quinta-feira, 30 de julho de 2020

Uma história de capivara

Tenho uma capivara linda e enorme na sala, em frente a uma janela. Ela é recortada em madeira, no tamanho natural de uma capivara de médio porte, e é vermelha com flores amarelas num dos lados, e branca com listras azuis do outro. É completamente desproporcional ao espaço que ocupa, mas quem liga? Ela é uma das marcas da casa, junto com um triceratops verde e igualmente desengonçado que também não faz muito sentido. A vida é assim, vai juntando pessoas e coisas desconexas que, com o passar dos anos, se afeiçoam umas às outras.


Ganhei a capivara do Mário Maluco, dono do Palaphita Kitch, que tinha uma coleção delas para enfeitar o gramado em frente ao quiosque. Há muitos e muitos anos — quando ele tinha acabado de inventar essas capivaras — passamos uma tarde jogando conversa fora, enquanto esperávamos a verdadeira capivara aparecer. Ela vinha jantar umas plantinhas ali ao lado com certa regularidade e, naqueles primeiros tempos, cada visita sua era saudada com estardalhaço, porque a sua presença garantia para os clientes uma rodada de “capivodka” por conta da casa.

Pois nesse dia específico ela não veio, e ficamos frustrados; mas o Mario, perfeito gentleman, arrancou uma das capivaras que enfeitavam a área, como se colhesse uma flor, e meu deu.

Desde então, ela se incorporou à casa.

Algum tempo depois, quando a Bia fez anos, nós a espetamos em frente ao prédio para avisar aos amigos onde era a festa. No meio da noite e da confusão, o Mario me ligou: a capivara estava de volta ao Palaphita, e ele queria saber se era isso mesmo.

— Não quer mais a capivara?

— Ela está aqui na minha frente.

Larguei a festa e fui lá ver do que se tratava; era só atravessar a rua e andar cem metros. Cheguei e, de fato, lá estava ela, a própria, com suas flores e listras. Pergunta daqui, pergunta dali, logo descobrimos o que havia acontecido: quando viram a capivara espetada em frente ao meu prédio, os guardas noturnos acharam que tinha sido vítima de algum bêbado cheio de ideias, e a levaram “de volta”.

Nunca mais ela saiu de casa.

As capivaras irmãs da minha ficaram gastas e foram substituídas por outras (não tão bonitas); o tempo passou. Anteontem, depois de 16 anos de bons e belos serviços, o Palaphita que tanto amamos foi demolido pelos fiscais da prefeitura do bispo Crivella. A Secretaria de Fazenda teve a cara dura de afirmar que o quiosque — com uma personalidade única, perfeitamente integrado à paisagem — “estava ilegal”. Imaginem: 16 anos de “ilegalidade”. Há uma briga judicial sórdida pelo espaço.

Soube pela Lu Lacerda que Mário Maluco foi para Portugal, onde pretende abrir um novo negócio (e para onde vai levar as suas ararinhas Waiwai e Mura). Mais um 7 x 1. Uma empresa chamada Fine Food's (!) pretende ocupar o lugar com mais um naco de terra de ninguém, um daqueles não-espaços sem caráter, que existem aos montes em todos os shoppings, de Dubai a Kuala Lumpur.

Assim morre um bairro, assim morre uma cidade, assim morre um país que não faz por onde conservar e estimular os seus cidadãos mais criativos.

Boa sorte, Mário meu amigo. A capivara manda lembranças.

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