Fome em Gaza |
quinta-feira, 5 de dezembro de 2024
Imagens mostram que Israel está isolando norte de Gaza
Israel está criando uma nova linha divisória militar em Gaza, isolando o extremo norte da Faixa, segundo parecem mostrar imagens de satélite analisadas pela BBC Verify.
As tropas israelenses assumiram o controle da região e, agora, estão esvaziando uma área que corta toda a largura no norte da Faixa de Gaza.
Vídeos e imagens de satélite mostram que centenas de construções foram destruídas entre o mar Mediterrâneo e a fronteira com Israel, a maioria por meio de implosão. As imagens também mostram tropas e veículos israelenses estacionados junto à nova divisão.
Analistas afirmam que as imagens indicam que Gaza está sendo dividida em zonas, para facilitar o controle da região.
Um porta-voz das Forças de Defesa de Israel (FDI) declarou à BBC que elas têm como alvo "infraestrutura e operações terroristas" no norte da Faixa de Gaza.
O especialista em segurança no Oriente Médio H. A. Hellyer, do think tank (centro de pesquisa e debates) britânico Rusi, afirma que as imagens de satélite sugerem que Israel está se preparando para impedir que civis palestinos retornem à região administrativa do norte de Gaza.
Mais de 100 mil pessoas já foram deslocadas do extremo norte da Faixa, segundo as Nações Unidas.
As imagens aparentemente mostram duas longas seções de estrada em cada extremo da faixa, que são conectadas por terra através de uma zona urbana. As construções estão sendo demolidas entre as duas seções de rodovia, com um padrão claro e visível, desde o início de outubro.
Esta partição se estende por cerca de 9 km através da Faixa de Gaza, de leste para oeste. Ela separa a Cidade de Gaza das localidades de Jabalia, Beit Hanoun e Beit Lahia, ao norte.
A BBC obteve a informação de que existe um caminho tático entre Jabalia e a Cidade de Gaza, como parte das atividades operacionais contra o Hamas em Jabalia.
Vídeos filmados pelas FDI e postados online mostram a implosão de diversos edifícios, de vários andares, desde o início de outubro.
A ilustração abaixo mostra alguns exemplos, que foram geolocalizados pela BBC Verify como estando ao longo do novo corredor.
Um porta-voz das FDI declarou à BBC que não houve intenção de destruir infraestrutura civil "sem que houvesse necessidade operacional" para neutralizar o Hamas.
Outras imagens mostram veículos Humvee das FDI circulando através da área aberta, vindo de Israel.
Os Humvees não são fortemente blindados, como outros veículos militares. Hellyer afirma que seu uso é improvável, a menos que o exército esteja certo de sua segurança, o que indica que as tropas israelenses mantêm o controle da região.
Alguns analistas acreditam que a presença das FDI pode indicar uma partição militar permanente, controlando quem pode viajar entre as regiões administrativas de Gaza e do Norte de Gaza.
Sobre as FDI, Hellyer afirma que "elas estão se entrincheirando para o longo prazo. Eu certamente esperaria que a partição norte se desenvolvesse exatamente como o Corredor Netzarim."
A BBC já documentou a construção de duas partições na Faixa de Gaza, desde o início da guerra atual.
O Corredor Netzarim divide uma área ao sul da Cidade de Gaza, enquanto o Corredor Filadélfia garante às FDI o controle do trecho ao longo da fronteira entre a Faixa de Gaza e o Egito.
A análise da BBC sobre esta nova partição ao norte exibe um padrão similar à construção dos corredores anteriores no ano passado, com a conexão de estradas novas e já existentes e posições militares surgindo em intervalos regulares.
As construções e as terras agrícolas são destruídas, possibilitando a pavimentação das estradas e a construção da infraestrutura militar.
Eado Hecht, do Centro Begin-Sadat de Estudos Estratégicos (Besa), um think tank israelense especializado em segurança nacional e política externa, concorda que os dados mostram uma nova linha divisória. Mas ele questiona se ela terá sido projetada para ser permanente.
"Existe um novo corredor divisório separando a Cidade de Gaza das cidades do norte da Faixa de Gaza", explica ele. "O objetivo é isolar as forças do Hamas — e de outras organizações — que retornaram àquela região, bloqueando seu apoio e impedindo sua capacidade de recuperação, para poder enfrentá-las de forma mais eficiente."
Israel negou que esteja implementando o "Plano do General". Esta estratégia, idealizada pelo ex-general israelense Giora Eiland, consiste em instruir os civis a deixar o norte de Gaza, bloquear o abastecimento e transformar a região em uma zona militar.
As pessoas que permanecessem seriam tratadas como combatentes e enfrentariam a escolha: "render-se ou morrer de fome". A intenção é pressionar o Hamas para libertar os reféns tomados durante os ataques a Israel em 8 de outubro de 2023 e que ainda estão em Gaza.
Em declaração à BBC, um porta-voz das FDI afirmou: "As FDI operam de acordo com planos militares estabelecidos e a afirmação de que elas estariam implementando este plano específico é incorreta."
Mas existem preocupações cada vez maiores com a segurança dos milhares de civis palestinos que permanecem em cidades sitiadas no norte da Faixa de Gaza.
As Nações Unidas e as entidades beneficentes levantaram preocupações significativas sobre a situação no norte de Gaza. Milhares de pessoas já foram deslocadas e a ONU afirma que mais de 65 mil pessoas podem ainda permanecer na região.
As Nações Unidas também declararam, em 20 de novembro, que "virtualmente nenhuma ajuda" chegou em 40 dias a algumas partes do norte de Gaza.
E, em 26 de novembro, um porta-voz declarou que os palestinos enfrentam "escassez crítica de bens e serviços, além de forte superpopulação e más condições de higiene" devido ao bloqueio.
No início deste mês, uma avaliação assistida pelas Nações Unidas concluiu que havia forte probabilidade de fome iminente nas regiões sitiadas do norte da Faixa de Gaza.
A análise da BBC mostra que cerca de 90% do norte de Gaza sofreu ordens de evacuação desde o início de outubro. E vídeos postados nas redes sociais mostram as pessoas sendo movidas para o sul da nova divisão.
Não se sabe ao certo se e quando elas poderão retornar, mas o ministro de Relações Exteriores de Israel insiste que os civis poderão voltar após o término da guerra.
Imagens de satélite mostram o deslocamento de pessoas no norte da Faixa de Gaza. Grandes grupos de tendas, instaladas para servirem de abrigos temporários, desapareceram. Em muitas áreas que ficaram para trás, existem construções destruídas e outros exemplos de atividade militar.
As FDI aparentemente passaram a ter controle suficiente da região para poderem trafegar em veículos levemente blindados. Mas persistem fortes combates na região, entre tropas das FDI e combatentes do Hamas.
Vídeos postados por combatentes do Hamas mostram conflitos com tanques das FDI na região em torno da linha divisória.
Especialistas divergem sobre o tempo que deverá durar a nova partição. Hellyer sugere que ela poderá formar a base de um plano para expulsar permanentemente os palestinos da região.
"Pessoalmente, acho que eles irão instalar colonos judeus no norte, provavelmente nos próximos 18 meses", segundo ele.
"Eles não irão chamar de assentamentos. No início, eles irão chamar de postos avançados ou de outra coisa qualquer, mas é isso que eles serão e irão crescer a partir dali."
O ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, da direita radical, declarou que as tropas deverão ocupar Gaza e "incentivar" cerca da metade dos civis palestinos a deixar o território em até dois anos.
Mas o governo israelense nega que esteja planejando construir assentamentos na Faixa de Gaza após o final da guerra. E Hecht repudiou estas alegações como sendo simplesmente um "sonho" de alguns ministros ultranacionalistas.
"Todos os três corredores (Filadélfia, no sul; Netzarim, ao sul da Cidade de Gaza; e o novo corredor, ao norte da Cidade de Gaza) se destinam a fins de controle. A duração da sua existência depende de quando e como a guerra termine", segundo ele.
As tropas israelenses assumiram o controle da região e, agora, estão esvaziando uma área que corta toda a largura no norte da Faixa de Gaza.
Vídeos e imagens de satélite mostram que centenas de construções foram destruídas entre o mar Mediterrâneo e a fronteira com Israel, a maioria por meio de implosão. As imagens também mostram tropas e veículos israelenses estacionados junto à nova divisão.
Analistas afirmam que as imagens indicam que Gaza está sendo dividida em zonas, para facilitar o controle da região.
Um porta-voz das Forças de Defesa de Israel (FDI) declarou à BBC que elas têm como alvo "infraestrutura e operações terroristas" no norte da Faixa de Gaza.
O especialista em segurança no Oriente Médio H. A. Hellyer, do think tank (centro de pesquisa e debates) britânico Rusi, afirma que as imagens de satélite sugerem que Israel está se preparando para impedir que civis palestinos retornem à região administrativa do norte de Gaza.
Mais de 100 mil pessoas já foram deslocadas do extremo norte da Faixa, segundo as Nações Unidas.
As imagens aparentemente mostram duas longas seções de estrada em cada extremo da faixa, que são conectadas por terra através de uma zona urbana. As construções estão sendo demolidas entre as duas seções de rodovia, com um padrão claro e visível, desde o início de outubro.
Esta partição se estende por cerca de 9 km através da Faixa de Gaza, de leste para oeste. Ela separa a Cidade de Gaza das localidades de Jabalia, Beit Hanoun e Beit Lahia, ao norte.
A BBC obteve a informação de que existe um caminho tático entre Jabalia e a Cidade de Gaza, como parte das atividades operacionais contra o Hamas em Jabalia.
Vídeos filmados pelas FDI e postados online mostram a implosão de diversos edifícios, de vários andares, desde o início de outubro.
A ilustração abaixo mostra alguns exemplos, que foram geolocalizados pela BBC Verify como estando ao longo do novo corredor.
Um porta-voz das FDI declarou à BBC que não houve intenção de destruir infraestrutura civil "sem que houvesse necessidade operacional" para neutralizar o Hamas.
Outras imagens mostram veículos Humvee das FDI circulando através da área aberta, vindo de Israel.
Os Humvees não são fortemente blindados, como outros veículos militares. Hellyer afirma que seu uso é improvável, a menos que o exército esteja certo de sua segurança, o que indica que as tropas israelenses mantêm o controle da região.
Alguns analistas acreditam que a presença das FDI pode indicar uma partição militar permanente, controlando quem pode viajar entre as regiões administrativas de Gaza e do Norte de Gaza.
Sobre as FDI, Hellyer afirma que "elas estão se entrincheirando para o longo prazo. Eu certamente esperaria que a partição norte se desenvolvesse exatamente como o Corredor Netzarim."
A BBC já documentou a construção de duas partições na Faixa de Gaza, desde o início da guerra atual.
O Corredor Netzarim divide uma área ao sul da Cidade de Gaza, enquanto o Corredor Filadélfia garante às FDI o controle do trecho ao longo da fronteira entre a Faixa de Gaza e o Egito.
A análise da BBC sobre esta nova partição ao norte exibe um padrão similar à construção dos corredores anteriores no ano passado, com a conexão de estradas novas e já existentes e posições militares surgindo em intervalos regulares.
As construções e as terras agrícolas são destruídas, possibilitando a pavimentação das estradas e a construção da infraestrutura militar.
Eado Hecht, do Centro Begin-Sadat de Estudos Estratégicos (Besa), um think tank israelense especializado em segurança nacional e política externa, concorda que os dados mostram uma nova linha divisória. Mas ele questiona se ela terá sido projetada para ser permanente.
"Existe um novo corredor divisório separando a Cidade de Gaza das cidades do norte da Faixa de Gaza", explica ele. "O objetivo é isolar as forças do Hamas — e de outras organizações — que retornaram àquela região, bloqueando seu apoio e impedindo sua capacidade de recuperação, para poder enfrentá-las de forma mais eficiente."
Israel negou que esteja implementando o "Plano do General". Esta estratégia, idealizada pelo ex-general israelense Giora Eiland, consiste em instruir os civis a deixar o norte de Gaza, bloquear o abastecimento e transformar a região em uma zona militar.
As pessoas que permanecessem seriam tratadas como combatentes e enfrentariam a escolha: "render-se ou morrer de fome". A intenção é pressionar o Hamas para libertar os reféns tomados durante os ataques a Israel em 8 de outubro de 2023 e que ainda estão em Gaza.
Em declaração à BBC, um porta-voz das FDI afirmou: "As FDI operam de acordo com planos militares estabelecidos e a afirmação de que elas estariam implementando este plano específico é incorreta."
Mas existem preocupações cada vez maiores com a segurança dos milhares de civis palestinos que permanecem em cidades sitiadas no norte da Faixa de Gaza.
As Nações Unidas e as entidades beneficentes levantaram preocupações significativas sobre a situação no norte de Gaza. Milhares de pessoas já foram deslocadas e a ONU afirma que mais de 65 mil pessoas podem ainda permanecer na região.
As Nações Unidas também declararam, em 20 de novembro, que "virtualmente nenhuma ajuda" chegou em 40 dias a algumas partes do norte de Gaza.
E, em 26 de novembro, um porta-voz declarou que os palestinos enfrentam "escassez crítica de bens e serviços, além de forte superpopulação e más condições de higiene" devido ao bloqueio.
No início deste mês, uma avaliação assistida pelas Nações Unidas concluiu que havia forte probabilidade de fome iminente nas regiões sitiadas do norte da Faixa de Gaza.
A análise da BBC mostra que cerca de 90% do norte de Gaza sofreu ordens de evacuação desde o início de outubro. E vídeos postados nas redes sociais mostram as pessoas sendo movidas para o sul da nova divisão.
Não se sabe ao certo se e quando elas poderão retornar, mas o ministro de Relações Exteriores de Israel insiste que os civis poderão voltar após o término da guerra.
Imagens de satélite mostram o deslocamento de pessoas no norte da Faixa de Gaza. Grandes grupos de tendas, instaladas para servirem de abrigos temporários, desapareceram. Em muitas áreas que ficaram para trás, existem construções destruídas e outros exemplos de atividade militar.
As FDI aparentemente passaram a ter controle suficiente da região para poderem trafegar em veículos levemente blindados. Mas persistem fortes combates na região, entre tropas das FDI e combatentes do Hamas.
Vídeos postados por combatentes do Hamas mostram conflitos com tanques das FDI na região em torno da linha divisória.
Especialistas divergem sobre o tempo que deverá durar a nova partição. Hellyer sugere que ela poderá formar a base de um plano para expulsar permanentemente os palestinos da região.
"Pessoalmente, acho que eles irão instalar colonos judeus no norte, provavelmente nos próximos 18 meses", segundo ele.
"Eles não irão chamar de assentamentos. No início, eles irão chamar de postos avançados ou de outra coisa qualquer, mas é isso que eles serão e irão crescer a partir dali."
O ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, da direita radical, declarou que as tropas deverão ocupar Gaza e "incentivar" cerca da metade dos civis palestinos a deixar o território em até dois anos.
Mas o governo israelense nega que esteja planejando construir assentamentos na Faixa de Gaza após o final da guerra. E Hecht repudiou estas alegações como sendo simplesmente um "sonho" de alguns ministros ultranacionalistas.
"Todos os três corredores (Filadélfia, no sul; Netzarim, ao sul da Cidade de Gaza; e o novo corredor, ao norte da Cidade de Gaza) se destinam a fins de controle. A duração da sua existência depende de quando e como a guerra termine", segundo ele.
A pobreza maior do Brasil tem cara de criança
Mais de um quarto dos brasileiros são pobres. Na média. Para ser preciso, 27,4% das pessoas, em 2023. Entre as crianças, quem tem até 14 anos, essa taxa deprimente é de 44,8%. Entre quem tem mais de 60 anos, 11,3%. São dados do IBGE.
Não é o único dos grandes desvios da média que explicitam discriminações crônicas e de causas profundas, "estruturais". Por exemplo, 21,2% das pessoas entre 15 e 29 anos são "nem-nem" (não está em escola, não trabalha). Mas qual é o rosto típico dos "nem-nem"? Mais de 45% dessas pessoas são mulheres pretas e pardas.
A diferença brutal da pobreza infantil se repete faz tempo nas estatísticas. Os cientistas sociais e quem se ocupe do assunto sabem muito bem disso. Não têm sucesso bastante nem ao menos para colocar o assunto na conversa nacional.
Crianças mais pobres são mais comuns em famílias monoparentais (na maioria, a cargo de mulheres), em zonas rurais, em casas de mães e pais que têm mais filhos, são mais pretas e pardas.
Crianças mais pobres tendem a morrer mais, crescer menos; a se atrasar mais na escola e no desenvolvimento cognitivo em geral. Adiante, tendem a ter salários menores, a engravidar cedo demais. Etc.
Temos benefícios sociais dirigidos para mais velhos, óbvio: Previdência, assistência social (como o BPC). O Bolsa Família serviria também para levar mais dinheiro para crianças e famílias com mais crianças. Não basta, para dizer o menos. Além do mais, o problema não se limita à pobreza dita "monetária" (de renda) e apenas vai ser atenuado com transferências sociais dirigidas para crianças mais pobres. A discussão de alternativas entre o público geral e na política mal existe. Faz pouco que se começou a falar de creche.
O Bolsa Família teve peso na redução significativa da pobreza de 2022 para 2023, primeiro de Lula 3. De 2022 para 2023, o aumento da despesa com o programa foi de mais de 80%, em termos reais (além da inflação), acréscimo de R$ 78 bilhões, para R$ 175 bilhões anuais. A massa salarial, a soma de todos os rendimentos do trabalho, cresceu bem, mas cerca de 5%, por exemplo.
Graças aos benefícios do Bolsa Família, mas não apenas, a participação da renda do trabalho na renda total dos mais pobres passou a ser bem menor. Para famílias com renda domiciliar per capita abaixo de um quarto de salário mínimo, os rendimentos do trabalho eram 34,6% da renda total em 2023 (benefícios sociais, 57,1%). Em 2019, pré-pandemia, sob Jair Bolsonaro, o trabalho era 59,9% da renda desse grupo mais pobre. Em 2013, pico da renda do país, auge dos anos petistas, 59,7%.
Na média nacional, o rendimento do trabalho equivalia a 74,2% do rendimento total em 2023. Entre aqueles que ganhavam entre 1 e 2 salários mínimos, por exemplo, o trabalho contribuía com 76% da renda total, em média.
E daí? Primeiro, os mais pobres são, literalmente, excluídos: não têm trabalho ou vivem de bicos precaríssimos. Segundo, dificilmente será possível conseguir grandes reduções adicionais de pobreza à base de aumento de despesa com benefícios sociais.
Não se trata aqui daquela conversa de arrumar "porta de saída" para beneficiários do Bolsa Família (que de resto vivem em uma porta giratória de entradas e saídas da pobreza). O problema é como fechar essa porta de entrada na pior dureza da vida. Para começar, poderíamos tratar bem das crianças.
Não é o único dos grandes desvios da média que explicitam discriminações crônicas e de causas profundas, "estruturais". Por exemplo, 21,2% das pessoas entre 15 e 29 anos são "nem-nem" (não está em escola, não trabalha). Mas qual é o rosto típico dos "nem-nem"? Mais de 45% dessas pessoas são mulheres pretas e pardas.
A diferença brutal da pobreza infantil se repete faz tempo nas estatísticas. Os cientistas sociais e quem se ocupe do assunto sabem muito bem disso. Não têm sucesso bastante nem ao menos para colocar o assunto na conversa nacional.
Crianças mais pobres são mais comuns em famílias monoparentais (na maioria, a cargo de mulheres), em zonas rurais, em casas de mães e pais que têm mais filhos, são mais pretas e pardas.
Crianças mais pobres tendem a morrer mais, crescer menos; a se atrasar mais na escola e no desenvolvimento cognitivo em geral. Adiante, tendem a ter salários menores, a engravidar cedo demais. Etc.
Temos benefícios sociais dirigidos para mais velhos, óbvio: Previdência, assistência social (como o BPC). O Bolsa Família serviria também para levar mais dinheiro para crianças e famílias com mais crianças. Não basta, para dizer o menos. Além do mais, o problema não se limita à pobreza dita "monetária" (de renda) e apenas vai ser atenuado com transferências sociais dirigidas para crianças mais pobres. A discussão de alternativas entre o público geral e na política mal existe. Faz pouco que se começou a falar de creche.
O Bolsa Família teve peso na redução significativa da pobreza de 2022 para 2023, primeiro de Lula 3. De 2022 para 2023, o aumento da despesa com o programa foi de mais de 80%, em termos reais (além da inflação), acréscimo de R$ 78 bilhões, para R$ 175 bilhões anuais. A massa salarial, a soma de todos os rendimentos do trabalho, cresceu bem, mas cerca de 5%, por exemplo.
Graças aos benefícios do Bolsa Família, mas não apenas, a participação da renda do trabalho na renda total dos mais pobres passou a ser bem menor. Para famílias com renda domiciliar per capita abaixo de um quarto de salário mínimo, os rendimentos do trabalho eram 34,6% da renda total em 2023 (benefícios sociais, 57,1%). Em 2019, pré-pandemia, sob Jair Bolsonaro, o trabalho era 59,9% da renda desse grupo mais pobre. Em 2013, pico da renda do país, auge dos anos petistas, 59,7%.
Na média nacional, o rendimento do trabalho equivalia a 74,2% do rendimento total em 2023. Entre aqueles que ganhavam entre 1 e 2 salários mínimos, por exemplo, o trabalho contribuía com 76% da renda total, em média.
E daí? Primeiro, os mais pobres são, literalmente, excluídos: não têm trabalho ou vivem de bicos precaríssimos. Segundo, dificilmente será possível conseguir grandes reduções adicionais de pobreza à base de aumento de despesa com benefícios sociais.
Não se trata aqui daquela conversa de arrumar "porta de saída" para beneficiários do Bolsa Família (que de resto vivem em uma porta giratória de entradas e saídas da pobreza). O problema é como fechar essa porta de entrada na pior dureza da vida. Para começar, poderíamos tratar bem das crianças.
Patrimonialismo, a gigantesca árvore
Um mar de denúncias toma conta do território. Por todos os lados, chovem denúncias. A Pátria Amada está mais parecendo uma Pátria des(amada). Estamos vendo coisas erradas do Norte ao Sul. Ou será que essa onda oceânica do denuncismo é coisa normal? Tentemos entender. Há de se compreender a índole do Brasil.
Tudo começa com a árvore do patrimonialismo, a âncora dos “ismos” em nossa cultura política: caciquismo, fisiologismo, familismo, filhotes do patrimonialismo. E de onde vem essa sopa? Da herança deixada por dom João III, entre 1534 e 1536, quando criou as capitanias hereditárias e as distribuiu entre os donatários.
Tem origem aí a imbricação entre os espaços públicos e privados. Origina-se aí essa mistura. Os donatários entendiam que as capitanias eram suas, propriedade privada. Esse é o berço do patrimonialismo. A corrupção nasce no leito desse rio. O Brasil é o país mais corrupto da América Latina. Numa lista de 146 países, ocupamos o 29º lugar, segundo a Transparência Internacional. Nos 5.565 municípios brasileiros, a corrupção grassa em 85%.
E onde nasce a corrupção? Resposta: na índole de nossa comunidade política. Resgato o chiste. Há quatro tipos de sociedade no mundo: a inglesa, liberal, onde tudo é permitido, salvo o que é proibido; a alemã, durona, onde tudo é proibido, salvo o que for permitido; a ditatorial, tipo Coreia do Norte, onde tudo é proibido, mesmo o que é permitido; e a brasileira, onde tudo é permitido mesmo o que é proibido. Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro padece do complexo de vira-lata, traduzindo a inferioridade em que o nativo se coloca ante o mundo. Hoje, há um complexo maior: o de faraó. Haja olhos para contemplar a arquitetura faraônica que se espraia pelo País na forma de construções suntuosas, edifícios majestosos, obras de desenhos arrojados.
Que país faraônico. O Brasil se habilita a ser o hábitat ideal para abrigar o sono eterno dos faraós, fustigados pelo eco da turba que chega às suas tumbas. Se suas majestades só se sentem confortáveis em pharao-onis, termo do velho latim para significar “casa elevada”, é isso que encontrarão no Planalto brasiliense, também conhecido como morada dos faraós no século 21. O fausto, a opulência, o resplendor, a exuberância se elevam nos espaços, sob o ditame inquestionável de que, se a obra tiver de ser construída em Brasília, haverá de receber o selo de Oscar Niemeyer e, por consequência, não sofrerá limites de gastos.
Vejam o pacote do Haddad, lançado esta semana. Um vasto e tímido programa. Quiseram fazer reforma fiscal com reforma do IR, para agradar à classe média. Lula só pensa naquilo, em 2026. O mercado reagiu. Um dólar tem o poder de comprar mais de R$ 6. E tome inflação pela frente. A economia terá a força para derrotar Lula ou reelegê-lo. Daí a busca de Lula pelo aumento de sua base de apoio.
Nossa legislação abre portas. Deixa de lado o princípio da equidade da representação para compensar os desequilíbrios regionais pela via parlamentar, agravando uns partidos e beneficiando outros. Assim, o sistema torna-se injusto. A indisciplina partidária leva o presidente a sair a campo, tentando cooptar alianças para formar uma coalizão. A composição do governo implica, necessariamente, inserção de partidos na administração, gerando ferrenha disputa entre eles. A consequência se faz sentir na permanente instabilidade das relações entre Poderes Executivo e Legislativo.
A base da maioria, vetor de democracias consolidadas, é ameaçada. Para aumentar os buracos o poder presidencial patrocina uma democracia delegativa, dentro da qual o chefe do Executivo usa e abusa de medidas excepcionais para legislar, no caso, as medidas provisórias e emendas à Constituição. Alguém já disse: “O governo é como se fosse um pote de água benta, cabe tudo ali.” Acrescento: foi o próprio Lula quem disse isso.
Entende-se, pela imagem extravagante, que a água abençoada é a mais apropriada para molhar dedos, sejam eles sujos ou limpos, de cristãos e não cristãos que se benzem nos templos. Desse modo, a democracia brasileira seria o hábitat de espécimes que, de tão variados, só mesmo aqui encontram condições de sobrevivência. Basta contemplar o arranjo federativo, que abriga figuras como presidencialismo imperial, bicameralismo, sistemas proporcional e majoritário e multipartidarismo.
Em suma, há um PIB e meio desperdiçado no meio dessa bagunça, ou seja, jogam-se no lixo R$ 5 trilhões. Se a montanha de riquezas perdidas pudesse ser preservada, o País estaria, há tempos, no ranking mais avançado das potências. A que se deve isso? Primeiro, a uma cultura política plasmada no patrimonialismo, explicada anteriormente. O Estado é um ente criado para garantir nosso alimento e bem-estar.
O jeito perdulário de ser do brasileiro começa, portanto, com a visão do Estado-mãe, providencial e protetor, no seio do qual se abrigam a ambição das elites políticas e o utilitarismo de oportunistas. O (mau) exemplo dado pelos faraós do topo da pirâmide acaba descendo pelas camadas abaixo, na esteira do ditado “ou restaure-se a moralidade ou nos locupletemos”, que uns atribuem a Stanislaw Ponte Preta e outros ao Barão de Itararé.
E assim, com todos locupletados nas frentes da política, resta rezar um Pai Nosso, sob a crença de que Deus é brasileiro e haverá de nos salvar.
Tudo começa com a árvore do patrimonialismo, a âncora dos “ismos” em nossa cultura política: caciquismo, fisiologismo, familismo, filhotes do patrimonialismo. E de onde vem essa sopa? Da herança deixada por dom João III, entre 1534 e 1536, quando criou as capitanias hereditárias e as distribuiu entre os donatários.
Tem origem aí a imbricação entre os espaços públicos e privados. Origina-se aí essa mistura. Os donatários entendiam que as capitanias eram suas, propriedade privada. Esse é o berço do patrimonialismo. A corrupção nasce no leito desse rio. O Brasil é o país mais corrupto da América Latina. Numa lista de 146 países, ocupamos o 29º lugar, segundo a Transparência Internacional. Nos 5.565 municípios brasileiros, a corrupção grassa em 85%.
E onde nasce a corrupção? Resposta: na índole de nossa comunidade política. Resgato o chiste. Há quatro tipos de sociedade no mundo: a inglesa, liberal, onde tudo é permitido, salvo o que é proibido; a alemã, durona, onde tudo é proibido, salvo o que for permitido; a ditatorial, tipo Coreia do Norte, onde tudo é proibido, mesmo o que é permitido; e a brasileira, onde tudo é permitido mesmo o que é proibido. Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro padece do complexo de vira-lata, traduzindo a inferioridade em que o nativo se coloca ante o mundo. Hoje, há um complexo maior: o de faraó. Haja olhos para contemplar a arquitetura faraônica que se espraia pelo País na forma de construções suntuosas, edifícios majestosos, obras de desenhos arrojados.
Que país faraônico. O Brasil se habilita a ser o hábitat ideal para abrigar o sono eterno dos faraós, fustigados pelo eco da turba que chega às suas tumbas. Se suas majestades só se sentem confortáveis em pharao-onis, termo do velho latim para significar “casa elevada”, é isso que encontrarão no Planalto brasiliense, também conhecido como morada dos faraós no século 21. O fausto, a opulência, o resplendor, a exuberância se elevam nos espaços, sob o ditame inquestionável de que, se a obra tiver de ser construída em Brasília, haverá de receber o selo de Oscar Niemeyer e, por consequência, não sofrerá limites de gastos.
Vejam o pacote do Haddad, lançado esta semana. Um vasto e tímido programa. Quiseram fazer reforma fiscal com reforma do IR, para agradar à classe média. Lula só pensa naquilo, em 2026. O mercado reagiu. Um dólar tem o poder de comprar mais de R$ 6. E tome inflação pela frente. A economia terá a força para derrotar Lula ou reelegê-lo. Daí a busca de Lula pelo aumento de sua base de apoio.
Nossa legislação abre portas. Deixa de lado o princípio da equidade da representação para compensar os desequilíbrios regionais pela via parlamentar, agravando uns partidos e beneficiando outros. Assim, o sistema torna-se injusto. A indisciplina partidária leva o presidente a sair a campo, tentando cooptar alianças para formar uma coalizão. A composição do governo implica, necessariamente, inserção de partidos na administração, gerando ferrenha disputa entre eles. A consequência se faz sentir na permanente instabilidade das relações entre Poderes Executivo e Legislativo.
A base da maioria, vetor de democracias consolidadas, é ameaçada. Para aumentar os buracos o poder presidencial patrocina uma democracia delegativa, dentro da qual o chefe do Executivo usa e abusa de medidas excepcionais para legislar, no caso, as medidas provisórias e emendas à Constituição. Alguém já disse: “O governo é como se fosse um pote de água benta, cabe tudo ali.” Acrescento: foi o próprio Lula quem disse isso.
Entende-se, pela imagem extravagante, que a água abençoada é a mais apropriada para molhar dedos, sejam eles sujos ou limpos, de cristãos e não cristãos que se benzem nos templos. Desse modo, a democracia brasileira seria o hábitat de espécimes que, de tão variados, só mesmo aqui encontram condições de sobrevivência. Basta contemplar o arranjo federativo, que abriga figuras como presidencialismo imperial, bicameralismo, sistemas proporcional e majoritário e multipartidarismo.
Em suma, há um PIB e meio desperdiçado no meio dessa bagunça, ou seja, jogam-se no lixo R$ 5 trilhões. Se a montanha de riquezas perdidas pudesse ser preservada, o País estaria, há tempos, no ranking mais avançado das potências. A que se deve isso? Primeiro, a uma cultura política plasmada no patrimonialismo, explicada anteriormente. O Estado é um ente criado para garantir nosso alimento e bem-estar.
O jeito perdulário de ser do brasileiro começa, portanto, com a visão do Estado-mãe, providencial e protetor, no seio do qual se abrigam a ambição das elites políticas e o utilitarismo de oportunistas. O (mau) exemplo dado pelos faraós do topo da pirâmide acaba descendo pelas camadas abaixo, na esteira do ditado “ou restaure-se a moralidade ou nos locupletemos”, que uns atribuem a Stanislaw Ponte Preta e outros ao Barão de Itararé.
E assim, com todos locupletados nas frentes da política, resta rezar um Pai Nosso, sob a crença de que Deus é brasileiro e haverá de nos salvar.
Otto e o óbvio
Nelson Rodrigues gostava de contar esta história. Otto Lara Resende, morador da Gávea, ia todos os dias pelo Aterro do Flamengo para o jornal em que trabalhava, no centro da cidade. Um dia, ao passar pelo Morro da Viúva, olhou casualmente à direita e viu um corpo estranho na enseada: uma pedra gigante com uma casinha no cocuruto. Era o Pão de Açúcar. Embora morasse no Rio desde 1945 e todos os empregos que tivera o obrigassem a passar em frente a ele, Otto nunca se dera conta de sua existência. Atônito, meteu o pé no freio. Os pneus faiscaram e obrigaram os motoristas atrás dele a fazer o mesmo.
Para espanto de todos, Otto saiu do carro e começou a zanzar entre eles, apontando mudo, de boca aberta, para o Pão de Açúcar. Assustadas, as pessoas também desceram, para acudi-lo. Asmático, veio-lhe a falta de ar e ele puxou a bombinha. Uma senhora, abanando-o, dizia: "Calma, meu senhor, calma!". E, sempre apontando para o Pão de Açúcar, só então Otto balbuciou: "Ontem não estava ali! Ontem!". E Nelson completou: "Foi um momento para a eternidade —o grande confronto entre Otto Lara Resende e o óbvio ululante".
Foi a primeira vez que Nelson usou a expressão "óbvio ululante", para dizer que o óbvio ulula à nossa frente, implorando para ser percebido. Mas não o vemos. "Só os profetas enxergam o óbvio", concluiu Nelson. Por isso, Otto nunca enxergara o Pão de Açúcar —ele era o óbvio ululante.
Tudo o que aconteceu durante Bolsonaro e só agora está vindo à tona do pântano era óbvio desde o começo. Bolsonaro não dedicou um único dia de seu suposto governo a governar. A educação, a saúde, a segurança, nem mesmo a economia, nunca lhe disseram nada. A partir do primeiro dia, empenhou-se em sua recondução ao poder em 2022, precavendo-se de que, se isso não acontecesse pelas urnas, viria na forma de um golpe.
Uma consulta aos arquivos mostrará que, com as mesmas palavras, isso foi dito várias vezes neste espaço naqueles quatro anos. Nenhuma vantagem —era o óbvio. E tão óbvio que o próprio Bolsonaro o ladrava nos palanques, caçambas e motociatas, na certeza de que ninguém o enxergaria.
Ruy Castro
Para espanto de todos, Otto saiu do carro e começou a zanzar entre eles, apontando mudo, de boca aberta, para o Pão de Açúcar. Assustadas, as pessoas também desceram, para acudi-lo. Asmático, veio-lhe a falta de ar e ele puxou a bombinha. Uma senhora, abanando-o, dizia: "Calma, meu senhor, calma!". E, sempre apontando para o Pão de Açúcar, só então Otto balbuciou: "Ontem não estava ali! Ontem!". E Nelson completou: "Foi um momento para a eternidade —o grande confronto entre Otto Lara Resende e o óbvio ululante".
Foi a primeira vez que Nelson usou a expressão "óbvio ululante", para dizer que o óbvio ulula à nossa frente, implorando para ser percebido. Mas não o vemos. "Só os profetas enxergam o óbvio", concluiu Nelson. Por isso, Otto nunca enxergara o Pão de Açúcar —ele era o óbvio ululante.
Tudo o que aconteceu durante Bolsonaro e só agora está vindo à tona do pântano era óbvio desde o começo. Bolsonaro não dedicou um único dia de seu suposto governo a governar. A educação, a saúde, a segurança, nem mesmo a economia, nunca lhe disseram nada. A partir do primeiro dia, empenhou-se em sua recondução ao poder em 2022, precavendo-se de que, se isso não acontecesse pelas urnas, viria na forma de um golpe.
Uma consulta aos arquivos mostrará que, com as mesmas palavras, isso foi dito várias vezes neste espaço naqueles quatro anos. Nenhuma vantagem —era o óbvio. E tão óbvio que o próprio Bolsonaro o ladrava nos palanques, caçambas e motociatas, na certeza de que ninguém o enxergaria.
Ruy Castro
Assinar:
Postagens (Atom)