terça-feira, 30 de março de 2021
Brasil mostrou a sua cara
Foi-se a ilusão. O País solidário, generoso, compassivo, fraternal, caridoso, não existe mais. Se existiu um dia, parte dele morreu. E não tem a ver com a pandemia. O vírus agravou o que já era evidente.
Mais de 57 milhões de brasileiros elegeram Bolsonaro. Bastaria isso para assolar sua reputação. O voto no Capitão deu transparência ao lado cinzento do País que um dia foi festejado por sua desambição e genuína alegria.
Para nossa vergonha, estamos entre os cinco países que mais matam mulheres, aponta o Alto Comissariado das Nações Unidas pra os Direitos Humanos (ACNUDH). Perdemos para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres.
O brasileiro “bonzinho” mata 48 vezes mais mulheres que o Reino Unido, 24 vezes mais que a Dinamarca e 16 vezes mais que o Japão ou Escócia, se comparado com países desenvolvidos.
Há anos, o País ocupa o 3o. lugar no ranking com maior população carcerária do mundo. Cerca de 800 mil presos em condições sub-humanas. Boazinha, Xuxa Meneghel cutuca a ferida com ponta de faca. Sugere tratar como animais de laboratório os que estão pagando seus pecados - justa ou injustamente. Não está distante da golpista Janaína Paschoal, que preconiza a morte dos velhos para salvar os jovens da Covid.
A pandemia certamente escancarou a face desumana do Brasil. Desrespeito afrontoso às regras sanitárias, a começar por quem se passa por chefe de governo. Irresponsáveis espalharam o vírus, desmantelaram nosso sistema de saúde, ferraram ainda mais nossa economia.
Não faltam exemplos e indicadores dando nitidez ao perfil tóxico do brasileiro. A maioria não gosta de cumprir leis. Atravessa fora da faixa de pedestre, estaciona em lugar proibido, de preferência, obstruindo passagem para cadeirantes. E não teme ser punido ao dirigir alcoolizado. Como se fosse pouco, estamos entre os cinco maiores vendedores de armas de pequeno porte do mundo.
No Índice Global da Paz, elaborado pelo Instituto para a Economia e Paz, da Austrália, o Brasil caiu dez posições em 2020, segundo ano do governo genocida. Entre 163 países, nesses tempos da cólera, estamos em 126.
Não é de hoje. O brasileiro não merece a fama de bonzinho. Em 2016, um comparativo sobre empatia, entre 63 países, pela Universidade de Michigan, o Brasil ficou no fim da fila.
Esse é o semblante do Brasil de hoje. Cazuza não viveu pra ver. Anos 80, quando saíamos de ditadura sanguinária, ele pedia no icônico disco “Ideologia”: “Brasil, mostra sua cara. Quero ver quem paga pra gente ficar assim”. Quase 40 anos depois, o que vemos? Um genocida. E seus asseclas.
PS: Mais do mesmo. O troca troca de ministros não dá alívio ao Brasil que ainda crê em milagres. Queremos vacina.
Mirian Guaraciaba
Mais de 57 milhões de brasileiros elegeram Bolsonaro. Bastaria isso para assolar sua reputação. O voto no Capitão deu transparência ao lado cinzento do País que um dia foi festejado por sua desambição e genuína alegria.
Para nossa vergonha, estamos entre os cinco países que mais matam mulheres, aponta o Alto Comissariado das Nações Unidas pra os Direitos Humanos (ACNUDH). Perdemos para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres.
O brasileiro “bonzinho” mata 48 vezes mais mulheres que o Reino Unido, 24 vezes mais que a Dinamarca e 16 vezes mais que o Japão ou Escócia, se comparado com países desenvolvidos.
Há anos, o País ocupa o 3o. lugar no ranking com maior população carcerária do mundo. Cerca de 800 mil presos em condições sub-humanas. Boazinha, Xuxa Meneghel cutuca a ferida com ponta de faca. Sugere tratar como animais de laboratório os que estão pagando seus pecados - justa ou injustamente. Não está distante da golpista Janaína Paschoal, que preconiza a morte dos velhos para salvar os jovens da Covid.
A pandemia certamente escancarou a face desumana do Brasil. Desrespeito afrontoso às regras sanitárias, a começar por quem se passa por chefe de governo. Irresponsáveis espalharam o vírus, desmantelaram nosso sistema de saúde, ferraram ainda mais nossa economia.
Não faltam exemplos e indicadores dando nitidez ao perfil tóxico do brasileiro. A maioria não gosta de cumprir leis. Atravessa fora da faixa de pedestre, estaciona em lugar proibido, de preferência, obstruindo passagem para cadeirantes. E não teme ser punido ao dirigir alcoolizado. Como se fosse pouco, estamos entre os cinco maiores vendedores de armas de pequeno porte do mundo.
No Índice Global da Paz, elaborado pelo Instituto para a Economia e Paz, da Austrália, o Brasil caiu dez posições em 2020, segundo ano do governo genocida. Entre 163 países, nesses tempos da cólera, estamos em 126.
Não é de hoje. O brasileiro não merece a fama de bonzinho. Em 2016, um comparativo sobre empatia, entre 63 países, pela Universidade de Michigan, o Brasil ficou no fim da fila.
Esse é o semblante do Brasil de hoje. Cazuza não viveu pra ver. Anos 80, quando saíamos de ditadura sanguinária, ele pedia no icônico disco “Ideologia”: “Brasil, mostra sua cara. Quero ver quem paga pra gente ficar assim”. Quase 40 anos depois, o que vemos? Um genocida. E seus asseclas.
PS: Mais do mesmo. O troca troca de ministros não dá alívio ao Brasil que ainda crê em milagres. Queremos vacina.
Mirian Guaraciaba
As Forças Armadas, 1964 e a alopragem de Bolsonaro
Há exatamente dois anos, publiquei um artigo na Crusoé sobre a Ordem do Dia que o Ministério da Defesa, então sob a batuta do general Fernando Azevedo e Silva, havia divulgado a respeito de 1964. No artigo, comentei como a insistência de Jair Bolsonaro em homenagear o golpe militar chocava-se com a vontade das Forças Armadas de deixar o acontecimento nos escaninhos da história, ainda que sem a autocrítica que lhes exigem.
Acredito que o artigo volta a ter atualidade diante da forma como o presidente da República, acuado politicamente, tenta agora assombrar o país com o fantasma de um autogolpe. Reproduzo abaixo a maior parte do que foi publicado em 29 de março de 2019:
“Meses atrás, eu disse aqui na Crusoé que discutir 1964 a esta altura é como se, em 1964, o tema dos debates fosse a presidência de Hermes da Fonseca, que governou o país de 1910 a 1914. Outra ideia fora de lugar. Mas Jair Bolsonaro ordenou que as Forças Armadas comemorassem – ou rememorassem, vá lá — a data, obnubilado pela tal guerra cultural que os seus ideólogos teimam em trazer para o palco, como se dela dependesse a permanência da direita no poder conquistado nas urnas. Não depende. A direita só continuará no poder se for capaz de tirar o Brasil do buraco, por meio da reforma da Previdência, e proporcionar emprego, educação, saúde, segurança e transporte dignos desses nomes à massa dos eleitores. O resto é conversa mole.
Os militares não queriam saber de falar de 1964, mas se viram obrigados a obedecer à determinação do presidente da República. Bolsonaro é o chefe supremo das Forças Armadas. Se ele manda, está mandado. Os militares queriam deixar isso para lá, porque tudo o que eles não desejam, agora que estão presentes no primeiro escalão da República, é ver ressuscitadas as acusações de que exilaram, prenderam, mataram e torturaram um monte de gente – que, por sua vez, também sequestrou, roubou e matou um monte de gente antípoda. Mas não teve jeito: a imprensa voltou a bater em 1964, porque Bolsonaro encasquetou de reverter a decisão de Dilma de proibir manifestações de militares a respeito da data.
A Ordem do Dia sobre 1964 que o Ministério da Defesa divulgou, a ser lida nos quartéis de Exército, Marinha e Aeronáutica, foi escrita a muitas mãos. Aposto que o General Eduardo Villas Bôas revisou a versão final. Os jornais já disseram, claro, que as Forças Armadas não fizeram autocrítica, mas ninguém ouviu também José Dirceu e Dilma Rousseff declarando-se culpados pelos crimes que cometeram em organizações esquerdistas que queriam implantar outra ditadura no Brasil, a pretexto de lutar pela democracia. Todo mundo acha que fez certo – e será assim até o final dos tempos. A História não é feita de inteiras verdades, porque lhes falta abundância. A História é um edifício alicerçado ao mesmo tempo nas versões de vitoriosos e derrotados. Sob a cúpula dourada que domina a Esplanada dos Inválidos, em Paris, jaz a tumba majestosa de um homem que, em Londres, teria sido enforcado e enterrado numa cova destinada a criminosos da pior estirpe. O próprio Napoleão Bonaparte, com toda a sua vaidade, tinha a dimensão de que ‘há somente um degrau entre o sublime e o ridículo’. Ele disse a frase ao embaixador polonês depois do fracasso da invasão da Rússia, em 1812. Não raro, sublime e ridículo, verdade e mentira, terror e terror convivem no mesmo plano, sem degrau que os separe.
Na minha opinião, a Ordem do Dia deste 31 de março é um primor de diplomacia. Obviamente, as Forças Armadas não abrem mão da sua versão, dando uma ajustadinha nos fatos iniciais, mas é altamente significativo que os militares evitem falar em ‘Revolução de 1964’.
Vou interpretar o texto:
‘As Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do Presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15.’
A ajustadinha foi que a vacância em 2 de abril foi motivada pelo movimento dos quartéis no dia 31. João Goulart não saiu porque quis, mas porque foi apeado pelas Forças Armadas — e a Constituição de 1946 não previa general eleito indiretamente para a presidência da República. “Dar ensejo” é um eufemismo. Segue a Ordem do Dia:
‘Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano – a capacidade de aprender.
Desde o início da formação da nacionalidade, ainda no período colonial, passando pelos processos de independência, de afirmação da soberania e de consolidação territorial, até a adoção do modelo republicano, o País vivenciou, com maior ou menor nível de conflitos, evolução civilizatória que o trouxe até o alvorecer do Século XX.
O início do século passado representou para a sociedade brasileira o despertar para os fenômenos da industrialização, da urbanização e da modernização, que haviam produzido desequilíbrios de poder, notadamente no continente europeu.
Como resultado do impacto político, econômico e social, a humanidade se viu envolvida na Primeira Guerra Mundial e assistiu ao avanço de ideologias totalitárias, em ambos os extremos do espectro ideológico. Como faces de uma mesma moeda, tanto o comunismo quanto o nazifascismo passaram a constituir as principais ameaças à liberdade e à democracia.’
A contextualização histórica é correta e, ao afirmar que o século XX assistiu ao avanço de ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico, e que comunismo e nazifascismo são faces da mesma moeda, os autores mandam um recado principalmente para as franjas bolsonaristas que continuam a sonhar com um golpe direitista. O recado é que os militares não participarão dessa aventura irresponsável. Tiveram a capacidade de aprender. O parágrafo seguinte enfatiza o combate das Forças Armadas contra os totalitarismos e, assim, reforça o recado:
Acredito que o artigo volta a ter atualidade diante da forma como o presidente da República, acuado politicamente, tenta agora assombrar o país com o fantasma de um autogolpe. Reproduzo abaixo a maior parte do que foi publicado em 29 de março de 2019:
“Meses atrás, eu disse aqui na Crusoé que discutir 1964 a esta altura é como se, em 1964, o tema dos debates fosse a presidência de Hermes da Fonseca, que governou o país de 1910 a 1914. Outra ideia fora de lugar. Mas Jair Bolsonaro ordenou que as Forças Armadas comemorassem – ou rememorassem, vá lá — a data, obnubilado pela tal guerra cultural que os seus ideólogos teimam em trazer para o palco, como se dela dependesse a permanência da direita no poder conquistado nas urnas. Não depende. A direita só continuará no poder se for capaz de tirar o Brasil do buraco, por meio da reforma da Previdência, e proporcionar emprego, educação, saúde, segurança e transporte dignos desses nomes à massa dos eleitores. O resto é conversa mole.
Os militares não queriam saber de falar de 1964, mas se viram obrigados a obedecer à determinação do presidente da República. Bolsonaro é o chefe supremo das Forças Armadas. Se ele manda, está mandado. Os militares queriam deixar isso para lá, porque tudo o que eles não desejam, agora que estão presentes no primeiro escalão da República, é ver ressuscitadas as acusações de que exilaram, prenderam, mataram e torturaram um monte de gente – que, por sua vez, também sequestrou, roubou e matou um monte de gente antípoda. Mas não teve jeito: a imprensa voltou a bater em 1964, porque Bolsonaro encasquetou de reverter a decisão de Dilma de proibir manifestações de militares a respeito da data.
A Ordem do Dia sobre 1964 que o Ministério da Defesa divulgou, a ser lida nos quartéis de Exército, Marinha e Aeronáutica, foi escrita a muitas mãos. Aposto que o General Eduardo Villas Bôas revisou a versão final. Os jornais já disseram, claro, que as Forças Armadas não fizeram autocrítica, mas ninguém ouviu também José Dirceu e Dilma Rousseff declarando-se culpados pelos crimes que cometeram em organizações esquerdistas que queriam implantar outra ditadura no Brasil, a pretexto de lutar pela democracia. Todo mundo acha que fez certo – e será assim até o final dos tempos. A História não é feita de inteiras verdades, porque lhes falta abundância. A História é um edifício alicerçado ao mesmo tempo nas versões de vitoriosos e derrotados. Sob a cúpula dourada que domina a Esplanada dos Inválidos, em Paris, jaz a tumba majestosa de um homem que, em Londres, teria sido enforcado e enterrado numa cova destinada a criminosos da pior estirpe. O próprio Napoleão Bonaparte, com toda a sua vaidade, tinha a dimensão de que ‘há somente um degrau entre o sublime e o ridículo’. Ele disse a frase ao embaixador polonês depois do fracasso da invasão da Rússia, em 1812. Não raro, sublime e ridículo, verdade e mentira, terror e terror convivem no mesmo plano, sem degrau que os separe.
Na minha opinião, a Ordem do Dia deste 31 de março é um primor de diplomacia. Obviamente, as Forças Armadas não abrem mão da sua versão, dando uma ajustadinha nos fatos iniciais, mas é altamente significativo que os militares evitem falar em ‘Revolução de 1964’.
Vou interpretar o texto:
‘As Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do Presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15.’
A ajustadinha foi que a vacância em 2 de abril foi motivada pelo movimento dos quartéis no dia 31. João Goulart não saiu porque quis, mas porque foi apeado pelas Forças Armadas — e a Constituição de 1946 não previa general eleito indiretamente para a presidência da República. “Dar ensejo” é um eufemismo. Segue a Ordem do Dia:
‘Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano – a capacidade de aprender.
Desde o início da formação da nacionalidade, ainda no período colonial, passando pelos processos de independência, de afirmação da soberania e de consolidação territorial, até a adoção do modelo republicano, o País vivenciou, com maior ou menor nível de conflitos, evolução civilizatória que o trouxe até o alvorecer do Século XX.
O início do século passado representou para a sociedade brasileira o despertar para os fenômenos da industrialização, da urbanização e da modernização, que haviam produzido desequilíbrios de poder, notadamente no continente europeu.
Como resultado do impacto político, econômico e social, a humanidade se viu envolvida na Primeira Guerra Mundial e assistiu ao avanço de ideologias totalitárias, em ambos os extremos do espectro ideológico. Como faces de uma mesma moeda, tanto o comunismo quanto o nazifascismo passaram a constituir as principais ameaças à liberdade e à democracia.’
A contextualização histórica é correta e, ao afirmar que o século XX assistiu ao avanço de ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico, e que comunismo e nazifascismo são faces da mesma moeda, os autores mandam um recado principalmente para as franjas bolsonaristas que continuam a sonhar com um golpe direitista. O recado é que os militares não participarão dessa aventura irresponsável. Tiveram a capacidade de aprender. O parágrafo seguinte enfatiza o combate das Forças Armadas contra os totalitarismos e, assim, reforça o recado:
‘Contra esses radicalismos, o povo brasileiro teve que defender a democracia com seus cidadãos fardados. Em 1935, foram desarticulados os amotinados da Intentona Comunista. Na Segunda Guerra Mundial, foram derrotadas as forças do Eixo, com a participação da Marinha do Brasil, no patrulhamento do Atlântico Sul e Caribe; do Exército Brasileiro, com a Força Expedicionária Brasileira, nos campos de batalha da Itália; e da Força Aérea Brasileira, nos céus europeus.’
A Ordem do Dia fornece uma moldura para o que ocorreu em 1964, inserindo o 31 de março no âmbito da Guerra Fria e como consequência dela:
‘A geração que empreendeu essa defesa dos ideais de liberdade, com o sacrifício de muitos brasileiros, voltaria a ser testada no pós-guerra. A polarização provocada pela Guerra Fria, entre as democracias e o bloco comunista, afetou todas as regiões do globo, provocando conflitos de natureza revolucionária no continente americano, a partir da década de 1950.
O 31 de março de 1964 estava inserido no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no País.’
Está certo, mas houve também conflitos de natureza revolucionária na Europa Ocidental, centro nevrálgico da Guerra Fria, e nem por isso países como França, Itália e Alemanha Ocidental, sacudidos por atentados terroristas, deixaram de ser democráticos. Na sequência, o texto aborda características próprias daquele momento brasileiro:
‘As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo.’
A ampla maioria da classe média realmente clamava pela intervenção militar, diante dos desatinos de João Goulart, aliado a esquerdistas desmiolados. É fato. A grande imprensa brasileira também foi bulir com os granadeiros nos bivaques. O Globo, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil (que tinha Alberto Dines como editor-chefe) eram favoráreis a que os militares assumissem o controle da situação. A ‘estabilização’ era para ser provisória, mas se perpetuou por 21 anos.
O texto, então, dá um salto de mais de uma década, para evitar falar do endurecimento do regime a partir de 1968. O aspecto salutar é que, se omite, não o justifica. Vamos ao trecho:
Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis. As lições aprendidas com a História foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações. Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços.
As Forças Armadas, como instituições brasileiras, acompanharam essas mudanças. Em estrita observância ao regramento democrático, vêm mantendo o foco na sua missão constitucional e subordinadas ao poder constitucional, com o propósito de manter a paz e a estabilidade, para que as pessoas possam construir suas vidas.
Cinquenta e cinco anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da Nação Brasileira. Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História.’
Ao dizer que a lei de anistia de 1979 viabilizou a transição para uma democracia definitiva – definitiva, frise-se –, as Forças Armadas voltam a dar um recado, desta vez para ambos os extremos do espectro ideológico: não há mais lugar para golpes de qualquer espécie no Brasil. Os militares avançaram, porque igualmente aprenderam com a história. O verbo ‘aprender’ é relevante nessa Ordem do Dia. E, embora reconheçam o papel dos responsáveis por 1964 (será assim até o final dos tempos, repito), eles reafirmam mais que isso o compromisso com a liberdade e democracia. O ‘mais que isso’ não é muleta conectiva. É conteúdo fundamental.
Para ler os militares, é preciso prestar atenção aos detalhes. As Forças Armadas estão em 2019 (não é à toa que ressaltam os 55 anos do 31 de março), ao contrário de Bolsonaro e as suas franjas, que não saem de 1964.”
Esperemos que, se neste ano houver Ordem do Dia sobre 1964, os brasileiros sejam mais uma vez reassegurados que qualquer tentativa de autogolpe de Jair Bolsonaro não passará de alopragem.
A Ordem do Dia fornece uma moldura para o que ocorreu em 1964, inserindo o 31 de março no âmbito da Guerra Fria e como consequência dela:
‘A geração que empreendeu essa defesa dos ideais de liberdade, com o sacrifício de muitos brasileiros, voltaria a ser testada no pós-guerra. A polarização provocada pela Guerra Fria, entre as democracias e o bloco comunista, afetou todas as regiões do globo, provocando conflitos de natureza revolucionária no continente americano, a partir da década de 1950.
O 31 de março de 1964 estava inserido no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no País.’
Está certo, mas houve também conflitos de natureza revolucionária na Europa Ocidental, centro nevrálgico da Guerra Fria, e nem por isso países como França, Itália e Alemanha Ocidental, sacudidos por atentados terroristas, deixaram de ser democráticos. Na sequência, o texto aborda características próprias daquele momento brasileiro:
‘As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo.’
A ampla maioria da classe média realmente clamava pela intervenção militar, diante dos desatinos de João Goulart, aliado a esquerdistas desmiolados. É fato. A grande imprensa brasileira também foi bulir com os granadeiros nos bivaques. O Globo, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil (que tinha Alberto Dines como editor-chefe) eram favoráreis a que os militares assumissem o controle da situação. A ‘estabilização’ era para ser provisória, mas se perpetuou por 21 anos.
O texto, então, dá um salto de mais de uma década, para evitar falar do endurecimento do regime a partir de 1968. O aspecto salutar é que, se omite, não o justifica. Vamos ao trecho:
Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis. As lições aprendidas com a História foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações. Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços.
As Forças Armadas, como instituições brasileiras, acompanharam essas mudanças. Em estrita observância ao regramento democrático, vêm mantendo o foco na sua missão constitucional e subordinadas ao poder constitucional, com o propósito de manter a paz e a estabilidade, para que as pessoas possam construir suas vidas.
Cinquenta e cinco anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da Nação Brasileira. Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História.’
Ao dizer que a lei de anistia de 1979 viabilizou a transição para uma democracia definitiva – definitiva, frise-se –, as Forças Armadas voltam a dar um recado, desta vez para ambos os extremos do espectro ideológico: não há mais lugar para golpes de qualquer espécie no Brasil. Os militares avançaram, porque igualmente aprenderam com a história. O verbo ‘aprender’ é relevante nessa Ordem do Dia. E, embora reconheçam o papel dos responsáveis por 1964 (será assim até o final dos tempos, repito), eles reafirmam mais que isso o compromisso com a liberdade e democracia. O ‘mais que isso’ não é muleta conectiva. É conteúdo fundamental.
Para ler os militares, é preciso prestar atenção aos detalhes. As Forças Armadas estão em 2019 (não é à toa que ressaltam os 55 anos do 31 de março), ao contrário de Bolsonaro e as suas franjas, que não saem de 1964.”
Esperemos que, se neste ano houver Ordem do Dia sobre 1964, os brasileiros sejam mais uma vez reassegurados que qualquer tentativa de autogolpe de Jair Bolsonaro não passará de alopragem.
Política e irracionalidade
O cenário nacional é de tempestade perfeita: descontrole fiscal, baixo crescimento, aumento da inflação, alta dos juros, aproximadamente 14 milhões de desempregados, sem falar nos subocupados, no medo generalizado da covid-19 e de uma cifra de mortes de mais de 300 mil pessoas, em crescimento acelerado. Para coroar o quadro, um presidente descontrolado e irresponsável, que nem ideia tem do abismo em que estamos entrando. E como desgraça pouco é bobagem, a alternativa política que se está desenhando, graças ao Supremo Tribunal, é o retorno de Lula à cena política.
A dificuldade de compreensão do presidente Bolsonaro reside em que seu comportamento, suas ações e declarações não se orientam pela normalidade, pela racionalidade que julgaríamos comum em atitudes políticas. Ele se pauta pela irracionalidade, pela destruição e pela morte. Sua previsibilidade só se dá se seguirmos esses critérios, e não os da razão, do equacionamento da violência (ataques e agressões), da vida. Ele tem uma tendência incontida, diria incontrolável, a seguir comportamentos destruidores, até de acordos por ele mesmo celebrados, ainda que este rompimento lhe seja prejudicial em médio e longo prazos.
Sua estrutura psicológica se organiza em torno de seu núcleo familiar, a saber, seus filhos, que lhe conferem apoio e união, sempre e quando, evidentemente, seja reconhecido como o pai e o mestre. Sua coesão interna na destruição e na morte está baseada na consideração do outro, qualquer que seja, como estranho e, por via de consequência, como um inimigo potencial, seja ele fático ou imaginário. Isso se traduz igualmente pela instabilidade na consideração dos “amigos”, sempre provisórios e transitórios, tratados com desconfiança. Foram vários os seus “amigos” que passaram a ser “inimigos”. Eis o que o faz sempre privilegiar os filhos, por mais que eles possam estar emaranhados em ilícitos ou simples idiotices, que terminam tendo repercussão nacional.
Outra versão de seu comportamento irracional consiste em seu completo desprezo pelo outro, em seu sentido genérico, aplicável não apenas aos de seu círculo político, mas aos brasileiros em geral. Sempre tratou as vítimas da pandemia sem nenhuma compaixão, utilizando a “ironia” como se fosse uma gracinha. Seus impropérios foram múltiplos. As pessoas adoecem, sofrem e morrem sem uma palavra sequer de apoio do representante máximo do País. Até hoje não visitou nenhum hospital, não viu a morte com os próprios olhos, restringiu-se ao seu gozo distante. Um presidente normal mostraria sentimentos morais, exibiria compaixão, emprestaria palavras de apoio e solidariedade.
Logo, ao bem público é reservado uma posição completamente secundária, pois o mais importante consiste na proteção da família e em sua permanência no poder, apostando na eleição e flertando com o desrespeito à ordem institucional. O presidente e sua família agarram-se de todas as maneiras à preservação dos seus interesses e à conservação de sua coesão psicológica. Sua única política conhecida é a do ataque, por mais, reitero, que isso possa ser-lhes prejudicial em longo prazo. A satisfação é tirada do projeto imediato, de pequenas conquistas e do aplauso grotesco de seus apoiadores fanatizados. Não entra em linha de consideração o que é melhor para o País, deixando situação econômica e social se desagregar cada vez mais. O projeto, vendido nas eleições, de uma pauta liberal já está completamente “vendido”, não mais corresponde aos seus interesses familiares. Foi apenas uma encenação eleitoral.
O caso mais escandaloso dessa política da morte é o tratamento dado à pandemia. As cenas são aterradoras. O tratamento precoce proposto, desautorizado em todo o mundo, não defendido por nenhuma comunidade ou instituição científica no planeta, é apresentado aqui como poção mágica. Trata-se de campanha sistemática contra a vacina, traduzida por postergações enormes, apesar de que, agora, por queda abrupta de popularidade ameaçando seu projeto de poder, ela começa a ser revertida. E o é pela impostura, pois a vacina de aplicação preponderante e amplamente majoritária, a Coronavac, é toda ela obra do governador João Doria. Aliás, não faltaram discursos presidenciais contra a “vacina chinesa”. Isso para não falar na ausência de leitos em unidades de tratamento intensivo, na falta de oxigênio, em atrasos, erros de envio, e assim por diante, além do boicote aos governadores. Fosse uma política racional, nada disso teria acontecido, só a irracionalidade explica a conduta presidencial e governamental.
De nada adianta agora fazer uma encenação de união nacional, na qual nem os participantes acreditam. Criar um comitê é ao mesmo tempo nada pretender fazer, quando mais não seja pelo fato de seu objetivo ser somente compartilhar a sua irresponsabilidade. Em vez de uma escolha técnica para Ministro da Saúde, optou novamente por uma opção familiar, multiplicando ainda mais os conflitos políticos. Pode dar certo um governo que se caracteriza pela ausência de comportamentos racionais?
A dificuldade de compreensão do presidente Bolsonaro reside em que seu comportamento, suas ações e declarações não se orientam pela normalidade, pela racionalidade que julgaríamos comum em atitudes políticas. Ele se pauta pela irracionalidade, pela destruição e pela morte. Sua previsibilidade só se dá se seguirmos esses critérios, e não os da razão, do equacionamento da violência (ataques e agressões), da vida. Ele tem uma tendência incontida, diria incontrolável, a seguir comportamentos destruidores, até de acordos por ele mesmo celebrados, ainda que este rompimento lhe seja prejudicial em médio e longo prazos.
Sua estrutura psicológica se organiza em torno de seu núcleo familiar, a saber, seus filhos, que lhe conferem apoio e união, sempre e quando, evidentemente, seja reconhecido como o pai e o mestre. Sua coesão interna na destruição e na morte está baseada na consideração do outro, qualquer que seja, como estranho e, por via de consequência, como um inimigo potencial, seja ele fático ou imaginário. Isso se traduz igualmente pela instabilidade na consideração dos “amigos”, sempre provisórios e transitórios, tratados com desconfiança. Foram vários os seus “amigos” que passaram a ser “inimigos”. Eis o que o faz sempre privilegiar os filhos, por mais que eles possam estar emaranhados em ilícitos ou simples idiotices, que terminam tendo repercussão nacional.
Outra versão de seu comportamento irracional consiste em seu completo desprezo pelo outro, em seu sentido genérico, aplicável não apenas aos de seu círculo político, mas aos brasileiros em geral. Sempre tratou as vítimas da pandemia sem nenhuma compaixão, utilizando a “ironia” como se fosse uma gracinha. Seus impropérios foram múltiplos. As pessoas adoecem, sofrem e morrem sem uma palavra sequer de apoio do representante máximo do País. Até hoje não visitou nenhum hospital, não viu a morte com os próprios olhos, restringiu-se ao seu gozo distante. Um presidente normal mostraria sentimentos morais, exibiria compaixão, emprestaria palavras de apoio e solidariedade.
Logo, ao bem público é reservado uma posição completamente secundária, pois o mais importante consiste na proteção da família e em sua permanência no poder, apostando na eleição e flertando com o desrespeito à ordem institucional. O presidente e sua família agarram-se de todas as maneiras à preservação dos seus interesses e à conservação de sua coesão psicológica. Sua única política conhecida é a do ataque, por mais, reitero, que isso possa ser-lhes prejudicial em longo prazo. A satisfação é tirada do projeto imediato, de pequenas conquistas e do aplauso grotesco de seus apoiadores fanatizados. Não entra em linha de consideração o que é melhor para o País, deixando situação econômica e social se desagregar cada vez mais. O projeto, vendido nas eleições, de uma pauta liberal já está completamente “vendido”, não mais corresponde aos seus interesses familiares. Foi apenas uma encenação eleitoral.
O caso mais escandaloso dessa política da morte é o tratamento dado à pandemia. As cenas são aterradoras. O tratamento precoce proposto, desautorizado em todo o mundo, não defendido por nenhuma comunidade ou instituição científica no planeta, é apresentado aqui como poção mágica. Trata-se de campanha sistemática contra a vacina, traduzida por postergações enormes, apesar de que, agora, por queda abrupta de popularidade ameaçando seu projeto de poder, ela começa a ser revertida. E o é pela impostura, pois a vacina de aplicação preponderante e amplamente majoritária, a Coronavac, é toda ela obra do governador João Doria. Aliás, não faltaram discursos presidenciais contra a “vacina chinesa”. Isso para não falar na ausência de leitos em unidades de tratamento intensivo, na falta de oxigênio, em atrasos, erros de envio, e assim por diante, além do boicote aos governadores. Fosse uma política racional, nada disso teria acontecido, só a irracionalidade explica a conduta presidencial e governamental.
De nada adianta agora fazer uma encenação de união nacional, na qual nem os participantes acreditam. Criar um comitê é ao mesmo tempo nada pretender fazer, quando mais não seja pelo fato de seu objetivo ser somente compartilhar a sua irresponsabilidade. Em vez de uma escolha técnica para Ministro da Saúde, optou novamente por uma opção familiar, multiplicando ainda mais os conflitos políticos. Pode dar certo um governo que se caracteriza pela ausência de comportamentos racionais?
Bolsonaro quer um Exército para chamar de seu e dar o golpe
O compromisso dos militares brasileiros com a democracia será testado novamente – desta vez, depois que o presidente Jair Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e cobrou do seu substituto, general Braga Neto, a troca do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol.
Se quiserem ficar nos seus postos, ficarão os atuais comandantes da Marinha, almirante Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, brigadeiro Antônio Carlos Bermudez. Do contrário sairão, cabendo ao Estado Maior de cada Arma indicar seus sucessores. Os nomes ainda terão de passar pelo crivo de Bolsonaro.
Azevedo e Silva perdeu o lugar porque resistiu nos últimos meses a várias tentativas do presidente da República de aparelhar politicamente as Forças Armadas. Fazia tempo que Bolsonaro pedia a cabeça de Pujol que sempre manteve o Exército a salvo dos seus delírios. Azevedo e Silva preservou Pujol.
Bolsonaro pediu a cabeça do general Paulo Sérgio, responsável pelo setor de Recursos Humanos do Exército, que em entrevista ao jornal Correio Braziliense defendeu medidas de isolamento social, elogiou a Organização Mundial de Saúde e falou sobre o índice de mortalidade da Covid que é bem mais baixo entre os fardados.
Como deputado federal durante quase 30 anos, defendeu o golpe de 64 que amanhã aniversaria, a ditadura militar, a tortura e o assassinato de opositores do regime. Lamentou que pelo menos 30 mil deles não tivessem sido mortos. Por ele, até mesmo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teria sido fuzilado.
Como presidente da República, passou a pregar em quartéis e fora deles o armamento dos brasileiros, e a facilitar a posse de armas. Só um povo armado jamais será escravizado, repetiu e ainda repete. Apostou errado na condução da pandemia. Está perdendo apoio de sua base mais fiel, hoje reduzida a 15% dos eleitores.
Entregou ao Senado a cabeça do embaixador Ernesto Araújo, mas pôs em seu lugar o copeiro do Palácio do Planalto, amigo seu e dos seus filhos. Chefe de cerimonial é chamado no Itamaraty de copeiro. Na dança de cadeiras entre ministros, abriu uma vaga para o Centrão na Secretaria de Governo.
Ali será alojada Flávia Arruda (PSL-DF), a ex-personal trainer de José Roberto Arruda, o ex-governador do Distrito Federal que se envolveu no escândalo do mensalão do DEM e acabou preso por dois meses. Casada com ele, Flávia é deputada federal de primeiro mandato. Funcionará como uma despachante do Centrão.
Da Advocacia Geral da União foi retirado o titular para dar vez a André Mendonça, que era ministro da Justiça. Mendonça volta ao posto de onde saiu para que o ministério seja ocupado por mais um fiel servidor da família Bolsonaro, um delegado da Polícia Federal, no momento Secretário de Segurança Pública.
Se quiserem ficar nos seus postos, ficarão os atuais comandantes da Marinha, almirante Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, brigadeiro Antônio Carlos Bermudez. Do contrário sairão, cabendo ao Estado Maior de cada Arma indicar seus sucessores. Os nomes ainda terão de passar pelo crivo de Bolsonaro.
Azevedo e Silva perdeu o lugar porque resistiu nos últimos meses a várias tentativas do presidente da República de aparelhar politicamente as Forças Armadas. Fazia tempo que Bolsonaro pedia a cabeça de Pujol que sempre manteve o Exército a salvo dos seus delírios. Azevedo e Silva preservou Pujol.
Bolsonaro pediu a cabeça do general Paulo Sérgio, responsável pelo setor de Recursos Humanos do Exército, que em entrevista ao jornal Correio Braziliense defendeu medidas de isolamento social, elogiou a Organização Mundial de Saúde e falou sobre o índice de mortalidade da Covid que é bem mais baixo entre os fardados.
A entrevista deixou o presidente furioso. Acostumado a ver fantasmas onde eles não existem, Bolsonaro achou que ela era mais uma peça da conspiração para derrubá-lo. Azevedo e Silva negou-se a afastar o general. Segundo confessou a amigos, estava de saco cheio das “loucuras” do seu chefe, e de ter de aturá-lo.
O que mais pesou na sua queda, porém, foi a recusa em promover um alinhamento automático das Forças Armadas ao projeto de Bolsonaro de permanecer no poder mesmo se derrotado ano que vem. Em mais de uma ocasião, Bolsonaro disse ao ministro que o Exército deve estar pronto para “o agravamento da situação".
Admitiu que o número de mortos pela Covid vai seguir aumentando e que isso poderá deflagrar saques a lojas e produzir levantes populares país a fora. Talvez ele então se visse forçado a adotar providências severas contra a anarquia – entre elas, o Estado de Sítio. Azevedo e Silva discordou da ideia.
Nada de estranho há na pretensão de Bolsonaro, basta que se consulte sua extensa folha corrida. À época de soldado, planejou detonar bombas em quartéis em reivindicação por melhores salários. Processado, fez um acordo para sair do Exército desde que com o título de capitão, e assim se deu.
Como deputado federal durante quase 30 anos, defendeu o golpe de 64 que amanhã aniversaria, a ditadura militar, a tortura e o assassinato de opositores do regime. Lamentou que pelo menos 30 mil deles não tivessem sido mortos. Por ele, até mesmo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teria sido fuzilado.
Como presidente da República, passou a pregar em quartéis e fora deles o armamento dos brasileiros, e a facilitar a posse de armas. Só um povo armado jamais será escravizado, repetiu e ainda repete. Apostou errado na condução da pandemia. Está perdendo apoio de sua base mais fiel, hoje reduzida a 15% dos eleitores.
Agora, vê-se ameaçado de não se reeleger. Pensava que não seria difícil bater um candidato do PT. Não contava que esse candidato poderia ser Lula que, de dentro da cadeia há dois anos, o derrotava em todas as pesquisas de intenção de voto. O golpista que sempre foi dá sinais de desespero e volta a orientar suas ações.
Entregou ao Senado a cabeça do embaixador Ernesto Araújo, mas pôs em seu lugar o copeiro do Palácio do Planalto, amigo seu e dos seus filhos. Chefe de cerimonial é chamado no Itamaraty de copeiro. Na dança de cadeiras entre ministros, abriu uma vaga para o Centrão na Secretaria de Governo.
Ali será alojada Flávia Arruda (PSL-DF), a ex-personal trainer de José Roberto Arruda, o ex-governador do Distrito Federal que se envolveu no escândalo do mensalão do DEM e acabou preso por dois meses. Casada com ele, Flávia é deputada federal de primeiro mandato. Funcionará como uma despachante do Centrão.
Da Advocacia Geral da União foi retirado o titular para dar vez a André Mendonça, que era ministro da Justiça. Mendonça volta ao posto de onde saiu para que o ministério seja ocupado por mais um fiel servidor da família Bolsonaro, um delegado da Polícia Federal, no momento Secretário de Segurança Pública.
São movimentos que traem a fragilidade do presidente, o quanto está isolado, e seu empenho em não perder de todo a autoridade que o cargo lhe confere. Todos os militares são de direita e votaram em Bolsonaro. Nem todos votarão outra vez. Mas, por serem de direita, não se pode concluir que a maioria seja golpista.
O apito soprou
Pouco há de mais perigoso hoje no Brasil do que a influência-infiltração bolsonarista nas forças de segurança pública país adentro. Trata-se mesmo de um programa de ocupação ideológica, desde as mais baixas patentes, das corporações armadas. Milícias (também) surgem assim, nas fissuras da hierarquia desafiada, nas brechas em que se insinuam os atrativos do poder paralelo. Que o leitor se lembre do movimento de amotinados no Ceará, de fevereiro de 2020, em que fora possível identificar a presença de agentes do bolsonarismo.
Um ano depois, volto a este tema, a corrupção ideológica das polícias, a partir do ocorrido na Bahia, no último domingo: um ato de terrorismo doméstico promovido por um lobo solitário, em cuja mente o apito soprado desde o Planalto entrou. Refiro-me — chamando a coisa pelo que é — ao caso do soldado Wesley; o policial militar, afinal terrorista, que, em maior ou menor surto, depois de apregoar palavras de ordem e atirar a esmo, disparou contra colegas de farda.
Este é, aliás, um dos fatos do episódio — um fato, apesar da poderosa campanha de distorção bolsonarista: o sujeito disparou contra pares, somente em resposta a que seria baleado. Atirou; veio a reação. Mesmo assim, apesar das imagens incontroversas, o bolsonarismo conseguiu plantar sua guerrilha de versões, de que um soldado Wesley romantizado emerge como mártir em defesa da liberdade. Coisa de profissional.
O policial disparou contra companheiros; mas sobretudo fez disparar o arsenal de extremismos que instiga mais um golpe (de amotinados) contra o equilíbrio republicano.
A propósito, assim escreveu a deputada federal Bia Kicis, presidente da Comissão de Constituição e Justiça: “Soldado da PM da Bahia abatido por seus companheiros. Morreu porque se recusou a prender trabalhadores. Disse não às ordens ilegais do governador Rui Costa. Esse soldado é um herói. Agora a PM da Bahia parou. Chega de cumprir ordem ilegal”. Publicou isso — esse estímulo criminoso ao motim — numa rede social, deixou que a grave pregação circulasse longamente no zap-profundo bolsonarista e, então, apagou o texto. Padrão. Mas o que difundiu é delito tipificado: propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; incitação à animosidade entre as Forças Armadas e as instituições civis.
Felipe Pedri, secretário de Comunicação Institucional do governo federal, também deu — antes de igualmente apagá-la — sua assistência à mitificação do terrorista: “Lúcido, o PM Wesley perdeu a vida mostrando a loucura [em] que se encontra uma sociedade que abandonou seus princípios mais básicos de convivência em nome de uma suposta segurança sanitária”.
Lúcidos, Kicis e Pedri basearam suas deformações num outro fato: antes de atirar nos policiais, o soldado gritou — o próprio trampolim para a instrumentalização política de sua morte — que não deixaria que violassem a dignidade e a honra do trabalhador; uma explícita manifestação de insurgência contra as medidas restritivas de circulação baixadas pelo governador baiano. Pronto. Estavam dadas as condições — pelo próprio PM Wesley — para que seu cadáver fosse ideologicamente manipulado.
Há duas semanas, escrevi sobre o movimento pendular que caracteriza o comportamento de Bolsonaro e pauta seus difusores. Se, de um lado, o mundo real se impõe, no caso para o cavalo de pau que, de súbito, transformaria o presidente em velho defensor da vacinação em massa; de outro, a esse gesto de submissão à realidade corresponderá, obrigatoriamente, o acirramento, a radicalização, da guerra fantasiosa contra os tiranos governadores. A morte do soldado Wesley, o herói, servindo de banquete para alimentar a base de apoio fundamental do bolsonarismo.
A turma foi com tudo; para forjar o mártir — acima de tudo uma escada à materialização da campanha por desobediência que tem origem no presidente da República. Ou alguém acreditava que o estímulo de Bolsonaro à resistência contra medidas restritivas legais determinadas por governadores e prefeitos se restringisse a civis? Claro que não. Lembre que o presidente já relacionou seus decretos armamentistas ao direito de o cidadão se defender do lockdown imaginário, supressor da liberdade de ir e vir. Lembre que o “meu Exército” — já armado — nunca servirá à opressão do povo. Está tudo aí, dado; apito soprado. Lembre também que o bolsonarismo tem um histórico de associação a motins policiais; e há mesmo uma recorrência: tanto Ceará quanto Bahia são comandados por petistas.
O soldado Wesley ainda não abrira fogo contra colegas, e o notório bolsonarista sargento Prisco — um agitador de insurreições fardadas, deputado estadual baiano expulso da PM — já se valia do ato terrorista para convocar levantes. O soldado ainda não morrera, e já se concentravam dezenas de supostos agentes de segurança — ameaçando motim — defronte ao hospital; isso enquanto, no zap-profundo, circulavam centenas de mensagens mentirosas sobre como o policial havia morrido por se recusar a cumprir ordens de um ditador. Mensagens como as de Kicis e Pedri.
Mirava-se — mira-se, com golpismo — o governador; mas, para muito além dele, a própria ordem política. Vai piorar.
Um ano depois, volto a este tema, a corrupção ideológica das polícias, a partir do ocorrido na Bahia, no último domingo: um ato de terrorismo doméstico promovido por um lobo solitário, em cuja mente o apito soprado desde o Planalto entrou. Refiro-me — chamando a coisa pelo que é — ao caso do soldado Wesley; o policial militar, afinal terrorista, que, em maior ou menor surto, depois de apregoar palavras de ordem e atirar a esmo, disparou contra colegas de farda.
Este é, aliás, um dos fatos do episódio — um fato, apesar da poderosa campanha de distorção bolsonarista: o sujeito disparou contra pares, somente em resposta a que seria baleado. Atirou; veio a reação. Mesmo assim, apesar das imagens incontroversas, o bolsonarismo conseguiu plantar sua guerrilha de versões, de que um soldado Wesley romantizado emerge como mártir em defesa da liberdade. Coisa de profissional.
O policial disparou contra companheiros; mas sobretudo fez disparar o arsenal de extremismos que instiga mais um golpe (de amotinados) contra o equilíbrio republicano.
A propósito, assim escreveu a deputada federal Bia Kicis, presidente da Comissão de Constituição e Justiça: “Soldado da PM da Bahia abatido por seus companheiros. Morreu porque se recusou a prender trabalhadores. Disse não às ordens ilegais do governador Rui Costa. Esse soldado é um herói. Agora a PM da Bahia parou. Chega de cumprir ordem ilegal”. Publicou isso — esse estímulo criminoso ao motim — numa rede social, deixou que a grave pregação circulasse longamente no zap-profundo bolsonarista e, então, apagou o texto. Padrão. Mas o que difundiu é delito tipificado: propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; incitação à animosidade entre as Forças Armadas e as instituições civis.
Felipe Pedri, secretário de Comunicação Institucional do governo federal, também deu — antes de igualmente apagá-la — sua assistência à mitificação do terrorista: “Lúcido, o PM Wesley perdeu a vida mostrando a loucura [em] que se encontra uma sociedade que abandonou seus princípios mais básicos de convivência em nome de uma suposta segurança sanitária”.
Lúcidos, Kicis e Pedri basearam suas deformações num outro fato: antes de atirar nos policiais, o soldado gritou — o próprio trampolim para a instrumentalização política de sua morte — que não deixaria que violassem a dignidade e a honra do trabalhador; uma explícita manifestação de insurgência contra as medidas restritivas de circulação baixadas pelo governador baiano. Pronto. Estavam dadas as condições — pelo próprio PM Wesley — para que seu cadáver fosse ideologicamente manipulado.
Há duas semanas, escrevi sobre o movimento pendular que caracteriza o comportamento de Bolsonaro e pauta seus difusores. Se, de um lado, o mundo real se impõe, no caso para o cavalo de pau que, de súbito, transformaria o presidente em velho defensor da vacinação em massa; de outro, a esse gesto de submissão à realidade corresponderá, obrigatoriamente, o acirramento, a radicalização, da guerra fantasiosa contra os tiranos governadores. A morte do soldado Wesley, o herói, servindo de banquete para alimentar a base de apoio fundamental do bolsonarismo.
A turma foi com tudo; para forjar o mártir — acima de tudo uma escada à materialização da campanha por desobediência que tem origem no presidente da República. Ou alguém acreditava que o estímulo de Bolsonaro à resistência contra medidas restritivas legais determinadas por governadores e prefeitos se restringisse a civis? Claro que não. Lembre que o presidente já relacionou seus decretos armamentistas ao direito de o cidadão se defender do lockdown imaginário, supressor da liberdade de ir e vir. Lembre que o “meu Exército” — já armado — nunca servirá à opressão do povo. Está tudo aí, dado; apito soprado. Lembre também que o bolsonarismo tem um histórico de associação a motins policiais; e há mesmo uma recorrência: tanto Ceará quanto Bahia são comandados por petistas.
O soldado Wesley ainda não abrira fogo contra colegas, e o notório bolsonarista sargento Prisco — um agitador de insurreições fardadas, deputado estadual baiano expulso da PM — já se valia do ato terrorista para convocar levantes. O soldado ainda não morrera, e já se concentravam dezenas de supostos agentes de segurança — ameaçando motim — defronte ao hospital; isso enquanto, no zap-profundo, circulavam centenas de mensagens mentirosas sobre como o policial havia morrido por se recusar a cumprir ordens de um ditador. Mensagens como as de Kicis e Pedri.
Mirava-se — mira-se, com golpismo — o governador; mas, para muito além dele, a própria ordem política. Vai piorar.
Uma máscara para Bolsonaro
A progressão geométrica de mortes e doentes, muitos à deriva em hospitais agonizantes - somada à aceleração dos índices de rejeição e à vinculação popular da pandemia com o presidente -, disparou a sirene de alerta do governo antes do “sinal amarelo” emitido por Arthur Lira (PP-AL). A ideia - e o comercial no horário nobre da arqui-inimiga TV Globo demonstra isso - foi lançar uma ofensiva de comunicação para tentar salvar, a qualquer custo, a combalida imagem do capitão.
Ciente da impossibilidade de apagar a sistêmica negação da peste, as sandices, os xingamentos e desrespeitos em série cometidos por Bolsonaro, disponíveis a um clique em áudio e vídeo, a comunicação do governo se esmerou em um plano para dar uma nova roupagem ao chefe. Mais serena, sem perder o jeito “sincerão”, menos belicosa.
A ordem de inverter a narrativa busca fazer com que as pessoas minimizem o que viram e ouviram e comprem o “mito” renovado, pró-vacina e empático com familiares e amigos de mortos e doentes.
O pronunciamento à nação, na última terça-feira, tinha esse intuito. Mas as mentiras acumuladas nos poucos mais de três minutos de rede - recebidas com panelaço nas grandes cidades do país - escancararam a manobra.
Na semana anterior, Bolsonaro já havia queimado o filme. Dias depois de o comercial entrar no ar, o presidente assinou, de próprio punho, ação contra os governadores da Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, na qual requeria a inconstitucionalidade de decretos de restrições à circulação de pessoas. Seu pleito foi indeferido por questão de autoria, mas isso não anulou as consequências beligerantes de sua eterna birra contra a ciência e aqueles que a utilizam para tentar conter a veloz corrente de transmissão da doença.
Mesmo com essa derrapada no varejo, o atacado parecia correr bem. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, conseguiu até mesmo afastar o guerrilheiro Fabio Wajngarten da Secom, colocando ali alguém mais dócil. E Bolsonaro topou suspender as agendas de inaugurações em pequenas cidades, com aglomerações programadas, material que vem sendo compilado para 2022.
O novo gancho era a troca do ministro da Saúde, tida como chave para colocar Bolsonaro na linha de frente. A partir daí, o presidente encarnaria a nova persona de líder da imunização em massa, um roteiro que incluiu apelos pela união nacional e partilha com os demais poderes das responsabilidades pela tríplice crise: sanitária, econômica e social.
Nitidamente pouco à vontade no papel e usando máscara, que ele odeia, Bolsonaro até tentou se fazer convincente nas primeiras frases ditas após a reunião com os presidentes da Câmara, do Senado e do STF para tratar da pandemia e lançar um atrasado Comitê interpoderes. Mas irritou a todos ao falar do mal fadado tratamento precoce, como se desovar os milhões de comprimidos de cloroquina produzidos pelo Exército, com preços de insumos 167% a mais do que o praticado no mercado, fosse o mais importante.
Na sexta-feira, no cercadinho em frente ao Alvorada, repetiu a cantilena contra governadores e prefeitos. Sem máscara - ele e todos os seus seguranças -, Bolsonaro garantiu, entre uma selfie e outra, que o fechamento do comércio em São Paulo “vai acabar rapidinho”, como se anunciasse algum tipo de intervenção.
A fala, que de tão batida já nem mesmo soa como ameaça, não surpreendeu. Mas a falta da máscara que ele prometera usar reafirmou o embuste. Em menos de cinco minutos, Bolsonaro conseguiu pisotear no que talvez tenha sido o melhor slogan do governo para a pandemia - Pátria de máscara -, lançado pelo novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, no mesmo dia em que seu chefe descartava a proteção.
Devido à personalidade nefasta de seu chefe, não se pode dizer que o esforço de Faria para salvar Bolsonaro é elogiável. Mas reconhece-se como gigantesco. A ponto de o ministro dizer, sem corar, que o inimigo de Bolsonaro e Lula é o mesmo: o vírus. Como se o ex Lula tivesse a mesma responsabilidade do atual presidente no combate à pandemia. Ou se qualquer um dos dois olhasse o mundo além de seus umbigos.
Faria também reage contra a pecha de negacionista que pesa sobre o presidente. Mas não tem o que dizer diante da “gripezinha”, do “não sou coveiro”, do “país de maricas” ou do “e daí?”. Muito menos quanto ao “virar jacaré”, “falar fino”, ditos do presidente sobre as vacinas, que viraram memes.
Como adjetivo, negacionista já estava popular quando agregou a versão substantiva do genocida. Nas redes, principal régua do presidente, os termos passaram a ser encontrados como sinônimos de Bolsonaro.
Sob a aura de campanha de utilidade pública, milhões serão gastos em publicidade com o mote da vacinação, até pouco tempo rechaçada pelo presidente. É mais uma das muitas farsas do governo, desta vez com a pretensão de apagar todos os males impostos por Bolsonaro ao país. Mas uma coisa é certa: mais de 300 mil mortes depois, não há marketing capaz de mascarar as consequências de seu negacionismo, o genocídio explícito.
Ciente da impossibilidade de apagar a sistêmica negação da peste, as sandices, os xingamentos e desrespeitos em série cometidos por Bolsonaro, disponíveis a um clique em áudio e vídeo, a comunicação do governo se esmerou em um plano para dar uma nova roupagem ao chefe. Mais serena, sem perder o jeito “sincerão”, menos belicosa.
A ordem de inverter a narrativa busca fazer com que as pessoas minimizem o que viram e ouviram e comprem o “mito” renovado, pró-vacina e empático com familiares e amigos de mortos e doentes.
O pronunciamento à nação, na última terça-feira, tinha esse intuito. Mas as mentiras acumuladas nos poucos mais de três minutos de rede - recebidas com panelaço nas grandes cidades do país - escancararam a manobra.
Na semana anterior, Bolsonaro já havia queimado o filme. Dias depois de o comercial entrar no ar, o presidente assinou, de próprio punho, ação contra os governadores da Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, na qual requeria a inconstitucionalidade de decretos de restrições à circulação de pessoas. Seu pleito foi indeferido por questão de autoria, mas isso não anulou as consequências beligerantes de sua eterna birra contra a ciência e aqueles que a utilizam para tentar conter a veloz corrente de transmissão da doença.
Mesmo com essa derrapada no varejo, o atacado parecia correr bem. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, conseguiu até mesmo afastar o guerrilheiro Fabio Wajngarten da Secom, colocando ali alguém mais dócil. E Bolsonaro topou suspender as agendas de inaugurações em pequenas cidades, com aglomerações programadas, material que vem sendo compilado para 2022.
O novo gancho era a troca do ministro da Saúde, tida como chave para colocar Bolsonaro na linha de frente. A partir daí, o presidente encarnaria a nova persona de líder da imunização em massa, um roteiro que incluiu apelos pela união nacional e partilha com os demais poderes das responsabilidades pela tríplice crise: sanitária, econômica e social.
Nitidamente pouco à vontade no papel e usando máscara, que ele odeia, Bolsonaro até tentou se fazer convincente nas primeiras frases ditas após a reunião com os presidentes da Câmara, do Senado e do STF para tratar da pandemia e lançar um atrasado Comitê interpoderes. Mas irritou a todos ao falar do mal fadado tratamento precoce, como se desovar os milhões de comprimidos de cloroquina produzidos pelo Exército, com preços de insumos 167% a mais do que o praticado no mercado, fosse o mais importante.
Na sexta-feira, no cercadinho em frente ao Alvorada, repetiu a cantilena contra governadores e prefeitos. Sem máscara - ele e todos os seus seguranças -, Bolsonaro garantiu, entre uma selfie e outra, que o fechamento do comércio em São Paulo “vai acabar rapidinho”, como se anunciasse algum tipo de intervenção.
A fala, que de tão batida já nem mesmo soa como ameaça, não surpreendeu. Mas a falta da máscara que ele prometera usar reafirmou o embuste. Em menos de cinco minutos, Bolsonaro conseguiu pisotear no que talvez tenha sido o melhor slogan do governo para a pandemia - Pátria de máscara -, lançado pelo novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, no mesmo dia em que seu chefe descartava a proteção.
Devido à personalidade nefasta de seu chefe, não se pode dizer que o esforço de Faria para salvar Bolsonaro é elogiável. Mas reconhece-se como gigantesco. A ponto de o ministro dizer, sem corar, que o inimigo de Bolsonaro e Lula é o mesmo: o vírus. Como se o ex Lula tivesse a mesma responsabilidade do atual presidente no combate à pandemia. Ou se qualquer um dos dois olhasse o mundo além de seus umbigos.
Faria também reage contra a pecha de negacionista que pesa sobre o presidente. Mas não tem o que dizer diante da “gripezinha”, do “não sou coveiro”, do “país de maricas” ou do “e daí?”. Muito menos quanto ao “virar jacaré”, “falar fino”, ditos do presidente sobre as vacinas, que viraram memes.
Como adjetivo, negacionista já estava popular quando agregou a versão substantiva do genocida. Nas redes, principal régua do presidente, os termos passaram a ser encontrados como sinônimos de Bolsonaro.
Sob a aura de campanha de utilidade pública, milhões serão gastos em publicidade com o mote da vacinação, até pouco tempo rechaçada pelo presidente. É mais uma das muitas farsas do governo, desta vez com a pretensão de apagar todos os males impostos por Bolsonaro ao país. Mas uma coisa é certa: mais de 300 mil mortes depois, não há marketing capaz de mascarar as consequências de seu negacionismo, o genocídio explícito.
Exército não é Besta
Quando soubemos que França e Alemanha estão começando novo lockdown com esta terceira onda, imaginamos que, como ocorreu na segunda, que começa na Europa, dois meses depois se alastra por outros continentes. Temos de estar preparados no Brasil. Não podemos esmorecer. É trabalhar, melhorar a estrutura física dos nossos hospitais, ter mais leitos, recursos humanos para, se vier uma onda mais forte, a gente ter capacidade de reação.Os números são relativamente bons em relação à população em geral, por conta da prevenção que temos. O índice de letalidade é muito baixo, menor do que na rede pública, graças a essa conscientização, essa compreensão, que é o que eu acho que, se melhorasse no Brasil, provavelmente, o número de contaminados seria bem menor.General Paulo Sérgio, responsável pelo setor de recursos humanos do Exército* A taxa de mortalidade na instituição é de 0,13%, bem abaixo do índice de 2,5% registrado na população civil
Desculpe o clichê, mas 'Até quando?!'
Era um jornal popular, regido pelas regras de fisgar o leitor no meio da rua. Todo dia a redação precisava pôr em manchete algo que tirasse o cidadão da apatia de passar pela banca e, assoberbado dos próprios problemas, ir em frente sem comprar o exemplar.
Eu trabalhava lá e usei o recurso algumas vezes. Quando o acúmulo de indignação ia além do que permitia uma manchete convencional, quando o espaço da página era insuficiente para noticiar o descalabro em detalhes, aumentava-se o corpo das palavras – e aí, no uso sem constrangimento do clichê, gritava-se veemente na orelha do freguês: “Até quando?”.
Sei que isso foi no tempo do calor senegalesco, dos bravos soldados do fogo, e hoje soa inadmissível o elogio do lugar-comum num conceituado órgão de imprensa. O clichê é uma caixinha sem surpresas. Os manuais de redação pedem distância dessa insidiosa moléstia, desse inimigo soez. Não agrega valor. H.L Mencken, o jornalista americano sem papas na língua, dizia – “é o conforto dos medíocres”.
Nelson Rodrigues reclamava que, ao proibir o uso do ponto de exclamação, os jornais tinham perdido o sentido de estarrecimento, de boqueabrir o leitor, que uma notícia precisava ter. Dava como exemplo o texto de Émile Zola em favor do capitão Dreyfus, um dos momentos mais importantes da história do jornalismo. A dramaticidade do libelo era evidente, mas foi potencializada quando o redator do “L’Aurore” riscou o título careta do original de Zola – “Carta ao sr. M. Félix Faure, presidente da República” – e tascou no lugar o inesquecível, jornalístico e apropriadamente bem pontuado “Eu acuso!”.
O drama em cartaz nos jornais precisa do punhal acusatório de todos os pontos de estupor à disposição no parque gráfico, e que eles venham associados ao chocalho afetivo, tão Brasil, das frases feitas, das ladeiras íngremes, da beleza interior, do caráter sem jaça e da vontade de dançar como se não houvesse amanhã. Não é um país, é um clichê.
Ontem, foi anunciado que o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, um tradicional centro de pesquisa, seria reaberto como Palácio Imperial, controlado pelos Orleans e Bragança, num aceno aos valores da monarquia. Até quando?!
Anteontem, um ministro disse que lockdown não dá certo porque ninguém combinou com as pulgas, e elas continuam transportando o vírus para todos os lados. Até quando?!
Na contramão das regras do bom gosto, o palavrório de expressões gastas pelo uso, cercado de pontos de espanto por todos os lados, é um fuzuê de emoções descontroladas, inerentes à condição humana. O prazer de falar com a boca cheia. Nesta hora em que se busca a palavra exata, se impeachment, se genocida, mas nenhuma devolve o país à sua gramática de felicidade, é preciso usar o dicionário completo. Parodiar o poeta. Deixar o purismo de lado e pedir socorro a todas as palavras, todas as expressões, sobretudo os barbarismos universais. Falta vacina de lá, que sobre exclamação daqui!!!
Eu trabalhava lá e usei o recurso algumas vezes. Quando o acúmulo de indignação ia além do que permitia uma manchete convencional, quando o espaço da página era insuficiente para noticiar o descalabro em detalhes, aumentava-se o corpo das palavras – e aí, no uso sem constrangimento do clichê, gritava-se veemente na orelha do freguês: “Até quando?”.
Sei que isso foi no tempo do calor senegalesco, dos bravos soldados do fogo, e hoje soa inadmissível o elogio do lugar-comum num conceituado órgão de imprensa. O clichê é uma caixinha sem surpresas. Os manuais de redação pedem distância dessa insidiosa moléstia, desse inimigo soez. Não agrega valor. H.L Mencken, o jornalista americano sem papas na língua, dizia – “é o conforto dos medíocres”.
Eu estou surfando nessa nostalgia jornalística porque mais três mil pessoas vão morrer hoje de covid-19, amanhã seremos 315 mil mortos, e apesar de todos o assombros com essa realidade já terem sido escritos no mais escorreito português 2021, acho que voltou a hora de acrescentar uma exclamação à interrogação e, às favas com Mencken!, radicalizar na veemência furibunda do velho grito de guerra: “Até quando?!”.
Nelson Rodrigues reclamava que, ao proibir o uso do ponto de exclamação, os jornais tinham perdido o sentido de estarrecimento, de boqueabrir o leitor, que uma notícia precisava ter. Dava como exemplo o texto de Émile Zola em favor do capitão Dreyfus, um dos momentos mais importantes da história do jornalismo. A dramaticidade do libelo era evidente, mas foi potencializada quando o redator do “L’Aurore” riscou o título careta do original de Zola – “Carta ao sr. M. Félix Faure, presidente da República” – e tascou no lugar o inesquecível, jornalístico e apropriadamente bem pontuado “Eu acuso!”.
O drama em cartaz nos jornais precisa do punhal acusatório de todos os pontos de estupor à disposição no parque gráfico, e que eles venham associados ao chocalho afetivo, tão Brasil, das frases feitas, das ladeiras íngremes, da beleza interior, do caráter sem jaça e da vontade de dançar como se não houvesse amanhã. Não é um país, é um clichê.
Ontem, foi anunciado que o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, um tradicional centro de pesquisa, seria reaberto como Palácio Imperial, controlado pelos Orleans e Bragança, num aceno aos valores da monarquia. Até quando?!
Anteontem, um ministro disse que lockdown não dá certo porque ninguém combinou com as pulgas, e elas continuam transportando o vírus para todos os lados. Até quando?!
Na contramão das regras do bom gosto, o palavrório de expressões gastas pelo uso, cercado de pontos de espanto por todos os lados, é um fuzuê de emoções descontroladas, inerentes à condição humana. O prazer de falar com a boca cheia. Nesta hora em que se busca a palavra exata, se impeachment, se genocida, mas nenhuma devolve o país à sua gramática de felicidade, é preciso usar o dicionário completo. Parodiar o poeta. Deixar o purismo de lado e pedir socorro a todas as palavras, todas as expressões, sobretudo os barbarismos universais. Falta vacina de lá, que sobre exclamação daqui!!!
O enigma pós-pandemia
O futuro imediato está sendo desenhado pela forma como cada país lida com a crise sanitária global, mas ainda é um enigma. Toda a tecnologia utilizada para manter a atividade econômica maior possível num ambiente de distanciamento social já existia; todo o conhecimento científico empregado para a produção de vacinas numa velocidade inédita, também. Apesar da tragédia que se abateu sobre a humanidade, especialmente aqui no Brasil — que se destaca pelo número de infectados, de mortos e de negacionistas, entre os quais o presidente Jair Bolsonaro —, é preciso pensar no pós-pandemia. O novo coronavírus escancarou ainda mais as contradições da globalização, principalmente o agravamento das desigualdades, e colocou em xeque a ideia neoliberal de que o mercado sozinho é mais eficiente do que o Estado para cuidar das pessoas.
Provavelmente, se indagarmos a um jovem brasileiro se tem esperança de um futuro melhor, o risco é termos dele um categórico não. É uma visão completamente diferente do otimismo de seus pais e avós quando tinham a mesma idade, embora a maioria talvez tenha condições de vida até melhores, inclusive nas favelas e periferias. Há, porém, menos perspectivas. Frustrou-se o exagero patriótico do Conde Afonso Celso em Porque me ufano do meu país: “Há em ser brasileiro o gozo de um benefício, uma vantagem, uma superioridade”. Também o progressismo de um Stepan Zweig, ao escrever Brasil, o país do futuro. Recordo-me do relato sarcástico de um amigo sobre a emoção de seu pai no dia da reunificação da Alemanha:
— Chorando de alegria, pai?
— Não, de tristeza por vocês terem nascido aqui.
Desde a Revolução Francesa (1789- 1799), o Ocidente apostou no amanhã melhor do que hoje. O Brasil de Juscelino Kubitschek e da Bossa Nova parecia ser a encarnação dessa utopia. Com sinal trocado, o “milagre econômico” do regime militar também. Hoje, quantos jovens brasileiros de todas as classes sociais sonham com a possibilidade de migrar para outro país? Quantos desejam a dupla nacionalidade como principal herança de seus pais? E aqueles que não têm essa possibilidade e perdem completamente a perspectiva, diante do apagão de oportunidades? Disso decorre uma lógica exacerbada durante a pandemia: é preciso viver agora. Todo prazer adiado será perdido. Mesmo que, nas baladas, o vírus seja como uma bala solitária da roleta russa.
O “amanhã será melhor” era a base comum para todas as utopias, do liberalismo à social-democracia, do comunismo ao fascismo. Seus valores comuns eram: produtividade, crescimento, trabalho e urbanização. Em torno deles, os interesses nacionais e de classe teciam a identidade dos indivíduos. Nossa sociedade é fruto disso aí. O que dava sustentação à nossa identidade se desagrega: as nações, as classes sociais, a família; as relações entre gerações e entre os sexos. A vida privada — família, casa, carro, gastronomia, viagens — é a última trincheira da felicidade. A liberdade tornou-se um fim em si; o trabalho, apenas um desagradável meio de financiamento. E aqueles que não têm nada disso? São “invisíveis”.
O encontro da História com as utopias gerou uma espécie de beco sem saída. Bandeiras da velha esquerda foram capturadas pelo reacionarismo: o intervencionismo, o estatismo, as grandes obras, o nacionalismo. O que antes era um projeto de futuro se tornou anacrônico, foi ultrapassado pelas novas forças produtivas. Diferentemente das anteriores, porém, a crise civilizatória não anuncia nenhuma superação do capitalismo nem uma revolução redentora. Somente mais e mais tecnologia. Esse é o caldo de cultura para tanto negacionismo e a atual distopia. Definir um novo projeto de civilização, mais pluralista e justo, e reconstituir o nosso projeto de nação em bases democráticas não serão uma tarefa fácil, embora as condições materiais para isso existam, em termos de conhecimento e criatividade humana. Assim como um paciente da covid- 19 necessita de oxigênio, nossos jovens precisam de uma nova utopia para prosseguir em busca da felicidade.
— Chorando de alegria, pai?
— Não, de tristeza por vocês terem nascido aqui.
Desde a Revolução Francesa (1789- 1799), o Ocidente apostou no amanhã melhor do que hoje. O Brasil de Juscelino Kubitschek e da Bossa Nova parecia ser a encarnação dessa utopia. Com sinal trocado, o “milagre econômico” do regime militar também. Hoje, quantos jovens brasileiros de todas as classes sociais sonham com a possibilidade de migrar para outro país? Quantos desejam a dupla nacionalidade como principal herança de seus pais? E aqueles que não têm essa possibilidade e perdem completamente a perspectiva, diante do apagão de oportunidades? Disso decorre uma lógica exacerbada durante a pandemia: é preciso viver agora. Todo prazer adiado será perdido. Mesmo que, nas baladas, o vírus seja como uma bala solitária da roleta russa.
O “amanhã será melhor” era a base comum para todas as utopias, do liberalismo à social-democracia, do comunismo ao fascismo. Seus valores comuns eram: produtividade, crescimento, trabalho e urbanização. Em torno deles, os interesses nacionais e de classe teciam a identidade dos indivíduos. Nossa sociedade é fruto disso aí. O que dava sustentação à nossa identidade se desagrega: as nações, as classes sociais, a família; as relações entre gerações e entre os sexos. A vida privada — família, casa, carro, gastronomia, viagens — é a última trincheira da felicidade. A liberdade tornou-se um fim em si; o trabalho, apenas um desagradável meio de financiamento. E aqueles que não têm nada disso? São “invisíveis”.
O encontro da História com as utopias gerou uma espécie de beco sem saída. Bandeiras da velha esquerda foram capturadas pelo reacionarismo: o intervencionismo, o estatismo, as grandes obras, o nacionalismo. O que antes era um projeto de futuro se tornou anacrônico, foi ultrapassado pelas novas forças produtivas. Diferentemente das anteriores, porém, a crise civilizatória não anuncia nenhuma superação do capitalismo nem uma revolução redentora. Somente mais e mais tecnologia. Esse é o caldo de cultura para tanto negacionismo e a atual distopia. Definir um novo projeto de civilização, mais pluralista e justo, e reconstituir o nosso projeto de nação em bases democráticas não serão uma tarefa fácil, embora as condições materiais para isso existam, em termos de conhecimento e criatividade humana. Assim como um paciente da covid- 19 necessita de oxigênio, nossos jovens precisam de uma nova utopia para prosseguir em busca da felicidade.
Se a canoa não furar
Como sair dessa? Quando sair dessa? As perguntas não cessam de martelar nossa cabeça, e cada um tenta respondê-las com a mistura de análise e desejo que se entrelaçam em nossas conversas.
De uma forma muito simples, sem censura, tento desenhar para mim um quadro ideal de superação desta crise que, além de matar muita gente, pode nos roubar uma década de desenvolvimento, segundo a própria ONU.Nesse quadro ideal, unifico três condições: um líder como a da Nova Zelândia, uma vacinação tão intensa como a de Israel e um comportamento social como o japonês.
Diante desse quadro, sinto-me como aqueles andarilhos de uma peça de Harold Pinter que entraram, subitamente, na cozinha de um restaurante. De repente, começaram a surgir pedidos complexos, e eles tinham apenas alguns alimentos nas suas pobres sacolas.
É preciso fazer algo com poucos recursos, porque a luta contra o vírus é real, assim como é verdadeira a tragédia que se abate sobre nosso povo.
O primeiro ponto, liderança nacional: esquece.
Bolsonaro é um estorvo, e temos de seguir sem ele nesta luta, derrubando-o assim que for possível, pelos caminhos viáveis no momento dado.
É necessário um comitê nacional de crise, e não farsa encenada pelo Planalto. Um comitê que expresse a crítica à maneira como se conduziu até agora a luta contra a pandemia.
De nada adiantará, entretanto, apenas um comitê nacional. Ele teria de se apoiar em centenas, talvez milhares, de microcomitês, que tentem impulsionar uma política virtuosa. Esse movimento molecular ainda não surgiu na plenitude, embora tenha se esboçado no princípio da pandemia.
Nos milhares de grupos de amigos, dentro ou fora da internet, teria de ser colocada a pergunta: o que podemos fazer dentro de nossas possibilidades? Sempre haverá uma resposta, por mais modesta.
Essa liderança multiplicada seria importante não só para a necessária solidariedade. Mas também para a busca de uma nova tática que busque um comportamento mais responsável diante da doença.
Mais do que lições de moral, o discurso de cooperação só terá efeito se as pessoas sentirem os benefícios de pertencer a um coletivo humano.
Isso não implica a ausência de lockdowns, mas uma tentativa de superar, com o comportamento, a sucessiva necessidade de lockdowns, o constante fecha e abre que o vírus nos impõe.
O êxito da vacinação não resolve o problema a curto prazo. O Chile planejou e vacinou intensamente, mas está às voltas com um novo pico da doença.
A vacinação em massa é a grande estratégia, e isso até o obtuso presidente parece compreender, agora.
Não creio que o governo conseguirá vacinar 70 milhões de brasileiros até o fim do ano. Basta analisar o complexo mercado planetário de vacinas.
Quebrar patentes é uma solução que a Índia e a África do Sul defendem. Ambas acreditam que existem fábricas ociosas no Sul, e só não produzem porque não detêm o conhecimento.
Esse é um clamor justo. Como dizia Jonas Salk: vamos patentear o Sol?
Mas não há tempo hábil. A própria Índia está restringindo exportações. A Europa neste fim de semana fez uma reunião para endurecer as regras da exportação.
Além de obter a tecnologia para produzir vacinas na Fiocruz e no Butantan, é necessário ficar atento ao mercado internacional. Uma janela pode se abrir nos EUA, que vacinam ao ritmo de três milhões por dia. Pfizer, Moderna e Johnson podem ter uma folga no segundo semestre.
No fim de semana, o Instituto Butantan anunciou uma vacina 100% nacional para ser aplicada em julho. Terá de passar pela Anvisa, mas é uma esperança para o segundo semestre.
Será na combinação desses fatores, nem todos favoráveis, que podemos achar um caminho. Uma liderança nacional colegiada tem apenas uma desvantagem: não dispõe dos recursos materiais que estão sob o controle de Bolsonaro. Mas pode funcionar.
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