quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Otto e o óbvio

Nelson Rodrigues gostava de contar esta história. Otto Lara Resende, morador da Gávea, ia todos os dias pelo Aterro do Flamengo para o jornal em que trabalhava, no centro da cidade. Um dia, ao passar pelo Morro da Viúva, olhou casualmente à direita e viu um corpo estranho na enseada: uma pedra gigante com uma casinha no cocuruto. Era o Pão de Açúcar. Embora morasse no Rio desde 1945 e todos os empregos que tivera o obrigassem a passar em frente a ele, Otto nunca se dera conta de sua existência. Atônito, meteu o pé no freio. Os pneus faiscaram e obrigaram os motoristas atrás dele a fazer o mesmo.


Para espanto de todos, Otto saiu do carro e começou a zanzar entre eles, apontando mudo, de boca aberta, para o Pão de Açúcar. Assustadas, as pessoas também desceram, para acudi-lo. Asmático, veio-lhe a falta de ar e ele puxou a bombinha. Uma senhora, abanando-o, dizia: "Calma, meu senhor, calma!". E, sempre apontando para o Pão de Açúcar, só então Otto balbuciou: "Ontem não estava ali! Ontem!". E Nelson completou: "Foi um momento para a eternidade —o grande confronto entre Otto Lara Resende e o óbvio ululante".

Foi a primeira vez que Nelson usou a expressão "óbvio ululante", para dizer que o óbvio ulula à nossa frente, implorando para ser percebido. Mas não o vemos. "Só os profetas enxergam o óbvio", concluiu Nelson. Por isso, Otto nunca enxergara o Pão de Açúcar —ele era o óbvio ululante.

Tudo o que aconteceu durante Bolsonaro e só agora está vindo à tona do pântano era óbvio desde o começo. Bolsonaro não dedicou um único dia de seu suposto governo a governar. A educação, a saúde, a segurança, nem mesmo a economia, nunca lhe disseram nada. A partir do primeiro dia, empenhou-se em sua recondução ao poder em 2022, precavendo-se de que, se isso não acontecesse pelas urnas, viria na forma de um golpe.

Uma consulta aos arquivos mostrará que, com as mesmas palavras, isso foi dito várias vezes neste espaço naqueles quatro anos. Nenhuma vantagem —era o óbvio. E tão óbvio que o próprio Bolsonaro o ladrava nos palanques, caçambas e motociatas, na certeza de que ninguém o enxergaria.
 Ruy Castro

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