quinta-feira, 30 de julho de 2020

Gente não é nada

O que são as pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos
Eduardo Galeano

Sinais dos tempos

Em uma carta Ao Povo de Deus, 152 bispos católicos dispararam críticas acerbas ao governo, alertando para uma “tempestade perfeita” que combina “uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente”.

Os bispos declaram-se estarrecidos com o “apelo a ideias obscurantistas”; os “grosseiros erros” na educação e meio ambiente; a repugnância “pela liberdade de pensamento e de imprensa”; a “desqualificação das relações diplomáticas com vários países”; a insensibilidade “para com os familiares dos mortos”; e especialmente a “omissão, apatia e rechaço” a populações vulneráveis, como as indígenas. Eles reprovam ainda a associação “perniciosa” entre religião e poder no Estado laico, e em particular os grupos fundamentalistas e autoritários empenhados em “manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, e criar tensões entre igrejas e seus líderes”.


A carta, a bem da verdade, não representa oficialmente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Por sinal, o fato de ela ter sido “vazada” antes do foro adequado para esta manifestação, a assembleia anual, sugere que os signatários talvez não estivessem seguros de obter a maioria de seus mais de 400 membros. É de notar também que ela não foi assinada pelos representantes de importantes dioceses. Com efeito, os manifestos da Igreja costumam se voltar antes à exortação ao bem do que à agressão particularizada a agentes do mal – a odiar o pecado e amar o pecador.

Os signatários afirmam não ter interesses “político-partidários” ou “ideológicos”. Mas é de perguntar até que ponto lograram seu intento de promover um “amplo diálogo” entre “humanistas” comprometidos com a democracia. As vituperações genéricas e descontextualizadas contra o “neoliberalismo” ou as reformas previdenciária ou trabalhista não ajudam. Até porque, para o bem ou para o mal, o governo nunca se comprometeu com uma agenda liberal e as reformas foram antes uma consecução do Congresso após um amplo escrutínio democrático. Chama a atenção ainda a omissão dos bispos em criticar a omissão do governo no combate à corrupção – que paradoxalmente foi uma de suas alavancas eleitorais. A pauta, como se sabe, é sensível a parte da militância de esquerda – notadamente a petista – que vê na indignação popular com a corrupção um movimento orquestrado pelas elites “neoliberais”.

Mas, apesar de seus indisfarçáveis matizes partidários, as principais críticas da carta são consensuais entre os setores mais moderados e esclarecidos da sociedade brasileira e internacional. A própria CNBB já criticou as políticas do governo na área ambiental e indígena e acompanhou outras instituições nas denúncias do movimento Pacto Pela Vida à participação do governo nas crises sanitária, social e política. No todo, a carta é um importante sinal de que as instâncias religiosas, após tentarem se manter neutras em tantas controvérsias políticas, estão chegando a um ponto de saturação, sugerindo um possível esvaziamento do que há de apoio ao governo na comunidade católica.

Em uma passagem do Evangelho de Lucas, Jesus, instado a solucionar uma disputa patrimonial entre dois irmãos, responde: “Quem me designou juiz de vocês?”. Então ele adverte contra os perigos das ambições terrenas, e acusa a hipocrisia daqueles que leem com exatidão os sinais meteorológicos no céu, mas negligenciam os sinais do tempo presente. “Quando algum de vocês estiver indo com seu adversário para o magistrado, faça tudo para se reconciliar com ele no caminho; para que ele não o arraste ao juiz, o juiz o entregue ao oficial de justiça, e o oficial de justiça o jogue na prisão.”

Embora os bispos não tenham sido exímios nesta arte da reconciliação – longe disso –, a sua carta é mais um sério alerta de que o governo caminha na direção do abismo. Já passou da hora de o presidente aprender a ler os sinais.

Brasil: 'Que venham os turistas!'

Maarten Wolterink (Holanda)

Uma história de capivara

Tenho uma capivara linda e enorme na sala, em frente a uma janela. Ela é recortada em madeira, no tamanho natural de uma capivara de médio porte, e é vermelha com flores amarelas num dos lados, e branca com listras azuis do outro. É completamente desproporcional ao espaço que ocupa, mas quem liga? Ela é uma das marcas da casa, junto com um triceratops verde e igualmente desengonçado que também não faz muito sentido. A vida é assim, vai juntando pessoas e coisas desconexas que, com o passar dos anos, se afeiçoam umas às outras.


Ganhei a capivara do Mário Maluco, dono do Palaphita Kitch, que tinha uma coleção delas para enfeitar o gramado em frente ao quiosque. Há muitos e muitos anos — quando ele tinha acabado de inventar essas capivaras — passamos uma tarde jogando conversa fora, enquanto esperávamos a verdadeira capivara aparecer. Ela vinha jantar umas plantinhas ali ao lado com certa regularidade e, naqueles primeiros tempos, cada visita sua era saudada com estardalhaço, porque a sua presença garantia para os clientes uma rodada de “capivodka” por conta da casa.

Pois nesse dia específico ela não veio, e ficamos frustrados; mas o Mario, perfeito gentleman, arrancou uma das capivaras que enfeitavam a área, como se colhesse uma flor, e meu deu.

Desde então, ela se incorporou à casa.

Algum tempo depois, quando a Bia fez anos, nós a espetamos em frente ao prédio para avisar aos amigos onde era a festa. No meio da noite e da confusão, o Mario me ligou: a capivara estava de volta ao Palaphita, e ele queria saber se era isso mesmo.

— Não quer mais a capivara?

— Ela está aqui na minha frente.

Larguei a festa e fui lá ver do que se tratava; era só atravessar a rua e andar cem metros. Cheguei e, de fato, lá estava ela, a própria, com suas flores e listras. Pergunta daqui, pergunta dali, logo descobrimos o que havia acontecido: quando viram a capivara espetada em frente ao meu prédio, os guardas noturnos acharam que tinha sido vítima de algum bêbado cheio de ideias, e a levaram “de volta”.

Nunca mais ela saiu de casa.

As capivaras irmãs da minha ficaram gastas e foram substituídas por outras (não tão bonitas); o tempo passou. Anteontem, depois de 16 anos de bons e belos serviços, o Palaphita que tanto amamos foi demolido pelos fiscais da prefeitura do bispo Crivella. A Secretaria de Fazenda teve a cara dura de afirmar que o quiosque — com uma personalidade única, perfeitamente integrado à paisagem — “estava ilegal”. Imaginem: 16 anos de “ilegalidade”. Há uma briga judicial sórdida pelo espaço.

Soube pela Lu Lacerda que Mário Maluco foi para Portugal, onde pretende abrir um novo negócio (e para onde vai levar as suas ararinhas Waiwai e Mura). Mais um 7 x 1. Uma empresa chamada Fine Food's (!) pretende ocupar o lugar com mais um naco de terra de ninguém, um daqueles não-espaços sem caráter, que existem aos montes em todos os shoppings, de Dubai a Kuala Lumpur.

Assim morre um bairro, assim morre uma cidade, assim morre um país que não faz por onde conservar e estimular os seus cidadãos mais criativos.

Boa sorte, Mário meu amigo. A capivara manda lembranças.

A volta do 'mais do mesmo'

O governo Bolsonaro perdeu o ímpeto das reformas. É normal, mas após o segundo ano de governo. Entretanto, a pandemia antecipou a inércia. E, se levarmos em conta o papel coadjuvante que representou na reforma da Previdência, o presidente Jair Bolsonaro nunca teve muita motivação para protagonizar as reformas econômicas. Sua agenda prioritária sempre foi outra, o conservadorismo nos costumes, que também anda encalhado no Congresso, e o fortalecimento do Executivo em relação aos demais Poderes, como fato consumado na política. Se ainda houver alguma reforma este ano, será a tributária, na qual as propostas em discussão na Câmara e no Senado são mais ambiciosas do que o projeto apresentado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para embrulhar a recriação do imposto sobre operações financeiras. Uma solução simples para um problema muito mais complexo, que seria modernizar o nosso sistema tributário para torná-lo mais eficiente, equilibrado para os entes federados e mais justo, socialmente.

Entre os economistas, há uma compreensão quase unânime de que a dívida pública, se nada for feito, trará de volta a inflação no próximo ano (o termômetro é o câmbio), que somente não está acontecendo por causa da recessão e do desemprego. Mesmo economistas como Samuel Pessoa e Armínio Fraga, que defendem políticas de austeridade fiscal, já admitem a criação de um novo imposto para evitar o colapso do governo federal no próximo ano. A alternativa que está se discutindo, a partir da proposta de Guedes, é a volta da CPMF. A tese é ampliar a base de arrecadação para ter a menor alíquota do imposto. Com isso, o governo espera resolver seu problema de caixa e evitar a insolvência.


Como aconteceu na reforma da Previdência, uma reforma tributária depende muito mais da Câmara e do Senado do que do empenho do Palácio do Planalto. O projeto encaminhado por Paulo Guedes não tem nada a ver como isso: seu foco é a falta de caixa. Por causa da pandemia, o governo está quebrado e não tem recursos para implantar o programa Renda Brasil, que substituirá o Bolsa Família, menina dos olhos de Bolsonaro para sua reeleição. Na pauta da Câmara e do Senado, respectivamente, as PECs 44 e 110 são outra coisa: uma reforma tributária de verdade.

A PEC 45/2019, elaborada por Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, tem como relator o deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB. É defendida também pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que pretende aprovar a reforma tributária antes de deixar o comando da Casa. O ponto central do projeto é a substituição de cinco tributos por um único imposto, que seria chamado de imposto sobre bens e serviços (IBS). O modelo é inspirado em sistemas utilizados em outros países, que reúnem em um único imposto sobre valor adicionado (IVA) toda a tributação sobre o consumo, com uma alíquota uniforme. Economistas como Samuel Pessoa defendem a proposta.

A PEC 110/2019, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly, em discussão no Senado, porém, tem a preferência dos tributaristas, porque promove uma simplificação tributária mais ampla, unificando nove impostos. A PEC, porém, facilita a concessão de incentivos fiscais a alguns setores produtivos e atividades econômicas específicas — como de alimentação básica, saneamento básico, educação infantil, o que não é bem-visto pelos fiscalistas, porque gera subsídios cruzados e guerra fiscal.

Voltando ao ponto de partida. O governo não aposta em nenhuma dos dois projetos já em tramitação. Fatiou a sua proposta de reforma tributária, porque o interesse maior de Guedes é sair do sufoco orçamentário. O problema é que essa estratégia mexe com os nervos da equipe econômica, recrutada entre economistas liberais, cuja motivação para participar do governo está longe de ser apenas financeira, é ideológica. Se Guedes jogar a toalha e aderir ao “mais do mesmo”, a equipe implode.

É muito difícil ser bolsonaista

Inegáveis a devoção, a energia e a habilidade que os apoiadores do governo demonstram. A capacidade infinita de enxergar seus ídolos com filtros coloridos não é estranha a nenhum militante, mas a vida do bolsonarista é um malabarismo permanente.

A começar pela exaltação da cloroquina. Todos virados em direção ao Palácio da Alvorada, a meca dos "patriotas", para louvar um remédio que inúmeras pesquisas apontam como ineficaz contra o coronavírus.

Rejeitar a ciência, porém, é nada perto do contorcionismo para apoiar Madonna, que, de feminista de carteirinha e defensora do aborto legal, e portanto inimiga, passou a correligionária após defender o uso do medicamento.


E o que dizer dessa massa que passou a eleição falando em combate à corrupção e à velha política, fim de privilégios e bandido morto e hoje aplaude Bolsonaro de mãos dadas com o centrão, exalta o ex-presidiário Roberto Jefferson, defende o foro privilegiado de Flávio Bolsonaro e a prisão domiciliar de Queiroz?

Um dia o bolsonarista pede a volta da ditadura, desconjura militar frouxo, diz que a mídia mente. No outro, reclama que vive sob uma ditadura, clama pelo direito de ir e vir e de desrespeitar medidas sanitárias de combate à pandemia, defende fake news e liberdade de expressão (a deles).

Eles ainda encontram tempo para, entre uma novela e outra da Globo, seguir os perfis da "extrema imprensa" só para poder cravar seus slogans, #globolixo, #folhalixo, #acabouamamata. Menos, claro, a mamata oficial. O interino da Saúde nomeou uma amiga, sem experiência, para chefiar o ministério em Pernambuco. E daí? O que pega mesmo os bolsonaristas é a propaganda de Dia dos Pais com o transexual Thammy Gretchen.

Sem falar nas reclamações rotineiras contra o establishment, que partem inclusive de integrantes do governo e de filhos do presidente. O contorcionismo é admirável. Pense no susto se descobrirem que o establishment são eles.

A boiada de Ricardo Salles passou sobre a política ambiental

Resta comprovado que o presidente Jair Bolsonaro seguiu o conselho de Ricardo Salles, seu ministro do Meio Ambiente, e aproveitou os meses iniciais da pandemia do coronavírus para reforçar os maus tratos à natureza, marca do seu governo até aqui.

Um levantamento feito pelo jornal Folha de S. Paulo em parceria com o Instituto Talanoa mostra que, entre março e maio deste ano, o governo publicou 195 atos no Diário Oficial, todos ligados ao tema ambiental. Nos mesmos meses de 2019, foram apenas 16.


Na reunião ministerial de 22 de abril último, Salles sugeriu a Bolsonaro que aproveitasse o momento em que a imprensa estava ocupada com a pandemia para “passar a boiada”, mudando “todo o regramento e simplificando normas"; na área do meio ambiente.

E foi isso o que Bolsonaro autorizou que se fizesse como aponta a análise inicial das principais portarias, instruções normativas, decretos e outras normas baixadas ou alteradas. O processo de desmonte das políticas ambientais ganhou celeridade.

A instrução normativa 4/2020 do Ministério do Meio Ambiente (MMA), por exemplo, que trata da priorização de indenização para populações tradicionais em reservas ambientais, criou uma brecha para facilitar a expulsão de índios e quilombolas dessas áreas.

A portaria 432/2020 permitiu ao ICMBio centralizar a gestão de duas unidades de conservação em Roraima, cancelando a criação de mais duas bases avançadas. Ali, há registros recentes de invasão de garimpeiros e de aumento da derrubada de árvores.