segunda-feira, 16 de março de 2020

Pensamento do Dia


Bolsonaro está doente e em acelerado processo de isolamento

Por ora, nada a ver com o coronavírus. O presidente Jair Bolsonaro fez o teste e goza de boa saúde, embora cinco pessoas de sua comitiva tenham voltado doente dos Estados Unidos. Em breve, ele passará por um novo e talvez definitivo teste.

O mal que sofre é outro. Porque só um presidente da República com neurônios de menos seria capaz de aconselhar aos seus governados que não fossem às ruas contra o Congresso e a Justiça no momento em que uma pandemia aterroriza o mundo.

Para em seguida ele mesmo ir, confraternizando com os poucos que desprezaram seu conselho. Não confraternizou à distância, o que já seria grave. Estendeu a mão a pessoas, fez selfies com elas, mexeu no cordão de uma mulher que pendia do pescoço.



Enquanto o coronavírus avança, o Brasil dispõe na prática de dois governos, o que significa não ter nenhum: o comandado pelo lúcido ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta; e o governo de um Bolsonaro ensandecido, desequilibrado e irresponsável.

A qual deles o país dará ouvidos? Ao de Mandetta que manda as pessoas se recolherem às suas casas, cuidarem da higiene pessoal, evitarem correr para hospitais e supermercados e aguardarem com calma a passagem do pior momento da pandemia?

Ou dará ouvidos ao de Bolsonaro que festejou o fato de seus devotos mais radicais terem ido às ruas pedir o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, e a instalação de uma ditadura à semelhança daquela que durou 21 anos?

Em entrevista à CNN Brasil, Bolsonaro tratou o coronavírus como se fosse só mais uma doença por trás da qual haveria interesses políticos e econômicos. Reclamou da “histeria” e também da decisão de federações de fechar ao público os estádios de futebol.

É curioso. Ministros ligados a Bolsonaro comentam abertamente com amigos que o vírus foi criado em laboratórios na China e serve a objetivos estratégicos daquele país. Um vírus comunista, pois. O bispo Edir Macedo, da Igreja Universal, pensa a mesma coisa.

O que Bolsonaro imagina que ganharia com sua performance de ontem? Perderia o quê se tivesse aproveitado o domingo para repousar? Os auxiliares que consultou foram contra ele fazer o que fez. Sequer um único ministro apareceu ao seu lado.

A entrevista não programada à CNN Brasil foi reveladora do seu assombro com a condenação generalizada nas redes sociais de mais um passo em falso que deu. Só faltou clamar para que seus seguidores se apressassem a sair em sua defesa.

Atraiu críticas e mais nada. E aumentou a certeza compartilhada pelas cabeças coroadas da República e do mercado financeiro que ele está em acelerado processo de isolamento e de perda de relevância. Não sabe mais o que fazer – se é que soube um dia.

Faltam nove meses e meio para que complete dois anos de mandato. Se não resistir tanto tempo no cargo, haveria novas eleições. Se resistir e cair depois, assumirá o vice-presidente, o general Hamilton Mourão. É o que está na Constituição.

O que antes não se discutia a não ser aos sussurros, hoje está em exame em todas as rodas de conversas perfeitamente audíveis. O impeachment é sempre um processo traumático que abre feridas difíceis de cicatrizar. A renúncia seria o ideal.

Meditação XVII

Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado, todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós
John Donne (1572-1631)

Em 1918, gripe espanhola espalhou morte e pânico e gerou a semente do SUS

Parece filme de terror. Cadáveres jazem na porta das casas, atraindo urubus. O ar é fétido. Os raros transeuntes andam a passos ligeiros, como se fugissem da misteriosa doença. Carroças surgem de tempos em tempos para, sem cuidado ou deferência, recolher os corpos, que seguem em pilhas para o cemitério.

— Por toda parte, o pânico, o assombro, o horror! — exclama o deputado Sólon de Lucena (PB).

Como os coveiros, em grande parte, estão acamados ou morreram, a polícia sai às ruas capturando os homens mais robustos, que são forçados a abrir covas e sepultar os cadáveres. Os mortos são tantos que não há caixões suficientes, os corpos são despejados em valas coletivas e o trabalho se estende pela madrugada adentro.

— Esse grande flagelo parece zombar da fortaleza física do homem e deixa como rastro um número extraordinário de mortos e um exército de combalidos entregues à fraqueza, ao depauperamento, à quase invalidez — afirma o senador Jeronymo Monteiro (ES).

A primeira página da Gazeta de Notícias mostra o caos
no Rio de Janeiro dominado pela gripe espanhola (Biblioteca Nacional)

O filme de terror ocorreu em 1918, quando a gripe espanhola invadiu o Brasil. A violenta mutação do vírus da gripe veio a bordo do navio Demerara, procedente da Europa. Em setembro desse ano, sem saber que trazia o vírus, o transatlântico desembarcou passageiros infectados no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro.

No mês seguinte, o país inteiro já está submerso naquela que até hoje é a mais devastadora epidemia da sua história.

A gripe espanhola, como indicam os discursos acima, domina os debates do Congresso Nacional. As falas dos parlamentares integram o acervo histórico do Arquivo do Senado e do Arquivo da Câmara, em Brasília, e mostram como o Brasil de 1918 se comportou diante da doença.

Assim como outros prédios públicos do país, o Senado e a Câmara, no Rio (que tem o status de Distrito Federal), passam vários dias fechados. Não há funcionários suficientes para tocar as atividades burocráticas no auge da epidemia. Muitos convalescem e outros tantos morreram.

Após vários dias combalido, o senador Paulo de Frontin (DF) é recebido com festa na volta ao Senado.

— Tendo sido também vítima da espanhola e seriamente, Sua Excelência está aí rijo, cumprindo seus deveres com aquela atividade rara que todos lhe reconhecemos — diz, num discurso de boas-vindas, o senador Victorino Monteiro (RS).

Nem mesmo o presidente da República é poupado. Rodrigues Alves, eleito em março de 1918 para o segundo mandato, cai de cama “espanholado” e não toma posse. O vice, Delfim Moreira, assume interinamente em novembro, à espera da cura do titular. Rodrigues Alves, porém, morre em janeiro de 1919, e uma eleição fora de época é convocada.

Entre as vítimas ilustres, também figura Olympio Nogueira, estrela do teatro e da música no Rio, bem no auge da carreira.

— Todas as classes, desde os humildes trabalhadores até aqueles que gozam do maior conforto na vida, foram alcançados pelo flagelo terrível, que bem parece universal — constata o deputado Sólon de Lucena. — Dir-se-ia que a morte, não satisfeita com a larga messe de vidas ceifadas nos campos de batalha europeus, quis, na sua ânsia de domínio, estender até nós os seus tentáculos.

Lucena (avô de Humberto Lucena, que seria senador nas décadas de 1980 e 1990) se refere à Primeira Guerra Mundial. Em outubro e novembro de 1918, as manchetes dos jornais brasileiros se alternam entre a gripe espanhola no país e as negociações de paz na Europa. É justamente o vaivém de soldados que faz o vírus mortal tocar todos os cantos do planeta.

Em todo o Brasil, os hospitais estão abarrotados. As escolas mandaram os alunos para casa. Os bondes trafegam quase vazios. Das alfaiatarias às quitandas, das lojas de tecido às barbearias, o comércio todo baixou as portas — à exceção das farmácias, onde os fregueses disputam a tapa pílulas e tônicos que prometem curar as vítimas da doença mortal.

— Nos subúrbios do Rio de Janeiro, as ruas ficam cheias de cadáveres porque as famílias ficam com medo de serem infectadas pelos mortos dentro de casa. Além disso, a medida facilita o trabalho de remoção das carroças da limpeza pública — explica a médica e historiadora Dilene do Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz.

Os parlamentares apresentam uma série de projetos de lei com o objetivo de, em diferentes frentes, combater a doença e amenizar seus efeitos. Uma das propostas determina a aprovação automática de todos os estudantes brasileiros, sem a necessidade dos exames finais.

Citando sua própria experiência como professor da Escola Politécnica (atual escola de engenharia da UFRJ), o senador Paulo de Frontin defende o projeto:

— O momento em que se exige do estudante o máximo esforço são os últimos três meses do ano letivo, quando ele se prepara para o exame final. Exatamente nessa época, grande parte dos alunos foi atacada pela epidemia reinante e muitos falecerem. Na Escola Politécnica, choramos a perda de mais de um. Aqueles que se salvaram estão em uma convalescença que se pode considerar longe de ser completa.

O senador Mendes de Almeida (MA), dono da Escola Técnica de Comércio Cândido Mendes (hoje Universidade Cândido Mendes), no Rio, acrescenta:

— Só na minha escola, mais de 35 professores não têm podido dar as suas aulas por motivo de saúde.

Como 1918 já está chegando ao fim, o presidente interino Delfim Moreira acha mais prudente não esperar as votações do Senado e da Câmara e baixa em dezembro um decreto batendo o martelo de uma vez: aluno nenhum repetirá o ano letivo.

Em outra linha, o deputado Celso Bayma (SC) redige um projeto de lei ampliando em 15 dias o prazo para o pagamento das dívidas que vencem em plena epidemia. De acordo com ele, a moratória é necessária porque muitos comerciantes baixaram as portas, deixaram de lucrar e, por tabela, ficaram impossibilitados de honrar seus compromissos com bancos e outros credores.

— Os que vivem estes dias angustiosos sabem que a capital do país [Rio] tem necessidade de feriados, o mesmo sucedendo com a praça de São Paulo. Por esse meio, poderão os negociantes encobrir a situação aflitiva em que se encontram — acrescenta Bayma, sem, contudo, conseguir a aprovação do projeto.

Faltam estatísticas confiáveis a respeito das vítimas no Brasil. Mesmo assim, não há dúvidas de que a epidemia é avassaladora. O gráfico de óbitos anuais da cidade de São Paulo mostra um salto gritante quando chega 1918. Num único dia, o Rio chega a registrar mil mortes.

A devastação também pode ser dimensionada pelas ausências na eleição para o Senado ocorrida apenas na cidade do Rio em novembro de 1918. A capital tem 36 mil eleitores registrados, mas apenas 5 mil vão às urnas. Na eleição presidencial de oito meses antes, como comparação, 22 mil cariocas votaram.

— A eleição de senador foi uma eleição sem eleitorado. Tanto vale dizer, não foi uma eleição — critica o senador Francisco Sá (CE), tentando, sem sucesso, anular a votação.

O Governo proíbe as aglomerações públicas. Os teatros e os cinemas, além de lacrados, são lavados com desinfetante. Pela primeira vez, as pessoas ficam proibidas de ir aos cemitérios no Dia de Finados — não só para evitar as multidões, mas também para impedir que se veja o estoque de corpos insepultos.

— O que vemos são acontecimentos funestos, uma verdadeira hecatombe — resume o deputado Azevedo Sodré (RJ).

Os jornais estão repletos de anúncios de remédios milagrosos que se dizem capazes de prevenir e de curar a gripe. A oferta vai de água tônica de quinino a balas à base de ervas, de purgantes a fórmulas com canela. A procura é tão grande que as farmácias se aproveitam da situação e levam os preços às alturas. No Rio, a prefeitura reage tabelando o preço dos remédios

Na cidade de São Paulo, a população em peso recorre a um remédio caseiro: cachaça com limão e mel. Em consequência, o preço do limão dispara, e a fruta some das mercearias. De acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça, foi dessa receita supostamente terapêutica que nasceu a caipirinha. Coincidência ou não, uma das peças de maior sucesso em São Paulo em 1918 se chama A Caipirinha.

— A verdade é que a gripe não tem cura — diz o médico Lybio Martire Junior, presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina. — Diante de uma doença mortal nova e da falta de informação, a população fica apavorada e acredita em qualquer promessa de salvação. Até hoje é assim. Basta lembrar os primórdios da Aids.


A epidemia escancara uma deficiência grave do Brasil: em termos de saúde, os pobres estão ao deus-dará. Não há hospitais públicos. Não é raro que as pessoas, assim que se descubram “espanholadas”, busquem socorro nas delegacias de polícia. Quem, aos trancos e barrancos, presta alguma assistência à população carente são instituições de caridade, como as santas casas e a Cruz Vermelha.

— As famílias ricas são menos atingidas do que as famílias pobres porque se refugiam em fazendas no interior do país, mantendo distância do vírus — conta o historiador Leandro Carvalho, professor do Instituto Federal de Goiás e autor de dois estudos sobre a epidemia de 1918.

Dada a multidão que morre todos os dias, começa a correr no Rio a história de que a Santa Casa de Misericórdia, para abrir novos leitos, acelera a morte dos doentes em estado terminal. Isso se daria por meio de um chá envenenado administrado aos pacientes na calada da noite. Nasce, assim, a lenda do “chá da meia-noite”. Os jornais apelidam o hospital de “Casa do Diabo”.

O deputado Azevedo Sodré fica indignado com a campanha de difamação:

— O povo, não sabendo a quem incriminar pela desgraça que o ferira e pelo abandono em que se achou, revoltou-se contra a Santa Casa de Misericórdia, que representa quase toda a assistência pública desta capital. O povo parece não saber que a Santa Casa, afora um subsídio pequeno que lhe concede o governo, vive do favor do público, desse espírito de filantropia tão vivo no seio da nossa população.

No auge da crise, prefeitos e governadores se dão conta de que não podem permanecer de braços cruzados. Com certo atraso, distribuem remédios e alimentos, improvisam enfermarias em escolas, clubes e igrejas e convocam médicos particulares e estudantes de medicina.

No âmbito federal, o que existe é a Diretoria-Geral de Saúde Pública, subordinada ao Ministério da Justiça, mas com atuação bastante tímida, cuidando apenas da barreira sanitária dos portos e da higiene da capital do país.

O deputado Sodré afirma que a culpa da epidemia não é da Santa Casa, mas sim da Diretoria-Geral da Saúde Pública, por ter subestimado as notícias da gripe espanhola no exterior e não ter imposto quarentena aos navios vindos de fora, como o Demerara.

— Mesmo dias depois, ao irromperem os primeiros casos no Brasil, reinava em nossa repartição sanitária a mesma ignorância máxima. Presenciamos uma quase falência dos nossos serviços de higiene e assistência públicas.

Sodré, então, apresenta um projeto de lei que promoveria a diretoria a Ministério da Saúde Pública.

— Salvemos ao menos as aparências. Se ao Governo não sorri a ideia de um Ministério da Saúde Pública, que nos diga o que pretende fazer, para que nós, o Congresso Nacional, inteirados do seu desejo, nos movamos, discutamos e resolvamos consoante as nossas funções no sistema representativo que rege o país.

Apesar dos apelos, o projeto não avança. De qualquer forma, o susto da gripe espanhola faz o Governo se mexer. Um ano mais tarde, na virada de 1919 para 1920, o Congresso Nacional aprova e o presidente Epitácio Pessoa sanciona uma decisiva reforma na estrutura federal de saúde.

A acanhada diretoria cresce, ganha responsabilidades e é rebatizada de Departamento Nacional de Saúde Pública. O novo departamento atua no combate à lepra, à tuberculose, à malária e às doenças venéreas. O escopo agora é nacional.

Assim, de forma indireta, a gripe espanhola planta tanto a semente do Ministério da Saúde, que surgirá em 1930 (como Ministério dos Negócios da Saúde e da Educação Pública), quanto a do Sistema Único de Saúde (SUS), que será previsto na Constituição de 1988.

Do mesmo modo abrupto com que chega ao Brasil, a gripe espanhola desaparece repentinamente. Em dezembro, já são raros os contágios. Foram tantas as pessoas infectadas entre setembro e novembro que o vírus praticamente não tem mais a quem atacar.

Enfim terminado o filme de terror, os cariocas usam o Carnaval de 1919 como forma de exorcizar o fantasma da gripe espanhola. O Rio assiste, nos bailes e nos blocos de rua, àquela que talvez seja a folia mais desenfreada de que se tem notícia na cidade. Das marchinhas aos carros alegóricos, o tema da festa é um só: o “chá da meia-noite” — que não bota medo em mais ninguém.

Brasil irresponsável


Uma questão de responsabilidade

A presença do presidente da República em uma manifestação pública em meio a uma ameaça concreta de epidemia da Covid-19 tem muita gravidade. A atitude do presidente desfaz todo o cauteloso trabalho de seu ministro da Saúde, desobedece as recomendações das autoridades sanitárias, de epidemiologistas e da OMS.

Há formalidades inerentes ao exercício da Presidência que são inescapáveis. Uma delas, está na Constituição, é respeitar o decoro do cargo. Ao violar publicamente medidas cautelares explícitas, durante a crise sanitária que se agravará nas próximas semanas, o presidente feriu o decoro. É o seu governo, junto com os governos estaduais, que recomendam evitar aglomerações e contatos físicos.


O mau exemplo do presidente é uma ofensa ao cargo e um desrespeito às autoridades sanitárias e à população brasileira. Sugere que a pandemia não tem a importância que os médicos dizem que ela tem. É uma atitude irresponsável. Atua-se com o cenário de maior gravidade, porque é uma epidemia sem precedentes, cujos desdobramentos se desconhece.

Bolsonaro fere o decoro e desrespeita os limites constitucionais da Presidência ao dar apoio explícito a uma manifestação antidemocrática, contra o Legislativo e o Judiciário. São Poderes Republicanos que o presidente tem a obrigação constitucional de respeitar e defender.

A mentalidade autoritária de Bolsonaro é notória. Mas, ao tornar-se presidente, ele se comprometeu a respeitar o código de deveres do cargo, que desrespeitou em duas dimensões. A comportamental, ao participar de manifestações de rua que elevam o risco de ampliação do contágio. Sua presença é um péssimo exemplo à população. A institucional, ao convalidar ataques aos Poderes constituídos da República.

Ao agir assim, o presidente comete crime de responsabilidade. Fere o decoro, estimula ataques aos Poderes constitucionais e induz a população a subestimar os riscos associados à uma grave epidemia sem precedentes.

Sérgio Abranches

Agosto 1964

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do horror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema

uma bandeira
Ferreira Gullar 

O xadrez do coronavírus

Shahmat em persa quer dizer rei (shab) morto (mat), o antigo nome do xadrez. Por corruptela, e não por acaso, o final do jogo virou xeque-mate (checkmate, em inglês). Foi inventado por um grão-vizir, que criou um tabuleiro com 64 quadros, vermelhos e pretos, cuja peça mais importante era o rei; a segunda peça, o próprio grão-vizir, que foi substituído pela rainha com passar dos anos. É um mistério a razão de um rei aceitar um jogo no qual o objetivo era matá-lo, mas o fato é que o xadrez encantou toda a corte, inclusive o monarca. O rei gostou tanto da invenção que pediu ao grão-vizir para determinar sua própria recompensa.

Conta-nos o físico Carl Sagan, num artigo intitulado O tabuleiro de xadrez persa (Bilhões e bilhões, Companhia de Bolso), que o grão-vizir desejou apenas uma recompensa aparentemente modesta: apontando para o tabuleiro com oito colunas e oito filas, pediu ao rei que lhe fosse dado um único grão de trigo no primeiro quadrado, dois no segundo, quatro no terceiro e assim por diante, dobrando sempre as quantidades. O rei achou a recompensa muito insignificante e protestou, oferecendo joias, odaliscas, palácios, mas o grão-vizir recusou. Só desejava os montes de trigo.

Entretanto, quando o administrador do celeiro real começou a contar os graus, o rei teve uma surpresa muito desagradável. O número de grãos começou pequeno: 1, 2, 4, 8, 16, 32 (…) e foi crescendo, 128, 256, 512, 1024… Quando chegou na última das 64 casas do tabuleiro, era de quase 18,5 quintilhões. Quanto pesa cada grão de trigo? Se cada um tiver um milímetro, pesariam 75 milhões de toneladas métricas, muito mais do que havia nos armazéns reais. “Se o xadrez tivesse cem quadrados (dez por dez), em vez de 64, a quantidade de grãos teria pesado o mesmo que a Terra”, compara Carl Sagan. Os persas foram pioneiros na matemática.


O físico norte-americano usou a fábula para chamar a atenção para a importância de se levar em conta os números exponenciais na análise da escala dos mais variados assuntos, da Aids à proliferação de armas nucleares. É o caso da pandemia de coronavírus, que chegou ao Brasil para ficar, pois a chamada “transmissão comunitária” já começou em São Paulo e no Rio de Janeiro, os dois estados com a maior e melhor rede de saúde do país. Todos os estudos até agora mostram que o crescimento geométrico do número de casos aumenta a letalidade da doença, que se propaga muito rapidamente deixando em colapso os sistemas de saúde, como aconteceu na Itália, até que algo interrompa a proliferação da Covid-19. É um jogo de xadrez com a morte, como ilustra foto do filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman.

A solução chinesa, que adotou medidas radicais de confinamento e isolamento, foi a mais eficaz para conter a escalada do coronavírus. Alguns países asiáticos, porém foram bem-sucedidos com medidas intermediárias. A Coreia do Sul conseguiu controlar a doença e reduzir sua letalidade para 0,6%. Por quê? Por causa da qualidade do sistema de saúde e do gerenciamento da crise. Estatisticamente, de cada 100.000 pessoas doentes, 20.000 necessitarão hospitalização, dos quais 5.000 de UTI e 1.000 máquinas de respiração. No Brasil, se a epidemia atingir essa escala, será o caos no sistema de saúde, que já é pressionado por outros fatores: acidentes de trânsito, balas perdidas, acidentes domésticos, outras epidemias, tentativas de feminicídio.

Para mitigar a progressão da epidemia, é preciso adotar seriamente a distância social. É o que países como Irã, França, Espanha, Alemanha, Suíça e EUA terão que fazer para reduzir a taxa de transmissão de 2,5% para 1% e neutralizar a curva exponencial. A Itália foi obrigada a confinar a população e restringir drasticamente a circulação de pessoas porque entrou em colapso; melhor fazer quase isso antes do colapso. Essa é a questão posta na mesa pelos sanitaristas para os governantes aqui no Brasil. Para a economia, teria menos impacto uma epidemia de curta duração com alta letalidade, um perverso darwinismo social: sobreviveriam os mais saudáveis; muito idosos, cardiopatas, diabéticos e pessoas com baixa imunidade faleceriam numa escala muito maior do que a registrada até agora. A taxa de mortalidade na China está hoje entre 3,6% e 6,1%, dependendo da região, mas converge para aproximadamente 3,8% e 4%, mais do que o dobro da estimativa atual e 30 vezes mais do que a gripe.

Para a sociedade, porém, a melhor solução é “achatar” a curva, retardando a propagação da epidemia, o que tem muito mais impacto na economia. É aí que algumas questões que estão na ordem do dia precisam ser levadas em conta. Por exemplo, o veto ao aumento para um salário-mínimo do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que hoje garante meio salário-mínimo para cada idoso ou deficiente sem renda, exatamente os que terão mais dificuldades para enfrentar a epidemia. O que é mais importante, a vida dessas pessoas ou o Teto de Gastos, num cenário em que o mundo deve entrar em recessão por causa do coronavírus? Alguns economistas, como Mônica de Bolle e André Lara Resende, antes mesmo do coronavírus, já haviam questionado a absolutização do aspecto fiscal na política econômica do ministro Paulo Guedes, mas esse era um assunto blindado no Congresso. Agora, não é mais. Como vivemos numa democracia e o Brasil é uma federação, ninguém vai segurar governadores e prefeitos na hora que o povo exigir medidas mais enérgicas para conter a propagação do coronavírus.

Bolsonaro dá exemplo duplo de irresponsabilidade

Talvez o maior modelo político, ideológico e comportamental de Jair Bolsonaro, Donald Trump não parecia levar muito a sério o coronavírus até que, na quarta-feira, anunciou o fechamento do país a voos que partem da Europa. Como é do feitio dos políticos radicais, tentou usar politicamente a medida: estabeleceu uma exceção para a Grã-Bretanha do aliado Boris Johnson, como se ingleses, escoceses etc. não tivessem o mesmo poder de disseminar o vírus. Na sexta, foi obrigado a decretar “emergência nacional” e tomar uma série de medidas importantes.

O presidente brasileiro, nacional-populista de raiz, no figurino de Trump, deve ter tido vontade de chamar o patógeno da pandemia de “vírus estrangeiro”, imitando o presidente americano. Mas não há informação de que tenha criado empecilho a qualquer das decisões adequadas que vêm sendo tomadas pelo seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e por outras áreas do governo. 


Os erros de Bolsonaro, reforçados ontem, são de outra ordem, tão ou mais graves: demonstrações de irresponsabilidade política e pessoal. O presidente entrou em terreno institucionalmente perigoso, na última semana de fevereiro, ao fim do carnaval, quando ajudou a divulgar por sua conta de WhatsApp a convocação de manifestações contra o Congresso e o Supremo realizadas ontem em algumas cidades. De sentido golpista. Inconstitucionais, ilegais.

Inspirado numa reação dura do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, contra o Congresso, registrada sem seu consentimento, o movimento, por absurdo, passou a ter o apoio do presidente da República, referendando assim um ataque às instituições. Diante das reações negativas à sua atitude, Bolsonaro ensaiou um dúbio recuo. E ontem tirou qualquer dúvida, se havia, sobre sua verdadeira posição em favor de um ato político intoxicado de ilegalidades. Tornou-se cúmplice. 

 O presidente deixou de ficar muito perto da claque que o acompanha em frente ao Alvorada. Não deveria permitir sequer esta aglomeração, se obedecesse às instruções do próprio Ministério da Saúde. Mas ontem aproximou-se de manifestantes na calçada do Planalto e ainda tocou na mão de alguns. Com este gesto conseguiu ser duplamente irresponsável: deu mau exemplo à população, que vem sendo instruída a evitar esses contatos, e atacou a democracia.

O tamanho da falta de sensatez de Bolsonaro, no plano pessoal, pode ser medido pelo fato de que, também no domingo, foi informada mais uma contaminação pelo coronavírus na comitiva que viajou com ele aos Estados Unidos. Seu primeiro teste foi negativo. Serão feitos outros. Por óbvio, deveria se precaver.

Quanto ao aspecto político, deverá haver desdobramentos, com a finalidade de que o Planalto respeite os limites que a Carta estabelece ao Executivo.

Imagem do Dia


Doenças do progresso e doenças do atraso

Parece estranho falar sobre doenças do progresso. Mas elas existem. Ficam evidentes quando o progresso se confunde com o conceito aritmético de crescimento econômico a qualquer custo. Seu efeito devastador é a destruição da natureza: ar poluído, águas contaminadas, florestas devastadas e terras desérticas. Este o passivo ambiental do industrialismo desenfreado e a cobiça da acumulação.

Felizmente, apesar das reações obscuras, o desenvolvimento sustentável é o único caminho para salvar o planeta de uma catástrofe apocalíptica, queiram ou não queiram os governantes.

É bem verdade que o progresso material trouxe grandes benefícios para humanidade. Entre eles, um indesmentível avanço na longevidade: quando nasci a expectativa de vida no Brasil não chegava aos 50 anos (já estou devendo muito); atualmente a média homem/mulher chega a 77 anos com expressivo aumento de sobrevida de acordo com a tábua de mortalidade do IBGE. A pergunta: é vive-se melhor?

Depende. Os mais pobres sofrem em qualquer idade; os mais ricos sofrem menos e têm que enfrentar as enfermidades da velhice – o esqueleto dói todo; o Parkinson tá na esquina; o infeliz Alzheimer e outras demências dão o ar da graça a tal ponto que geram novas drogas, especialidades médicas, e postos de trabalho; o velho coração resiste bravamente; até mesmo o famigerado câncer tem tratamentos eficazes. Perigo mesmo é queda, caganeira e resfriado. E agora a pandemia do COVID-19.



Porém, a mais grave das doenças que afeta o organismo brasileiro é uma bactéria chamada o STREPTOCOCCUS BRASILIENSIS, colônia contagiosa, que afeta sentidos e sentimentos, em especial, a visão, a audição e o senso de responsabilidade de um grupo de riscos que são as autoridades. Exigem até “quarentena” para novos empregos.
Demoram tanto a ver, ouvir e sentir que, no Brasil, especialmente os mais pobres, continuam vítimas da velha tuberculose, malária, febre amarela, dengue e suas variações letais (a hemorrágica), a condenação perpétua dos efeitos da Zika, subnutrição/obesidade.

Enquanto isso, a ligeireza do Congresso na aprovação das pautas-bombas explode o orçamento de 2020 na razão inversa da lentidão de votar o marco regulatório do saneamento básico e a leniência de erradicar os lixões.

A constatação da doença não se aplica a governos recentes. Lula ironizou a devastadora crise do sub-prime nos EUA chamando-a de “marolinha”; Bolsonaro referiu-se desdenhosamente à pandemia como uma “pequena crise, mais fantasia e não é isso tudo que a mídia propaga”.

Nos idos 1975, o Recife foi devastado por uma cheia. O governo Geisel prometeu e cumpriu a promessa de proteger o Recife do flagelo. Na época, o Ministro do Interior, Rangel Reis, veio inspecionar o início das obras e, diante da crucial questão do abastecimento d´água, aconselhou candidamente que os recifenses bebessem água de coco”. Afinal, o nosso hino começa exaltando Pernambuco: “Salve a terra dos altos coqueiros”.
Gustavo Krause

Irresponsabilidade tem nome

Péssimo exemplo o presidente fazer carreata e surgir na rampa estimulando as concentrações. Primeiro por estar contra a própria propaganda do seu governo, que está gastando milhões para orientar a população a evitar aglomerações. Em segundo lugar, por estar estimulando manifestação contra os dois outros Poderes, Legislativo e Judiciário
Major Olímpio, senador líder do PSL

A anatomia do medo

Dia 2

É como a água na torneira, só valorizamos as coisas que damos por adquiridas quando somos privados delas. Hoje tive de ir à rua, com um misto de sensação de liberdade e culpa. Com quatro miúdos em casa, três dos quais teenagers, tenho de abastecer a despensa mais frequentemente do que seria desejável numa quarentena voluntária. Numa rua de comércio local com uma loja chinesa e uma farmácia, espraiavam-se pela rua duas longas filas com pessoas zelosas a cumprir uma distância de segurança. Muitas com máscara, outras sem ela… todas com medo. Com ar nervoso, faziam de soslaio uma consulta visual rápida e tiravam a febre aos vizinhos de fila e aos transeuntes que passavam demasiado perto.


No supermercado de bairro, um senhor com mais de 70 anos, acompanhado da mulher, dizia a uma senhora mais jovem: “Medo?! Eu não apanhei o tifo quando era novo, estive na guerra e nunca apanhei malária, vou agora ter medo desse bicho!”. É pena, pensei eu, devia ter… O medo é o aliado número um no combate a uma pandemia. São, curiosamente, as pessoas mais velhas – os maiores grupos de risco – que mais oiço desprezar a ameaça do coronovírus. Depois de uma vida cheia, andar de braço dado com a ideia da morte tem muitas vantagens, mas esta não é uma delas.

“A minha mãe deu à luz a gémeos, eu e o medo”, disse Thomas Hobbes, o filósofo político. Hobbes nasceu prematuro – reza a história que o parto aconteceu quando a sua mãe ouviu a invasão da Armada Espanhola em Westport, em Maio de 1588. Foi aliás, a partir do conceito de medo que Hobbes construiu a sua doutrina política e o conceito de estado e contrato social. Afinal, é o medo que, desde tempos ancestrais, nos une em sociedade e é o medo de uma qualquer autoridade que nos faz obedecer às regras.

É bom que o medo entre em ação em alturas de grande risco, como esta que vivemos agora. O medo faz parte de ser animal. É um instinto fundamental à sobrevivência, determinante na autopreservação das espécies. É ele que nos protege, mas também é ele que nos paralisa. Que nos faz perder por vezes a noção, que nos impele para decisões irrefletidas e irracionais. Como esgotar o stocks de máscaras, alcóol e desinfetantes das farmácias e assaltar prateleiras de supermercado, comprando embalagens de papel higiénico, atum e massa para 6 meses.

Não nos podemos deixar toldar nem cegar por ele – é preciso tentar manter a serenidade e a cabeça fria, mas temos de o deixar fazer o seu trabalho. Não nos armemos em corajosos numa altura em que a coragem é uma imbecilidade. Não nos armemos em fortes quando ser forte é um egoísmo.

Há 45 anos que Portugal não decreta o Estado de Emergência. Temos 167 658 casos de coronavírus no mundo, um foco na Europa – um descontrolado em Itália e outro gravíssimo aqui ao lado em Espanha –, já morreram pelo menos 6456 pessoas. Portugal tem 245 infetados, a entrar na curva ascendente de voragem epidémica que arrasa com qualquer sistema de saúde.

Nos próximos tempos, que vença o medo.

A loucura autoritária do Planalto, em plena crise do coronavírus

Jair Bolsonaro dá uma banana para saúde pública em plena crise mundial do coronavírus e ameaça o trabalho do Ministério da Saúde. E o pior de tudo é que nada ou ninguém, na atual conjuntura política, parece capaz de pará-lo antes que seja tarde. Enquanto a pasta de Luiz Henrique Mandetta tenta conduzir o país com alguma serenidade rumo aos dias difíceis que provavelmente virão, o presidente faz o jogo dos sete erros na pandemia.

O auge do delírio autoritário que nos acomete aconteceu neste domingo. Mesmo com a expressa determinação do Ministério da Saúde para evitar aglomerações, especialmente no Rio e em São Paulo, o presidente endossa e estimula a realização de manifestações pelo país de sua base mais fiel. As imagens de seus seguidores mais aguerridos —centenares, diga-se, nada das multidões contra Dilma Rousseff— desfilam nas redes sociais do presidente. Todos dispostos a gritar “mito” e levar, sem qualquer constrangimento, palavras de ordem contra os outros poderes e a democracia.


Já é um escândalo, feito sob medida para esse novo modelo de governo voltado a uma minoria, mas nosso filme B vai muito além. A marcha imparável da boçalidade levou Bolsonaro a participar ele mesmo do protesto, mesmo tendo indicação de ficar em isolamento social após ter contato direto com meia dúzia de pessoas que comprovadamente contraíram coronavírus. Sem máscara, ele foi cumprimentar seguidores em Brasília, tocou neles, agarrou celulares. Tudo é absurdo e, ao mesmo tempo, tão coerente com a miríada de fake news sobre o país e a doença que sua máquina no WhatsApp estimula: o vírus não é de nada, é uma “fantasia”, como o presidente mesmo disse.

Não é difícil enquadrar, mais uma vez, a conduta de Bolsonaro como crime de responsabilidade passível de impeachment. Para começar, por ferir a dignidade, a honra e o decoro do cargo, pondo em risco seus governados. Depois, a depender de como evoluir a situação da pandemia no país, ele pode ser acusado de cometer um crime contra a segurança interna, estimulando a desobediência a medidas determinadas por órgãos técnicos.

A conduta criminosa não acontece só pelo domingo, mas também pela quinta-feira, quando ele, num dos lances mais claramente chavistas deste Governo, usou uma cadeia nacional de rádio e TV, ou seja, dinheiro público, para promover e chamar de legítimos os atos que ele participa. Isso não é “servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder”?

Choca a normalidade com que os demais poderes e a elite do país, inclusive a empresarial e financeira, encara, dia a dia, esse esgarçamento da democracia. Parte desses atores é cúmplice confesso desde a campanha. Se há alguma coisa que não existe aqui é surpresa. No máximo, eles reagem com uma declaração de ultraje via Twitter, uma nota de repúdio enviado a uma coluna de jornal ou um diligente cientista político engravatado para amaciar o ego da Faria Lima: as instituições estão funcionando.

O impeachment é um mecanismo de controle político, isso é sabido, e a leitura dos agentes agora no poder é que não vale a pena esse desgaste: ainda há apoio sólido do PIB a Bolsonaro, e há uma alta taxa de governismo no Congresso, alinhamento de pautas econômicas e anti-ambientais, especialmente. No Parlamento, ninguém quer mexer qualquer ficha, ainda mais com eleição municipal e enquanto a centro-direita não tiver um plano claro a futuro― de mais a mais, Lula está aí, livre, Bolsonaro alicia as polícias, Hamilton Mourão é uma esfinge... Seja como for, tudo se torna realmente impensável em meio a uma crise sem precedentes, sanitária e financeira. Na Europa, pelo menos desde 1945 não se vivia nada assim. Quem vai se meter a mexer nisso?

É neste panorama que Bolsonaro avança, fazendo estragos. Ele tem capacidade de complicar, e muito, uma situação já volátil. Chega a dar uma certa paz interior vendo o ministro da Saúde falar, honrando a tradição do nosso sólido sistema público. Quem conhece a fundo epidemiologia no Brasil garante que Wanderson Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde da pasta, é um dos melhores quadros do país. Mas nem isso está assegurado. Fomos surpreendidos, neste sábado, com o Ministério da Saúde voltando atrás na proibição de cruzeiros que a própria pasta havia anunciado na sexta-feira. Segundo a Folha de S. Paulo, sofreram “pressão” para mudar a determinação. Quem vai parar Bolsonaro, quando vamos parar de fingir, em queda livre, que até aqui vai tudo bem?
Flávia Marreiro