terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A guerra santa em marcha

Assim como ocorreu com o desafortunado Marx, o pobre Cristo também padeceu na mão de seus seguidores. Ambos passaram por lipoaspiração, retoques e tiveram conceitos e idiossincrasias enfiadas em suas bocas.

São dois das maiores vítimas de fake news na história da humanidade.

Ainda sequer baixara à sepultura, o corpo nem esfriara, e os rascunhos de Marx já estavam nas mãos de Engels, parceiro de farra, para serem ordenados, aparados e ajustados à causa imediata. Depois, o Partido Socialista alemão faria expurgo em Marx e Engels para ajustá-los aos interesses (e preconceitos) de seus dirigentes políticos.


Do mesmo jeito que aquele idiota jogou uma bomba na produtora do Porta dos Fundos, evocando a defesa de Cristo, em nome também de Cristo os primeiros séculos de nossa história surgem recheados de histéricos, mal-intencionados e outros punguistas que, infelizmente, modelarão o que hoje é apresentado como ideal cristão. E, usando seu santo nome em vão, tal esse flanelinha fascista, preconceitos foram construídos, superstições ganharam corpo, e o medo (ou pavor) se transformou em instrumento de convencimento e poder — demônio, inferno…

Até Constantino, o Império Romano conviveu por séculos (assim como anteriormente a civilização helênica) com um panteão de deuses. Mesmo sob conflitos, viviam em paz com suas diversas crenças e divindades. Não havia jamais a intenção de forçar seu vizinho a comungar de sua devoção. Tampouco se desejava legislar sobre o desejo alheio (leia-se: sexo). A intimidade pertencia a cada cidadão.

O sexo não era um problema na Atenas de Sócrates ou na Roma de Sêneca. Vale dizer: sexo hétero ou homossexual. Para fugir ao arrepio do prazer, o ideólogo cristão Orígenes (século III) castra-se.

Ao se converter ao cristianismo, por volta de 313, o imperador Constantino enquadra seus concidadãos à rigidez de sua nova crença. No caso, vai dar ouvidos a maus intérpretes do catolicismo, e dedica-se a extirpar pensadores estoicos quando manda apagar ou queimar seus livros por enxergar ali ideias contrárias àquele mundo, até então, mais identificado com a liberdade dionisíaca do que com o freio à luxúria defendida pelo histérico Paulo de Tarso (esse aí um homofóbico de quatro costados).

Estudos recentes mostram como os séculos III, IV e V aprofundam a perseguição aos pagãos e a demonização do que batizam como sendo hereges — justamente aqueles que não seguiam as ideias da nova religião no poder. Algo lhe soa familiar?

É um período de trevas (o primeiro?) trazido pela religião. Em sua batalha por conquista de corações e mentes, futuros santos como Agostinho incentivam a destruição de estátuas greco-romanas, de templos (Serapis…) e o apagamento de obras que trazem ideias opostas a esse messianismo colocado nas costas do cristianismo.

Centenas de estátuas greco-romanas tiveram seus olhos furados, sexo arrancados, cabeças cortadas — ao contrário do que se diz, aquilo não foi ação do tempo.

Também pouco sobrou da filosofia ou da literatura latina ou ainda de pensadores epicuristas —foram apagados por agentes da nova igreja.

Difícil haver crime perfeito, e então novos estudos agora recorrem às obras cristãs carregadas de proselitismo fundamentalista (tal Agostinho) para reconstituir esse mundo apagado. Ou contam com a sorte: deparar-se com manuscritos escondidos em bibliotecas de monastérios, que escaparam à perseguição ordenada pelos primeiros bispos. O de Lucrécio, por exemplo, antecipava a Física moderna.

Tanto lá como agora o messianismo anseia a terra plana.

O mundo pré-Agostinho e Constantino nas seguintes obras: “The Darkening Age: The Christian Destruction of the Classical World”, de Catherine Nixey; “Christianity, Book-Burning and Censorship in Late Antiquity”, de Dirk Rohmann; ou “Pagans — The End of Traditional Religion and the Rise of Christianity”, de James O’Donnell. “A virada”, de Stephen Greenblatt.
Miguel De Almeida

O alto custo da má reputação

A má reputação do Brasil quando se trata de meio ambiente pode custar bilhões de dólares em perdas de investimentos e de exportações. O perigo já foi percebido no governo, mas falta conferir se o presidente Jair Bolsonaro, responsável principal pela piora da imagem brasileira, está disposto a mudar seu comportamento. O alerta foi repetido em entrevista ao Estado pelo cientista político Christopher Garman, diretor-geral para as Américas da Eurasia, uma consultoria de reputação global com sede nos Estados Unidos. Fundos estão sendo pressionados, lembrou Garman, para incluir a consideração de riscos climáticos em suas estratégias de investimento. O mesmo tipo de pressão, como já se notou em Brasília, pode afetar o comércio, prejudicando o setor mais competitivo da economia brasileira, o agronegócio.


A entrevista do diretor da Eurasia é um testemunho especialmente importante. Novas medidas, como a recente criação do Conselho da Amazônia, dificilmente produzirão bons efeitos para a imagem brasileira, advertiu o consultor, se o presidente Bolsonaro continuar atacando a mídia internacional, personalidades como Greta Thunberg e a “indústria da multa” do meio ambiente.

Nesse caso, manchetes negativas continuarão alimentando a má reputação do País e empresários terão receio de aplicar dinheiro no Brasil. A crise de credibilidade, acrescentou, poderá afastar principalmente novos investimentos. Mesmo sem a retirada de recursos já aplicados na economia brasileira, haverá perdas importantes.

Para a opinião internacional, o aumento das queimadas na Amazônia, no ano passado, materializou a nova política do governo central, contrária às preocupações ambientalistas valorizadas na maior parte dos países desenvolvidos e emergentes. Não se cumpriu até hoje a ameaça de abandonar o Acordo de Paris sobre o clima. As palavras e atitudes do presidente e de vários de seus auxiliares foram, no entanto, uma convincente demonstração de desprezo às preocupações com a preservação ambiental.

A última dessas manifestações foi a declaração infeliz do ministro da Economia, Paulo Guedes, na recente reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos. Suas palavras, apontando a pobreza como pior inimiga do meio ambiente, tiveram repercussão e foram repetidas, na abertura de um debate sobre a Amazônia, como síntese da posição do governo brasileiro. O ministro alegou ter sido mal interpretado, mas a interpretação errada – se tiver sido esse o caso – foi cometida por grande número de pessoas intelectualmente qualificadas.

Na mesma reunião, a nova presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, foi interrogada por um jornalista sobre a possibilidade de aprovação final do acordo entre o bloco europeu e o Mercosul. Essa aprovação depende da aceitação formal por todos os países dos dois blocos. O assunto continua aberto, respondeu a dirigente, referindo-se, claramente, às dúvidas ainda existentes sobre a disposição brasileira de respeitar as condições ambientais valorizadas nos países da União Europeia.

A percepção dos perigos comerciais e financeiros já se manifestou em Brasília. Um alerta foi dado pelo presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, em reunião do Conselho de Governo, em 21 de janeiro. Investimentos, advertiu, poderão ser prejudicados pelo debate ambiental. Comentário semelhante foi feito numa entrevista à imprensa, no dia seguinte, pelo secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, segundo o Estado.

A sensatez do presidente do BC e do secretário do Tesouro fará pouca diferença, no entanto, se o presidente da República e os ministros do Meio Ambiente e de Relações Exteriores continuarem difundindo a imagem de um Brasil devastador de florestas e envenenador do meio ambiente. A imagem é falsa, até porque o agronegócio brasileiro é poupador de terras e, portanto, de florestas. Mas a má reputação brasileira interessa aos defensores do protecionismo agrícola, especialmente na Europa. É preciso explicar esses pontos a algumas autoridades em Brasília.

Pensamento do Dia


A melhor coisa que existe

A ministra Damares prega a abstinência sexual para combater a gravidez precoce. Ela viaja no tempo, sempre para trás, uma viagem que vai de cima da goiabeira ao mundo que ela habita, assombrado pelo pecado, culpa e repressão sexual.

De abstinência forçada sabem os jovens, privados de boas escolas, de conhecimento, de informação, tudo que uma educação decente deveria lhes oferecer e que, ao contrário se lhes rouba, além do esforço e dos projetos, na incompetência da correção de uma prova do Enem. Preencher esses vazios ajudaria, e muito, a combater a gravidez precoce, um problema de alta complexidade sobre o qual uma coisa já se sabe: proibir e culpar tem eficácia zero sobre os hormônios.


O ministro Guedes ameaçou com o imposto do pecado em que os vilões são o açúcar, o sal, o fumo e a cerveja. Da abstinência de alegrias sabem os que pecam tomando cerveja. O ministro quer, além de fazer caixa, defender a saúde. Melhor faria pela prevenção se tornasse possível uma dieta de angústias, aquelas do desemprego e da inadimplência que causam infarto e depressão. O imposto do pecado é metafórico do espírito sombrio e punitivo que paira sobre o país fazendo a vida das pessoas amarga ou, no mínimo, sem gosto.

O ex-secretário da Cultura, no espetáculo mais grotesco e vergonhoso a que um ministro já se prestou, ao som de Lohengrin, fez sua apologia nazi. Um morto vivo ameaçando com um projeto cultural saído dos escombros de Berlim 1945. Execrado, sua cabeça rolou, já o projeto, para o qual foi nomeado, ficou. Artistas estão submetidos à abstinência de cultura. Boa sorte a Regina em sua missão impossível.

Tudo isso em um país solar, a quem mestre Vinicius ensinou que é melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe. É graças a ela que os brasileiros sobrevivem ao inferno nosso de cada dia.

Vem aí o carnaval. Abstinência de sexo e cerveja? O carnaval arrasta séculos de celebração da alegria.

Falando-se em cultura, com a palavra, sem censura, a Estação Primeira.

Reino da ruína



E seu reinado durou apenas o tempo da esperança (...) duração melada da falência
Miguel Torga, "Diário"

Imposto do desemprego

Na mensagem enviada ao Congresso Nacional, ontem, o presidente Jair Bolsonaro anunciou suas prioridades para 2020, focadas na agenda econômica: reforma tributária, MP do Contribuinte Legal, independência do Banco Central, privatização da Eletrobras, promoção do equilíbrio fiscal e novo marco regulatório do saneamento. As propostas foram bem recebidas no Congresso, que começou o ano politicamente esvaziado. O ministro da Casa Civil, Ônyx Lorenzoni, cuja pasta foi esvaziada, fez uma entrega protocolar da mensagem. Bolsonaro estava em São Paulo, com o ministro da Educação, Abraham Weintraub, outro que anda em baixa no governo, para inaugurar um colégio militar.

A única proposta de caráter social entre as prioridades do governo é o Programa Verde Amarelo, cujo objetivo é combater o desemprego. O grande jabuti é o desconto de 7,5% de contribuição no seguro-desemprego. Lançada em novembro passado, a proposta já está sendo ironizada no Congresso, onde é chamada de imposto do desemprego, e deve ser rechaçada pela Câmara, ainda mais num ano eleitoral, como aconteceu com outras propostas do ministro da Economia, Paulo Guedes, como a recriação da contribuição sobre operações financeiras e o chamado “imposto do pecado”, a supertaxação do cigarro e da bebida, rechaçada pelo próprio presidente Bolsonaro.

O governo deixará de arrecadar cerca de R$ 10 bilhões em cinco anos, mas a compensação viria na mudança das regras do seguro-desemprego, que possibilitaria uma arrecadação de R$ 12 bilhões em cinco anos. Em compensação, o período de recebimento do seguro-desemprego passaria a contar para a aposentadoria. O Programa Verde Amarelo mira o desemprego, com regras que flexibilizam a legislação em relação ao trabalho aos domingos e feriados, às férias e ao 13% salário. É destinado a trabalhadores que recebam até 1,5 salário-mínimo, em contratos de 2 anos. Estima-se que 500 mil pessoas poderão ser contratadas com a mudança.

Outra proposta do programa é a concessão de R$ 40 bilhões para até 10 milhões em microcrédito, destinados a pequenos empreendedores. De acordo com o governo, os recursos serão direcionados à população de baixa renda, aos “desbancarizados” e aos pequenos empreendedores formais e informais. Outra meta é reinserir no mercado de trabalho 1 milhão de pessoas afastadas por incapacidade, pela via da reabilitação física e habilitação profissional. Também está prevista a contratação de 380 mil pessoas com necessidades especiais.

Coronavírus

O governo está levando a sério a ameça de epidemia de coronavírus chegar ao Brasil, que já tem 14 pessoas infectadas. Ontem, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciou que o Brasil, mesmo sem casos confirmados de infectados com coronavírus, vai reconhecer estado de emergência em saúde pública. A medida pode viabilizar a retirada dos brasileiros que estão na província de Wuhan, na China, o epicentro da epidemia, que está isolada. De acordo com o Ministério da Saúde, a escolha do local onde será a quarentena dos brasileiros trazidos da China ficará a critério do Ministério da Defesa. Provavelmente, uma base militar, em Florianópolis, em Santa Catarina, ou em Anápolis, em Goiás.

O ministro cita três razões para a quarentena: primeiro, a cidade de Wuhan escolheu fazer um isolamento. Quando se entra em um local de quarentena, se mantém em estado de quarentena. Segundo, lá estão concentrados 67% de todos os casos. Terceiro, quando se traz pessoas de várias regiões do país, elas seriam espalhadas para vários estados do Brasil, daí a necessidade de manter todos eles juntos. O ministro não falou, mas existe uma quarta razão: o sistema hospitalar no Brasil não está em condições de enfrentar uma situação na qual o vírus seja transferido de pessoa a pessoa, seria uma tragédia sem igual, desde a gripe espanhola. A saída é aumentar a vigilância epidemiológica nos aeroportos e portos e isolar os casos suspeitos imediatamente.

O futuro pelas costas

Ia eu outro dia pela rua carregando livros, jornais e revistas quando tudo me escapou das mãos e se espalhou na calçada. Coisa rara: surgiu não sei de onde um rapaz que me ajudou a apanhar a papelada. Parecia um anjo. Nesta época do ano, os anjos estão ocupados, mas de vez em quando um ou outro faz um biscate para quem não tem nenhum merecimento. Vi que não era anjo quando agradeci e ele me perguntou qual era o meu signo.

Imagina só, um anjo preocupado com signo. Noutros tempos, eu teria estranhado a pergunta. Hoje, nem tanto. Disse que sou de Touro. Corre por aí a crença de que nos mínimos atos somos governados pelos astros. Ou astres, que é a forma arcaica de astros. E quer dizer também fado, destino. O rapaz entendia que o papelório espalhado na calçada denunciava às escâncaras o meu horóscopo. Achou que somos do mesmo signo, igualmente trapalhões.

Não somos. Ele é Virgem, me disse. Já eu não sou trapalhão, nem chegado à astrologia. Mas não disse nada, para não o decepcionar. Afinal, não é todo dia que você encontra um rapaz gentil no Rio. Quando se afastou, por via das dúvidas conferi o dinheiro no bolso. Estava O.K. Fiquei com vergonha de tamanha desconfiança. Mas hoje é assim. Confiar, só nos astros. Para quem acredita. O que você faz de bom ou de mau, tudo é decidido lá em cima, no zodíaco. Hora, minuto e segundo, nada lhe escapa, porque os astros são minuciosos.


Astrologia ou astrosofia. Também astromancia. Os iniciados entram pelos arcanos das influências planetárias. Alegrias e desastres, está tudo escrito. Desastre, aliás, quer dizer fora da rota dos astros. Má estrela, infortúnio. A moda astrológica dura há anos e se espalha como chuchu. Fantástica reserva de fé tem o ser humano. Quer acreditar e acredita. Ser agnóstico não é para qualquer um. Só com muita soberba intelectual.

Não sei se você sabe que o Brasil também tem o seu mapa astrológico. Pois tem. Está no livro do advogado Danton de Souza – "Predições astrológicas". São cinquenta anos de pesquisa e estudo na linha de André Barbauit, Volguine e Jean Hieroz. Danton desvenda o futuro do Brasil até o ano de 2182. Que tal? O livro foi publicado em 1983. Estava prevista uma data fatídica: 3 de julho de 1991. Iria acontecer aqui um troço tão terrível que o astrólogo preferiu calar. Agora que passou, que é que foi mesmo?

Milícias na eleição

O Rio é um lugar onde armas de guerra dividem a paisagem com o mar, as palmeiras e os trens suburbanos. É, também, a terra onde mais florescem as milícias armadas.

Nos palácios celebram-se liturgias de leniência com a expansão da influência desses grupos em instituições públicas. Eles garantem votos. Em troca, recebem apoio aos negócios.<

Acabou-se a discrição na trapaça. Pela primeira vez, o Rio poderá ter um candidato a prefeito com origem miliciana atestada em juízo.

Jerônimo Guimarães Filho, 71 anos, pioneiro de bandos na Zona Oeste, está em campanha pelo Partido da Mulher Brasileira (PMB). Foi vereador pelo MDB por oito anos, até ser condenado por crimes como uma chacina de nove pessoas.

Jerominho, como é conhecido, nega tudo. Depois de uma década na cadeia, parece querer legitimar as alianças das milícias. Seu reduto é a Zona Oeste. Estava preso, em 2008, quando elegeu a filha vereadora. Na época, ela habitava uma cela no presídio de Catanduvas (PR), a 1,4 mil quilômetros da Câmara do Rio.

Se confirmada, sua candidatura pode iluminar parte dos porões da política carioca. Ajudaria a dimensionar o tamanho e a influência das quadrilhas, além de indicar tendências da população refém da falência do Estado — no Hospital Federal de Bonsucesso, doentes de câncer esperam seis meses por atendimento.

O controle de voto oxigena as milícias. Isso já prevalece em 468 seções da capital, com mais de 610 mil eleitores (12% do total), sugerem dados da Justiça Eleitoral sobre a votação concentrada em candidatos apoiados por milícias na Zona Oeste.

O antigo chefão da Zona Oeste entraria na disputa com Bolsonaro, Witzel, Crivella & Cia. por pedaços da máquina eleitoral na cidade perdida pelo MDB desde a prisão do ex-governador Sérgio Cabral.

A eficácia dessa engrenagem foi reafirmada na última eleição presidencial. Garantiu a Bolsonaro mais de 60% dos votos em 40 das 49 zonas eleitorais do Rio. Ele só perdeu (com 48,8%) em Laranjeiras. Em 22 zonas, recebeu mais de dois terços dos votos.
José Casado 

Imagem do Dia

Nova forma de aurora boreal, na Finlândia,
apresenta 'um padrão de dunas de areia'

Viagem ao futuro próximo

Sempre me considerei um viajante leve. Saindo do Rio a trabalho, chego ao aeroporto com uma mala mínima, que despacho no balcão, e embarco munido apenas de um livro de bolso e uma Bic preta. E, então, sentado em minha poltrona, observo fascinado o espetáculo das pessoas entrando no avião com uma colossal mochila às costas, uma descomunal mala-baú e um objeto comprido embalado, que pode ser uma vara de pesca, uma pá de remo ou um berimbau, e tentam enfiar tudo nos contêineres superiores.

Estou sendo informado agora de que, em breve —o que pode significar o fim da década ou o fim deste ano—, tudo isso vai acabar. Bilhetes, passaportes, documentos de identidade, nada será necessário. Você chegará ao aeroporto e, pelo simples reconhecimento facial, fará o check-in, atravessará alfândegas, cruzará fronteiras. É só não se esquecer de levar o rosto.


Passará também a viajar sem malas. Bastará mandar de véspera uma mensagem ao hotel, informando suas medidas —altura, pescoço, ombros, abdômen, número do sapato. Impressoras 3D lhe fabricarão as peças de roupa, que você usará pela duração da viagem e, quando sair, deixará para trás, que serão recicladas ou dadas aos pobres. Sim, continuará havendo pobres.

As roupas e os acessórios, como óculos, brincos e pulseiras —os chamados “vestíveis”—, obedecerão aos nossos comandos de voz. Não sei que ordens se darão a um sutiã ou a uma cueca, mas é assim que será. Esses comandos substituirão os próprios smartphones, que, com seus arcaicos teclados e telas, também ficarão obsoletos, porque todos os objetos obedecerão às nossas ordens: “Cheesebúrgueres, fritem-se”. Se você for gago, um nanomicrofone embutido num de seus caninos ou molares converterá a sua gagueira numa fala fluente e nítida.

Bem, este é o futuro próximo. Ficará bem no país quase medieval em que estamos vivendo.
Ruy Castro

Se você acredita que Guedes cortará os privilégios da 'nomenklatura', vai se decepcionar

Depois de um ano do governo Bolsonaro, começam a surgir frustrações, porque boa parte da opinião pública já percebeu que sonhar não é proibido nem paga imposto, mas o problema é a dificuldade existente para concretizar os sonhos. Na verdade, o Brasil chegou a tal ponto de descalabro e desorganização administrativa que está muito difícil desatar os nós.

Já houve iniciativas concretas para reduzir o tamanho do Estado, conter os gastos públicos e alcançar o superávit primário, que é indispensável para o país se livrar da asfixia causada pela dívida pública.


Uma das tentativas mais interessantes foi a proposta de emenda constitucional apresentada em 2015 pelo senador Jorge Viana (PT-AC), a a PEC 106/2015, que visava diminuir em 25% o número de representantes na Câmara dos Deputados e em um terço os do Senado. Com isso, o número de deputados federais passaria de 513 para 386 e o de senadores, de 81 para 54.

A proposta recebeu apoio entusiástico do relator Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Foi submetido a consulta pública, tendo recebido 1.859.115 mensagens de apoio, que significaram aprovação de 99,3% dos manifestantes, com apenas 10.699 manifestações contrárias, ou seja, rejeitado por apenas 0,7%.

Com o final da legislatura, a proposta foi arquivada, junto com boa parte dos quase 400 projetos de alterações em órgãos públicos, licitações e contratos, organização político-administrativa do Estado e servidores públicos.

O Congresso voltou a funcionar nesta segunda-feira e aguarda a reforma administrativa que está sendo preparada pela equipe econômica, simultaneamente à reforma tributária.

Espera-se que, ao invés de focar apenas na venda de estatais, a proposta de Paulo Guedes realmente reduza o tamanho do Estado nos setores em que há excessos de gastos públicos, inclusive eliminando os privilégios da nomenclatura, nos Três Poderes.

Afinal, sonhar não é proibido, repita-se, indefinidamente. Se Guedes não fizer isso agora, obrigará Bolsonaro a fazer um governo fake, apenas cosmético, sem resolver os grandes desafios nacionais.

Divulgação falha e parcial de dados entra em choque com discurso de transparência

No mês em que completou um ano de mandato, o presidente Jair Bolsonaro recebeu reprimenda da Transparência Internacional por, segundo estudos da ONG, intervir nos mecanismos de fiscalização do país. O relatório divulgado em 23 de janeiro revelou que a percepção sobre corrupção no Brasil aumentou ao redor do mundo. Entre um dos fatores apontados pelo levantamento está a ingerência governamental nos órgãos de controle, como substituições em chefias da Polícia Federal e da Receita e a nomeação de um Procurador-Geral da República (Augusto Aras) fora da lista tríplice. Além das instituições anticorrupção, o diagnóstico indica que o Governo Bolsonaro segue a esteira de enfraquecimento dos instrumentos federais em prol da transparência, com acúmulo de episódios recentes de falhas ou divulgação parcial de dados.

Na sexta-feira, o EL PAÍS publicou uma reportagem em que mostra que o Governo não explica o tamanho real da fila de espera do programa Bolsa Família. O Ministério da Cidadania fala apenas em “uma média nacional” de 494.229 famílias à espera do programa em 2019, mas não disponibiliza os números absolutos mês a mês de entrada e saída de famílias e nem o número de habilitados a receber o benefício, mas que ainda estão sem a bolsa. Cálculos realizados pelo EL PAÍS, com base em dados públicos, estimam que 1,7 milhão de famílias, ou cerca de 5 milhões de pessoas, estariam atualmente aptas a ingressar no programa, ou seja, preenchem todos os critérios para receber o auxílio antimiséria —um valor três vezes maior do que o número divulgado pela pasta.

Desgastado pela repercussão negativa dos problemas no Enem, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela aplicação do exame, se recusou a recalcular o peso de questões após corrigir o gabarito de 6.000 provas que tiveram erro na gráfica, informou o jornal Folha de S.Paulo. O órgão argumentou que, por se tratar de uma amostra pequena de candidatos afetados, o cálculo não seria alterado por uma nova revisão, mas para fontes ouvidas pelo jornal, isso poderia afetar a entrada de candidatos na universidade. O contratempo motivou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) a apresentar requerimentos para convocar o ministro da Educação, Abraham Weintraub, a prestar esclarecimentos a respeito dos critérios de atribuição das notas.

Segundo o pesquisador Manoel Pires, economista do IBRE/FGV e organizador do Observatório de Política Fiscal, a qualidade e a frequência de informações estatísticas prestadas pelo Governo Federal tem apresentado queda nos últimos três anos. Ele salienta que o ponto de inflexão surge a partir da gestão de Michel Temer, reflexo da crise financeira que passou a afetar a prestação de serviços nos órgãos federais. Porém, a falta de transparência teria se acentuado no Governo Bolsonaro pela combinação de outros dois fatores ao cenário econômico. O primeiro tem a ver com as mudanças de pessoal promovidas pela administração, sobretudo pelo recrutamento de gestores oriundos do setor privado, pouco afeitos às práticas de governança pública. E o segundo, pelo apelo ideológico do Governo, com postura resistente à prestação de contas e a demandas da imprensa.

“Ainda é cedo para avaliar se a redução da transparência pelo Governo Federal será ou não uma tendência, mas, nos últimos anos, uma série de ocorrências nesse sentido tem se tornado cada vez mais comum, em vários órgãos”, afirma Pires. Como exemplo, ele cita os dados sobre gastos públicos, que não são atualizados desde março de 2018 pela Secretaria do Orçamento Federal, e os de carga tributária, que eram anualmente divulgados pela Receita Federal, mas pararam de ser publicados em 2017, tal qual o anuário estatístico da Previdência Social. Para o pesquisador, as informações são fundamentais em discussões em torno de reformas como a tributária e a administrativa, que estão na pauta do Congresso para este ano. “No aspecto doméstico, a falta de transparência dificulta a avaliação das propostas e políticas no debate público. Já do ponto de vista internacional, pode prejudicar alguns pleitos do país, como a intenção de ingressar na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico).”

Dados sobre o funcionalismo público ainda não foram destrinchados pelo Governo Federal. Neste mês, o presidente Bolsonaro destacou em seu perfil no Twitter a divulgação em dados abertos dos pagamentos aos servidores aposentados e pensionistas, como parte de um suposto compromisso para “fortalecer a transparência em defesa do interesse público e combate à corrupção”. No entanto, a publicação das informações só aconteceu por determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), que julgou procedente uma ação de 2017 protocolada pela agência de dados Fiquem Sabendo. De acordo com a entidade independente, “o atual Governo agiu contra a transparência ao tentar barrar a divulgação dos dados, apresentando recursos que atrasaram a decisão final do TCU”.

Na mesma semana, Bolsonaro reafirmou a pretensão de tornar seu Governo mais transparente, garantindo ter recomendado providências a todos os ministros e que deu mostras nesse sentido ao lançar painéis eletrônicos com informações relacionadas ao pagamento de benefícios do Bolsa Família e do INSS. “Nosso Governo tem o compromisso de apurar e sanar quaisquer irregularidades detectadas ou denunciadas e, acima de tudo, dar transparência às despesas públicas com o intuito de engajar nossa sociedade na fiscalização contínua dos recursos públicos”, disse o presidente.

Comparado a 2018, houve crescimento de 4,5% nas solicitações de dados federais, que podem ser feitas por qualquer cidadão, no primeiro ano de gestão bolsonarista, mas abaixo da média progressiva anual (5,1%) registrada desde a efetivação da Lei de Acesso à Informação (LAI), em 2012. Entretanto, segundo levantamento da Controladoria-Geral da União (CGU), o sistema ainda não é garantia de acesso irrestrito à prestação de contas dos órgãos públicos. Cerca de 8% dos pedidos são negados pelas instituições —a maioria por alegação de dados sigilosos—, enquanto 79% retornam aos solicitantes com atraso e 36% com informações incompletas.

Volta do complexo vira-lata

Jair Bolsonaro é um governante com pouco apreço pelos governados. O presidente já fez diversos comentários ofensivos a índios e negros. Ontem ele divulgou um vídeo que menospreza os brasileiros em geral.

A gravação é estrelada por um jornalista que deixou a televisão e virou porta-voz informal do governo. Numa palestra, ele sugere que o Brasil deveria “trocar de população” com o Japão.

“Com este subsolo, este clima, alguém teria dúvida de que os japoneses transformariam isso aqui em primeira potência do mundo em dez anos?”, pergunta. Em tom de piada, ele sugere que os brasileiros não fariam o mesmo no Japão. “Lá, eu não quero pensar”, ironiza.


O discurso reforça a ideia preconceituosa de que os brasileiros seriam preguiçosos e avessos ao trabalho. Mesmo assim, ganhou o aval do presidente. “Essa é para assistir algumas vezes e compartilhar”, ele tuitou.

O sonho de trocar de povo é mais antigo que o bolsonarismo. Em 1920, Oliveira Viana escreveu que negros, índios e mestiços exerciam uma “força repulsiva e perturbadora” sobre o caráter nacional. Com base nessa mentalidade, o governo passou a filtrar a entrada de imigrantes para “branquear” a população.

“Essas ideias racistas chegaram aqui na virada para o século XX. A tese era bem simplista: para se tornar uma nação civilizada, o Brasil deveria trazer mais imigrantes europeus”, resume o historiador Fábio Koifman, autor de “Imigrante Ideal: O Ministério da Justiça e a Entrada de Estrangeiros no Brasil (1941-1945)”.

Na época, os japoneses faziam parte do grupo de imigrantes “indesejados”. “Eles não eram considerados brancos”, explica o professor da UFRRJ.

Atribuir os problemas à população é uma saída cômoda para quem está no poder. Se o pior do Brasil é o brasileiro, o governo não pode ser cobrado por seus fracassos. A culpa é sempre do povo, não dos dirigentes.

Sem conhecer Bolsonaro, Nelson Rodrigues atribuía os males nacionais a um sentimento de inferioridade em relação a outros países. Com a vitória na Copa de 1958, o cronista pensou que o “complexo de vira-latas” havia ficado para trás. Estava enganado.