quarta-feira, 13 de março de 2024

Pensamento do Dia

 


Qual Brasil queremos ser?

Há uma resposta pronta, repetida vezes sem fim, para a pergunta do título: “queremos um Brasil desenvolvido!” Trata-se, porém, de uma resposta equivocada. A razão do engano é a brutal imprecisão da resposta. Ela carece de clareza: como seria um Brasil “desenvolvido”? O que é um país “desenvolvido”? A Suíça, o Japão, a Espanha, os EUA?

Claro, jamais poderemos ser qualquer desses, todos eles resultados das respectivas histórias. Assim como nós. Queremos ser, todos concordam, um Brasil “melhor”. Mas a incerteza persiste, tantas são as respostas possíveis para qualificar esse país “melhor”. Queremos o paraíso na Terra? Sim, queremos, mas modéstia e realismo são necessários para “melhorar”, progressivamente. Assim, devemos definir “melhor” com os pés na terra, cientes que as grandes caminhadas começam com o primeiro passo. Devemos escolher melhorias passíveis de serem alcançadas em poucos anos e usar a criatividade e a diversidade da população brasileira para experimentar caminhos e encontrar aqueles mais curtos para alcançar as melhorias desejadas.

Acabar a dengue em quatro anos? Desejável, mas talvez impossível. Reduzir a incidência da doença em 50%? Especialistas, embora divergindo, dirão com mais precisão da viabilidade de tal meta, e as ações necessárias para torná-la realidade. Se nos pusermos de acordo que tal fim é desejável, seja ele uma queda de 40% ou 60%, poderemos construir caminhos diversificados para chegarmos lá, uns aprendendo com os outros. E, ainda que nada mais mude, teremos um Brasil melhor (ainda que apenas um pouquinho) em quatro anos!


Claro, não basta um único objetivo, ainda que meritório como o citado acima. E na educação, na limpeza urbana, na pontualidade do transporte coletivo, na habitação, no saneamento, quais os objetivos factíveis no curto prazo de um mandato?

Se elegermos uma bancada legislativa e um, ou uma, presidente, comprometidos com o alcance de um pequeno número de metas claras e objetivas, que de fato melhorem a qualidade de vida dos mais carentes, como exemplificado acima com a dengue, saberemos encontrar os meios para alcançá-las, assim como os norte-americanos encontraram maneiras para levar e trazer uma pessoa à Lua em menos de uma década! E nós mesmos conseguimos construir uma belíssima capital e transformar o Brasil no mandato de JK. Clareza quanto aonde chegar, mas com realismo e sem a pressa inflacionária de então!

Pena que desde então nossas lideranças ficaram míopes correndo atrás da miragem chamada “desenvolvimento”, sem que saibamos qual Brasil queremos ser. Nesse nevoeiro, a confusão prevalece, assim como a dita “bateção de cabeça” entre poderes e no interior de cada um deles. E não saímos do atoleiro em que nos colocaram!

Afinal, não há bom vento para quem não sabe aonde vai!

O dia em que a Terra parou

Raul Seixas tinha razão. Quando a Terra parar, nenhum de nós vai escapar das consequências. O que o Raul não sabia quando compôs o rock “O dia em que a Terra parou” é que isso vai acontecer quando a corrente meridional do Oceano Atlântico colapsar. Essa corrente de águas marinhas quentes e frias, que circula o mundo de norte a sul, é uma espécie de fábrica de vida no planeta.

Em tradução ligeira, a água quente do Atlântico Sul segue para o Polo Norte por correntes oceânicas superiores, mas sofre um resfriamento ao chegar nas redondezas da Groelândia. Com isso, mergulha e retorna para o sul por correntes profundas, realimentando um ciclo permanente de distribuição de calor, nutrientes e salinidade entre todos os oceanos, estabilizando a temperatura do planeta e as condições de vida marinha e terrestre.

Se esse motor da natureza desacelerar bruscamente, as consequências podem ser, entre outras, o resfriamento extremo do hemisfério norte, calor e secas intensos no hemisfério sul, elevação do nível do mar e até mesmo extinção em massa.

Em 1951, a Terra já havia parado no filme “O dia em que a Terra parou”. A humanidade vivia o auge da ressaca da II Guerra Mundial e começava a sentir a tensão da Guerra Fria, quando Hollywood lança a história da chegada de um robô extraterrestre que ameaçava julgar e castigar a humanidade caso insistíssemos em travar guerras de aniquilação em larga escala.

Uma freada brusca do sistema de correntes do Atlântico também já aconteceu anteriormente, há milhares de anos, mesmo sem a intervenção humana. A diferença agora é que, a partir da revolução industrial, a humanidade afundou o pé no acelerador das emissões de gases efeito estufa e da devastação ambiental, intensificando o aquecimento global e pondo em risco o modo de vida como conhecemos, ao invés de se preparar para amenizar ou se adaptar a esses extremos climáticos.

É o que demonstram estudos científicos publicados nos últimos anos por revistas renomadas como Nature e Science. Os dados sobre o sistema de correntes oceânicas foram submetidos a modelos de simulação em computador que comprovam uma tendência de desaceleração mais rápida do que seria de se esperar naturalmente.

Isso ocorre porque, devido às mudanças climáticas, o derretimento acentuado de geleiras e outros volumes de gelo natural nas últimas décadas aumentou a proporção de água doce desembocada nos mares, catalisando alterações desastrosas na temperatura, velocidade, profundidade e densidade das correntes marítimas planetárias.

Caso voltasse hoje à Terra, quem sabe, o juiz robô alienígena nos impusesse um novo ultimato, dessa vez não apenas contra as guerras, mas principalmente contra nossa obsessão por raspar o tacho dos recursos do planeta. Raul Seixas, rogai por nós.

As igrejas neopentecostais e a consolação a varejo

Fato capaz de pôr orelhas em pé é a presença maior de católicos no comício de 25/2 na Paulista, enquanto predomina entre os evangélicos a opinião de que religião não deveria se misturar com política. O paradoxo é que se tratava de organização neopentecostal, portanto, de evento do nicho eleitoral da extrema direita.

É retrato diferente, induzido pela atuação neopentecostal, que trocou nas mentes o todo pela parte. Enriquecida, essa parte tem prosperado no pacto com a entidade anticrística Mamon, citada nos evangelhos de Lucas e Mateus como fetiche do dinheiro. O comício na Paulista foi mais Malafaia do que Bozo.


Religião, definiu Alfred Whitehead, expoente do pensamento inglês, é "aquilo que você faz com a sua solidão". Enunciado amplo, que contempla tanto os indivíduos na privacidade do relacionamento com a transcendência quanto as administrações da fé voltadas para a consolação das múltiplas formas de desamparo. Isso que Marx viu como ópio do povo, mas não é tão simples assim.

Nenhuma teoria da sociedade ou da história esgotou até hoje a atração pela forma platônica do bem ou pela ideia fascinante de um deus onipotente. A existência, movida a crenças, sempre foi diferente do saber racional. E as religiões lidam com isso de maneira diversa, aproximando-se ou afastando-se das intensidades da fé.

Neopentecostalismo é movimento que se expande como desvio da doutrina cristã, relegando a segundo plano o Novo Testamento e trocando o ensino da Cruz de Cristo pela autoajuda. Estimula o privatismo da devoção nos moldes da teologia da prosperidade. Mas contém formas de acolhimento comunitárias, que foram esquecidas pelas igrejas católicas. Isso pode ser popularmente percebido como mais importante do que estabilidade econômica e democracia.

Foi esse o caldeirão colocado sobre o fogo da extrema direita brasileira nos últimos anos. O que se cozinhou até agora em termos públicos foi o enriquecimento escandaloso de igrejas favorecido pelo governo da vez, vulnerável à chantagem do voto e à pressão de bancadas. Trata-se de um projeto escuso de poder, sob uma teologia de domínio, cujo alvo é o Estado, com mandamentos de ódio e guerra: "E lançarei os egípcios contra os egípcios, e cada um lutará contra o seu irmão, e cada um contra o seu próximo; cidade contra cidade e reino contra reino" (Isaías, 19:2).

No comício, aos pulinhos, a ex-primeira-dama rogava ao Senhor pelo advento da teocracia, regime do ódio, repelido pela maioria evangélica. Mas o fenômeno é morboso e contagiante, católicos já aderem. É que, no vácuo privatista de solidariedade, empatia e amor, "ódio é o veneno que se toma e espera que um outro morra" (Santo Agostinho).

Teologia do domínio é o perigo

Trump é Davi, Bolsonaro é Davi, Milei é Davi. Porque Davi aqui é privilegiado, não é o menino que derrota Golias, que vence a força bruta com a inteligência e a astúcia. Aqui é o rei Davi, um modelo do pecador ungido, porque ele é o senhor das armas, ele é o rei de batalhas, ele é o senhor de um império, mas depois ele se arrepende, torna-se outro. Davi é abraçado pela teologia do domínio. Em outras palavras, Trump, Milei e Jair Bolsonaro, pouco importa os pecados que cometam, eles são ungidos.

João Cezar de Castro Rocha

Estado laico, amém

A mistura tóxica de religião e política, uma aberração num Estado leigo, é hoje parte do dia a dia dos brasileiros, como indica pesquisa da consultoria Quaest. Segundo o relatório, 42% dos cidadãos identificados como católicos avaliaram positivamente o atual governo e 28%, de forma negativa. Entre os evangélicos, a avaliação positiva ficou em 22% e a negativa, em 48%. O vínculo entre filiação religiosa e opinião política parece claro. Além disso, remete à fala da ex-primeira dama Michelle Bolsonaro no comício de 25 de fevereiro na Avenida Paulista. “Por um bom tempo, fomos negligentes a ponto de dizer que não poderíamos misturar política com religião. E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação”, disse a oradora, antes de chamar Deus para estabelecer seu reino no Brasil.


Não está claro se o Todo-Poderoso deu alguma resposta ao apelo da ex-primeira-dama nem se está disposto a aliviar a situação legal de seu marido, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Já inelegível por abuso do aparelho estatal, ele é apontado como envolvido em outras lambanças, como tentativa de venda de joias presenteadas à República, fraude no cartão de vacina, incitação ao vandalismo e ao golpismo de 8 de janeiro e propagação de mentiras sobre a vacina contra a covid-19.

No comício da Avenida Paulista, ele pregou pacificação, falou em passar borracha no passado e pediu anistia aos envolvidos na depredação golpista em Brasília. O discurso foi interpretado imediatamente, e com bons fundamentos, como busca de anistia para si mesmo. Também nesse evento a ex-primeira-dama, além de citar a Bíblia e de pedir o apoio divino, falou de si e de seu marido como vítimas de perseguição.

Os dados da pesquisa Quaest sobre religião e política poderiam ser um interessante detalhe estatístico, sugestivo, talvez, de algum estudo mais profundo ou de uma boa reportagem. Mas o ato na Avenida Paulista, com presença de milhares de evangélicos e católicos e participação dos pastores Silas Malafaia, Marco Feliciano e Magno Malta, evidenciou mais uma vez os vínculos – vigorosamente afirmados pela ex-primeira-dama – entre a fé religiosa e o jogo do poder.

Observados em muitas democracias, esses vínculos podem estar presentes no dia a dia da vida política e na configuração dos valores coletivos, sem afetar, no entanto, a natureza do Estado e a liberdade civil. Essa tem sido a experiência brasileira desde o início da República.

A Constituição imperial, de 1823, ainda consagrou uma religião do Estado, mas garantiu a liberdade religiosa, embora com certas condições. No caso de religiões diferentes do catolicismo romano, o culto deveria ser doméstico ou realizado em casas sem aparência de templo. De modo mais amplo, a liberdade religiosa foi reafirmada, em 1891, na primeira Constituição republicana.

Esse texto, alterado nas décadas seguintes por algumas emendas, estabeleceu a laicidade do Estado, o reconhecimento exclusivo do casamento civil, o caráter secular dos cemitérios e a laicidade do ensino público.

Os fundadores do regime republicano levaram a sério essas ideias, típicas da modernidade e amadurecidas no mundo ocidental principalmente a partir do século 18. No Brasil, o direito a formas diversas de religiosidade tem sido valorizado há mais de um século, embora ainda se observem, de vez em quando, surtos de intolerância, dirigidos principalmente contra religiões de origem africana. Parece inegável o caráter racista dessas manifestações.

A liberdade religiosa foi geralmente respeitada e valorizada, no País, mesmo nos períodos de autoritarismo. Líderes cristãos e não cristãos foram importantes na resistência à ditadura militar, entre 1964 e 1985, ajudando perseguidos políticos, socorrendo pessoas torturadas e combatendo a violência do regime. Esses líderes e seus grupos foram rotulados como comunistas e vigiados como inimigos do poder, mas, de modo geral, as igrejas mantiveram sem limitações as suas atividades habituais de culto, de pregação e de ação sacramental.

Apesar do envolvimento político de bispos, padres, pastores, rabinos, pais de santo e outras figuras ligadas a religiões, nenhum grupo parlamentar assumiu explicitamente uma identificação religiosa. Não houve uma bancada católica, nem evangélica, nem de qualquer outra denominação ligada a culto ou igreja. Sempre se manteve a distinção, pelo menos implícita, entre ação política e filiação a alguma organização eclesiástica. Grupos ideológicos ligados a alguma denominação religiosa se mantiveram como organizações privadas, sem agitar suas bandeiras nas instituições oficiais.

Essa distinção, observada na rotina democrática e também nas fases mais difíceis da vida brasileira, permitiu a manutenção, por mais de um século, do princípio republicano do Estado laico. Crucifixos pendurados em alguns salões de edifícios públicos nunca impediram a afirmação dessa laicidade, garantida também pela Constituição de 1988, embora promulgada, como indica seu preâmbulo, “sob a proteção de Deus”. Que assim seja.