sábado, 5 de outubro de 2019

Reunião no Vaticano trata Amazônia como problema mundial

"Estamos todos preocupados com os grandes incêndios que se desenvolveram na Amazônia. Oremos para que, com o empenho de todos, sejam controlados o quanto antes." Com essas palavras, o papa Francisco se posicionou, em agosto passado, sobre as queimadas na maior floresta tropical do mundo.

A partir deste domingo, ele recebe representantes da Igreja e da sociedade civil no Vaticano para o Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica, cujo tema da reunião até 27 de outubro é "Amazônia – Novos caminhos para a Igreja e uma ecologia integral".

A destruição ambiental no gigantesco bioma de 7,5 milhões de quilômetros quadrados não é o tema principal oficial. A escassez de padres, que provavelmente será combatida pelo relaxamento do celibato, bem como novas formas de evangelizar o vasto território, estarão em primeiro plano. Mas é claro que, pelo menos desde a encíclica ambiental Laudato Sí, publicada pelo papa em 2015, ficou claro que ele está preocupado com a destruição ambiental e as mudanças climáticas.

Nesta quinta-feira, ele afirmou no Vaticano que a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente na Amazônia não é apenas uma questão que diz respeito a somente um povo ou nação, "mas a todo o mundo". "Por exemplo, a Amazônia que queima não é apenas um problema daquela região, é um problema mundial", apontou o pontífice.

Em Brasília, capital do país que abriga dois terços da Floresta Amazônica em seu território, se verá se as palavras papais encontraram ouvidos. Pois, durante meses, o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro tem se mostrado preocupado com uma suposta ingerência de potências estrangeiras na Amazônia brasileira.

E isso inclui o Vaticano. "Achamos que isso é interferência em assuntos internos do Brasil", declarou em fevereiro último o ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, diante das esperadas discussões sobre os direitos dos povos indígenas e a proteção ambiental na Amazônia. Consta que Heleno ordenou até mesmo que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) espionasse as reuniões dos bispos.

Barco-hospital Papa Francisco navega no Amazonas atendendo ribeirinhos
Na quinta-feira, o cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo e relator da assembleia episcopal, deixou claro mais uma vez que o Vaticano não questionaria a soberania do Brasil. "Sobre isso, há até uma declaração oficial dos bispos brasileiros: a soberania brasileira é intocável. O que não quer dizer que o resto do planeta não possa falar nada sobre o que acontece na Amazônia."

O presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Dom Roque Paloschi, confirma tal posição da igreja. "Nós concordamos plenamente que não é missão do Vaticano interferir num país. A missão da Igreja é anunciar o reino e denunciar tudo aquilo que impede a vida e a dignidade de todos e da criação", afirma o arcebispo metropolitano de Porto Velho (RO) em conversa com a DW.

"O sínodo vai ter o profundo respeito a cada país, a autonomia e soberania de cada país, e não estamos preocupados com esse ou aquele governo. Tanto que o sínodo foi convocado em outubro de 2017, quando não se tinha previsão de que Jair Bolsonaro seria o atual presidente do Brasil", lembra Paloschi. "Nossa preocupação é buscar os novos caminhos para a Igreja e viver essa ecologia integral."

O arcebispo diz, no entanto, que não se pode evitar, de maneira nenhuma, destacar a crescente violência contra os povos indígenas no Brasil. Um relatório do Cimi, divulgado há apenas alguns dias, lista 135 assassinatos de indígenas em 2018 e uma onda de invasões a terras indígenas desde o início de 2019.

"Nós podemos dizer que a situação é desesperadora e humilhante e, acima de tudo, revela uma irresponsabilidade por parte dos governos, que têm alimentado esta onda de incêndios, queimadas, para se efetuar a invasão e ocupação de terras públicas e, de modo muito especial, se aproveitar e ocupar terras indígenas já demarcadas e homologadas", afirma o arcebispo de Porto Velho.

O papel da Igreja como defensora do meio ambiente ameaçado e dos direitos de indígenas e quilombolas também recebe destaque dentro da sociedade civil. "O Conselho Missionário Indigenista (Cimi) e a Pastoral da Terra (CPT) chegam aonde quase o Estado não chega. E o CPT até leva ajuda jurídica a estas populações, faz intermediação de conflitos, principalmente em disputa de terra, coisa que este governo não faz. Este governo incita o conflito", conta à DW Marcio Astrini, do Greenpeace Brasil.

"A mensagem de paz da Igreja é importante, para mostrar que o que está acontecendo não é tolerável e que a gente precisa de um ambiente menos estressado, menos ácido, menos tóxico", aponta Astrini. "O papa tem falado muito da Amazônia, ele é um dos maiores líderes mundiais. Mas infelizmente, enquanto o Papa está rezando pela Amazônia, nos temos, como umas semanas atrás, o Chefe da Casa Civil fazendo reuniões com garimpeiros, que invadiram reservas indígenas."

Na quinta-feira, foi anunciado que, ainda em outubro, o governo vai apresentar uma proposta para regulamentar a exploração de minérios em áreas indígenas. Além disso, na terça-feira, Bolsonaro prometeu a representantes dos garimpeiros que iria defender os interesses deles, incluindo a legalização dos garimpos na Amazônia.

Ele afirmou que o interesse de potências estrangeiras não é a proteção das pessoas e do meio ambiente. "O interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore. É no minério", afirmou Bolsonaro.

Bolsonaro não tem a menor ideia da Amazônia, disse o bispo emérito Erwin Kräutler, há alguns dias. A Igreja deve lutar contra os esforços do governo para que a Amazônia seja explorada por empresas nacionais e estrangeiras, afirmou na ocasião Kräutler, que liderou a enorme Prelatura Territorial do Xingu de 1981 a 2015. "É o compromisso da Igreja de contribuir para a defesa e preservação da Amazônia."

O bispo franciscano alemão Johannes Bahlmann enfatiza que certamente se pode encontrar um denominador comum com o governo Bolsonaro em projetos concretos. O bispo da Diocese de Óbidos foi a força motriz por trás do navio-hospital Papa Francisco, que foi enviado para a Amazônia há algumas semanas, o que para Bahlmann é um exemplo concreto de como a Igreja pode ajudar o povo da região amazônica.

No Vaticano, a questão da saúde também estará na agenda do Sínodo para a Amazônia. Com o navio-hospital, a Igreja já havia percorrido novos caminhos, afirma Bahlmann. Segundo ele, isso despertou o interesse do governo. O Ministério da Saúde, conta, não só elogiou o projeto franciscano, como também "expressou o desejo de construir mais diversos navios de assistência hospitalar - por isso é algo muito positivo. "
Deutsche Welle

Bolsonaro e a política do ressentimento

O historiador americano Francis Fukuyama voltou ao centro do debate da ciência política no ano passado, ao publicar, algumas semanas antes da eleição de Jair Bolsonaro, um livro em que defende que, por trás da eleição de líderes populistas de direita mundo afora, está o ressentimento de grupos que viram sua dignidade afrontada. Embora o fenômeno Bolsonaro não seja abordado em Identidade — A demanda por dignidade e a política do ressentimento (tradução livre, o livro ainda não tem previsão de lançamento no Brasil), o presidente é personagem das aulas de Fukuyama sobre democracia desde 2017, quando ele tratava da ascensão da direita populista em diferentes países. O professor, que dirige na Universidade Stanford, na Califórnia, o Centro de Democracia, Desenvolvimento e Estado de Direito, coloca Bolsonaro na mesma linhagem que o americano Donald Trump, o russo Vladimir Putin, o húngaro Viktor Orbán, o turco Recep Erdogan e o filipino Rodrigo Duterte. Em uma conversa recente que tivemos em sua sala em Stanford, Fukuyama disse ver na eleição de Bolsonaro a mesma política do ressentimento que levou seus equivalentes ao poder. O “Brasil acima de tudo” resumiria a aposta na volta de um nacionalismo idealizado em grande parte nos anos da ditadura, em que valores conservadores tinham um peso maior, a elite política e econômica nacional não havia assaltado os cofres do país (pelo menos não com seus atos publicamente conhecidos) e a violência urbana não era uma ameaça tão grande a propriedades e vidas.


Fukuyama contou que não teria escrito Identidade se não fosse Donald Trump. Veio dali a maioria de seus insights no livro. As pesquisas para entender as razões do voto dos americanos em Trump mostram que muitos dos que optaram pelo cabelo alaranjado do bilionário recordavam tempos em que viam seus lugares na sociedade mais seguros. A expectativa era que, por meio de suas ações, Trump fosse capaz de “make America great again”.

Embora distantes no tempo e no espaço, os sentimentos que os eleitores rurais dos Estados Unidos nutrem pelas elites das costas Leste e Oeste americanas e seus “amigos na grande mídia”, e de como se veem excluídos por eles, em muito se assemelham à forma como os apoiadores de Putin veem a arrogância e o desdém das elites ocidentais para com a Rússia. Putin explora essa demanda por dignidade que parte dos russos sente ao falar de como a Europa e os Estados Unidos se aproveitaram da fraqueza da Rússia durante os anos 1990 para levar a Otan até suas fronteiras. Ele também detesta a atitude de superioridade moral dos políticos ocidentais e, como disse certa vez numa conversa com Barack Obama, não quer ver a Rússia ser tratada como um ator regional fraco, mas como uma potência mundial.

Na Hungria, Viktor Orbán declarou em 2017 que seu regresso ao poder marcava o ponto em que os húngaros haviam “decidido recuperar o país”, “recuperar a estima” neles próprios e o que chamou de “nosso futuro”, expresso em uma crítica à União Europeia e à imigração. Seu partido, o Fidesz, entende que a identidade nacional húngara se baseia na etnicidade húngara, em risco diante da integração do continente e da mistura com outros povos.

Fukuyama também vê no surgimento de Osama Bin Laden um exemplo da política do ressentimento e lembra os relatos da mãe do terrorista, que descrevera uma cena em que Bin Laden, com 14 anos, aos prantos, assistia na TV à Palestina humilhada. Mais tarde, a cólera pela humilhação dos muçulmanos galvanizou o engajamento de centenas de jovens que se voluntariaram para lutar ao lado da Síria em nome de uma religião que eles acreditavam ser atacada e oprimida ao redor do mundo. A recriação do Estado Islâmico traria de volta a glória de uma civilização islâmica do passado, com sua dignidade restabelecida.

No livro, Fukuyama vê muitos integrantes da classe média global como os ressentidos, que “apontam um dedo acusador para cima, às elites, para as quais são invisíveis, mas também para baixo, para os pobres, que eles acham que não são merecedores e estão sendo indevidamente favorecidos”.

No Brasil, do qual o cientista político não trata em seu livro, o ressentimento contra a inclusão de pobres fica evidente em muitos dos discursos críticos ao Bolsa Família e ao acesso inédito a alguns bens de consumo garantido pelos anos do PSDB e do PT no poder. Houve, sim, quem se incomodasse em ver universidades antes exclusivas serem compartilhadas por bolsistas do ProUni e outros tantos que não gostaram de dividir voos com pessoas que só viajavam de ônibus.

O ressentimento contra os crescentes direitos de minorias, como os homossexuais, está expresso em propostas que tramitam no Congresso, a exemplo da criação do Dia do Orgulho Hétero, e em falas como a do presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, que em dezembro de 2017 disse que “heterossexual agora está virando minoria”, que “não tem mais direito nenhum”.

Tudo isso constitui uma parte considerável da massa que votou em Bolsonaro. É claro que não se pode ignorar que muitos votaram acreditando na promessa de um país menos corrupto ou pelo simples desejo de querer algo diferente do PT. Mas, entre os muitos que queriam algo diferente do PT, existiam os que queriam retornar às glórias de um passado que, ao menos na cabeça deles, existiu. Algumas manifestações de bolsonaristas em redes sociais deixam explícita essa visão. “Hoje o povo brasileiro dá um novo grito de independência. O Brasil se liberta da servidão a um partido, a uma ideologia e a um sistema que nada fizeram senão sugar as energias da nação e perverter a sociedade”, escreveu o assessor internacional de Bolsonaro, Filipe Martins, no dia da vitória do presidente no segundo turno.

O discurso de Bolsonaro na ONU também foi na mesma linha, ao falar de como estavam em risco, antes de sua eleição, os “valores familiares e religiosos”. Falou ainda na perseguição a cristãos e sobre como haveria, também antes de sua chegada ao poder, uma “ideologia perversa” infiltrada na cultura, na educação e na mídia, indo “contra a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família”, “pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica”.

O livro de Fukuyama aponta ainda outro alvo dos ressentidos: o politicamente correto — que Bolsonaro também atacou em seu discurso na ONU. E lembra como, nascido a partir da reivindicação de políticas identitárias de esquerda, o politicamente correto, ou melhor, sua negação, tornou-se uma pauta identitária da direita. Ser politicamente incorreto passou a ser uma marca do que é ser de direita. “Trump foi um praticante perfeito da ética de autenticidade que define nossa era: pode ser mendaz, malévolo, preconceituoso ou pouco presidencial, mas pelo menos diz o que pensa”, escreveu, numa frase em que o sujeito poderia ser perfeitamente, em vez de Trump, um certo brasileiro.

Brasil do futuro


Amanhã será outro dia

Às vezes eles aparecem atirando, intimidando, matando, como tigres enfurecidos. Podem, porém, chegar de mansinho, deslizando sem fazer barulho, como cobras. São os milicianos. Em todos os casos, oferecem proteção contra males considerados insuportáveis: bandidos comuns e traficantes. As milícias têm longa tradição no país. Nas zonas rurais, outrora, apareciam sob a forma de jagunços e capangas. Aterrorizavam os que lutavam contra a violência exercida pelos que tudo tinham e podiam: os senhores de terra. Nas cidades, existia o fenômeno dos chamados justiceiros: faziam justiça com as próprias mãos, torturando e matando, e não foram poucos os momentos em que pelo menos parte da sociedade os cobria com respeito e fama.


Nos anos da ditadura, sob a sombra da cumplicidade do Estado, e também nos anos que se seguiram, sob o regime democrático, continuaram, no campo, a barbarizar posseiros, pequenos proprietários e nações indígenas. Nas cidades, constituíram os “esquadrões da morte”. Investigavam, prendiam, julgavam, condenavam e executavam.

Depois da Constituição de 1988, os governos eleitos pelo povo, infelizmente, não estimaram a gravidade do processo. Imersos e envolvidos em jogos conciliatórios, pareciam não ver a cobra se agigantando.

Nos anos recentes, no quadro da deliquescência do Estado, sobretudo em bairros populares, nas periferias das grandes cidades, a cobra cresceu e engordou. Já começa a se aproximar dos bairros de classe média e de gente abastada. Sua principal oferta, como sempre, é proporcionar segurança. Um paradoxo, pois, sob o domínio do arbítrio, o que reina é a insegurança. Pouco a pouco, assenhoram-se de outros serviços: gás de botijão, água mineral, eletricidade, internet, transporte alternativo. Impõem preços de monopólio e intimidam e matam os que protestam. Na etapa atual, em novas metástases, almejando o poder político legal, começaram a eleger vereadores e deputados, aproximando-se de áreas centrais do poder.

De sorte que as milícias se tornaram hoje uma das principais ameaças à democracia brasileira. É o que nos diz Cid Benjamin, em “O Estado policial”, muito mais que um livro, um manual de sobrevivência nestes tempos sombrios.

O autor relaciona, analisa e interpreta este e outros perigos. Começando pelos dispositivos legais. Entre outros, os mais temíveis: a Lei de Segurança Nacional que, desde sua primeira edição, em 1935, não tem feito mais do que proteger o Estado contra a cidadania. E a Lei das Organizações Criminosas, editada por uma distraída Dilma Rousseff, criminalizando os movimentos populares e ameaçando os que se atreverem a desafiar a Ordem.

A internet e seus instrumentos — celulares, computadores, notebooks e tablets — merecem capítulo próprio. Promessas de liberdade entrelaçadas com mecanismos de controle que podem fazer desta geração a última a dispor de privacidade e liberdade. Como e quando usar ou não estas engenhocas, evitando-se a queda nas malhas de eventuais perseguidores, eis o desafio. Como driblar câmeras, microfones e outros mecanismos de vigilância que se somam a técnicas mais antigas: as infiltrações policiais, o uso de “cachorros”, os dedos-duros a serviço, e as “montarias”, que podem, sem querer, levar à perda os próprios companheiros.

Nestas engrenagens, menção especial merece a tortura, velha tradição nacional, política de Estado ao tempo das ditaduras, recurso permanente contra negros e pobres, estes suspeitos de sempre.

Em linguagem acessível e convincente, sem deixar de recorrer, às vezes, ao humor, antítese da sinistrose, Cid Benjamin discute caminhos e opções, oferece dicas, gingas de corpo, rotas de fuga. Trata-se de defender as lideranças e os movimentos populares de ataques que já vêm sofrendo e que podem ainda piorar. Mas os prognósticos do autor são otimistas. Vai passar. E lembra o poeta: amanhã será outro dia. O recurso dos que mantêm esperança: o futuro será melhor. O problema, como advertiu Tocqueville, é que o futuro sempre chega tarde demais.

Sobrevida de ministro suspeito apodrece governo

Em matéria de moralidade, Jair Bolsonaro conseguiu transformar o erro num hábito. O presidente não perde a oportunidade de perder oportunidades. Quando o ministro apareceu no noticiário como responsável pelo laranjal de candidaturas femininas fakes, o presidente alegou que não afastaria ministro com base em notícia de jornal. Quando a Polícia Federal abriu investigação, disse que inquérito não era sentença. Agora vieram o indiciamento da PF e a denúncia do Ministério Público à Justiça. O ministro foi formalmente acusado de falsidade ideológica, apropriação indébita e associação criminosa. Mas o capitão alega que é preciso aguardar o desfecho do processo.

Em política, quem escolhe o momento exato economiza muito tempo. Nesse escândalo do laranjal do PSL, Bolsonaro dormiu no ponto. O tempo de que o presidente dispunha para afastar o ministro não existe mais. Agora só existe o passar do tempo. E quanto mais o tempo passa, quanto maior for a sobrevida concedida ao ministro, maior será também o processo de apodrecimento do próprio governo.

Eu costumo dizer que, nas questões éticas, Bolsonaro opera em duas velocidades, ambas insultuosas. O presidente é intelectualmente lento e moralmente ligeiro. A lentidão intelectual faz com que Bolsonaro demore a perceber que sua inação faz do discurso de campanha um estelionato eleitoral. A ligeireza moral leva Bolsonaro a tratar os auxiliares em litígio com a lei com a mesma condescendência que dispensa ao filho Flávio Bolsonaro, encrencado num caso de peculato e lavagem de dinheiro.

Nesse contexto, o ministro Sergio Moro, que funcionaria como filtro moral do governo, ganha um novo sentido para permanecer no Ministério da Justiça. O ministro incorpora-se à paisagem de Brasília como uma espécie de atração turística. Ministros encrencados, como o do Turismo —que não é o único, diga-se—, frequentam as reuniões ministeriais ao lado de Moro como se estivessem no mirante das cataratas do Iguaçu. Sabem que é perigoso. Mas o perigo é apenas presumido.

Como ousa?

A fuga da realidade no discurso de Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU causou apreensão. Como o chefe de Estado brasileiro é capaz de produzir, perante representantes de 192 países, um pot-pourri cujos assuntos desconexos têm um elemento comum: a fantasia?

Por sua fala, vive-se uma cruzada em defesa dos cristãos contra os invasores de almas para sequestrar Deus e destruir a família, carregados de ideologias. Além da convocação para a guerra santa, o presidente disse sobre a Amazônia: “Ela não está? sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia. Cada um de vocês pode comprovar o que estou falando agora”.

Não pretendo alistar-me no exército de Bolsoleone na luta contra os imaginários destruidores dos valores ocidentais cristãos, mas aceito o desafio de saber o que acontece na Amazônia. Os relatos de órgãos oficiais e de ONGs, há décadas monitorando a região, preocupam.


Já em 1981 o geógrafo Antonio Giacomini Ribeiro (Acta Amaz. vol.11 n.º 2 Manaus) observava que o envio de umidade para a atmosfera decorria principalmente da evapotranspiração, antes da chuva, por intensa atividade de fotossíntese e na chuva antes de a água atingir o solo. E alertava o geógrafo que a criação das nuvens tipo “u cumulus esfarrapadus”, propícias para chuvas, ocorre na floresta densa e nem sequer se dá em áreas de campo e desmatamentos.

Esse fato é importante, pois se constatou, ao longo do tempo, que a Amazônia produz metade de suas próprias chuvas, formando um ciclo hidrológico fechado, cabendo a pergunta de Elton Alisson, da Fapesp: qual seria o nível de desmatamento a partir do qual o ciclo hidrológico amazônico se degradaria?

Respondem a essa pergunta os renomados professores Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, na revista Science Advance e no site de notícias Virtù. Explicam que a Floresta Amazônica depende do ciclo hidrológico que ela mesma produz, havendo dessarte um nível de desmatamento além do qual esse ciclo perde força a ponto de não mais produzir a chuva necessária para a vida dos ecossistemas da floresta tropical.

Lovejoy, então, esclarece que ele e Carlos Nobre, diante de circunstâncias naturais e de intervenção humana, reavaliaram para baixo a porcentagem de desmatamento a partir da qual o ecossistema amazônico passaria do ponto de não retorno, sendo o tipping point entre 20% e 25%. E o pior: “O ponto de não retorno está sendo atingido. Esta situação uma vez instalada não pode mais ser revertida. Uma vez quebrado o ciclo hidrológico, o ecossistema amazônico entra em colapso e não mais pode ser recuperado por medidas de preservação”, havendo o perigo iminente de a Amazônia vir a ter apenas vegetação típica do cerrado e, por ricochete, causando seca no Sudeste.

Com a participação de cientistas brasileiros e estrangeiros, coordenado pelo climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), do Ministério da Ciência e Tecnologia, pesquisa sobre o clima na Amazônia e o que pode acontecer pelo desmatamento em grande escala (Frontiers in Earth Science, com o título Changes in Climate and Land Use Over the Amazon Region) concluiu: “Os efeitos combinados da seca e do desmatamento, juntamente com o fogo, podem ampliar os impactos e causar o colapso do ecossistema da floresta tropical” (www.cemaden.gov.br/impactos-na-amazonia).

Entre 1o de janeiro e 29 de agosto de 2019 o Inpe detectou 45.256 focos de calor no bioma Amazônia, o maior já registrado desde 2010. Esse aumento expressivo de focos, comparado a anos anteriores, se verificou em praticamente todas as categorias fundiárias; e apesar da proteção ambiental as unidades de conservação em 2019 mostraram aumento surpreendente, com o dobro dos focos registrados em relação à média dos últimos oito anos, com concentração em determinadas unidades, como a Floresta Nacional do Jamanxim.

Conforme noticia a WWF Brasil, na Amazônia 31% dos focos de queimadas registrados até agosto deste ano localizavam-se em áreas que eram floresta até julho de 2018, conclusão essa fruto da análise feita sobre focos de queimadas no bioma, com base em séries históricas de imagens de satélite e em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Outro dado trazido pela WWF Brasil é significativo: a área com alertas de desmatamento em agosto foi de 1.394 km2, um valor 120% maior que o do mesmo mês em 2018. Somente nos oito primeiros meses de 2019 a área total com alertas de desmatamento foi de 6 mil km2, 62% mais do que o observado no mesmo período em 2018.

Conforme matéria do site G1, Ane Alencar, uma das maiores especialistas em incêndios na Floresta Amazônia, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, diz: as queimadas aumentaram por causa do desmatamento, “é uma relação direta”, pois, quando se desmata uma área para pastagem ou agricultura, cabe se livrar daquela biomassa. Essa ligação entre desmatamento e queimada é acentuada em outra entrevista, disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/o-governo-nao-pode-espalhar-o-fogo-na-amazonia/.

Em setembro, com atuação do Exército, reduziu-se um pouco a queimada, mas o desmate, ação ilegal que antecede o fogo, persiste elevado.

Estes dados impõem recorrer à expressão de Greta Thunberg: como ousa, presidente?

O futurismo chegou atrasado ao Brasil

O futurismo foi um movimento artístico criado pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti em 1909, com um manifesto explosivo publicado na primeira página do jornal francês “Le Figaro”. Os futuristas detestavam tudo que consideravam velho, antigo e passado — museus, bibliotecas, tradições, academias, o culto à beleza e à natureza — e adoravam as novidades do século XX — as multidões, o automóvel, a velocidade, as fábricas, as máquinas, o avião, o cinema, a fotografia — “assim como no século XXI somos deslumbrados com as tecnologias digitais”, como observa Jason Tércio na esplêndida biografia do modernista Mário de Andrade, “Em busca da alma brasileira”.

Surpreendia no futurismo, além de suas pinturas, desenhos, textos e músicas incompreensíveis, o encanto pelo militarismo, as armas, o patriotismo e a guerra, em contradição com a sua proposta de uma nova arte, contra tudo que aí está. É bizarro que um movimento radicalmente libertário e anárquico glorificasse a força bruta, a disciplina e a xenofobia contra o humanismo, o racionalismo e o iluminismo. Esses italianos deviam estar muito loucos, o haxixe, a cocaína e o ópio eram livres na Europa da Belle Époque...


Donald Trump não sabe, mas é um futurista. Seu desprezo pelas artes, pela natureza, pela história e pela cultura combinam com seu belicismo, seu militarismo, seu ultranacionalismo e sua intolerância autoritária. O futurismo americano se nutre da fartura econômica.

No Brasil endividado, o futurismo chegou atrasado, 110 anos depois do manifesto de Marinetti, que, não por acaso, veio ao Brasil em 1936 para fazer conferências e propaganda do fascismo como representante do governo Mussolini.

Nosso futurismo é passadista, com revisões históricas falsificadas, nostalgia autoritária, guerra à liberdade individual, devoção ao Estado, crença em teorias anticientíficas e mitos religiosos, no poder das armas e do militarismo, confirmando a máxima do professor Pedro Malan: “No Brasil até o passado é incerto.”
Nelson Motta