sexta-feira, 20 de maio de 2022

Internet transformadora


O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a detentor da verdade
Umberto Eco

O Governo que não houve

Se você notou que o Brasil perdeu mais 04 anos, certamente está preocupado em recuperar esse atraso. Ocorreu que o governo, não sabendo como haver, de fato não houve.

Imagine, por exemplo, a frustração da torcida do ‘Estado mínimo’, que só herdou incertezas e a desconfiança internacional. Nenhuma reforma neoliberal (administrativa, fiscal ou trabalhista) lhe foi entregue. A Petrobrás, Banco do Brasil e outras joias da coroa continuam estatais.

Por sua vez, a velha-guarda desenvolvimentista não recuperou espaço e influência na gestão pública nem na política econômica. Não demorou para que vissem o “Brasil Acima de Todos” ficar abaixo do “orçamento secreto acima de tudo”.


Também foram surpreendidos os entusiastas de Floriano e de sua ‘República sem democracia’. Sairão desgastados, sem ter visto ordem nem progresso, mas o samba já havia alertado: “não adianta estar no mais alto degrau da fama, com a moral toda enterrada na lama”.

Quem quiser revisitar o caminho que nos trouxe aqui, basta dar uma olhada nas eleições de 2018 (passionais e marcadas pela rejeição dos principais candidatos). Nesses casos, geralmente vence aquele que convencer o eleitor de que ‘não é o outro’.

Dito e feito, venceu quem personificou o herói que selaria o degredo do PT (e nada mais). Para agradar a todos, criou-se um enredo repleto de visões discrepantes de Estado, economia e sociedade.

Expectativas tão difusas, vindas de tantos setores, que seria inviável concretizá-las. Deu tão errado que sequer seu objetivo comum foi alcançado (Lula volta a assombrá-los em 2022, no estilo Conde de Monte Cristo).

No campo administrativo, se o time que subiu a rampa trazia na mala algum modelo de gestão, ninguém viu. A máquina federal só funcionou graças ao piloto automático de sempre (os funcionários concursados).

Sem noção de como governar uma das principais Economias do mundo (com 200 milhões de habitantes e complexidade continental), a demolição tomou o lugar da construção, encarnando o status de obra em si. O que passou ao alcance da caneta foi sumariamente desmontado, sem nenhum plano para o dia seguinte.

Com dificuldade de interpretar o mundo real, o Palácio isolou-se com caçadores de bruxas e mercenários, precarizando a qualidade do diálogo interno e externo (nem os pretendentes iniciais a grão-vizir aguentaram).

Para o povo, sobrou pandemia, desemprego e inflação. A Saúde e a Economia não contaram com instrumentos federais para mitigar e controlar do impacto das crises mundiais.

Ao final, só os descuidistas que frequentam os corredores mal iluminados terão obtido algum proveito ligeiro, passando boiadas às custas da Soberania e da justiça social.

A Ilha da Vera Cruz não resistirá a mais improviso. Nas eleições deste ano tem que haver projeto de País, visão de Estado e programa de Governo, sob risco de mais adiante o Noblat precisar publicar “O Futuro Que Não Houve”.

Comunidade e personalidade

Ao refletir sobre minha existência e minha vida social, vejo claramente minha estrita dependência intelectual e prática. Dependo integralmente da existência e da vida dos outros. E descubro ser minha natureza semelhante em todos os pontos à natureza do animal que vive em grupo. Como um alimento produzido pelo homem, visto uma roupa fabricada pelo homem, habito uma casa construída por ele. O que sei e o que penso, eu o devo ao homem. E para comunicá-los utilizo a linguagem criada pelo homem. Mas quem sou eu realmente, se minha faculdade de pensar ignora a linguagem? Sou, sem dúvida, um animal superior, mas sem a palavra a condição humana é digna de lástima.

Portanto reconheço minha vantagem sobre o animal nesta vida de comunidade humana. E se um indivíduo fosse abandonado desde o nascimento, seria irremediavelmente um animal em seu corpo e em seus reflexos. Posso concebê-lo, mas não posso imaginá-lo. Eu, enquanto homem, não existo somente como criatura individual, mas me descubro membro de uma grande comunidade humana. Ela me dirige, corpo e alma, desde o nascimento até a morte.

Meu valor consiste em reconhecê-lo. Sou realmente um homem quando meus sentimentos, pensamentos e atos têm uma única finalidade: a comunidade e seu progresso. Minha atitude social portanto determinará o juízo que têm sobre mim, bom ou mau. Contudo, esta afirmação primordial não basta. Tenho de reconhecer nos dons materiais, intelectuais e morais da sociedade o papel excepcional, perpetuado por inúmeras gerações, de alguns homens criadores de gênio. Sim, um dia, um homem utiliza o fogo pela primeira vez; sim, um dia ele cultiva plantas alimentícias; sim, ele inventa a máquina a vapor. O homem solitário pensa sozinho e cria novos valores para a comunidade. Inventa assim novas regras morais e modifica a vida social. A personalidade criadora deve pensar e julgar por si mesma, porque o progresso moral da sociedade depende exclusivamente de sua independência. A não ser assim, a sociedade estará inexoravelmente votada ao malogro, e o ser humano privado da possibilidade de comunicar.

Defino uma sociedade sadia por este laço duplo. Somente existe por seres independentes, mas profundamente unidos ao grupo. Assim, quando analisamos as civilizações antigas e descobrimos o desabrochar da cultura europeia no momento do Renascimento italiano, reconhecemos estar a Idade Média morta e ultrapassada, porque os escravos se libertam e os grandes espíritos conseguem existir.

Hoje, que direi da época, do estado, da sociedade e da pessoa humana? Nosso planeta chegou a uma população prodigiosamente aumentada se a comparamos às cifras do passado. Por exemplo, a Europa encerra três vezes mais habitantes do que há um século. Mas o número de personalidades criadoras diminuiu. E a comunidade não descobre mais esses seres de que tem necessidade essencial. A organização mecânica substituiu-se parcialmente ao homem inovador. Esta transformação se opera evidentemente no mundo tecnológico, mas já em proporção inquietadora também no mundo científico.

A falta de pessoas de gênio nota-se tragicamente no mundo estético. Pintura e música degeneram e os homens são menos sensíveis. Os chefes políticos não existem e os cidadãos fazem pouco caso de sua independência intelectual e da necessidade de um direito moral. As organizações comunitárias democráticas e parlamentares, privadas dos fundamentos de valor, estão decadentes em numerosos países. Então aparecem as ditaduras. São toleradas porque o respeito da pessoa e o senso social estão agonizantes ou já mortos. Pouco importa em que lugar, em quinze dias, uma campanha da imprensa pode instigar uma população incapaz de julgamento a um tal grau de loucura, que os homens se prontificam a vestir a farda de soldado para matar e se deixarem matar. E seres maus realizam assim suas intenções desprezíveis. A dignidade da pessoa humana está irremediavelmente aviltada pela obrigação do serviço militar e nossa humanidade civilizada sofre hoje deste câncer. Por isso, os profetas, comentando este flagelo, não cessam de anunciar a queda iminente de nossa civilização. Não faço parte daqueles futurólogos do Apocalipse, porque creio em um futuro melhor e vou justificar minha esperança.

A atual decadência, através dos fulminantes progressos da economia e da técnica, revela a amplidão do combate dos homens por sua existência. A humanidade aí perdeu o desenvolvimento livre da pessoa humana. Mas este preço do progresso corresponde também a uma diminuição do trabalho. O homem satisfaz mais depressa as necessidades da comunidade. E a partilha científica do trabalho, ao se tornar obrigatória, dará a segurança ao indivíduo. Portanto, a comunidade vai renascer. Imagino os historiadores de amanhã interpretando nossa época. Diagnosticarão os sintomas de doença social como a prova dolorosa de um nascimento acelerado pelas bruscas mutações do progresso. Mas reconhecerão uma humanidade a caminho.
Albert Einstein, "Como vejo o mundo"

Percalços de um golpe

"Golpe" é a palavra na ordem do dia. Adquiriu vida maiúscula em língua de políticos e páginas de jornais. Entidade tangível em mesa de bar, reunião de trabalho e almoço de domingo.

Quanto mais se fala, mais cresce a concretude. Antes se aludia ao "fantasma" do golpe, agora se discutem se seus braços são armados e se seu rosto é o presidencial.

Consenso não tem. Discute-se a coisa e seu nome, pois, como em 1889, 1930, 1964, há quem defina a mudança política à força como golpe, como quem a chame de "revolução". Os "revolucionários" atuais se dispõem às armas em nome da "liberdade" de impor o resultado eleitoral. Cantiga ensaiada em falas de presidente e família, de seu círculo político e dos fardados de diferentes forças e patentes.


No debate público, há o setor "não vai ter golpe". São os aferrados à tese de que, mesmo em frangalhos, as instituições democráticas aguentarão o tranco. No outro polo estão os catastrofistas. São os que frisam os perdigotos golpistas a transbordar das escarradas presidenciais.

Ambas as posições, a otimista e a pessimista, se baseiam em declarações. É um indicador, porque não existe golpe se ninguém tem intenção de golpear. Mas entre intenção e ação vai fosso largo e longo. A observação de golpes passados ensina que não é bolinho transpô-lo. Estudos sobre nativos e estrangeiros listam muitos percalços no processo golpista.

Um é que gogó é uma coisa, ação é outra. Pode-se esbravejar e conspirar, mas, ausentes apoios político e militar, fica tudo no reino das histórias infantis, com seus vilões ineptos para concretizar o plano de dominar o mundo. O cão ladra, mas, na hora do vamos ver, podem faltar-lhe dentes para a mordida.

Segundo óbice é organizar o encadeamento de pequeninas ações que, juntas, configuram um golpe. Quem já tentou pôr ordem em mais de duas dúzias de pessoas sabe quanto chove dissenso, imponderabilidade, indisciplina, e até pedra, nas ações coletivas. Coordenar um golpe é desafio em si, requer inteligência dos estrategistas políticos, ingrediente escasso na casa golpista.

Não basta ordenar. Até o plano mais perfeitinho morre na praia, sem remadores para a travessia. Precisa quem tope o risco e, aí, o jogo de lealdades é um poker. Tem legalista que se bandeia no último minuto, mas tem quem combina tudo e some na hora H. E, dado o amadorismo bolsominion, não custa lembrar que é preciso saber executar.

Supondo que o golpe tupiniquim não fosse o fiasco do norte-americano que lhe serve de modelo, os problemas mudariam de nível.

Um seria o reconhecimento internacional. A órbita Putinesca talvez aplaudisse, os governos democráticos, não. A imprensa global, que o mercado lê, cairia de pau na quartelada. Em escala doméstica, o governo golpista careceria de legitimidade entre a metade da sociedade já hoje amuada com o governo, incluído pedaço do PIB.

Haveria oposição obstinada, a não se ser que se fechassem tribunais, executivos estaduais, legislativo e jornais, se prendesse, exilasse ou arrebentasse a quase totalidade das elites cultural e intelectual e boa parte das cúpulas política e jurídica. O antigolpismo uniria os democratas. A resistência tomaria muitas formas, dentro e fora do que restasse das instituições, no país e fora dele, nas redes e nas ruas.

Por fim, ainda que nada desse errado, haveria que governar. E esse, como está bem demonstrado, não é o forte de Bolsonaro.