sábado, 10 de outubro de 2020

País precisa dizer o que quer ser no século XXI

Mal começaram as campanhas municipais de 2020 e os atores políticos já falam em 2022. Especialmente o bolsonarismo e seus aliados estão concentrados na aprovação de seu elixir político, que no momento tem o nome de Renda Cidadã, continuação do auxílio emergencial que catapultou a popularidade presidencial. Obviamente que há outros projetos no Congresso, mas seu sentido mais amplo está deslocado da estratégia política de curto prazo, que é reeleger Bolsonaro e salvar sua família das querelas judiciais. E qual é o projeto dos opositores do presidente? Novamente, há uma miríade de temas, muitos louváveis, mas não uma visão clara e articulada de como o Brasil deve lidar com os desafios do século XXI.

A ideia de projeto para o país, com metas claras, meios definidos e articulando as questões numa visão ampla, está em falta no momento. Geralmente, o comandante do Executivo federal tem a primazia na definição dos rumos nacionais, pois foi votado pela maioria dos brasileiros, além de ter um enorme poder político e administrativo. Mas o governo atual padece de cinco problemas que dificultam liderar um processo mais amplo de mudanças.

O primeiro é a falta de um diagnóstico para as grandes questões do século XXI. Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”, mas para trás, voltando ao mundo do final do regime militar e da Guerra Fria. O passadismo domina o presidente, que se concentra em temas morais que lutam contra mudanças contemporâneas de valores e é saudosista da época da ditadura. É verdade que ele enviou várias propostas administrativas e econômicas ao Congresso Nacional, que poderiam ser colocadas dentro de um “pacote modernizador”. Porém, a soma dessas medidas geraria qual tipo de Estado? Quais devem ser as principais funções governamentais dentro da ótica bolsonarista? Como deveria ser a articulação do setor público com a sociedade? Qual é o modelo de gestão pública do bolsonarismo?

Em outras palavras, o governo Bolsonaro não apresentou até agora, com clareza, um diagnóstico de quais são os principais obstáculos para o desenvolvimento brasileiro do século XXI. Na verdade, o bolsonarismo é muito frágil no diagnóstico e no prognóstico na grande maioria das políticas públicas. Está aqui o segundo obstáculo para se construir um projeto mais amplo para o Brasil. Quem são os principais formuladores do governo? Quais países inspiram as políticas públicas ou, então, quais são as evidências que alimentam as decisões do primeiro escalão da área social?


Haveria vários exemplos dessa falta de perspectiva das políticas públicas. Para citar um deles: todos os economistas apontam o grande problema da produtividade da economia brasileira e como a questão educacional tem um peso decisivo neste tema. Pois bem, o que o MEC está fazendo ou pretende para melhorar efetivamente a Educação do país? Ninguém sabe. Falar contra Paulo Freire é lutar contra o passado – e uma luta equivocada – e não aponta um rumo para o futuro. Quais são as medidas inovadoras que estão pensadas para que o país melhore sua posição no PISA nos próximos dez anos? O que está sendo pensado para reduzir as desigualdades educacionais do país? As perguntas são muitas, e o silêncio das respostas é ensurdecedor.

Outro exemplo: é impossível imaginar o futuro do Brasil sem propor políticas consistentes sobre a questão ambiental. Aparentemente, o que governo tem conseguido é apenas piorar neste setor, com o esvaziamento dos órgãos públicos, a desregulação selvagem da legislação e, para coroar o retrocesso, os resultados têm sido apenas mais desmatamento, queimadas e desprestigio internacional. Aquilo que deveria ser um ativo para o desenvolvimento do país tornou-se um empecilho. O problema é que, em vez de apontar mudanças na postura atual, adota-se um comportamento meramente defensivo ou então se aposta na radicalização da destruição de tudo que foi feito ao longo da redemocratização. Alguém imagina que o Brasil melhorará no século XXI com o modelo bolsonarista de política ambiental?

Claro que podem ser citadas, aqui e acolá, medidas modernizadoras vindas do Executivo federal, como as ações do Banco Central para modernização do sistema de pagamentos do país. E aqui entra o terceiro obstáculo presente no governo Bolsonaro: há muitas forças políticas, muitos desiguais entre si e descoordenadas, convivendo no mesmo espaço, sem que uma liderança clara dê um sentido sistêmico às propostas.

O maior exemplo disso é a inflação de propostas que o Executivo federal mandou ao Congresso Nacional sem que haja prioridades entre elas. Cada mês uma delas é alçada ao topo das preocupações. O pior de tudo é que não há comprometimento presidencial nem com todos os pontos presentes nestes projetos. É muito estranho um presidente que manda algumas propostas de emenda constitucional bastante complexas, que mudam aspectos profundos do Estado, ter como principal preocupação a aprovação do novo Código de Trânsito Brasileiro! Que pontos estratégicos dessa legislação vão melhorar o futuro dos nossos filhos e netos?

No fundo, Bolsonaro se importa mais com aquilo que não tem evidências sobre seu impacto positivo de longo prazo, como a legislação das armas, do que com as grandes questões estruturais brasileiras, num caminho inverso aos dos países que estão efetivamente se preparando para o século XXI. Se voltarmos ao seu programa de governo apresentado na eleição, na maioria das vezes eram temas menos relevantes que ganharam destaque – e nos pontos efetivamente importantes, geralmente Bolsonaro apresentou propostas populistas ou que ele abandonou no meio do caminho, como o seu lavajatismo.

A falta de uma coalizão bem organizada no Legislativo, em termos de apoio e ideias, tem sido um quarto empecilho para a construção de uma visão clara de futuro. Isso gerou uma postura de desresponsabilização do Executivo, que muitas vezes torce para que os parlamentares resolvam sozinhos os problemas da agenda pública do país. Assim foi na reforma da Previdência, e alguns apostam que esse processo poderá ser repetido nas reformas administrativa e tributária. O problema é que quando o Executivo se ausenta, também podem ser aprovadas coisas que atrapalham o funcionamento governamental, seja em termos fiscais, seja na capacidade de execução.

Desde a prisão de Queiroz, no dia 18 de junho, Bolsonaro mudou de posição e começou a construir uma base parlamentar. Essa decisão, em boa medida, serve a ambos os lados como um mecanismo de autoproteção e sobrevivência de deputados e do próprio presidente. No entanto, vislumbra-se agora que se pode e se deve buscar algo mais dessa aliança, como revela a discussão sobre o Renda Cidadã. Só que exatamente quando essa parceria aponta para uma mudança legislativa importante, descobre-se o quinto e último aspecto que limita o reformismo bolsonarista: a dificuldade de pensar além das eleições de 2022.

É inegável que programas de transferência de renda constituem uma condição necessária para se combater a desigualdade brasileira. Mas é preciso juntá-las como outras políticas sociais. A desigualdade é múltipla e exige remédios vindos de vários setores. Qual é a política bolsonarista, por exemplo, para se reduzir a desigualdade racial? Afinal, são os negros que mais morrem com a violência na periferia, inclusive da vinda da polícia, bem como há um grande abismo educacional entre as crianças brancas e as negras. Obviamente que a renda é um ponto de partida desse processo, mas sozinha não muda este triste quadro, que já nem deveria existir em pleno século XXI.

Até agora os governistas só pensam em distribuir dinheiro para receber fidelidade na hora do voto. É esse mesmo sentido pragmático que move hoje o presidente, que no passado fora contra o Bolsa Família e todas as ações de redistribuição mais direta de renda aos pobres brasileiros. Todos podem mudar e fazer autocrítica, mas o que deve ser exigido de Bolsonaro envolve uma pergunta maior: qual será o desenho dessa política de transferência de renda para os próximos dez anos?

Do lado da oposição ao governo Bolsonaro, no seu sentido mais amplo, muitas propostas e temáticas relevantes têm sido levantadas nos últimos meses. Elas vêm de partidos ou de grupos da sociedade civil que têm apresentado bons debates e ideias sobre meio ambiente, educação, questão racial, saúde e outras questões verdadeiramente estruturais para o país. Não obstante, a fragmentação dessas visões de mundo e a falta de um modelo mais sistêmico que aponte soluções para frente, em vez de se concentrar nos sucessos e erros do passado, constituem uma fragilidade daqueles que querem se opor ao atual governo.

Muito se fala da necessidade de construir uma frente ampla, da centro-direita à esquerda, contra o bolsonarismo. Pode ser que isso seja necessário para a eleição de 2022 – e esse é um tema para um outro artigo -, mas é preciso dizer qual será o projeto mais amplo que vai orientar essa aliança, de modo que ela não seja apenas defensiva.

O país está num momento de ausência de uma proposta consistente de futuro. Para superar essa fase, além dos votos, será necessário propor ideias e soluções que vislumbrem algo além do curto prazo e do personalismo presidencial.
Fernando Abrucio

Nenhum comentário:

Postar um comentário