segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

'Nós morremos, para que eles possam viver'

Quantas horas você consegue sobreviver sob os escombros da sua própria casa? Duas, três ou até seis horas?

Aqui em Gaza, somos forçados a suportar uma maratona de ficarmos presos sob os escombros.

Lara, Yara e Naama suportaram períodos de tempo inimagináveis: seis, oito e dezesseis horas, respectivamente.

Merecemos ter o peso de nossas próprias casas nos esmagando, nos sufocando enquanto lutamos para sobreviver?

Essas horas são realmente nossas ou ainda estamos presos sob os escombros de nossas próprias vidas?

Em Gaza, quando uma casa é bombardeada, a defesa civil e os civis correm para salvar os sobreviventes.

No entanto, até mesmo a defesa civil foi alvo da ocupação israelense. Como isso foi permitido pelo direito internacional?

Aqueles que ainda estão vivos sob os escombros também não estão morrendo?

Nós nos sacrificamos mil vezes para que outros possam viver. Mas mesmo quando são resgatados, algo dentro deles morreu.


A família Zaqout no campo de Nuseirat foi alvo, e a família inteira ficou presa sob os escombros. Lara, que tem seis anos, e Yara, que tem dezesseis, sobreviveram milagrosamente depois de mais de oito horas sob os escombros.

Yara relembra: “Lara costumava dormir ao meu lado antes do bombardeio. Costumávamos dormir em paz até que o míssil chegou, o que foi como um pesadelo da minha vida.”

Acordei e encontrei o teto da nossa casa sobre meu peito, e tudo o que havia para respirar era ar cheio de poeira.

Tantas perguntas correram na minha cabeça — eu morri? Onde estou? Onde está minha família? Minha mãe, meu pai e Lara?

Gritei, mas não saiu nenhum som, desmaiei e acordei com o corpo todo coberto de sangue e lágrimas.

As vozes da defesa civil, vizinhos e parentes gritavam: “Há sobreviventes?” Como posso responder?

Tentei muito, mas nenhum som saiu. Tentei tocar Lara, mas não a encontrei ao meu lado. No entanto, ouvi-a gemer.

Vozes de fora começaram a sumir e desaparecer.

O som de alguém lá fora dizendo: "Há uma mão se movendo sob o teto", me dá esperança; esta é Lara.

Todos trabalharam incansavelmente para resgatar Lara e, ao verem minha mão, tentaram me puxar para fora, mas sem sucesso.

Eles não conseguiram quebrar o teto porque eu estava embaixo dele. Eles tentaram por horas, e depois de oito horas de pesadelo, eu saí.

Oito horas se rendendo à morte diversas vezes.

Oito horas vivendo um pesadelo que eu queria poder apagar da memória dela.

Sim, fui resgatado e gostaria de não ter sido!

Qual foi o custo?

“Saí com deficiências e uma pélvis quebrada, meu corpo encharcado de sangue e seus ossos quebrados visíveis sob a carne”, disse Yara.

Esse incidente aconteceu meses atrás, mas Yara ainda revive o pesadelo toda vez que fecha os olhos.

Rita, uma mãe de 27 anos, estava morando no Egito, mas veio a Gaza para visitar sua família e seus três filhos apenas dois meses antes da guerra começar.

Eles estavam todos dormindo no meio da casa.

Sua irmã Farah insistiu que eles não dormissem naquele dia e prometeu Nescafé. Eles estavam relembrando suas memórias de infância.

De repente, a casa foi envolta em um brilho alaranjado de um foguete, e suas vozes foram silenciadas quando o prédio de cinco andares desmoronou em um único andar.

“Achei que estava morta e desisti”, diz Rita.

Mas aqueles dedos inocentes e pequenos de seu filho Ryan a tocaram e a trouxeram de volta à vida. “Mãe, acorde, mãe, acorde.”

“Meus irmãos não acordaram”, Ryan grita e pede ajuda.

Os irmãos de Rayan não sobreviveram, mas a voz e o toque inocentes de Ryan lhe deram forças para continuar lutando.

“Não se preocupe, minha pequena, eu estou viva.”

A Defesa Civil conseguiu resgatar Ryan, Rita e sua irmã, Farah, mas o resto da família morreu.

A espera mais longa de nossas vidas foi esperar para sermos resgatados dos escombros, torcendo para sermos encontrados antes que o oxigênio acabasse ou que sucumbissemos aos ferimentos.

Muitos morreram enquanto esperavam por ajuda porque a ocupação israelense tem como alvo a defesa civil e as ambulâncias.

Sem equipamentos adequados, a defesa civil enfrenta um desafio intransponível.
Donya Abu Sitta

Trump e a volta do 'imperialismo ianque'

Por definição, o imperialismo ocorre quando uma nação promove uma expansão territorial, econômica e/ou cultural sobre outra nação pela força. A colonização da África, da Ásia e da Oceania, que se iniciou na segunda metade do século XIX, representou o auge do imperialismo. Em termos atuais, pode ser empregada no caso da invasão da Ucrânia pela Rússia, por exemplo. Segundo o historiador Eric Hobsbawm, essa forma de neocolonialismo representou a ocupação de 25% das terras do planeta.

O revolucionário russo Vladimir Lênin, que liderou a Revolução de 1917 e fundou a antiga União Soviética, porém, associava o imperialismo ao estágio monopolista do capitalismo. “Essa definição compreenderia o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes bancos monopolistas fundido com o capital das associações monopolistas de industriais e, por outro, a partilha do mundo é a transição de uma política colonial que se estendeu sem obstáculos às regiões não apropriadas por nenhuma potência capitalista para uma política colonial de posse monopolista dos territórios da Terra, já inteiramente repartida.”

Com o fim da antiga União Soviética, que havia se transformado de uma força anticolonialista, sobretudo na Ásia e na África, numa potência imperialista na Europa Oriental, essa visão perdeu relevância. Com o fim do colonialismo, a integração das diversas regiões do globo por meio do desenvolvimento dos transportes e das comunicações ultrapassou os modelos nacional-desenvolvimentistas que nela se baseavam, sobretudo a partir de a China adotar o capitalismo de estado e emergir como nova potência econômica mundial.


A globalização “liquefez” a sociedade industrial e elevou a modernização a um novo patamar, com impacto direto no modo de vida de todas as pessoas. Forçou os governos a adotarem políticas de integração à economia mundial para não apenas arcar com as suas consequências mais danosas. No Brasil, a globalização intensificou-se a partir da segunda metade do século XX, com a maior inserção do país no mercado econômico global, sobretudo a partir do governo Collor de Mello, em 1990. A tentativa de retomar um projeto nacional-desenvolvimentista, durante o governo da presidente Dilma Rousseff, resultou no colapso econômico que a levou ao impeachment, em 2016.

Entretanto, a integração das cadeias produtivas globais e o multilateralismo, que pareciam pautar a globalização, sobretudo a partir da formação da União Europeia, passaram a ser fortemente questionados pelos Estados Unidos, a partir da emergência da China como segunda economia mundial. Quem controlará o comércio global, cujo eixo se deslocou do Atlântico para o Pacífico? Esse tipo de disputa entre o Reino Unido e a Alemanha, uma potência marítima e outra continental, foi uma das causas de duas guerras mundiais no século passado.

O velho “imperialismo yankee” parece estar de volta. No seu primeiro mandato, o presidente Donald Trump deu um cavalo de pau na política externa norte-americana em relação á China e ao multilateralismo, estratégia que foi mantida pelo democrata Joe Biden, que deu sequência à reorganização das suas cadeias de produção.

Agora, às vésperas de tomar posse, Trump choca o mundo com uma visão geopolítica expansionista que vai muito além da “guerra comercial” com a China. Seu America First promove políticas que prioriza a soberania dos EUA e a redução de sua dependência em termos de comércio e manufatura. A OTAN, a ONU e a OMS são estorvos econômicos e políticos. Tratados comerciais como antigos aliados, como a NAFTA, também.

A rivalidade com a China tende a desaguar numa nova corrida armamentista. Trump tudo fará para conter o crescimento da influência tecnológica e econômica chinesa, sobretudo na infraestrutura e nas comunicações. Em contrapartida, tende a se aproximar de líderes autocráticos como Vladimir Putin (Rússia), Kim Jong-un (Coreia do Norte) e Mohammed bin Salman (Arábia Saudita).

Antes mesmo de tomar posse, estressou as relações com a OTAN, com declarações sobre a anexação do Canadá e a compra da Groelândia, ao mesmo tempo em que pressiona os demais países a aumentarem seus gastos com defesa. Trump pretende apoiar a anexação dos territórios Palestinos por Benjamin Netanyahu e forçar uma aproximação de seus aliados árabes com Israel. Ao mesmo tempo, tende a largar de mão o Afeganistão e a Síria.

Sua política em relação à América Latina pode provocar nova crise humanitária, sobretudo no México, com o fechamento da fronteira e a expulsão em massa de imigrantes. As sanções econômicas e políticas contra os regimes da Venezuela, Nicaragua e Cuba serão ampliadas e a ameaça de retomada à força do Canal do Panamá se insere no contexto da disputa com a China pelo controle do comércio do Atlântico com o Pacífico.

A política energética de Trump é uma ameaça ambiental ao planeta, com a exploração doméstica de petróleo e gás por meio da fraturação hidráulica. Os EUA vão se retirar novamente do Acordo de Paris sobre o clima. Tudo isso está associado a um novo complexo tecnológico nas áreas de infraestrutura, comunicações, militar e espacial, num novo ciclo histórico, não apenas conjuntural.

Mudanças na Meta irão instaurar uma tirania da maioria


Imagine um hospital, reconhecido por tratar os casos mais complexos de doenças raras. Até ontem, as decisões sobre diagnósticos e tratamentos eram tomadas por uma equipe de especialistas — médicos, cientistas e profissionais dedicados a estudar cada caso com precisão. Porém, o CEO do hospital decide inovar e substituir a sua equipe técnica por um palanque, onde qualquer visitante pode opinar quais procedimentos adotar com os pacientes. Não importa o nível de conhecimento, experiência ou responsabilidade, cada opinião conta igualmente para definir o que será feito.


A mudança é apresentada como um marco da democracia e inclusão. Afinal, quem melhor para decidir do que “o povo” sobre o que é científico e o que não é? Porém, em menos de um plantão o caos se instala. Pacientes passam a ser tratados com métodos duvidosos e grupos organizados começam a influenciar decisões, combinando de subir no palanque para promover ideias milagrosas e descartar tratamentos comprovados. Os resultados? Diagnósticos errados, tratamentos inadequados e vidas em risco, tudo sob a justificativa de “mais espaço para o debate”.

Apesar de absurdo, é exatamente com a frase de “mais espaço para o debate” que a Meta, companhia de Mark Zuckerberg e controladora do Facebook, WhatsApp, Instagram e Threads, decidiu substituir as agências de checagens especializadas por um mecanismo de “Notas da Comunidade”, onde os próprios usuários decidem o que é verdadeiro ou falso, votando em uma enquete sobre a relevância e veracidade das informações. Agora pense naquele seu conhecido ou parente que discorda totalmente de você, você realmente acha que ela vai deixar a emoção e a polarização de lado para simplesmente dizer que a sua fala é verdadeira e a dele é falsa? E você? Conseguiria deixar a sua visão de mundo de lado para validar friamente a fala de um político que você discorda?

Quando milhões de pessoas, muitas sem qualquer preparo técnico, passam a decidir sobre temas complexos como ciência ou medicina, por exemplo, as decisões deixam de ser guiadas pela busca pela verdade e passam a refletir o que é mais popular ou conveniente. Pior ainda, grupos organizados podem manipular essas Notas para reforçar narrativas falsas, mobilizar um grupo de 10, 20, ou 30 pessoas para moldar a opinião pública ou deslegitimar informações confiáveis.

Em alguns casos, teorias da conspiração e desinformações prometem curas milagrosas, como no caso do uso do dióxido de cloro (ClO2), o qual propõe suposta “cura do autismo”, uma desinformação recorrente e nociva à sociedade e que já resultou em danos letais. Essa mesma mentira, por exemplo, poderia receber um selo de “verdadeira” a partir de uma Nota da Comunidade que contasse com votos suficientes de usuários bancados pelo lobby do dióxido de cloro, ou que fossem parte de um grupo de venda clandestina de produtos químicos no Telegram.

Se seria impensável confiar a vida de pacientes a decisões tomadas sem critério em um hospital, então por que aceitar que a integridade das informações que consumimos seja entregue a um sistema tão vulnerável de enquete pública? Essa mudança, apresentada como progresso, é, na verdade, um convite para uma tirania da maioria, onde o caos e a mentira ganham pelo volume.

Após a aquisição do atual X (antigo Twitter) por Elon Musk, a plataforma implementou, em maio de 2023, as Notas da Comunidade, permitindo que usuários adicionassem contextos a tweets potencialmente enganosos. No entanto, o sistema mostrou-se suscetível à captura por grupos com agendas específicas. Uma investigação revelou que as Notas da Comunidade foram manipuladas por grupos organizados, expondo usuários ao ódio e permitindo o uso político da ferramenta. A falta de transparência sobre quem são os usuários envolvidos no processo de avaliação e a ausência de critérios claros de admissão no programa contribuíram para essa vulnerabilidade.

A implementação das Notas da Comunidade também gerou controvérsia entre perfis públicos e meios de comunicação, os quais frequentemente tiveram suas publicações corrigidas erroneamente por usuários anônimos. Além disso, durante as eleições presidenciais nos Estados Unidos, diversas postagens contendo informações verificadas sobre procedimentos de votação foram alvo de Notas da Comunidade que propagavam teorias da conspiração sobre fraude eleitoral. Essas notas, baseadas em informações falsas ou enganosas, criaram confusão entre os eleitores e minaram a confiança no processo democrático.

E ainda, um estudo revelou que aproximadamente 96% de todas as notas de checagem de fatos contribuídas pela comunidade não foram exibidas ao público por não atenderem aos requisitos de consenso definidos pelo algoritmo, resultando em mais de 30.000 notas não exibidas. Em outras palavras, quem decide qual Nota vale é a própria plataforma, com base em critérios próprios. Um prato cheio para pautar a opinião de acordo com o que quiser. Tais notas omitidas são selecionadas pelo próprio algoritmo do X, o qual utiliza critérios opacos para decidir quais notas são relevantes ou adequadas para publicação. A falta de transparência sobre os parâmetros de elegibilidade das notas gera questionamentos sobre a imparcialidade do sistema e abre margem para potenciais vieses, já que os usuários não têm como verificar ou contestar a lógica por trás das decisões algorítmicas. Esse processo contraria a promessa de um sistema mais democrático e acessível, enfraquecendo a confiança dos próprios usuários na ferramenta.

Em outra frente, um levantamento do MediaWise descobriu que menos de 10% das notas criadas pelos usuários acabaram publicadas em postagens ofensivas. Os números são ainda menores para tópicos sensíveis como imigração e aborto, pois o algoritmo escolhe sem regras explícitas quando permitir ou não as Notas da Comunidade. Pesquisadores descobriram que, mesmo que as Notas da Comunidade viessem a ser democráticas em sua distribuição (o que não são), a maioria das postagens no X recebe a maior parte do tráfego nas primeiras horas, mas pode levar dias para que uma nota do Notas do Comunidade seja aprovada e visível para todos. Em outras palavras, sua resposta não vem a tempo de enfrentar desinformações nocivas às pessoas, especialmente envolvendo saúde pública e perseguições virtuais.

Não bastasse implementar as notas da comunidade, a Meta também anunciou que passará a permitir conteúdos antes proibidos por serem considerados discriminatórios ou potencialmente nocivos. A empresa justificou a decisão sob o argumento de que tais mudanças promovem “mais espaço para o debate” em questões culturais e políticas. Entre as alterações, está a permissão de postagens que classifiquem gays e trans como “doentes mentais”. Além disso, usuários agora poderão defender sem restrição da plataforma, por exemplo, que mulheres não são aptas para alguma profissão intelectual, só por serem mulheres, ou que pessoas trans não devem ser professoras, desde que baseiem essas opiniões em crenças religiosas. A Meta também ampliou o escopo para discussões sobre exclusões baseadas em gênero em contextos como banheiros, escolas e papeis no exército, alegando que essas questões fazem parte de debates sociais amplos.

Essa decisão não apenas contraria avanços históricos na proteção dos direitos humanos, mas também desafia marcos legais de países como o Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a homotransfobia ao crime de racismo. Ao ignorar essas legislações, a Meta demonstra desprezo pela dignidade das pessoas afetadas e pela soberania das nações em que opera. A justificativa de que tais discursos podem ser permitidos por se basearem em crenças religiosas apenas transforma dogmas em ferramentas de discriminação. Argumentos como esses, ao invés de enriquecer o debate público, promovem a segregação e reforçam estruturas de poder.

O impacto dessas mudanças transcende o plano digital, alcançando as vidas reais das pessoas que são alvo desses discursos. Permitir que gays, trans e mulheres sejam tratados como sub-humanos inferiores em discussões públicas normaliza práticas de discriminação em todos os níveis da sociedade. Por fim, o argumento de “liberdade de expressão”, frequentemente usado para justificar essas mudanças, revela-se falacioso. Seu uso para justificar ataques e desumanização de minorias viola os princípios de igualdade, dignidade e da própria liberdade de expressão daqueles que nada mais estão fazendo do que expressar a sua identidade. Sob a lógica de que todos os discursos devem ser permitidos, a Meta negligencia o fato de que certos conteúdos possuem o potencial de incitar violência e discriminação, perpetuando violências reais fora das redes.

Por fim, se já haviam banalizado o conceito de “liberdade de expressão” para distorcer a realidade e lucrar com mentiras, agora tentam banalizar até mesmo o conceito de “democracia” para instaurar uma tirania da maioria, reduzindo fatos e conhecimentos científicos a enquetes de um tribunal de anônimos na internet. Ao retirar as agências de checagem de fatos e o jornalismo comprometido dessa atuação especializada, fica no lugar um mecanismo muito menos democrático, em que usuários serão selecionados por um algoritmo oculto para reproduzir a opinião que a própria plataforma quiser dar destaque. Pode parecer The Black Mirror, mas só nos resta refletir: estaremos preparados para uma “IA-Cracia”, onde meia dúzia de big techs decide, com seus algoritmos enviesados, o que é verdade e o que não é?