, com um enorme impacto em todo o mundo. É uma lei que tem contribuído para promover um clima de maior integridade nos negócios, concorrência leal, e exerce um poder dissuasivo quando uma empresa cogita pagar um suborno", diz Luciana Torchiaro, responsável da Transparência Internacional para a América Latina e o Caribe. "Isso pode afetar a integridade geral dos negócios na região, desincentivando empresas e indivíduos a se comportarem de maneira ética", acrescenta.
Por outro lado, Francos enfatiza que "a lei não tem apenas um impacto muito positivo para as empresas dos EUA, mas também para as multinacionais de outros países".
Ele menciona o "caso emblemático" da Siemens, acusada de pagar bilhões em subornos no Brasil, na Argentina e no México. "Após uma investigação minuciosa do Departamento de Justiça, juntamente com a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC), foram detectadas práticas corruptas da Siemens em dezenas de países", lembra. A empresa acabou tendo que pagar altas multas.
Mais recentemente, o caso Odebrecht abalou a América Latina. A construtora brasileira pagou milhões de dólares a 12 governos latino-americanos para ganhar contratos de obras públicas, o que envolveu políticos e empresários, num esquema desvendado pela Operação Lava Jato.
"Tanto a Siemens quanto a Odebrecht tiveram que se submeter à lei americana", enfatiza Francos. "Porque havia algum ponto de conexão com os Estados Unidos."
Von Hoffmann lembra ainda que "grande parte das informações que temos sobre o quão sistemático foi o esquema de subornos no caso Odebrecht e quanto foi pago em cada país vem do julgamento da Odebrecht nos EUA".
Mais corrupção, mais violência e menos direitos humanos
"O impacto que o cancelamento dessa lei teria é muito grande, pois quando uma empresa paga propina, é para obter favores políticos ou um contrato; sem passar, por exemplo, por um processo de licitação ou controle ambiental", afirma Torchiaro. "Isso pode ter um impacto enorme sobre os direitos humanos, como vimos no caso da Odebrecht. No final das contas, as obras de infraestrutura que não são construídas, ou que são de má qualidade, afetam a todos e têm consequências ambientais drásticas", enfatiza.
"Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Peru apresentam baixa conformidade quando se trata de investigar e punir o suborno. E no caso do México, a conformidade é muito escassa", diz Torchiaro.
Francos explica que "historicamente, a FCPA foi aplicada, nos casos mais importantes, a empresas não americanas, e não foram as empresas americanas que perderam dinheiro, como Trump justifica a suspensão da lei".
Embora as leis anticorrupção na América Latina "continuem a ser aplicadas", von Hoffmann esclarece que "os recursos dos EUA têm sido frequentemente fundamentais para aumentar a eficácia da luta contra a corrupção".
"Se essa lei for cancelada, isso teria consequências muito graves para os cidadãos da América Latina e do mundo, pois aumentaria a corrupção na região", enfatiza Torchiaro. Isso poderia até colocar em risco a estabilidade internacional, prevê ela, citando um comunicado da Transparência Internacional publicado na terça-feira.
O motivo: "Países onde o nível de corrupção é mais alto tendem a ter mais conflitos, mais violência". Além disso, "o aumento do suborno transnacional incentivará os fluxos financeiros ilícitos, dinheiro sujo que não será investido na solução dos problemas das pessoas e enriquecerá alguns poucos".
"Para meus amigos, tudo; para meus inimigos, a lei"
De acordo com von Hoffmann, essa suspensão "abre a porta para o uso discricionário da lei, que é algo infelizmente muito conhecido na América Latina: 'Para meus amigos, tudo; para meus inimigos, a lei'".
"Acho que muitas das coisas que Trump está tentando fazer são imediatas e temporárias, e teremos que ver o quanto disso se manterá nos tribunais", avalia o advogado Francos. "Os EUA têm um sistema muito bom de freios e contrapesos, e espero que eles continuem funcionando."
Embora seja uma alternativa menos vinculante, "o cumprimento efetivo da Convenção da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) contra o suborno transnacional pelos países signatários poderia ser um vetor para mitigar os efeitos de um possível cancelamento dessa lei dos EUA", sugere Torchiaro.
Segundo ele, a suspensão parece indicar que, para Trump, "o principal compromisso é com os negócios e com a competitividade dos Estados Unidos, e não com o combate à corrupção ou o fortalecimento do Estado de Direito".
"Essa lei é uma ferramenta central na luta contra o suborno transnacional, com um enorme impacto em todo o mundo. É uma lei que tem contribuído para promover um clima de maior integridade nos negócios, concorrência leal, e exerce um poder dissuasivo quando uma empresa cogita pagar um suborno", diz Luciana Torchiaro, responsável da Transparência Internacional para a América Latina e o Caribe. "Isso pode afetar a integridade geral dos negócios na região, desincentivando empresas e indivíduos a se comportarem de maneira ética", acrescenta.
Por outro lado, Francos enfatiza que "a lei não tem apenas um impacto muito positivo para as empresas dos EUA, mas também para as multinacionais de outros países".
Ele menciona o "caso emblemático" da Siemens, acusada de pagar bilhões em subornos no Brasil, na Argentina e no México. "Após uma investigação minuciosa do Departamento de Justiça, juntamente com a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC), foram detectadas práticas corruptas da Siemens em dezenas de países", lembra. A empresa acabou tendo que pagar altas multas.
Mais recentemente, o caso Odebrecht abalou a América Latina. A construtora brasileira pagou milhões de dólares a 12 governos latino-americanos para ganhar contratos de obras públicas, o que envolveu políticos e empresários, num esquema desvendado pela Operação Lava Jato.
"Tanto a Siemens quanto a Odebrecht tiveram que se submeter à lei americana", enfatiza Francos. "Porque havia algum ponto de conexão com os Estados Unidos."
Von Hoffmann lembra ainda que "grande parte das informações que temos sobre o quão sistemático foi o esquema de subornos no caso Odebrecht e quanto foi pago em cada país vem do julgamento da Odebrecht nos EUA".
Mais corrupção, mais violência e menos direitos humanos
"O impacto que o cancelamento dessa lei teria é muito grande, pois quando uma empresa paga propina, é para obter favores políticos ou um contrato; sem passar, por exemplo, por um processo de licitação ou controle ambiental", afirma Torchiaro. "Isso pode ter um impacto enorme sobre os direitos humanos, como vimos no caso da Odebrecht. No final das contas, as obras de infraestrutura que não são construídas, ou que são de má qualidade, afetam a todos e têm consequências ambientais drásticas", enfatiza.
"Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Peru apresentam baixa conformidade quando se trata de investigar e punir o suborno. E no caso do México, a conformidade é muito escassa", diz Torchiaro.
Francos explica que "historicamente, a FCPA foi aplicada, nos casos mais importantes, a empresas não americanas, e não foram as empresas americanas que perderam dinheiro, como Trump justifica a suspensão da lei".
Embora as leis anticorrupção na América Latina "continuem a ser aplicadas", von Hoffmann esclarece que "os recursos dos EUA têm sido frequentemente fundamentais para aumentar a eficácia da luta contra a corrupção".
"Se essa lei for cancelada, isso teria consequências muito graves para os cidadãos da América Latina e do mundo, pois aumentaria a corrupção na região", enfatiza Torchiaro. Isso poderia até colocar em risco a estabilidade internacional, prevê ela, citando um comunicado da Transparência Internacional publicado na terça-feira.
O motivo: "Países onde o nível de corrupção é mais alto tendem a ter mais conflitos, mais violência". Além disso, "o aumento do suborno transnacional incentivará os fluxos financeiros ilícitos, dinheiro sujo que não será investido na solução dos problemas das pessoas e enriquecerá alguns poucos".
"Para meus amigos, tudo; para meus inimigos, a lei"
De acordo com von Hoffmann, essa suspensão "abre a porta para o uso discricionário da lei, que é algo infelizmente muito conhecido na América Latina: 'Para meus amigos, tudo; para meus inimigos, a lei'".
"Acho que muitas das coisas que Trump está tentando fazer são imediatas e temporárias, e teremos que ver o quanto disso se manterá nos tribunais", avalia o advogado Francos. "Os EUA têm um sistema muito bom de freios e contrapesos, e espero que eles continuem funcionando."
Embora seja uma alternativa menos vinculante, "o cumprimento efetivo da Convenção da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) contra o suborno transnacional pelos países signatários poderia ser um vetor para mitigar os efeitos de um possível cancelamento dessa lei dos EUA", sugere Torchiaro.
Onde está a revolução de que a educação brasileira precisa?
O governo acendeu uma fagulha de esperança com o programa Mais Professores para o Brasil e seu Pé-de-Meia Licenciaturas. A iniciativa, que injeta R$ 1.050 mensais em bolsas para futuros docentes, fez brilhar os olhos até dos mais céticos. Afinal, incentivar uma nova geração de professores é semear o futuro. Mas, como todo remendo em políticas compensatórias, há contradições que não podemos ignorar.
Em sala de aula, discutimos o Consenso de Washington e seu legado neoliberal, ainda vivo nas entranhas de programas sociais brasileiros. Chegamos a um entendimento comum de que a educação brasileira vive um ciclo de traumas. Este ciclo ocorre quando não se abordam problemas com a devida seriedade. Lembrando Freud, os traumas não tratados tendem a ressurgir.
O Pé-de-Meia surge como um analgésico, mas a pergunta que ecoa entre graduandos é incômoda: "E depois da formatura haverá vagas?". O medo da insegurança profissional persiste. Quando o Estado garantirá, de fato, estabilidade e valorização à carreira docente?
Uma colega de profissão, professora do ensino médio, compartilhou algo que me encheu o peito de alegria: seus alunos planejam usar o "pé-de-meia" para visitar museus. Imagine! Jovens enxergando na bolsa não só um alívio imediato, mas um passaporte para o capital cultural. Durante anos, sonhei com iniciativas assim – que transformassem o acesso à cultura num ato coletivo, não em privilégio de poucos.
Mas a realidade é ácida. Muitos docentes, mesmo com mestrado ou doutorado, não têm recursos para explorar exposições, teatros ou viagens pedagógicas.
Um professor que pisa no lugar histórico sobre o qual ensina há décadas, mas que viu apenas em livros e vídeos, vive uma emoção indescritível. Seu coração palpita, a aula ganha alma. A tecnoglobalização até nos permite "viajar" virtualmente, mas nada substitui a presença diante de um monumento antigo ou o silêncio reverente de um museu.
Aos meus alunos e futuros colegas, digo: se a bolsa chegar, invistam em livros, em experiências que alimentem a mente. O dinheiro é ponte, não destino. Nem tudo precisa ser "instagramável".
O Estado, porém, precisa ir além. Políticas paliativas não bastam. É urgente um projeto que una incentivo financeiro, garantia de carreira e acesso irrestrito à cultura.
Assim, aos meus estimados milhares de colegas da docência, mesmo que nunca os venha a conhecer pessoalmente, desejo que não enfrentem as estatísticas desalentadoras como as do estado de São Paulo, onde a predominância de professores temporários supera a de efetivos.
Enquanto isso, sigo esperançoso. Cada aluno que planeja uma excursão cultural, cada licenciando que sonha em transformar vidas, me lembra que a educação ainda pulsa. Resta ao poder público priorizar o humano em meio aos números. A hora é agora – antes que a esperança vire só nostalgia.
Em sala de aula, discutimos o Consenso de Washington e seu legado neoliberal, ainda vivo nas entranhas de programas sociais brasileiros. Chegamos a um entendimento comum de que a educação brasileira vive um ciclo de traumas. Este ciclo ocorre quando não se abordam problemas com a devida seriedade. Lembrando Freud, os traumas não tratados tendem a ressurgir.
O Pé-de-Meia surge como um analgésico, mas a pergunta que ecoa entre graduandos é incômoda: "E depois da formatura haverá vagas?". O medo da insegurança profissional persiste. Quando o Estado garantirá, de fato, estabilidade e valorização à carreira docente?
Uma colega de profissão, professora do ensino médio, compartilhou algo que me encheu o peito de alegria: seus alunos planejam usar o "pé-de-meia" para visitar museus. Imagine! Jovens enxergando na bolsa não só um alívio imediato, mas um passaporte para o capital cultural. Durante anos, sonhei com iniciativas assim – que transformassem o acesso à cultura num ato coletivo, não em privilégio de poucos.
Mas a realidade é ácida. Muitos docentes, mesmo com mestrado ou doutorado, não têm recursos para explorar exposições, teatros ou viagens pedagógicas.
Um professor que pisa no lugar histórico sobre o qual ensina há décadas, mas que viu apenas em livros e vídeos, vive uma emoção indescritível. Seu coração palpita, a aula ganha alma. A tecnoglobalização até nos permite "viajar" virtualmente, mas nada substitui a presença diante de um monumento antigo ou o silêncio reverente de um museu.
Aos meus alunos e futuros colegas, digo: se a bolsa chegar, invistam em livros, em experiências que alimentem a mente. O dinheiro é ponte, não destino. Nem tudo precisa ser "instagramável".
O Estado, porém, precisa ir além. Políticas paliativas não bastam. É urgente um projeto que una incentivo financeiro, garantia de carreira e acesso irrestrito à cultura.
Assim, aos meus estimados milhares de colegas da docência, mesmo que nunca os venha a conhecer pessoalmente, desejo que não enfrentem as estatísticas desalentadoras como as do estado de São Paulo, onde a predominância de professores temporários supera a de efetivos.
Enquanto isso, sigo esperançoso. Cada aluno que planeja uma excursão cultural, cada licenciando que sonha em transformar vidas, me lembra que a educação ainda pulsa. Resta ao poder público priorizar o humano em meio aos números. A hora é agora – antes que a esperança vire só nostalgia.
Já não se pode dizer nada
“Sinto-me livre. Já podemos dizer ‘retardado’ e ‘maricas’ sem medo de sermos cancelados. É um novo dia.”
As palavras de um banqueiro de topo, sob anonimato, ao Financial Times em vésperas do regresso de Donald Trump à Casa Branca, resumem bem o estado do debate público sobre a liberdade de expressão nos Estados Unidos.
Sempre foi possível dizer e escrever disparates neste país onde a liberdade para o fazer quase não conhece limites. Junto às caixas de supermercado, revistas como a Globe fazem capa com histórias completamente inventadas (Sabia que a rainha Camila está internada numa clínica de reabilitação para alcoólicos? E que Barack Obama está a divorciar-se de Michelle?). Na internet, redes sociais como o X tornaram o insulto numa profissão bem remunerada. Na política, é-se eleito com um chorrilho de mentiras.
Mas até nos EUA há limites, claro. Alex Jones foi à falência, condenado por difamação, depois de ter feito uma fortuna a negar a morte das crianças assassinadas em Sandy Hook. Esses limites são tênues, contudo. Trump voltou a ser Presidente depois de ter incitado uma multidão a atacar o Capitólio. E é possível marchar no centro de uma cidade norte-americana, de braço em riste e empunhando uma bandeira nazi, porque é visto como um exercício de liberdade política. E nem as arcaicas leis anti-obscenidade, raramente invocadas, impedem os EUA de ser o grande produtor e distribuidor mundial de pornografia.
É possível dizer e escrever quase tudo nos EUA, portanto. O que sempre houve, e continuará a haver, são as consequências sociais do que se diz e escreve. É possível insultar um colega de trabalho? Sim, mas a insubordinação e a hostilidade no local de trabalho são motivos universalmente aceites para despedimento. Pode-se contar uma piada racista entre amigos? Sim, mas não se estranhe se um deles deixar de recebê-lo em casa.
Isto sempre foi claro para quem quis perceber. Quem não quis, cavalgou durante a última década e meia o pânico moral do “já não se pode dizer nada”, da “cultura do cancelamento” e da “ditadura do politicamente correto”. Mas os seus grandes mártires sobreviveram e prosperaram. Humoristas supostamente “cancelados” acumularam fortunas e especiais na Netflix. Comentadores de outro modo irrelevantes construíram carreiras mediáticas. E políticos marginais alcançaram o centro do poder.
O “já não se pode dizer nada” foi um dos chavões do populismo contemporâneo que devolveu Trump à Casa Branca, sobretudo com a promessa de combate a restrições à liberdade de expressão nas redes sociais. O assunto merecia um debate adulto e civilizado. Quase todos os espaços, digitais ou físicos, têm exigências mínimas de civilidade. O diabo está nos detalhes, no que constitui essa exigência mínima, na obtenção de um equilíbrio aceitável entre a liberdade e a civilidade. Mas esses espaços devem também ter a liberdade de fazer essa sua reflexão e tomar as suas decisões.
No caso norte-americano, surge um equívoco recorrente quando se fala disto e é importante esclarecê-lo: a famosa Primeira Emenda da Constituição impede o Estado de restringir a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de culto e de participação política; não impede uma rede social de criar as suas próprias regras.
Paradoxalmente, mas sem grande surpresa para quem quis perceber o que sempre esteve em causa, é a Administração Trump que viola neste momento, e em múltiplas frentes, a Primeira Emenda.
O Governo norte-americano proíbe agora a utilização de um vasto conjunto de palavras nos seus sites e documentos, nas escolas e instituições financiadas pelo Estado, nas Forças Armadas, bem como nas candidaturas a verbas para investigação científica, para organizações não-governamentais ou para programas de assistência humanitária. Palavras como “transgénero”, “diversidade”, “desinformação”, “ativismo”, “institucional”, “racismo” ou “género” são algumas que entram em listas negras com dezenas ou centenas de vocábulos.
As listas de palavras proibidas evidenciam flagrantemente o seu propósito: proibir certos tipos de discursos e de atividades conotados com agendas progressistas. Mas acabam por gerar danos colaterais: termos que têm significados muito concretos nas ciências exatas e que não são correspondentes ao seu uso quotidiano, como “viés”, também podem motivar ações disciplinares ou o cancelamento de verbas.
A purga de palavras é também um instrumento na estratégia mais vasta de Donald Trump e de Elon Musk para reconstruir o Estado à imagem da sua agenda e dos seus interesses. Todo o trabalho de vastíssimas áreas da administração federal, da educação à ciência, passando pela ajuda humanitária ou pela regulação de produtos financeiros, encontra-se paralisado há quase um mês enquanto milhares de programas e iniciativas são passados à lupa, em busca de termos proibidos. Encerram-se agências, gabinetes e projetos. Suspendem-se e despedem-se funcionários. Rasgam-se contratos e congelam-se milhares de milhões de dólares em fundos devidamente aprovados pelo Congresso. Apagam-se arquivos valiosíssimos.
O direito à autodeterminação de gênero está agora largamente proibido nas Forças Armadas, na administração pública e nas escolas financiadas pelo Estado. Ninguém era antes obrigado a usar pronomes neutros; agora ninguém pode fazê-lo. Teme-se ainda que as tais leis arcaicas contra conteúdo obsceno venham a ser reinterpretadas e recuperadas para restringir o acesso ao aborto a nível federal e para criminalizar qualquer expressão pública por parte de indivíduos LGBTQ. Parece rebuscado, mas é uma estratégia que começa a fazer caminho nos tribunais, e é um assunto a que voltarei nos próximos meses.
A Administração Trump viola também a Primeira Emenda ao atacar e punir jornalistas por fazerem o seu trabalho. A agência noticiosa Associated Press foi esta semana expulsa da Sala Oval e de outros espaços da Casa Branca por ter optado por continuar a referir-se ao golfo do México como tal, e não como “golfo da América”, como Trump desejaria. Um artigo de opinião em tom crítico assinado por Eugene Robinson no Washington Post valeu uma publicação do Presidente nas redes sociais a dizer que o colunista “devia ser despedido imediatamente”. Katherine Long, do Wall Street Journal, foi também alvo do mesmo apelo, e de insultos pessoais, por ter revelado que um dos membros do gabinete de Elon Musk era autor de publicações racistas.
No Congresso, o Partido Republicano prepara comissões de inquérito a órgãos de comunicação social que Trump associa à oposição, como as cadeias públicas NPR e PBS. Televisões como a CBS, a NBC e a ABC vão ser investigadas pela Comissão Federal de Comunicações por queixas de cobertura desfavorável aos republicanos durante a última campanha eleitoral. Em alguns casos, as respectivas administrações aceitaram já celebrar acordos extrajudiciais multimilionários, mesmo que os seus jornalistas reiterem que fizeram apenas o seu trabalho.
Estes, sim, são exemplos reais de policiamento de palavras e de restrição, pelo Estado, da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.
Os Estados Unidos estão a terminar a quarta semana do segundo mandato de Trump e têm pela frente outros quatro anos. Não sairão tão cedo da armadilha em que entraram, atrás do “já não se pode dizer nada”. Mas talvez sirvam de aviso aos que, fora das suas fronteiras, se preocupam verdadeiramente com a liberdade. Serão os mesmos que passaram a última década a vociferar contra o “wokismo” e o “politicamente correto” que, curiosamente, nunca os impediu de escrever e falar? Não é claro. De momento, parecem preferir exercer o seu direito ao silêncio.
As palavras de um banqueiro de topo, sob anonimato, ao Financial Times em vésperas do regresso de Donald Trump à Casa Branca, resumem bem o estado do debate público sobre a liberdade de expressão nos Estados Unidos.
Sempre foi possível dizer e escrever disparates neste país onde a liberdade para o fazer quase não conhece limites. Junto às caixas de supermercado, revistas como a Globe fazem capa com histórias completamente inventadas (Sabia que a rainha Camila está internada numa clínica de reabilitação para alcoólicos? E que Barack Obama está a divorciar-se de Michelle?). Na internet, redes sociais como o X tornaram o insulto numa profissão bem remunerada. Na política, é-se eleito com um chorrilho de mentiras.
Mas até nos EUA há limites, claro. Alex Jones foi à falência, condenado por difamação, depois de ter feito uma fortuna a negar a morte das crianças assassinadas em Sandy Hook. Esses limites são tênues, contudo. Trump voltou a ser Presidente depois de ter incitado uma multidão a atacar o Capitólio. E é possível marchar no centro de uma cidade norte-americana, de braço em riste e empunhando uma bandeira nazi, porque é visto como um exercício de liberdade política. E nem as arcaicas leis anti-obscenidade, raramente invocadas, impedem os EUA de ser o grande produtor e distribuidor mundial de pornografia.
É possível dizer e escrever quase tudo nos EUA, portanto. O que sempre houve, e continuará a haver, são as consequências sociais do que se diz e escreve. É possível insultar um colega de trabalho? Sim, mas a insubordinação e a hostilidade no local de trabalho são motivos universalmente aceites para despedimento. Pode-se contar uma piada racista entre amigos? Sim, mas não se estranhe se um deles deixar de recebê-lo em casa.
Isto sempre foi claro para quem quis perceber. Quem não quis, cavalgou durante a última década e meia o pânico moral do “já não se pode dizer nada”, da “cultura do cancelamento” e da “ditadura do politicamente correto”. Mas os seus grandes mártires sobreviveram e prosperaram. Humoristas supostamente “cancelados” acumularam fortunas e especiais na Netflix. Comentadores de outro modo irrelevantes construíram carreiras mediáticas. E políticos marginais alcançaram o centro do poder.
O “já não se pode dizer nada” foi um dos chavões do populismo contemporâneo que devolveu Trump à Casa Branca, sobretudo com a promessa de combate a restrições à liberdade de expressão nas redes sociais. O assunto merecia um debate adulto e civilizado. Quase todos os espaços, digitais ou físicos, têm exigências mínimas de civilidade. O diabo está nos detalhes, no que constitui essa exigência mínima, na obtenção de um equilíbrio aceitável entre a liberdade e a civilidade. Mas esses espaços devem também ter a liberdade de fazer essa sua reflexão e tomar as suas decisões.
No caso norte-americano, surge um equívoco recorrente quando se fala disto e é importante esclarecê-lo: a famosa Primeira Emenda da Constituição impede o Estado de restringir a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de culto e de participação política; não impede uma rede social de criar as suas próprias regras.
Paradoxalmente, mas sem grande surpresa para quem quis perceber o que sempre esteve em causa, é a Administração Trump que viola neste momento, e em múltiplas frentes, a Primeira Emenda.
O Governo norte-americano proíbe agora a utilização de um vasto conjunto de palavras nos seus sites e documentos, nas escolas e instituições financiadas pelo Estado, nas Forças Armadas, bem como nas candidaturas a verbas para investigação científica, para organizações não-governamentais ou para programas de assistência humanitária. Palavras como “transgénero”, “diversidade”, “desinformação”, “ativismo”, “institucional”, “racismo” ou “género” são algumas que entram em listas negras com dezenas ou centenas de vocábulos.
As listas de palavras proibidas evidenciam flagrantemente o seu propósito: proibir certos tipos de discursos e de atividades conotados com agendas progressistas. Mas acabam por gerar danos colaterais: termos que têm significados muito concretos nas ciências exatas e que não são correspondentes ao seu uso quotidiano, como “viés”, também podem motivar ações disciplinares ou o cancelamento de verbas.
A purga de palavras é também um instrumento na estratégia mais vasta de Donald Trump e de Elon Musk para reconstruir o Estado à imagem da sua agenda e dos seus interesses. Todo o trabalho de vastíssimas áreas da administração federal, da educação à ciência, passando pela ajuda humanitária ou pela regulação de produtos financeiros, encontra-se paralisado há quase um mês enquanto milhares de programas e iniciativas são passados à lupa, em busca de termos proibidos. Encerram-se agências, gabinetes e projetos. Suspendem-se e despedem-se funcionários. Rasgam-se contratos e congelam-se milhares de milhões de dólares em fundos devidamente aprovados pelo Congresso. Apagam-se arquivos valiosíssimos.
O direito à autodeterminação de gênero está agora largamente proibido nas Forças Armadas, na administração pública e nas escolas financiadas pelo Estado. Ninguém era antes obrigado a usar pronomes neutros; agora ninguém pode fazê-lo. Teme-se ainda que as tais leis arcaicas contra conteúdo obsceno venham a ser reinterpretadas e recuperadas para restringir o acesso ao aborto a nível federal e para criminalizar qualquer expressão pública por parte de indivíduos LGBTQ. Parece rebuscado, mas é uma estratégia que começa a fazer caminho nos tribunais, e é um assunto a que voltarei nos próximos meses.
A Administração Trump viola também a Primeira Emenda ao atacar e punir jornalistas por fazerem o seu trabalho. A agência noticiosa Associated Press foi esta semana expulsa da Sala Oval e de outros espaços da Casa Branca por ter optado por continuar a referir-se ao golfo do México como tal, e não como “golfo da América”, como Trump desejaria. Um artigo de opinião em tom crítico assinado por Eugene Robinson no Washington Post valeu uma publicação do Presidente nas redes sociais a dizer que o colunista “devia ser despedido imediatamente”. Katherine Long, do Wall Street Journal, foi também alvo do mesmo apelo, e de insultos pessoais, por ter revelado que um dos membros do gabinete de Elon Musk era autor de publicações racistas.
No Congresso, o Partido Republicano prepara comissões de inquérito a órgãos de comunicação social que Trump associa à oposição, como as cadeias públicas NPR e PBS. Televisões como a CBS, a NBC e a ABC vão ser investigadas pela Comissão Federal de Comunicações por queixas de cobertura desfavorável aos republicanos durante a última campanha eleitoral. Em alguns casos, as respectivas administrações aceitaram já celebrar acordos extrajudiciais multimilionários, mesmo que os seus jornalistas reiterem que fizeram apenas o seu trabalho.
Estes, sim, são exemplos reais de policiamento de palavras e de restrição, pelo Estado, da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.
Os Estados Unidos estão a terminar a quarta semana do segundo mandato de Trump e têm pela frente outros quatro anos. Não sairão tão cedo da armadilha em que entraram, atrás do “já não se pode dizer nada”. Mas talvez sirvam de aviso aos que, fora das suas fronteiras, se preocupam verdadeiramente com a liberdade. Serão os mesmos que passaram a última década a vociferar contra o “wokismo” e o “politicamente correto” que, curiosamente, nunca os impediu de escrever e falar? Não é claro. De momento, parecem preferir exercer o seu direito ao silêncio.
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