quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Brasil vesgo

 

Que interesse têm os pobres em distinguir Bolsonaro e Lula?

As elites econômicas e os mais pobres não costumam ter ideologia. As primeiras têm somente interesses, e os segundos, fome e desconfiança em todos os poderes. A diferença é que os mais pobres têm a riqueza e o desperdício diante dos olhos, enquanto os satisfeitos colocaram um véu sobre esse mundo da miséria para não vê-la. Eles o anulam dentro de si mesmos para não ter de ouvir seus gritos de raiva e se manchar com suas lágrimas.

Por isso, nem as elites da ganância nem os pobres de tudo costumam ter ideologia. Os poderosos porque estão bem com qualquer política que lhes permita manter seus privilégios. Os pobres porque a única coisa importante para eles é sobreviver. Qualquer Governo, de qualquer cor, será bem visto por eles se lhes fizer chegar as sobras da opulência e do desperdício. Ou será que conheciam a ideologia de Lula e hoje conhecem a de Bolsonaro? Basta-lhes a dor de cada dia.

Assim, os vários populismos de direita e de esquerda estão interessados em que a pobreza não acabe para poder oferecer, em troca de votos, os restos do banquete. Assim os mais necessitados não mostrarão as garras nem terão vontade ou tempo de se rebelar.


Por que acreditam que hoje, diante da pandemia, as classes altas têm mais medo do que as necessitadas, embora sejam estas as que mais morrem? Porque a vida para os mais pobres conta pouco. Estão acostumados a ser sempre os mais sacrificados e esquecidos à própria sorte. Existe um ditado que me espantou quando cheguei ao Brasil, que ouvi de um trabalhador pobre e semianalfabeto: “Pobre tem que morrer”.

Esses pobres estão anestesiados por tanta violência e discriminação acumulada ao longo da vida. Os ricos e os mercados estão interessados nas massas apenas como consumidoras. É por isso que os Governos mais populistas preferem lhes dar eletrodomésticos em vez de cultura e educação. Os supermercados os anestesiam.

Às vezes nos queixamos de que os pobres são passivos, que não se rebelam contra a injustiça. Sem dúvida, se aqueles que vivem apinhados nos guetos das grandes cidades, esmagados entre a violência do tráfico e do Estado, decidissem descer à planície, à cidade da riqueza e das casas blindadas, fariam tremer o sistema. Mas estão ocupados demais em poder colocar comida nos pratos de seus filhos todos os dias.

Do tempo dos romanos até hoje os pobres são acusados de se contentar com “pão e circo”. Será que o Estado de bem-estar social lhes oferece algo mais? Garante-lhes, pelo menos, conforme exige a Constituição, trabalho, habitação, saúde e educação de qualidade?

Assim, ocupados como estão com a sobrevivência, muitos não têm tempo nem forças para as batalhas políticas e sociais. O que a liberdade ou a democracia significa para eles? O que mais entendem é sobre escravidão. E o capitalismo cada vez mais feroz que domina nossa sociedade os entretém e os compra com pedaços de espelho como fizeram os primeiros colonizadores com os nativos ou os traficantes negreiros com os escravos.

Passam os séculos, a tecnologia avança e o homem começa a conquistar o cosmos, mas os pobres continuam sendo o alvo do atraso e da violência. Todo o resto: ideologia, democracia ou ditadura escorrega sobre seus ombros curvados pela ignomínia das escravidões e por tantas violências acumuladas.

Como escreveu com lucidez há poucos dias Carla Jiménez, responsável por esta edição brasileira do EL PAÍS, em uma doída análise da situação atual, para muitos dos milhões à margem da sociedade a diferença entre ideologias opostas é apenas “um risco de giz no chão que se apaga a cada invasão policial injustificada, ou nos soterramentos de barracos improvisados”.

Para os mais pobres, Bolsonaro ou Lula podem ser igualmente os novos deuses daqueles que esperam alívio ao seu inferno ou dois políticos corruptos como todos. Sabemos que não é verdade, mas para quem tem fome e sofre violência e desprezo há séculos, nossas categorias políticas não servem. Eles vivem mais olhando para o chão do que para as estrelas, com medo de perder as sobras que lhes jogam do alto do poder.

Que não se esqueçam disso os políticos, que nas horas dramáticas como as que o Brasil vive tentem mais uma vez envenená-los com falsas promessas, porque os pobres têm boa memória e saberão, na hora certa, unir suas forças, suas frustrações e injustiças atávicas e fazer ouvir sua voz. E poderiam fazer tremer nossa frágil segurança burguesa bordada sobre os escombros de uma civilização cada vez mais cruel que dá as costas à tragédia vivida por todos os discriminados. Eles são tristemente a grande maioria deste país rico e criativo que deveria ser de todos e que um punhado de poderosos sequestrou e colocou de tapete a seus pés.

Rumo ou deriva?

Os brilhantes almirantes junto a Jair Bolsonaro podiam explicar ao capitão do Exército que um azimute constante em relação a um obstáculo (outro navio, por exemplo, que também está se movendo) vai dar em colisão. O presidente quer gastar para manter a popularidade, e está encantado com as vozes (do ministro do Desenvolvimento Regional, mas não só) que lhe dizem que estaria unindo o útil (reeleger-se) ao agradável (fazer o bem para pessoas ainda mais necessitadas

O obstáculo é o formidável rochedo fiscal, que está aumentando de tamanho. À medida que 2021 se aproxima, fica próximo do irresistível esse canto da sereia de que a excepcionalidade atual imposta pela calamidade pública podia ser esticada um pouquinho mais, só um pouquinho mais, só para algumas obras já orçadas, já iniciadas, necessárias até por razões humanitárias (como levar água para o Nordeste, por exemplo).


Sim, esse argumento procede, tem sólidos fundamentos num país miserável no qual metade da população nem esgoto tem. Sim, as circunstâncias da dupla crise de saúde e economia obrigam a mudar os cálculos (políticos, sobretudo), alteram prioridades (como reforma do Estado ou privatizações) e impõem gastar sem olhar para o fundo do cofre. Afinal, não é o que uma Angela Merkel está fazendo? Deixem os economistas debatendo entre si se esse “novo normal” jogou por terra tudo o que aprenderam na vida acadêmica, pautada ou não pela ortodoxia.

O problema no caso brasileiro, no qual Bolsonaro é uma expressão perfeita de mentalidades e atitudes generalizadas, é o conceito de excepcionalidade. Não há nada de novo no fato de a sociedade brasileira conviver com gastos públicos muito acima da capacidade do nosso espaço econômico de financiá-los. Ao contrário, é o que estamos fazendo há décadas. Também não é novidade alguma o fato de que nos acostumamos a acomodar interesses setoriais e regionais espalhando pela nação inteira os custos dessas acomodações – traduzindo: benefícios, renúncias, incentivos, proteções, privilégios, regimes especiais, a gritante diferença entre o emprego público e o privado.

Circulam no Congresso, e no Planalto, números dando conta de que mais da metade dos 60 milhões de brasileiros que recebem ajuda emergencial acredita que ela será permanente e que a quase totalidade dessas pessoas não está preparada para o momento em que essa ajuda cessar. Para montar já para o ano que vem um grande programa social para Bolsonaro chamar de seu o ministro da Economia, Paulo Guedes, precisa sentar com o Congresso e decidir no que mexer nos R$ 350 bilhões de isenções tributárias – ou seja, onde cortar nas “acomodações” tão ao gosto de nossa sociedade.

Com TCU, STF e o presidente da Câmara dos Deputados avisando que puxadinho no teto de gastos não passa, e que a abertura de créditos extraordinários via MP também não, é com o Centrão que Bolsonaro terá de se entender. O começo dessa relação parece auspicioso: as “novas” lideranças políticas abraçadas pelo presidente garantem a ele governabilidade e a agradável sensação de que o pior da crise ficou para trás, agora que vamos gastar. Convenientemente, ignora-se o fato de que o fisiologismo, que azeita o que for necessário em Brasília, é dono de insaciável apetite (o que isso tem de excepcional?).

Some-se a isto um fator subjetivo muito elucidativo quando se considera a rapidez com que nos acostumamos ao número de mortos na pandemia (um horror em escala mundial): é a de que estamos aparentemente confortáveis dentro da excepcionalidade. Esses tempos “excepcionais” se parecem tanto à normalidade, deixando de lado a chateação das máscaras e as escolas fechadas, com as crianças azucrinando em casa.

Na ponte de comando em Brasília, muitas vezes paralisada por tantas mãos do Executivo, Legislativo e Judiciário mexendo no leme, traçar um rumo é notoriamente uma questão de alta complexidade e mantê-lo também, ainda mais com um “skipper” errático. Que está correndo o risco de confundir rumo com deriva.

Apagar o passado

A consciência demanda organizar o passado. Há muitas formas de lidar com o tempo. Em sociedades sem escrita, nas quais a morte de um velho seria equivalente à perda parcial de muitos fatos e mitos — algo próximo da destruição de uma biblioteca nacional —, trata-se de um desastre inafiançável. 

Será que um dia vamos conhecer nosso passado milenar? Ou existem passagens que simplesmente sumiram, como a poeira das galáxias e das nossas invisíveis almas?

O leitor pode se sentir incomodado pelo assunto. Eu, cronista enviesado, que, se não estou, devo ingressar na cavilosa lista dos antifascistas convictos, apenas reitero que muito do que fizemos é esquecido, senão propositadamente apagado, porque seria prova de incoerências, crimes, projetos hediondos e contradições incontornáveis, sobretudo em coletivos fundados na autoridade do pai, do rei, do supremo sacerdote ou do juiz.

Investigando nossas vidas, descobrimos coisas que apagamos e muitas outras que programamos esquecer. Quando esquecemos de boa-fé e eventualmente ferimos alguém, acertamos o mal-estar por meio de pedidos de desculpa ou perdão. No mundo jurídico-político anistiamos, formalmente suprimindo fatos passados. Reinterpretações desfazem e mudam o passado. Pedir desculpas, perdoar e anistiar “lavam a alma” e são passaportes para recomeços. Mas, para apagar ou esconder o passado debaixo do tapete, como é comum no Brasil, é necessário um penoso, discutível e complexo refazer histórico-social — tipo, como esquecer a ditadura militar. É preciso o autoritarismo forte presente para controlar, conforme sabia o Grande Irmão de George Orwell, o passado.

Eis dois episódios que agasalhei na memória. Ambos ocorreram com um professor, inglês até a alma, que havia programado um jantar de sexta-feira com a esposa e, ao chegar em casa, com ela desentendeu-se. Algo banal, como uma toalha suja, despertou ressentimentos e, com eles, um inesperado ódio expresso em memórias amargas e frases agressivas. Em meio à tempestade, porém, o marido abriu um parêntese similar a uma desculpa e denunciou o mal-entendido. “Querida”, disse, “isso não está acontecendo. Eu vou sair e entrar novamente em casa e nós vamos jantar conforme combinado”. E assim foi feito.



Um outro evento com o mesmo professor confirma, quem sabe, essa capacidade humana de desconstruir, cujo melhor e mais dramático exemplo é o elo entre paz e guerra. Depois de uma impecável conferência em impecável estilo britânico para uma plateia encantada numa universidade do sul dos Estados Unidos, fomos jantar com um colega que hospedou o conferencista. Na manhã seguinte, fui tomar café com o anfitrião, que perguntou ao professor num misto de curiosidade e provocação: “Eu acho”, disse, “que fui muito ofensivo ontem, não?” Ao que, com notável elegância, o professor retrucou: “O que ocorreu ontem foi tão desagradável, mas tão desagradável, que eu simplesmente apaguei da minha memória”.

Se fazemos, podemos desfazer. Democracias podem desandar em regimes policialescos que trazem do passado escravocrático um viés semelhante ao dos nazifascismos e estalinismos. 

Vivemos um momento no qual se acende um alerta de apagão político-moral que suspende o bom senso. A direita bolsonarista tem como simbólico um inacreditável terraplanismo — um contrassenso indicativo de uma postura, digamos o mínimo, radicalmente irracional. Na política, não há dúvida de que se quer um presidencialismo absolutista. Uma outra contradição que, ao lado de um patológico familismo presidencial, completa a negação de solenes promessas de campanha. 

Em suma: testemunhamos tentativas de apagar o dito que se transforma num não dito, incompatível com uma necessária estabilidade capaz de minar a autoestima e o respeito internacional, sobretudo em tempos de pandemia num mundo globalizado.

Se esquecemos as implicações morais da escravidão e as obrigações igualitárias da República, por que, como adverte o jornalista Carlos Alberto Sardenberg no GLOBO, não livramos, por meio de um apagão legal, o principal condenado da Lava-Jato, avocando que o magistrado foi parcial? 

Mas, se isso for admitido, como o plano da lei e o caráter dos magistrados ficam perante todos os condenados na mesma operação anticorrupção que ainda está em curso?

Para quem duvida que o autoritarismo protofascista nacional é avesso ao igualitarismo, seria cabível livrar somente o ex-presidente, quando todos os seus asseclas foram investigados por um mesmo magistrado? Para os leigos em jurisprudência, tal livramento seria mais um “Você sabe com quem está falando?” na área criminal. Sabemos que a realidade pode ser manipulada, mas, por isso mesmo, temos consciência de limites. Um deles é a morte ou, no caso, o supremo suicídio da estrutura jurídica nacional. Esse instrumento que sustenta o regime republicano num simples ideal: o de que todos são iguais perante a lei, no caso, os julgados e condenados...

Resta candidamente avisar que apagar passados impede construir futuros.
Roberto DaMatta

Pensamento do Dia

 

Sem caráter, como toda nuvem

A frase é conhecida: “Política é como nuvem —você olha e ela está de um jeito; olha de novo e já mudou”. Deve ter sido inventada na Europa do século 18, mas, no Brasil, é atribuída ao mineiro Magalhães Pinto (1909-1996). Em março de 1964, como governador de Minas Gerais, ele se passava por aliado do presidente João Goulart. No dia 31, sentindo a mudança na nuvem, partiu para derrubá-lo. Mas, ao contrário do que esperava, não ganhou nada com isso. Bem feito, quem o mandou estar com a cabeça nas nuvens?



Há políticos que mudam tanto que nem as nuvens os acompanham. Vide Jair Bolsonaro. Só os papalvos o acreditavam diferente, mas de hora em hora se parece mais com os políticos que fingia combater. Ao sentir, por exemplo, que suas bravatas o estavam isolando, fez como todos os governos antes dele —comprou o centrão, com ministérios, bancos e verbas. Uma das moedas dessa compra foi passar o pano em Michel Temer e mandá-lo oficialmente ao Líbano.

A Lava Jato, em nome da qual Bolsonaro se elegeu, tornou-se a inimiga a destruir, no que ele se juntou a Lula, José Dirceu, Gleisi Hoffmann, Temer, Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Renan Calheiros, Romero Jucá e, agora, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra, todos, por acaso, políticos cujas contas não fecham.

Há dias, José Sarney insinuou que deseja uma aproximação —que Bolsonaro, se for esperto, aceitará. Sarney é indispensável para qualquer governo que queira se garantir, motivo pelo qual Lula e Dilma Rousseff se deram tão bem com ele durante 14 anos. Bolsonaro, aliás, refreou seu desprezo pelo Nordeste e, como Lula, também decidiu garantir lá os votos para sua reeleição. Mas, para isso, terá de gastar dinheiro que não tem, no que ameaça ser acusado de irresponsabilidade fiscal, como Dilma.

Os bolsonaristas não elegeram um mito, como eles acreditam, mas uma nuvem —sem caráter, como toda nuvem.

A guilhotina do cancelamento

Devemos ao iluminismo do século 18 o direito ao dissenso e ao livre pensamento. Antes, as divergências de ideias eram resolvidas pela via da eliminação física. Basta lembrar os tempos da Santa Inquisição em que os hereges iam para a fogueira. Ou que em 1616 Galileu Galilei, cientista, físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano, entrou para o index da Congregação do Santo Ofício e foi ameaçado de pena de morte ao comprovar e defender a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, segundo a qual a Terra e os planetas giravam em torno do sol. Teve de se desdizer publicamente, mas não deixou de estar certo.

A Revolução Francesa, com seus valores de liberdade, igualdade e fraternidade, abriu uma nova era, a idade da razão, produto do século das luzes. Os pensadores do iluminismo, John Locke, Montesquieu, Rousseau, Adam Smith, nos deixaram um legado inestimável.

Nem por isso, a sociedade moderna deixou de viver momentos de supressão das discordâncias das ideias pela via da violência, da eliminação física e da destruição de reputações. O nazismo alemão, a ditadura soviética, a revolução cultural chinesa, o macarthismo dos anos 50 nos Estados Unidos são exemplos disto. Ao final do século 20, com a derrocada do “socialismo real”, o ciclo do totalitarismo parecia ter se encerrado e os valores liberais pareciam ser os grandes vitoriosos.

Como a história não é linear, voltamos a viver novos retrocessos no século 21. A fogueira onde os “hereges” contemporâneos são queimados não é mais a do Santo Ofício. Nem a guilhotina que serviu para decapitar "inimigos da Revolução" em Paris. Hoje quem desempenha este papel são as redes sociais, onde o fenômeno da cultura do cancelamento reina livre, leve e solto.

Por meio dele, ataca-se a sobrevivência econômica de empresas e pessoas, destrói-se reputações de forma irreversível. Pratica-se um revisionismo histórico que ignora as circunstâncias de cada era, como se fosse possível analisar fatos acontecidos há mais de cinco séculos com a métrica e valores de hoje. Figuras históricas como Cristóvão Colombo, Monteiro Lobato e Princesa Isabel são submetidas ao crivo da nova inquisição.

Do ponto de vista ideológico, a cultura do cancelamento é pluralista. Identitaristas de esquerda e de direita a praticam exaustivamente. Um artigo da antropóloga Lilia Schwarcz sobre o álbum visual Black is King, da cantora Beyoncé, foi o suficiente para uma campanha de difamação deflagrada por movimentos negros, furibundos porque a antropóloga criticou o álbum por glamourizar a negritude. Levada ao pelourinho, teve de fazer o “mea culpa”, muito embora não haja uma só vírgula de racismo em sua análise.

Caso semelhante aconteceu com a autora da série Harry Porter, J.K Rowling, execrada nas redes sociais por ter dado uma declaração na qual dizia que havia diferenças biológicas entre o homem e a mulher. Não deu outra, foi acusada de machista e teve de se explicar publicamente.

A tática de atacar a sobrevivência das pessoas tem se mostrado eficaz. A influenciadora digital Gabriela Pugliesi teve prejuízo de 2 milhões de reais depois de ser cancelada por ter dado uma festa durante a pandemia. Nos Estados Unidos, um pesquisador contratado por uma consultoria progressista foi demitido por ter divulgado no twitter um estudo no qual mostrava que, nos anos 60, protestos antirracistas violentos aumentavam o percentual de votos nos candidatos republicanos e quando aconteciam de forma pacífica favoreciam os democratas nas eleições.



Em vez de refletir sobre o estudo, militantes da causa antirracista usaram as redes sociais para exigir a demissão do pesquisador, por ver em seu estudo uma crítica às manifestações em protesto ao bárbaro assassinato de George Floyd.

Uma frase infeliz, um gesto mal interpretado, são motivos para destruir reputações construídas ao longo de toda uma vida. O médico Drauzio Varella deveria ser uma unanimidade nacional. Em vez disso, foi vítima de uma campanha difamatória por ter dado um abraço numa transexual presa por assassinar e estuprar uma criança.

A cultura do cancelamento reproduz o que o macarthismo fazia nos anos 50. O clima de intolerância, de supressão do contraditório, tornou-se irrespirável. É preciso abrir as janelas para os ventos da liberdade reoxigenar a humanidade.

A carta de 150 intelectuais americanos das mais variadas tendências políticas, divulgada no mês passado, foi um sopro de esperança. Entre seus signatários estão personalidades de esquerda como o linguista Noam Chomsky, escritores como o consagrado Salman Rushdie, autor de Os Versos Satânicos e vítima da intolerância do fundamentalismo islâmico, ou a autora e roteirista de Harry Porter, J. K. Rowling.

Diz a Carta: “A livre troca de informações e ideias, força vital de uma sociedade liberal, tem diariamente se tornado mais restrita. Enquanto esperávamos ver a censura partir da direita radical, ela está se espalhando também em nossa cultura: uma intolerância a visões opostas, um apelo à vergonha pública e ao ostracismo e a tendência de dissolver questões políticas complexas com uma certeza moral ofuscante".

Os autores tocam num ponto nevrálgico. Não está em questão a justeza da causa dos direitos da mulher, dos negros, da diversidade de gênero, dos índios. Mas uma visão distorcida dessas causas findam por desservi-las ao segregar, em vez de unir. De certa forma, essa crítica já foi feita por Mark Lilla, em seu livro “O progressista de ontem e o de amanhã”. O antropólogo e historiador Antônio Risério também pôs o dedo na ferida ao apontar que movimentos que nasceram inclusivos se tornaram excludentes ao caírem no identitarismo.

O grande mal da cultura do cancelamento é seu reducionismo. O mundo é bem mais complexo do que o simplismo das redes sociais e suas guilhotinas.

O projeto conservador

Há 100 anos, o livro de um autor até então desconhecido, com 37 anos, fez estrondoso sucesso literário e político: Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Viana. Escrito entre 1916 e 1918, levou dois anos para ser publicado, pela livraria José Olympio. Somente um intelectual da época ousou contestá-lo, Astrojildo Pereira, um dos grandes biógrafos de Machado de Assis, jornalista, crítico literário e anarquista, que se converteria ao marxismo e, dois anos depois, fundaria o Partido Comunista. O que dizia Viana? Ele definia três arquétipos para o povo brasileiro: o sertanejo, o matuto e o gaúcho, os quais pretendia analisar, desenvolvendo um projeto de pesquisa ambicioso, ao qual deu sequência com a publicação meteórica de mais quatro ensaios: O Idealismo da Constituição (1920), Pequenos Estudos da Psicologia Social (1921), Evolução do Povo Brasileiro (1923) e O Ocaso do Império (1924). O primeiro volume de Populações Meridionais do Brasil dedicou aos paulistas, fluminenses e mineiros; o segundo, ao campeador rio-grandense. Partia do homem para criticar as instituições da época.

“O sentimento das nossas realidades, tão sólido e seguro nos velhos capitães gerais, desapareceu, com efeito, das nossas classes dirigentes: há um século vivemos praticamente em pleno sonho. Os métodos objetivos e práticos de administração e legislação desses estadistas coloniais foram inteiramente abandonados pelos que têm dirigido o país depois da independência. O grande movimento democrático da Revolução Francesa; as agitações parlamentares inglesas; o espírito liberal das instituições que regem a república americana, tudo isto exerceu e exerce sobre nossos dirigentes, políticos, estadistas, legisladores, publicistas, uma fascinação magnética que lhes daltoniza completamente a visão nacional dos nossos problemas. Sob esse fascínio inelutável, perdem a noção objetiva do Brasil real e criam para uso deles um Brasil artificial e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europa, sorte de Cosmorama extravagante. Sobre o fundo de florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e repassam cenas e figuras tipicamente europeias.”


Oliveira Viana faz um ataque frontal aos liberais brasileiros, corroborado pela iniquidade social que havia sido desnudada por Euclides da Cunha, ao descrever a Guerra de Canudos, n’Os Sertões. Concluía que era preciso “coragem infinita” para “contravir ostensivamente às ideias de liberdade e construir um poderoso Estado centralizado, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional”. Ao dizer que era impossível reproduzir aqui no Brasil o parlamentarismo inglês, o liberalismo democrático à francesa, ou o federalismo e descentralização republicana ao estilo americano, como lembra o falecido jornalista e cientista político Gildo Marçal Brandão, em Linhagens do Pensamento Político Brasileiro (Hucitec), Oliveira Viana recomendava uma intervenção radical pelo Estado, destinado a promover a industrialização e criação de bases sociais aptas a sustentar governos liberais, o que alguns viram como uma espécie de “autoritarismo instrumental”.

Música para a jovem oficialidade do Exército, que daria início às rebeliões tenentistas, e para o castilhismo gaúcho, o suprassumo do nosso republicanismo positivista mais autoritário, que desaguariam na Revolução de 1930. A consagração das ideias antissistema de Oliveira Viana viria com o Estado Novo, do qual foi o grande ideólogo, e a “Polaca”, a Constituição de 1937, redigida por Francisco Campos e outorgada pelo ditador Getúlio Vargas. Ironicamente, Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), destaca que o colapso político da República Velha interrompe mudanças importantes que estavam em curso, alavancadas por nosso mercado interno e a economia do sertão, como o aumento de rentabilidade da exportação de café, a grande acumulação de capital dos cafeicultores paulistas, que apostaram na industrialização, e não no patrimonialismo, ao contrário das oligarquias rurais que Viana enaltecera.

Segundo Caldeira, em 1920, o Brasil tinha 30 milhões de habitantes, 13,3 mil indústrias, 275 mil operários, produzia 775Gwh de energia elétrica. O Correio transportava 642 milhões de itens. Havia 28,5 mil quilômetros de ferrovias, que transportavam 16,5 milhões de toneladas. Os investimentos, estagnados durante a guerra, eram de 1,1 milhão de libras esterlinas e chegariam a 2,8 milhões, em 1929. Exportava-se 11,5 milhões de sacas de café, cujo rendimento era de 40,4 milhões de libras esterlinas. O percentual da população alfabetizada chegava a 28,8%. Era uma época em que o Estado arrecadava 6% do PIB, ou seja, o setor privado ficava com 94%. A União era responsável por 3,5% desse montante, os Estados com 2,% e os municípios com 0,5%. O país crescia graças ao desenvolvimento capitalista, a conexão entre a economia do sertão e a economia de exportação financiava a industrialização.

Entretanto, o Centenário da Independência desencadearia o questionamento de quase tudo, com a Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista, as rebeliões tenentistas, como a Revolta Paulista de 1924 e a Coluna Prestes, no mesmo ano. Qual seria o projeto de país para os 100 anos seguintes? À época, esse debate foi hegemonizado pelas ideias de Oliveira Viana, que tiveram sua grande recidiva após o golpe de 1964, no Sesquicentenário da Independência, no auge “milagre econômico” do regime militar. Agora, no governo Bolsonaro, a dois anos do bicentenário da independência, elas parecem renascer das cinzas, como fênix, diante da grande interrogação: que país seremos daqui a 100 anos?

'A revolução dos bichos' de Orwell: quem são os porcos?

A fábula de George Orwell se passa numa fazenda: "O Sr. Jones, proprietário da Granja do Solar, fechou o galinheiro à noite, mas estava bêbado demais para lembrar-se de fechar também as vigias".

É com palavras simples que o britânico George Orwell (1903-1950), cujo nome verdadeiro era Eric Arthur Blair, começa sua narrativa sobre os animais de uma fazenda que planejam uma revolução contra o proprietário explorador. O mestre da crítica social jamais poderia imaginar que A revolução dos bichos se tornaria um clássico da literatura política.

Orwell escreveu o livro entre fins de 1943 e 1944. Em seu país natal, porém, ele não encontrou nenhuma editora que o publicasse, pois o que a princípio parecia uma história infantil inofensiva era, na verdade, uma sátira sombria e uma dura acusação contra a ditadura de Stalin na União Soviética.

E como a URSS era aliada do Reino Unido contra a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial ainda em curso, a publicação de tal história não parecia nada oportuna. Em 1945, Animal Farm foi finalmente lançada pela Secker & Warburg.

E de que trata a fábula? Com um discurso impressionante, o idoso e respeitado javali Velho Major abre os olhos dos animais da fazenda para a incompetência do proprietário Sr. Jones, um fazendeiro constantemente bêbado, e classifica os humanos como exploradores que precisavam ser expulsos por uma revolução. Mas ele também adverte sobre o risco de se tornar igual aos humanos: "Todos os animais são iguais, independentemente de sua força ou inteligência."

Quando o Velho Major morre logo após o discurso, os animais aproveitam a oportunidade para expulsar o fazendeiro Jones da fazenda, sob a liderança dos porcos Napoleão e Bola de Neve. No começo, todos os animais governam juntos e tudo fica melhor: eles trabalham duro porque trabalham para si próprios e são solidários uns com os outros.

A Granja do Solar é então rebatizada Granja dos Bichos. Os espertos porcos, porém, logo assumem o comando e gradualmente transformam sua supremacia em ditadura, ofuscando tudo aquilo de que os animais queriam se livrar. Os porcos justificam seu poder com o slogan: "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros".

As diferenças entre humanos e porcos como governantes se diluem no final do romance – também de forma visual. Os outros animais da fazenda não conseguem mais reconhecer quem é gente e quem é porco, ou quem é capitalista e quem é socialista.

A revolução dos bichos descreve o curso de uma revolução condenada ao fracasso. Orwell acreditava que as revoluções são capazes de mudar o poder de mãos. As estruturas sociais básicas, entretanto, permanecem intocadas: os poucos poderosos continuam a explorar uma maioria sem direitos.



A revolução dos bichos foi estritamente proibida na União Soviética e seus Estados-satélites. E no entanto George Orwell era um esquerdista convicto: membro do Partido Trabalhista Independente inglês, que na Guerra Civil Espanhola chegou a lutar nas fileiras do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), um grupo comunista visto como concorrência pelo stalinismo soviético.

A primeira tradução alemã do livro apareceu em 1946. Na República Democrática da Alemanha (RDA), no entanto, o livro extremamente desconfortável permaneceu censurado até a queda do Muro de Berlim e a dissolução da Alemanha Oriental, em 1989, assim como outra obra de Orwell, 1984.

Após a morte de Orwell, em 1950, o serviço americano de inteligência CIA comprou os direitos do filme para ganhar vantagem contra a União Soviética na Guerra Fria. O desenho animado A revolução dos bichos foi produzido no Reino Unido entre 1951 e 1954 por John Halas e Joy Batchelor.

Embora guiando-se basicamente pelo original, o enredo desemboca numa segunda revolução contra o domínio dos porcos. Afinal, em plena Guerra Fria, a CIA dificilmente deixaria capitalistas e socialistas em condição de pé de igualdade, como Orwell fez no final do romance.

Na adaptação cinematográfica de 1999, John Stephenson mudou o enredo consideravelmente ao incorporar o colapso da União Soviética em 1989 e terminar com um final feliz próprio para crianças: após anos sob o domínio dos porcos, novos humanos reassumem o controle da fazenda. Os animais gritam: "... e finalmente ficamos livres!"

Com seus livros, o jornalista e escritor britânico George Orwell queria chamar a atenção para as mazelas políticas, muitas vezes empregando para tal a forma de sátira. A revolução dos bichos e 1984, publicado em 1949, estão entre suas obras mais famosas. Neste último, ele também demonstrou o que significa viver num Estado autoritário em que há vigilância total e onde os cidadãos são manipulados pela propaganda.

A revolução dos bichos é uma fábula que se encaixa em qualquer sistema totalitário. E que, apesar de seus 75 anos de existência, permanece tristemente atual.