sábado, 10 de outubro de 2020
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Quem foi o herói de Bolsonaro e o homem honrado de Mourão
Um torturador, por sinal o único militar condenado pelo crime, não pode ser considerado “um herói” por ninguém, muito menos pelo presidente da República, tampouco “um homem de honra”. Foi Bolsonaro, repetidas vezes, que tratou o coronel do Exército Brilhante Ustra como herói. Ustra foi chamado de homem honrado pelo general Hamilton Mourão, vice-presidente.
Foi preciso que um jornalista inglês, a serviço da televisão alemã, entrevistasse Mourão para tirar a máscara que o general vestiu desde que se elegeu. Antes, Mourão era um general da linha dura, punido mais de uma vez por suas declarações antidemocráticas. Durante a campanha de 2018, falou em autogolpe, algo que poderia ocorrer depois da eleição de Bolsonaro, e dele mesmo.
Há prova abundante de tudo isso, inclusive um HD com 43 documentos produzidos pela inteligência americana entre os anos 1967 e 1977 e entregue por Joe Biden, à época vice de Barack Obama, a presidente Dilma Rousseff. Biden, hoje, com 77 anos de idade, está a um passo de derrotar Donald Trump e de ser eleito presidente dos Estados Unidos no próximo dia 3 de novembro.
Geisel provou na pele quanto pode ser incômodo um presidente americano a pressionar para que se respeite os direitos humanos. O presidente Jimmy Carter foi uma pedra no sapato do governo do general. A mulher de Carter, Rosely, veio ao Brasil tomar satisfações em nome do marido. Eu era repórter no Recife quando ela reuniu-se com missionários americanos vítimas de tortura.
Boi-bombeiro, como sugeriu a ministra Tereza Cristina, da Agricultura, não é solução para baixar o fogo no Pantanal, nem na Amazônia. Se fosse, a expansão da pecuária nas duas regiões teria diminuído os focos de incêndios. O Brasil não está ok, como garantiu Mourão ao entrevistador da televisão alemã. Entrevista que foi um primor para quem quiser saber como se faz uma.
O que Mourão disse sobre Ustra foi de envergonhar e de dar nojo aos que ainda são capazes de sentir as duas coisas. “Ele foi meu comandante no final dos anos 70, e foi um homem de honra que respeitava os direitos humanos dos seus subordinados”, testemunhou o general. Jamais esteve em questão se Ustra comportou-se bem ou mal com seus subordinados.
É de supor que militar não tortura nem executa militar, a não ser em guerras. No caso de Ustra, a questão sempre foi o uso da tortura que ele fez pessoalmente contra presos políticos. E que avalizou. Ustra foi um torturador brutal, que se valeu de todos os meios para arrancar confissões ou simplesmente humilhar os prisioneiros aos seus cuidados. Não havia limites para ele.
Certa vez, nos porões do quartel-general do Exército, em São Paulo, ele suspendeu o suplício dos presos na antevéspera do Natal. Autorizou-os a tomar banho, cortar o cabelo, e deu-lhes roupas limpas. O dia 24 de dezembro foi de descanso para os presos e seus algozes. Perto da meia-noite, eles foram levados para um salão onde seria servida uma ceia de Natal.
Puderam comer peru, arroz, farofa com passas e beber refrigerantes. De repente, Ustra irrompeu no salão e foi de mesa em mesa desejar feliz Natal. No dia seguinte, a tortura recomeçou. Essa história me foi contada por uma mulher que participou da ceia. Ustra, o herói de Bolsonaro e o homem honrado de Mourão.
Foi preciso que um jornalista inglês, a serviço da televisão alemã, entrevistasse Mourão para tirar a máscara que o general vestiu desde que se elegeu. Antes, Mourão era um general da linha dura, punido mais de uma vez por suas declarações antidemocráticas. Durante a campanha de 2018, falou em autogolpe, algo que poderia ocorrer depois da eleição de Bolsonaro, e dele mesmo.
A tortura de adversários da ditadura militar de 64 foi adotada como política de Estado, segundo admitiu Ernesto Geisel, o terceiro general-presidente de um ciclo de 21 anos do regime da farda, do choque elétrico, do pau-de-arara, da unha arrancada a alicate, do rato introduzido em vaginas e da cobra posta em cela para assombrar os seus ocupantes e não deixá-los dormir.
Há prova abundante de tudo isso, inclusive um HD com 43 documentos produzidos pela inteligência americana entre os anos 1967 e 1977 e entregue por Joe Biden, à época vice de Barack Obama, a presidente Dilma Rousseff. Biden, hoje, com 77 anos de idade, está a um passo de derrotar Donald Trump e de ser eleito presidente dos Estados Unidos no próximo dia 3 de novembro.
Geisel provou na pele quanto pode ser incômodo um presidente americano a pressionar para que se respeite os direitos humanos. O presidente Jimmy Carter foi uma pedra no sapato do governo do general. A mulher de Carter, Rosely, veio ao Brasil tomar satisfações em nome do marido. Eu era repórter no Recife quando ela reuniu-se com missionários americanos vítimas de tortura.
A situação mudou. O Brasil não tem mais presos políticos, só presos comuns torturados ante à indiferença da maior parte dos brasileiros. Biden, se eleito, vai incomodar Bolsonaro e Mourão por outro motivo: o desprezo ao meio ambiente. Biden já prometeu sanções econômicas contra o Brasil caso a Amazônia continue a ser destruída. É também o que prometem países europeus.
Boi-bombeiro, como sugeriu a ministra Tereza Cristina, da Agricultura, não é solução para baixar o fogo no Pantanal, nem na Amazônia. Se fosse, a expansão da pecuária nas duas regiões teria diminuído os focos de incêndios. O Brasil não está ok, como garantiu Mourão ao entrevistador da televisão alemã. Entrevista que foi um primor para quem quiser saber como se faz uma.
O que Mourão disse sobre Ustra foi de envergonhar e de dar nojo aos que ainda são capazes de sentir as duas coisas. “Ele foi meu comandante no final dos anos 70, e foi um homem de honra que respeitava os direitos humanos dos seus subordinados”, testemunhou o general. Jamais esteve em questão se Ustra comportou-se bem ou mal com seus subordinados.
É de supor que militar não tortura nem executa militar, a não ser em guerras. No caso de Ustra, a questão sempre foi o uso da tortura que ele fez pessoalmente contra presos políticos. E que avalizou. Ustra foi um torturador brutal, que se valeu de todos os meios para arrancar confissões ou simplesmente humilhar os prisioneiros aos seus cuidados. Não havia limites para ele.
Certa vez, nos porões do quartel-general do Exército, em São Paulo, ele suspendeu o suplício dos presos na antevéspera do Natal. Autorizou-os a tomar banho, cortar o cabelo, e deu-lhes roupas limpas. O dia 24 de dezembro foi de descanso para os presos e seus algozes. Perto da meia-noite, eles foram levados para um salão onde seria servida uma ceia de Natal.
Puderam comer peru, arroz, farofa com passas e beber refrigerantes. De repente, Ustra irrompeu no salão e foi de mesa em mesa desejar feliz Natal. No dia seguinte, a tortura recomeçou. Essa história me foi contada por uma mulher que participou da ceia. Ustra, o herói de Bolsonaro e o homem honrado de Mourão.
A falta de prevenção e a tragédia do Pantanal
O planeta arde e as matas queimam. Os incêndios florestais se tornaram mais destrutivos com a mudança climática – ambientes mais quentes e mais secos são propícios à propagação do fogo. Colocar a tragédia que assola o Pantanal apenas na conta do aquecimento global, no entanto, seria desonesto. Como explicou o cientista Carlos Nobre no programa Conversa com Bial de segunda-feira, a culpa é nossa: “Trata-se, em grande parte, da prática tradicionalíssima de provocar incêndios para limpar pastos e áreas agrícolas”. Há também, claro, as queimadas criminosas ligadas ao esquema de grilagem de terras.
Fiquemos, no entanto, no âmbito das “práticas tradicionalíssimas”. Existe solução. Com a mudança climática, os protocolos de manejo da terra foram redesenhados. “Práticas comuns no passado não podem mais ser empregadas hoje. Por causa da mudança climática, prevenir incêndios florestais é, atualmente, muito mais importante do que combatê-los”, diz Tiago Oliveira, presidente da Agif, o organismo do governo português responsável por combater incêndios florestais. Ele é o personagem do minipodcast da semana.
O mantra dos novos protocolos, da Austrália à África do Sul, do Canadá às florestas europeias, é precisamente este: prevenção. Portugal, que sofreu com incêndios altamente destrutivos em 2017, responsáveis por dezenas de vítimas, é um caso de estudo. Há três anos, o país investia 143 milhões de euros no combate a incêndios florestais, 20% em prevenção. Hoje são 246 milhões – e metade disso vai para ações anteriores ao período da seca. Entre elas, trabalhos de conscientização de fazendeiros sobre as práticas mais modernas. Com a ênfase na prevenção, os focos de incêndio foram reduzidos à metade.
Segundo especialistas, foi justamente isso que faltou no caso do Pantanal. “O correto seria iniciar a prevenção em abril, com medidas de educação ambiental e queimadas controladas, para evitar o excesso de biomassa”, diz Luciano Evaristo, que entre 2009 e 2018 dirigiu a área de proteção ambiental do Ibama. Ao longo do período, que atravessou os mandatos de Lula, Dilma e Temer, ele coordenou pessoalmente várias ações do Prevfogo, programa do Ibama que conta com reconhecimento internacional. Evaristo avalia: “Neste ano, o governo começou a contratar brigadistas apenas em junho, quando era tarde demais. Não houve um trabalho de prevenção adequado”.
A tragédia do Pantanal é imensa. Ao longo dos nove primeiros meses de 2020, os focos de incêndios se multiplicaram por três em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. Em Portugal, o governo estabelece parceria com fazendeiros na contratação de tropas anti-incêndio. No Brasil há organizações ambientais que combatem queimadas de forma heroica, assim como produtores rurais que formam suas próprias brigadas – a coluna voltará a esse assunto. De acordo com Evaristo, tal heroísmo é inócuo se não houver, como em Portugal, algum tipo de coordenação estatal. “Combater incêndios florestais é uma ciência, que tem como base a prevenção. Sem conhecimento e estratégia o esforço se perde.”
O planeta arde, as florestas queimam e, nos dois casos, poderíamos fazer mais e melhor. A tragédia do Pantanal aponta para o desleixo – ou a negligência – dos governantes que os brasileiros escolheram.
Fiquemos, no entanto, no âmbito das “práticas tradicionalíssimas”. Existe solução. Com a mudança climática, os protocolos de manejo da terra foram redesenhados. “Práticas comuns no passado não podem mais ser empregadas hoje. Por causa da mudança climática, prevenir incêndios florestais é, atualmente, muito mais importante do que combatê-los”, diz Tiago Oliveira, presidente da Agif, o organismo do governo português responsável por combater incêndios florestais. Ele é o personagem do minipodcast da semana.
O mantra dos novos protocolos, da Austrália à África do Sul, do Canadá às florestas europeias, é precisamente este: prevenção. Portugal, que sofreu com incêndios altamente destrutivos em 2017, responsáveis por dezenas de vítimas, é um caso de estudo. Há três anos, o país investia 143 milhões de euros no combate a incêndios florestais, 20% em prevenção. Hoje são 246 milhões – e metade disso vai para ações anteriores ao período da seca. Entre elas, trabalhos de conscientização de fazendeiros sobre as práticas mais modernas. Com a ênfase na prevenção, os focos de incêndio foram reduzidos à metade.
Segundo especialistas, foi justamente isso que faltou no caso do Pantanal. “O correto seria iniciar a prevenção em abril, com medidas de educação ambiental e queimadas controladas, para evitar o excesso de biomassa”, diz Luciano Evaristo, que entre 2009 e 2018 dirigiu a área de proteção ambiental do Ibama. Ao longo do período, que atravessou os mandatos de Lula, Dilma e Temer, ele coordenou pessoalmente várias ações do Prevfogo, programa do Ibama que conta com reconhecimento internacional. Evaristo avalia: “Neste ano, o governo começou a contratar brigadistas apenas em junho, quando era tarde demais. Não houve um trabalho de prevenção adequado”.
A tragédia do Pantanal é imensa. Ao longo dos nove primeiros meses de 2020, os focos de incêndios se multiplicaram por três em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. Em Portugal, o governo estabelece parceria com fazendeiros na contratação de tropas anti-incêndio. No Brasil há organizações ambientais que combatem queimadas de forma heroica, assim como produtores rurais que formam suas próprias brigadas – a coluna voltará a esse assunto. De acordo com Evaristo, tal heroísmo é inócuo se não houver, como em Portugal, algum tipo de coordenação estatal. “Combater incêndios florestais é uma ciência, que tem como base a prevenção. Sem conhecimento e estratégia o esforço se perde.”
O planeta arde, as florestas queimam e, nos dois casos, poderíamos fazer mais e melhor. A tragédia do Pantanal aponta para o desleixo – ou a negligência – dos governantes que os brasileiros escolheram.
Sem mais vergonha na cara
Bolsonaro é um cara que fez uma coisa para o Brasil: dar cidadania à extrema direita brasileira, que tinha vergonha de ser extrema direita. Bolsonaro recuperou essa gente do ralo da política e deu cidadania. E essa gente se autoproclamou cidadão de primeira classe.Lula
O fim de um sonho
Noites dessas conversei, sobre nosso futuro, com o amigo Fernando Pessoa. Desencantado, comecei dizendo já ter perdido as esperanças num país limpo. Pouco mais limpo, ao menos. Ele pareceu compreender ("Lisbon Revisited, 1926"), “No fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei/ Fogem desmantelados, últimos restos/ Da ilusão final”. Pediu que explicasse. Relatei então que, na última eleição, parte dos brasileiros teve a ilusão de que pudéssemos construir uma nova ordem ética. Para que corruptos e corruptores ao menos hesitassem, antes de tentar enriquecer. Pediu que não desistisse ("Desassossego"), “Matar o sonho é mutilar nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso”.
O Presidente, a esse descalabro, responde com uma frase medíocre: “Ou confia em mim ou não confia”. Perdão, Presidente, não dá. A contradição com o discurso anterior, da sua eleição, é cruel. Qual a razão da mudança?, eis a questão. Difícil precisar com certeza. Mas é inevitável considerar que a proteção dos filhotes está no centro dessa decisão lamentável. Pessoa insistiu (poema sem título), ainda, “Por que/ Esperar?/ Tudo é/ Sonhar”. Mas lhe disse que abandonamos, já, todas as ilusões, o último alento, a derradeira esperança. O amigo encerrou a conversa na sua natural ambiguidade. Primeiro, ao dizer ("O Marinheiro") que “Nenhum sonho acaba”. Depois ("Sonho"), resignado, “Se tudo é sonho/ O sonho é nada”. Seja, pois. E este sonho, de um outro Brasil, não existe mais.
Ocorre que nada sobreviveu. O projeto Anti-Crime foi abandonado. Ninguém cuidou dele. Nem mesmo, no Congresso, figuras endeusadas pela Grande Mídia. E o país vive, impotente, a vitória daqueles que se apropriaram do patrimônio público – Partidos, parlamentares, bolsos amigos. O Centrão fez parte disso. E, agora, é quem dá cartas. A pá de cal foi a indicação do novo Ministro do Supremo. Coerente com o desmonte da Lavajato que vem sendo feito, a mando, pelo Procurador Geral da República. Trata-se de alguém que deu sucessivas declarações contra essa operação. E que sequer assume compromissos com a prisão em Segunda Instância. Para piorar, vem apoiado por notórios ministros, no Supremo, que se dizem "garantistas" (só mesmo rindo). Pela OAB de Brasilia (pode?), advogados de réus importantes (e ricos), políticos processados (muitos), por aí. O triunfo da impunidade. Não tem como dar certo.
O Presidente, a esse descalabro, responde com uma frase medíocre: “Ou confia em mim ou não confia”. Perdão, Presidente, não dá. A contradição com o discurso anterior, da sua eleição, é cruel. Qual a razão da mudança?, eis a questão. Difícil precisar com certeza. Mas é inevitável considerar que a proteção dos filhotes está no centro dessa decisão lamentável. Pessoa insistiu (poema sem título), ainda, “Por que/ Esperar?/ Tudo é/ Sonhar”. Mas lhe disse que abandonamos, já, todas as ilusões, o último alento, a derradeira esperança. O amigo encerrou a conversa na sua natural ambiguidade. Primeiro, ao dizer ("O Marinheiro") que “Nenhum sonho acaba”. Depois ("Sonho"), resignado, “Se tudo é sonho/ O sonho é nada”. Seja, pois. E este sonho, de um outro Brasil, não existe mais.
Rio é paraíso no marketing e inferno para ambientalistas
Sobrevoei o Rio de Janeiro de helicóptero com o biólogo Mario Moscatelli. O voo nos levou do Recreio ao Lixão de Gramacho. Moscatelli faz este voo todo mês, para documentar a situação ambiental do Rio de Janeiro. O que ele vê o assusta cada vez mais. : a cidade cresce descontroladamente natureza adentro, a poluição das águas aumenta, e os depósitos de lixo vão se espalhando. "Ser biólogo no Rio é um inferno", diz Moscatelli. "Esta cidade poderia ser um paraíso. Mas ela um paraíso só no marketing. Na realidade, está sendo arrasada."
É brutal ver como as margens da Lagoa da Tijuca vão sendo tomadas por construções, na maioria ilegais, como em Muzema. Os afluentes das lagoas transformaram-se em esgotos pretos e cinzentos, por onde escorrem os excrementos de dezenas de milhares de pessoas. Principalmente a Lagoa de Jacarepaguá e a Lagoa da Tijuca são hoje praticamente latrinas.
Devido ao constante influxo de excrementos, elas perderam de um a dois metros de profundidade e em alguns trechos já se formam ilhas de resíduos. Por todo lado é possível ver lixo plástico boiando na superfície, além de sofás, geladeiras, televisores e pneus de carro na água.
Antes, num passeio de barco com Moscatelli pelas lagoas, eu já tinha visto como, por todos os lugares, bolhas de gás fedorento se elevam dos processos de decomposição do esgoto. Especialmente nas margens, a água tem, além disso, uma intensa cor verde. Ela vem da bactéria tóxica Microcystis aeruginosa, que se reproduz rapidamente no calor e ataca o fígado e o sistema nervoso de animais e humanos. O oxigênio e quase inexistente nas lagoas.
Por indicação de Moscatelli, foram instaladas as chamadas ecobarreiras em alguns locais para evitar que o lixo caia no mar. Numa delas, foram coletadas 120 toneladas de resíduos em 60 dias.
Não surpreende que, das cerca de cem espécies de animais que antes povoavam as lagoas, 80 desapareceram. "Só os animais muito resistentes ainda podem existir aqui. Eles são sobreviventes", diz Moscatelli. Entre eles estão os jacarés, animais extremamente resistentes. A grande sorte deles é que não têm olfato ou paladar, porque literalmente vivem na merda.
"As lagoas poderiam ser paraísos naturais, cheios de peixes e uma grande variedade de espécies de pássaros", diz Moscatelli. "Eles poderiam servir de sustento para os pescadores e atrair dezenas de milhares de turistas todos os anos. Mas não é assim que as elites brasileiras pensam. O que importa é fazer lucro rápido com o crescimento desordenado. Existe uma mentalidade colonial: tire o máximo proveito disso – e não se preocupe com mais nada."
Moscatelli faz questão de enfatizar que os problemas ambientais do Rio não têm nada a ver com falta de dinheiro, mas simplesmente com falta de vontade. Na verdade, só a reforma do Maracanã custou entre 1 bilhão e 2 bilhões de reais. Se só uma parcela desse dinheiro fosse investida na construção de estações de tratamento de esgoto e gestão sensata de resíduos, o valor agregado para o Rio seria imenso. Mas o carioca se acostuma com tudo e fica sentado nos restaurantes na beira das lagoas, enquanto a merda borbulha debaixo dele.
Ao sobrevoar a Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, Moscatelli aponta para os manguezais às margens. Ele mesmo os plantou há alguns anos, quando as margens da lagoa eram sem vida.
O biólogo também iniciou projetos de recuperação de manguezais na Baía de Guanabara e em Angra dos Reis. "Eu faço mais pelo nosso meio ambiente do que qualquer político", diz o homem de 56 anos. Na verdade, os manguezais, cuja proteção agora foi suspensa pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, armazenam enormes quantidades de gases do efeito estufa e fornecem abrigo para muitas espécies animais.
O constante engajamento de Moscatelli já dura mais de 30 anos. Em uma cidade mais moderna e menos corrupta, ele teria um cargo importante no governo. No Rio, porém, ele recebe intimidações sistemáticas por parte dos setores incomodados com a sua atuação. Ele foi até processado por um shopping center na Barra da Tijuca por suas críticas às violações ambientais do centro comercial. Moscatelli já recebeu até mesmo ameaças de morte por chamar a atenção, tendo que se exilar na Alemanha por algum tempo.
No voo ao longo das margens da Baía de Guanabara, vemos como o esgoto escuro sem tratamento flui para a água em vários lugares – e eu me pergunto o que a Cedae faz com as altas taxas de esgoto. Moscatelli diz que todos os rios ao redor da baía estão praticamente mortos. Pode-se observar aqui o colapso total das políticas públicas.
Em seguida, sobrevoamos a Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) de Alegria, no Caju, que foi inaugurada em 2009 após 15 (!) anos de construção. Deveria tratar vários milhares de litros de esgoto por segundo. Mas hoje, apenas 11 anos depois, metade da ETE não funciona, e de cima observamos canalizações enferrujadas e algumas piscinas cheias de plantas. "A verba prevista para financiar essas estações ao redor da baía é extremamente mal gerenciada. Quase sempre os projetos são abandonados, e o entorno da baía virou um cemitério de obras de saneamento inacabadas", diz Moscatelli.
Olhando para baixo, me lembro das grandes promessas que foram feitas antes dos Jogos Olímpicos: que a Baía de Guanabara e as lagoas sestariam limpas no dia da abertura do evento. Na época, eu ainda acreditava nessas promessas. Mas eu ainda era novo no Rio.
Em seguida, sobrevoamos uma pequena colina. É o lixão de Gramacho, que já foi o maior lixão da América do Sul e foi fechado em 2012. Mas bem próximo a ele, um depósito de lixo irregular consome a paisagem como um tumor cancerígeno. Dele sobe uma fumaça que chega a incomodar nossos narizes mesmo do helicóptero. O depósito de lixo é administrado por uma máfia que cobra taxas das empresas que lá despejam seu lixo, muitas vezes tóxico.
Meio ambiente dá o troco
"Todo o mal que fazemos para o meio ambiente, recebemos de volta de uma forma ou de outra", diz Moscatelli. "Na forma de veneno, inundações, secas extremas, incêndios, doenças, fedor e até acidentes."
Lixões ao redor dos aeroportos são estritamente proibidos, porque atraem pássaros grandes como os abutres, que podem provocar quedas de aviões ao se prenderem às turbinas. O Aeroporto do Galeão fica a cerca de cinco quilômetros do depósito ilegal de lixo no Gramacho. Mas no Rio sempre é preciso acontecer alguma coisa ruim para que alguém reaja. Ou pelo menos diga alguma coisa. E depois, por anos nada acontece.
No final, Moscatelli faz questão de destacar algo: "Não sou um São Francisco, mas tenho uma coisa que por aqui anda faltando: vergonha na cara. Como profissional do ambiente não posso ficar assistindo a tudo se degradando sem fazer nada."
Philipp Lichterbeck
É brutal ver como as margens da Lagoa da Tijuca vão sendo tomadas por construções, na maioria ilegais, como em Muzema. Os afluentes das lagoas transformaram-se em esgotos pretos e cinzentos, por onde escorrem os excrementos de dezenas de milhares de pessoas. Principalmente a Lagoa de Jacarepaguá e a Lagoa da Tijuca são hoje praticamente latrinas.
Devido ao constante influxo de excrementos, elas perderam de um a dois metros de profundidade e em alguns trechos já se formam ilhas de resíduos. Por todo lado é possível ver lixo plástico boiando na superfície, além de sofás, geladeiras, televisores e pneus de carro na água.
Antes, num passeio de barco com Moscatelli pelas lagoas, eu já tinha visto como, por todos os lugares, bolhas de gás fedorento se elevam dos processos de decomposição do esgoto. Especialmente nas margens, a água tem, além disso, uma intensa cor verde. Ela vem da bactéria tóxica Microcystis aeruginosa, que se reproduz rapidamente no calor e ataca o fígado e o sistema nervoso de animais e humanos. O oxigênio e quase inexistente nas lagoas.
Por indicação de Moscatelli, foram instaladas as chamadas ecobarreiras em alguns locais para evitar que o lixo caia no mar. Numa delas, foram coletadas 120 toneladas de resíduos em 60 dias.
Não surpreende que, das cerca de cem espécies de animais que antes povoavam as lagoas, 80 desapareceram. "Só os animais muito resistentes ainda podem existir aqui. Eles são sobreviventes", diz Moscatelli. Entre eles estão os jacarés, animais extremamente resistentes. A grande sorte deles é que não têm olfato ou paladar, porque literalmente vivem na merda.
"As lagoas poderiam ser paraísos naturais, cheios de peixes e uma grande variedade de espécies de pássaros", diz Moscatelli. "Eles poderiam servir de sustento para os pescadores e atrair dezenas de milhares de turistas todos os anos. Mas não é assim que as elites brasileiras pensam. O que importa é fazer lucro rápido com o crescimento desordenado. Existe uma mentalidade colonial: tire o máximo proveito disso – e não se preocupe com mais nada."
Moscatelli faz questão de enfatizar que os problemas ambientais do Rio não têm nada a ver com falta de dinheiro, mas simplesmente com falta de vontade. Na verdade, só a reforma do Maracanã custou entre 1 bilhão e 2 bilhões de reais. Se só uma parcela desse dinheiro fosse investida na construção de estações de tratamento de esgoto e gestão sensata de resíduos, o valor agregado para o Rio seria imenso. Mas o carioca se acostuma com tudo e fica sentado nos restaurantes na beira das lagoas, enquanto a merda borbulha debaixo dele.
Ao sobrevoar a Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, Moscatelli aponta para os manguezais às margens. Ele mesmo os plantou há alguns anos, quando as margens da lagoa eram sem vida.
O biólogo também iniciou projetos de recuperação de manguezais na Baía de Guanabara e em Angra dos Reis. "Eu faço mais pelo nosso meio ambiente do que qualquer político", diz o homem de 56 anos. Na verdade, os manguezais, cuja proteção agora foi suspensa pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, armazenam enormes quantidades de gases do efeito estufa e fornecem abrigo para muitas espécies animais.
O constante engajamento de Moscatelli já dura mais de 30 anos. Em uma cidade mais moderna e menos corrupta, ele teria um cargo importante no governo. No Rio, porém, ele recebe intimidações sistemáticas por parte dos setores incomodados com a sua atuação. Ele foi até processado por um shopping center na Barra da Tijuca por suas críticas às violações ambientais do centro comercial. Moscatelli já recebeu até mesmo ameaças de morte por chamar a atenção, tendo que se exilar na Alemanha por algum tempo.
No voo ao longo das margens da Baía de Guanabara, vemos como o esgoto escuro sem tratamento flui para a água em vários lugares – e eu me pergunto o que a Cedae faz com as altas taxas de esgoto. Moscatelli diz que todos os rios ao redor da baía estão praticamente mortos. Pode-se observar aqui o colapso total das políticas públicas.
Em seguida, sobrevoamos a Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) de Alegria, no Caju, que foi inaugurada em 2009 após 15 (!) anos de construção. Deveria tratar vários milhares de litros de esgoto por segundo. Mas hoje, apenas 11 anos depois, metade da ETE não funciona, e de cima observamos canalizações enferrujadas e algumas piscinas cheias de plantas. "A verba prevista para financiar essas estações ao redor da baía é extremamente mal gerenciada. Quase sempre os projetos são abandonados, e o entorno da baía virou um cemitério de obras de saneamento inacabadas", diz Moscatelli.
Olhando para baixo, me lembro das grandes promessas que foram feitas antes dos Jogos Olímpicos: que a Baía de Guanabara e as lagoas sestariam limpas no dia da abertura do evento. Na época, eu ainda acreditava nessas promessas. Mas eu ainda era novo no Rio.
Em seguida, sobrevoamos uma pequena colina. É o lixão de Gramacho, que já foi o maior lixão da América do Sul e foi fechado em 2012. Mas bem próximo a ele, um depósito de lixo irregular consome a paisagem como um tumor cancerígeno. Dele sobe uma fumaça que chega a incomodar nossos narizes mesmo do helicóptero. O depósito de lixo é administrado por uma máfia que cobra taxas das empresas que lá despejam seu lixo, muitas vezes tóxico.
Meio ambiente dá o troco
"Todo o mal que fazemos para o meio ambiente, recebemos de volta de uma forma ou de outra", diz Moscatelli. "Na forma de veneno, inundações, secas extremas, incêndios, doenças, fedor e até acidentes."
Lixões ao redor dos aeroportos são estritamente proibidos, porque atraem pássaros grandes como os abutres, que podem provocar quedas de aviões ao se prenderem às turbinas. O Aeroporto do Galeão fica a cerca de cinco quilômetros do depósito ilegal de lixo no Gramacho. Mas no Rio sempre é preciso acontecer alguma coisa ruim para que alguém reaja. Ou pelo menos diga alguma coisa. E depois, por anos nada acontece.
No final, Moscatelli faz questão de destacar algo: "Não sou um São Francisco, mas tenho uma coisa que por aqui anda faltando: vergonha na cara. Como profissional do ambiente não posso ficar assistindo a tudo se degradando sem fazer nada."
Philipp Lichterbeck
Todas as florestas
Faz 20 anos, O GLOBO publicou o artigo “Um mundo para todos”. Nele, transcrevi a resposta à pergunta de um estudante durante palestra na cidade de Nova York, em setembro de 2000. O jovem perguntou: “O que pensa de internacionalizar a Amazônia?”. Antes que eu começasse a dizer “sou contra”, ele completou: “Quero opinião de humanista, não de brasileiro”.
Respondi que defenderia a internacionalização da Amazônia se antes fossem internacionalizados os museus, as armas, o petróleo, os patrimônios históricos, rios e florestas do mundo inteiro. Depois de uma longa lista do que julgava que deveria ser internacionalizado, concluí: “Quando a humanidade internacionalizar tudo isso, aceito debater a ideia de internacionalizar a Amazônia. Até lá, a Amazônia é nossa. Só nossa!”.
Graças ao artigo, a resposta foi traduzida em diversos idiomas e entrou na coletânea de “Cem discursos históricos brasileiros”, elaborada por Carlos Figueiredo. Anos depois, o fotógrafo Sebastião Salgado me disse que não gostava da última frase.
Ele estava certo. O discurso deveria concluir com uma frase adicional: “Mas, se não soubermos proteger a Amazônia, não merecemos, nem conseguiremos tê-la para sempre”.
A resposta ainda não tinha dimensão humanista, porque tratava a Amazônia como propriedade brasileira, sem perceber que ela é também patrimônio da humanidade, parte do Condomínio Terra. Tal qual os móveis de um apartamento, cujo dono não tem o direito de incendiá-los dentro de casa. O que está acontecendo com nossas florestas é a demonstração de insensatez nacional e irresponsabilidade com a Humanidade. Um patriotismo anti-humanista e suicida.
Ao negar a realidade visível da destruição de nossas florestas, o governo federal comete uma loucura irresponsável com o país e insensível com a Humanidade, levando a população mundial a tratar o Brasil como país perigoso para o futuro da vida no planeta, um país que pratica ecoterrorismo.
No lugar da mentirosa defensiva do presidente e de seu ministro do Meio Ambiente, deveríamos reconhecer nossos descuidos históricos, apresentar correções no cuidado de nossa biodiversidade e assumir posição ativa, propondo uma Conferência Internacional pela Preservação e Recuperação de Todas as Florestas do Mundo — nossas, africanas, europeias, russas, asiáticas e norte-americanas, cuidadas como propriedade do país e patrimônio da Humanidade.
Em vez de incendiários, poderíamos ser os promotores do respeito às florestas da Terra. É isso o que faríamos se ainda tivéssemos no comando do Itamaraty diplomatas do porte daqueles que articularam a Rio-92 e a Rio+20. No Ministério do Meio Ambiente, pessoas com a competência e o prestígio de José Goldemberg, Marina Silva, Carlos Minc e Izabella Teixeira.
Tudo indica que, em vez de tentar salvar o mundo, vamos continuar perdidos na incompetência e na insensibilidade, e o mundo perdendo a chance de sermos atores decisivos na proteção de todas as florestas do mundo.
Respondi que defenderia a internacionalização da Amazônia se antes fossem internacionalizados os museus, as armas, o petróleo, os patrimônios históricos, rios e florestas do mundo inteiro. Depois de uma longa lista do que julgava que deveria ser internacionalizado, concluí: “Quando a humanidade internacionalizar tudo isso, aceito debater a ideia de internacionalizar a Amazônia. Até lá, a Amazônia é nossa. Só nossa!”.
Graças ao artigo, a resposta foi traduzida em diversos idiomas e entrou na coletânea de “Cem discursos históricos brasileiros”, elaborada por Carlos Figueiredo. Anos depois, o fotógrafo Sebastião Salgado me disse que não gostava da última frase.
Ele estava certo. O discurso deveria concluir com uma frase adicional: “Mas, se não soubermos proteger a Amazônia, não merecemos, nem conseguiremos tê-la para sempre”.
A resposta ainda não tinha dimensão humanista, porque tratava a Amazônia como propriedade brasileira, sem perceber que ela é também patrimônio da humanidade, parte do Condomínio Terra. Tal qual os móveis de um apartamento, cujo dono não tem o direito de incendiá-los dentro de casa. O que está acontecendo com nossas florestas é a demonstração de insensatez nacional e irresponsabilidade com a Humanidade. Um patriotismo anti-humanista e suicida.
Ao negar a realidade visível da destruição de nossas florestas, o governo federal comete uma loucura irresponsável com o país e insensível com a Humanidade, levando a população mundial a tratar o Brasil como país perigoso para o futuro da vida no planeta, um país que pratica ecoterrorismo.
No lugar da mentirosa defensiva do presidente e de seu ministro do Meio Ambiente, deveríamos reconhecer nossos descuidos históricos, apresentar correções no cuidado de nossa biodiversidade e assumir posição ativa, propondo uma Conferência Internacional pela Preservação e Recuperação de Todas as Florestas do Mundo — nossas, africanas, europeias, russas, asiáticas e norte-americanas, cuidadas como propriedade do país e patrimônio da Humanidade.
Em vez de incendiários, poderíamos ser os promotores do respeito às florestas da Terra. É isso o que faríamos se ainda tivéssemos no comando do Itamaraty diplomatas do porte daqueles que articularam a Rio-92 e a Rio+20. No Ministério do Meio Ambiente, pessoas com a competência e o prestígio de José Goldemberg, Marina Silva, Carlos Minc e Izabella Teixeira.
Tudo indica que, em vez de tentar salvar o mundo, vamos continuar perdidos na incompetência e na insensibilidade, e o mundo perdendo a chance de sermos atores decisivos na proteção de todas as florestas do mundo.
O dilema das redes e o futuro de todos nós
Ninguém ousa negar a centralidade das plataformas digitais e das redes sociais na vida contemporânea. Mas, cada vez mais se ascende a polêmica sobre a crescente capacidade de manipulação das gigantes da comunicação digital. Os efeitos positivos das redes sociais são inegáveis. Mas a polêmica que ganha corpo é: a que custo? Quais são os efeitos colaterais? As disfunções estariam superando os benefícios?
Já recomendei aqui dois filmes da NETFLIX, o documentário “Privacidade hackeada” sobre a manipulação de dados do Facebook na eleição de Trump em 2016, e o drama polonês “Rede do Ódio”, sobre consequências dramáticas da manipulação política das plataformas. Agora em setembro foi lançado o documentário de Jeff Orlowsky, “O dilema das redes”, que vem despertando enorme polêmica. Para alguns, exagerado e sensacionalista. Para outros, um grave alerta sobre o futuro que estamos construindo.
O “Dilema das redes” não se atém à perspectiva política. Vai além, denuncia dos aspectos psicossociais da influência nas mudanças dos padrões de comportamento, principalmente nas novas gerações. A partir de depoimentos de ex-executivos do Facebook, Google, Twitter e da teatralização de uma família impactada pela exacerbação do uso da internet, há uma exposição nua e crua das vísceras das redes sociais. Fora os exageros, é assustador. Todos os pais deveriam assistir para interagir melhor com seus filhos sobre o tema.
O documentário revela como a lógica das redes é nos capturar, nos tornar compulsivamente dependentes, viciados mesmo, a partir de uma associação entre psicologia humana e tecnologia da informação. Rolagem automática e sem fim, notificações, curtidas, falsas recompensas, likes, são mecanismos desenvolvidos para nos tornar “prisioneiros das redes”, com graves repercussões na saúde mental e no bem estar de todos nós. “Apenas dois tipos de indústria chamam clientes de usuários: a de drogas ilegais e a de tecnologia da informação” é uma frase forte do filme. Penso nas mesas de bares e restaurantes com todos ligados em seus smartphones e ninguém conversando.
Outra afirmação contundente é: “Se você não paga por algo, saiba que você é o produto”. As grandes redes faturam bilhões de dólares em publicidade e fazem isso pelos dados que têm. O produto certo para a pessoa certa. Senti isso pessoalmente. Foi só fazer três compras por e-comerce numa mesma importadora de vinhos, para meu timeline do Facebook ficar coalhado de ofertas de outras importadoras. Tudo indica que “fui vendido”. Isto aconteceu com produtos relacionados ao Flamengo, a imóveis e até artistas.
Mas há consequências mais graves: o aumento da depressão e dos suicídios infantis e juvenis, a explosão de fakenews que se propagam seis vezes mais que a verdade “que é chata”, o tempo gasto que impede a relação humana direta com a família e amigos ou o deleite com a boa arte, o bullyng virtual opressivo, a alimentação do discurso do ódio e de teorias da conspiração, o estímulo à radicalização da polarização política, a deformação do processo de formação da autoestima e o nascimento de uma cultura rasa, superficial e agressiva.
Precisamos urgentemente conversar sobre isso. Ou teremos um mundo cada vez mais perigoso e desinteressante.
Já recomendei aqui dois filmes da NETFLIX, o documentário “Privacidade hackeada” sobre a manipulação de dados do Facebook na eleição de Trump em 2016, e o drama polonês “Rede do Ódio”, sobre consequências dramáticas da manipulação política das plataformas. Agora em setembro foi lançado o documentário de Jeff Orlowsky, “O dilema das redes”, que vem despertando enorme polêmica. Para alguns, exagerado e sensacionalista. Para outros, um grave alerta sobre o futuro que estamos construindo.
O “Dilema das redes” não se atém à perspectiva política. Vai além, denuncia dos aspectos psicossociais da influência nas mudanças dos padrões de comportamento, principalmente nas novas gerações. A partir de depoimentos de ex-executivos do Facebook, Google, Twitter e da teatralização de uma família impactada pela exacerbação do uso da internet, há uma exposição nua e crua das vísceras das redes sociais. Fora os exageros, é assustador. Todos os pais deveriam assistir para interagir melhor com seus filhos sobre o tema.
O documentário revela como a lógica das redes é nos capturar, nos tornar compulsivamente dependentes, viciados mesmo, a partir de uma associação entre psicologia humana e tecnologia da informação. Rolagem automática e sem fim, notificações, curtidas, falsas recompensas, likes, são mecanismos desenvolvidos para nos tornar “prisioneiros das redes”, com graves repercussões na saúde mental e no bem estar de todos nós. “Apenas dois tipos de indústria chamam clientes de usuários: a de drogas ilegais e a de tecnologia da informação” é uma frase forte do filme. Penso nas mesas de bares e restaurantes com todos ligados em seus smartphones e ninguém conversando.
Outra afirmação contundente é: “Se você não paga por algo, saiba que você é o produto”. As grandes redes faturam bilhões de dólares em publicidade e fazem isso pelos dados que têm. O produto certo para a pessoa certa. Senti isso pessoalmente. Foi só fazer três compras por e-comerce numa mesma importadora de vinhos, para meu timeline do Facebook ficar coalhado de ofertas de outras importadoras. Tudo indica que “fui vendido”. Isto aconteceu com produtos relacionados ao Flamengo, a imóveis e até artistas.
Mas há consequências mais graves: o aumento da depressão e dos suicídios infantis e juvenis, a explosão de fakenews que se propagam seis vezes mais que a verdade “que é chata”, o tempo gasto que impede a relação humana direta com a família e amigos ou o deleite com a boa arte, o bullyng virtual opressivo, a alimentação do discurso do ódio e de teorias da conspiração, o estímulo à radicalização da polarização política, a deformação do processo de formação da autoestima e o nascimento de uma cultura rasa, superficial e agressiva.
Precisamos urgentemente conversar sobre isso. Ou teremos um mundo cada vez mais perigoso e desinteressante.
País precisa dizer o que quer ser no século XXI
Mal começaram as campanhas municipais de 2020 e os atores políticos já falam em 2022. Especialmente o bolsonarismo e seus aliados estão concentrados na aprovação de seu elixir político, que no momento tem o nome de Renda Cidadã, continuação do auxílio emergencial que catapultou a popularidade presidencial. Obviamente que há outros projetos no Congresso, mas seu sentido mais amplo está deslocado da estratégia política de curto prazo, que é reeleger Bolsonaro e salvar sua família das querelas judiciais. E qual é o projeto dos opositores do presidente? Novamente, há uma miríade de temas, muitos louváveis, mas não uma visão clara e articulada de como o Brasil deve lidar com os desafios do século XXI.
A ideia de projeto para o país, com metas claras, meios definidos e articulando as questões numa visão ampla, está em falta no momento. Geralmente, o comandante do Executivo federal tem a primazia na definição dos rumos nacionais, pois foi votado pela maioria dos brasileiros, além de ter um enorme poder político e administrativo. Mas o governo atual padece de cinco problemas que dificultam liderar um processo mais amplo de mudanças.
O primeiro é a falta de um diagnóstico para as grandes questões do século XXI. Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”, mas para trás, voltando ao mundo do final do regime militar e da Guerra Fria. O passadismo domina o presidente, que se concentra em temas morais que lutam contra mudanças contemporâneas de valores e é saudosista da época da ditadura. É verdade que ele enviou várias propostas administrativas e econômicas ao Congresso Nacional, que poderiam ser colocadas dentro de um “pacote modernizador”. Porém, a soma dessas medidas geraria qual tipo de Estado? Quais devem ser as principais funções governamentais dentro da ótica bolsonarista? Como deveria ser a articulação do setor público com a sociedade? Qual é o modelo de gestão pública do bolsonarismo?
Em outras palavras, o governo Bolsonaro não apresentou até agora, com clareza, um diagnóstico de quais são os principais obstáculos para o desenvolvimento brasileiro do século XXI. Na verdade, o bolsonarismo é muito frágil no diagnóstico e no prognóstico na grande maioria das políticas públicas. Está aqui o segundo obstáculo para se construir um projeto mais amplo para o Brasil. Quem são os principais formuladores do governo? Quais países inspiram as políticas públicas ou, então, quais são as evidências que alimentam as decisões do primeiro escalão da área social?
Haveria vários exemplos dessa falta de perspectiva das políticas públicas. Para citar um deles: todos os economistas apontam o grande problema da produtividade da economia brasileira e como a questão educacional tem um peso decisivo neste tema. Pois bem, o que o MEC está fazendo ou pretende para melhorar efetivamente a Educação do país? Ninguém sabe. Falar contra Paulo Freire é lutar contra o passado – e uma luta equivocada – e não aponta um rumo para o futuro. Quais são as medidas inovadoras que estão pensadas para que o país melhore sua posição no PISA nos próximos dez anos? O que está sendo pensado para reduzir as desigualdades educacionais do país? As perguntas são muitas, e o silêncio das respostas é ensurdecedor.
Outro exemplo: é impossível imaginar o futuro do Brasil sem propor políticas consistentes sobre a questão ambiental. Aparentemente, o que governo tem conseguido é apenas piorar neste setor, com o esvaziamento dos órgãos públicos, a desregulação selvagem da legislação e, para coroar o retrocesso, os resultados têm sido apenas mais desmatamento, queimadas e desprestigio internacional. Aquilo que deveria ser um ativo para o desenvolvimento do país tornou-se um empecilho. O problema é que, em vez de apontar mudanças na postura atual, adota-se um comportamento meramente defensivo ou então se aposta na radicalização da destruição de tudo que foi feito ao longo da redemocratização. Alguém imagina que o Brasil melhorará no século XXI com o modelo bolsonarista de política ambiental?
Claro que podem ser citadas, aqui e acolá, medidas modernizadoras vindas do Executivo federal, como as ações do Banco Central para modernização do sistema de pagamentos do país. E aqui entra o terceiro obstáculo presente no governo Bolsonaro: há muitas forças políticas, muitos desiguais entre si e descoordenadas, convivendo no mesmo espaço, sem que uma liderança clara dê um sentido sistêmico às propostas.
O maior exemplo disso é a inflação de propostas que o Executivo federal mandou ao Congresso Nacional sem que haja prioridades entre elas. Cada mês uma delas é alçada ao topo das preocupações. O pior de tudo é que não há comprometimento presidencial nem com todos os pontos presentes nestes projetos. É muito estranho um presidente que manda algumas propostas de emenda constitucional bastante complexas, que mudam aspectos profundos do Estado, ter como principal preocupação a aprovação do novo Código de Trânsito Brasileiro! Que pontos estratégicos dessa legislação vão melhorar o futuro dos nossos filhos e netos?
No fundo, Bolsonaro se importa mais com aquilo que não tem evidências sobre seu impacto positivo de longo prazo, como a legislação das armas, do que com as grandes questões estruturais brasileiras, num caminho inverso aos dos países que estão efetivamente se preparando para o século XXI. Se voltarmos ao seu programa de governo apresentado na eleição, na maioria das vezes eram temas menos relevantes que ganharam destaque – e nos pontos efetivamente importantes, geralmente Bolsonaro apresentou propostas populistas ou que ele abandonou no meio do caminho, como o seu lavajatismo.
A falta de uma coalizão bem organizada no Legislativo, em termos de apoio e ideias, tem sido um quarto empecilho para a construção de uma visão clara de futuro. Isso gerou uma postura de desresponsabilização do Executivo, que muitas vezes torce para que os parlamentares resolvam sozinhos os problemas da agenda pública do país. Assim foi na reforma da Previdência, e alguns apostam que esse processo poderá ser repetido nas reformas administrativa e tributária. O problema é que quando o Executivo se ausenta, também podem ser aprovadas coisas que atrapalham o funcionamento governamental, seja em termos fiscais, seja na capacidade de execução.
Desde a prisão de Queiroz, no dia 18 de junho, Bolsonaro mudou de posição e começou a construir uma base parlamentar. Essa decisão, em boa medida, serve a ambos os lados como um mecanismo de autoproteção e sobrevivência de deputados e do próprio presidente. No entanto, vislumbra-se agora que se pode e se deve buscar algo mais dessa aliança, como revela a discussão sobre o Renda Cidadã. Só que exatamente quando essa parceria aponta para uma mudança legislativa importante, descobre-se o quinto e último aspecto que limita o reformismo bolsonarista: a dificuldade de pensar além das eleições de 2022.
É inegável que programas de transferência de renda constituem uma condição necessária para se combater a desigualdade brasileira. Mas é preciso juntá-las como outras políticas sociais. A desigualdade é múltipla e exige remédios vindos de vários setores. Qual é a política bolsonarista, por exemplo, para se reduzir a desigualdade racial? Afinal, são os negros que mais morrem com a violência na periferia, inclusive da vinda da polícia, bem como há um grande abismo educacional entre as crianças brancas e as negras. Obviamente que a renda é um ponto de partida desse processo, mas sozinha não muda este triste quadro, que já nem deveria existir em pleno século XXI.
Até agora os governistas só pensam em distribuir dinheiro para receber fidelidade na hora do voto. É esse mesmo sentido pragmático que move hoje o presidente, que no passado fora contra o Bolsa Família e todas as ações de redistribuição mais direta de renda aos pobres brasileiros. Todos podem mudar e fazer autocrítica, mas o que deve ser exigido de Bolsonaro envolve uma pergunta maior: qual será o desenho dessa política de transferência de renda para os próximos dez anos?
Do lado da oposição ao governo Bolsonaro, no seu sentido mais amplo, muitas propostas e temáticas relevantes têm sido levantadas nos últimos meses. Elas vêm de partidos ou de grupos da sociedade civil que têm apresentado bons debates e ideias sobre meio ambiente, educação, questão racial, saúde e outras questões verdadeiramente estruturais para o país. Não obstante, a fragmentação dessas visões de mundo e a falta de um modelo mais sistêmico que aponte soluções para frente, em vez de se concentrar nos sucessos e erros do passado, constituem uma fragilidade daqueles que querem se opor ao atual governo.
Muito se fala da necessidade de construir uma frente ampla, da centro-direita à esquerda, contra o bolsonarismo. Pode ser que isso seja necessário para a eleição de 2022 – e esse é um tema para um outro artigo -, mas é preciso dizer qual será o projeto mais amplo que vai orientar essa aliança, de modo que ela não seja apenas defensiva.
O país está num momento de ausência de uma proposta consistente de futuro. Para superar essa fase, além dos votos, será necessário propor ideias e soluções que vislumbrem algo além do curto prazo e do personalismo presidencial.
Fernando Abrucio
A ideia de projeto para o país, com metas claras, meios definidos e articulando as questões numa visão ampla, está em falta no momento. Geralmente, o comandante do Executivo federal tem a primazia na definição dos rumos nacionais, pois foi votado pela maioria dos brasileiros, além de ter um enorme poder político e administrativo. Mas o governo atual padece de cinco problemas que dificultam liderar um processo mais amplo de mudanças.
O primeiro é a falta de um diagnóstico para as grandes questões do século XXI. Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”, mas para trás, voltando ao mundo do final do regime militar e da Guerra Fria. O passadismo domina o presidente, que se concentra em temas morais que lutam contra mudanças contemporâneas de valores e é saudosista da época da ditadura. É verdade que ele enviou várias propostas administrativas e econômicas ao Congresso Nacional, que poderiam ser colocadas dentro de um “pacote modernizador”. Porém, a soma dessas medidas geraria qual tipo de Estado? Quais devem ser as principais funções governamentais dentro da ótica bolsonarista? Como deveria ser a articulação do setor público com a sociedade? Qual é o modelo de gestão pública do bolsonarismo?
Em outras palavras, o governo Bolsonaro não apresentou até agora, com clareza, um diagnóstico de quais são os principais obstáculos para o desenvolvimento brasileiro do século XXI. Na verdade, o bolsonarismo é muito frágil no diagnóstico e no prognóstico na grande maioria das políticas públicas. Está aqui o segundo obstáculo para se construir um projeto mais amplo para o Brasil. Quem são os principais formuladores do governo? Quais países inspiram as políticas públicas ou, então, quais são as evidências que alimentam as decisões do primeiro escalão da área social?
Haveria vários exemplos dessa falta de perspectiva das políticas públicas. Para citar um deles: todos os economistas apontam o grande problema da produtividade da economia brasileira e como a questão educacional tem um peso decisivo neste tema. Pois bem, o que o MEC está fazendo ou pretende para melhorar efetivamente a Educação do país? Ninguém sabe. Falar contra Paulo Freire é lutar contra o passado – e uma luta equivocada – e não aponta um rumo para o futuro. Quais são as medidas inovadoras que estão pensadas para que o país melhore sua posição no PISA nos próximos dez anos? O que está sendo pensado para reduzir as desigualdades educacionais do país? As perguntas são muitas, e o silêncio das respostas é ensurdecedor.
Outro exemplo: é impossível imaginar o futuro do Brasil sem propor políticas consistentes sobre a questão ambiental. Aparentemente, o que governo tem conseguido é apenas piorar neste setor, com o esvaziamento dos órgãos públicos, a desregulação selvagem da legislação e, para coroar o retrocesso, os resultados têm sido apenas mais desmatamento, queimadas e desprestigio internacional. Aquilo que deveria ser um ativo para o desenvolvimento do país tornou-se um empecilho. O problema é que, em vez de apontar mudanças na postura atual, adota-se um comportamento meramente defensivo ou então se aposta na radicalização da destruição de tudo que foi feito ao longo da redemocratização. Alguém imagina que o Brasil melhorará no século XXI com o modelo bolsonarista de política ambiental?
Claro que podem ser citadas, aqui e acolá, medidas modernizadoras vindas do Executivo federal, como as ações do Banco Central para modernização do sistema de pagamentos do país. E aqui entra o terceiro obstáculo presente no governo Bolsonaro: há muitas forças políticas, muitos desiguais entre si e descoordenadas, convivendo no mesmo espaço, sem que uma liderança clara dê um sentido sistêmico às propostas.
O maior exemplo disso é a inflação de propostas que o Executivo federal mandou ao Congresso Nacional sem que haja prioridades entre elas. Cada mês uma delas é alçada ao topo das preocupações. O pior de tudo é que não há comprometimento presidencial nem com todos os pontos presentes nestes projetos. É muito estranho um presidente que manda algumas propostas de emenda constitucional bastante complexas, que mudam aspectos profundos do Estado, ter como principal preocupação a aprovação do novo Código de Trânsito Brasileiro! Que pontos estratégicos dessa legislação vão melhorar o futuro dos nossos filhos e netos?
No fundo, Bolsonaro se importa mais com aquilo que não tem evidências sobre seu impacto positivo de longo prazo, como a legislação das armas, do que com as grandes questões estruturais brasileiras, num caminho inverso aos dos países que estão efetivamente se preparando para o século XXI. Se voltarmos ao seu programa de governo apresentado na eleição, na maioria das vezes eram temas menos relevantes que ganharam destaque – e nos pontos efetivamente importantes, geralmente Bolsonaro apresentou propostas populistas ou que ele abandonou no meio do caminho, como o seu lavajatismo.
A falta de uma coalizão bem organizada no Legislativo, em termos de apoio e ideias, tem sido um quarto empecilho para a construção de uma visão clara de futuro. Isso gerou uma postura de desresponsabilização do Executivo, que muitas vezes torce para que os parlamentares resolvam sozinhos os problemas da agenda pública do país. Assim foi na reforma da Previdência, e alguns apostam que esse processo poderá ser repetido nas reformas administrativa e tributária. O problema é que quando o Executivo se ausenta, também podem ser aprovadas coisas que atrapalham o funcionamento governamental, seja em termos fiscais, seja na capacidade de execução.
Desde a prisão de Queiroz, no dia 18 de junho, Bolsonaro mudou de posição e começou a construir uma base parlamentar. Essa decisão, em boa medida, serve a ambos os lados como um mecanismo de autoproteção e sobrevivência de deputados e do próprio presidente. No entanto, vislumbra-se agora que se pode e se deve buscar algo mais dessa aliança, como revela a discussão sobre o Renda Cidadã. Só que exatamente quando essa parceria aponta para uma mudança legislativa importante, descobre-se o quinto e último aspecto que limita o reformismo bolsonarista: a dificuldade de pensar além das eleições de 2022.
É inegável que programas de transferência de renda constituem uma condição necessária para se combater a desigualdade brasileira. Mas é preciso juntá-las como outras políticas sociais. A desigualdade é múltipla e exige remédios vindos de vários setores. Qual é a política bolsonarista, por exemplo, para se reduzir a desigualdade racial? Afinal, são os negros que mais morrem com a violência na periferia, inclusive da vinda da polícia, bem como há um grande abismo educacional entre as crianças brancas e as negras. Obviamente que a renda é um ponto de partida desse processo, mas sozinha não muda este triste quadro, que já nem deveria existir em pleno século XXI.
Até agora os governistas só pensam em distribuir dinheiro para receber fidelidade na hora do voto. É esse mesmo sentido pragmático que move hoje o presidente, que no passado fora contra o Bolsa Família e todas as ações de redistribuição mais direta de renda aos pobres brasileiros. Todos podem mudar e fazer autocrítica, mas o que deve ser exigido de Bolsonaro envolve uma pergunta maior: qual será o desenho dessa política de transferência de renda para os próximos dez anos?
Do lado da oposição ao governo Bolsonaro, no seu sentido mais amplo, muitas propostas e temáticas relevantes têm sido levantadas nos últimos meses. Elas vêm de partidos ou de grupos da sociedade civil que têm apresentado bons debates e ideias sobre meio ambiente, educação, questão racial, saúde e outras questões verdadeiramente estruturais para o país. Não obstante, a fragmentação dessas visões de mundo e a falta de um modelo mais sistêmico que aponte soluções para frente, em vez de se concentrar nos sucessos e erros do passado, constituem uma fragilidade daqueles que querem se opor ao atual governo.
Muito se fala da necessidade de construir uma frente ampla, da centro-direita à esquerda, contra o bolsonarismo. Pode ser que isso seja necessário para a eleição de 2022 – e esse é um tema para um outro artigo -, mas é preciso dizer qual será o projeto mais amplo que vai orientar essa aliança, de modo que ela não seja apenas defensiva.
O país está num momento de ausência de uma proposta consistente de futuro. Para superar essa fase, além dos votos, será necessário propor ideias e soluções que vislumbrem algo além do curto prazo e do personalismo presidencial.
Fernando Abrucio
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