sábado, 26 de outubro de 2024
Sobre humanidade
Marjane Satrapi, iraniana refugiada em França, conta em quadrinhos sua juventude marcada pela revolução e pela guerra no Irã, na série “Persépolis”, saga que milhões de cópias e foi traduzida para mais de cem idiomas. Satrapi recebeu esta semana o Prêmio Princesa das Astúrias de Comunicação e Humanidades, em Oviedo (Espanha). Este foi o discurso de agradecimento;
E agora, já que é disso que estamos falando, vamos falar da humanidade.
Entre o que os biólogos chamam de animais autênticos, ou seja, mamíferos, o homem é o único que mata a sua fêmea. E qualificamos esse ato como bestial, já que nenhum outro animal, fora de nós, o comete. Isso é humanidade.
Mas também há humanos que perdem a vida às mãos dos seus torturadores para proteger os seus semelhantes, não para os denunciar, e sei muito bem do que estou a falar. Isso também é chamado de humanidade.
Há os membros da orquestra que tocam uma sinfonia e nos dão a forma mais pura de beleza, e há aqueles que orquestram guerras e que, por cada cem litros de sangue derramado, recebem uma nova medalha.
E aplaudimos uns aos outros com o mesmo fervor.
Com isso quero lhe dizer que não tenho uma visão idealizada da humanidade e que eu, em mim, vivencio essa dualidade. Aceito tanto a minha violência como a minha benevolência, esperando sempre que esta prevaleça sobre a primeira.
Durante muito tempo acreditei que a chave para qualquer ser humano viver com dignidade, para que nunca sofresse brutalidade ou humilhação por causa do seu sexo, da sua etnia ou da sua cor, era a educação. Mas Goebbels não tinha doutorado em filosofia? O Dr. Mengele não fez o Juramento de Hipócrates?
Estaremos errados quando definimos educação? Talvez antes de educar os nossos filhos para terem sucesso económico e social, devêssemos ensinar-lhes que o verdadeiro sucesso reside acima de tudo no humanismo.
Que o que permitiu ao homem colocar-se acima de todos os seres vivos foi ele ter criado sociedades; e uma sociedade só existe porque - ao contrário de um animal que está condenado a morrer quando quebra uma perna - nós cuidamos dos nossos semelhantes. Nós os carregamos em nossos ombros e os colocamos em segurança.
O homem sozinho não sobrevive na natureza. Só sobrevive juntando-se a outros e criando sociedades. E a condição sine qua non para conseguir isso é a empatia.
Talvez na educação, em vez de ensinarmos os nossos filhos a aprender tudo de cor e a recitar como papagaios, devêssemos ensinar-lhes ética, civilidade e, acima de tudo, compaixão e bondade. E garanto que não sou daqueles que dão a outra face. Por um tapa recebido eu devolveria dez, mas procuro nunca ser aquele que acerta o primeiro.
E, por fim, lerei para vocês um poema de Saadi, um grande poeta iraniano do século XIII:
O ser humano faz parte do mesmo corpo,e tem a mesma origem.Quando a vida causa dor a um membroos outros não descansam.Você que é indiferente ao sofrimento dos outros,Você não merece ser chamado humano.
Obrigado por me ouvir e à humanidade em sua totalidade.
Israel perdeu a inocência
Ao contrário de vários escritos sobre a recente guerra no Médio-Oriente priorizando, por vezes algo doentiamente, ‘o estado ao que as coisas chegaram’, não é propósito neste artigo tecer considerandos críticos sobre a razia que vai ocorrendo contra povo palestiniano na Faixa de Gaza, por obra do Governo de Benjamin Netanyahu ( t.c.p. “Bibi”).
A tónica é avaliar a credibilidade ética de um Estado e, por tabela, de todo um estrato populacional (exceções aparte), ao qual historicamente se tem atribuído foros de ‘povo eleito’. Urge sublinhar a este respeito que semitismo diz respeito tanto a árabes como a judeus, pois, em termos bíblicos, ambos descendem de Abraão (os árabes – descendentes de Ismael, 1º filho de Abraão, nascido da escrava Agar, e os judeus – descendentes de Isaac, 2º filho de Abraão, nascido da esposa Sara).
A Resolução 181 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS/ONU) de 28 de novembro de 1947 intitula-se Plano de partilha de Palestina em um Estado Árabe e um Estado Judeu com união económica e regime especial para Jerusalém. Em apreço estava uma reivindicação anterior, bem ou mal assente na ideia-força de que o povo judaico tinha o direito a um espaço em terra palestina. Assim nasceram os alicerces do que hoje conhecemos como o Estado de Israel. O seu reconhecimento viria a ser impulsionado pela tragédia genocida dos cerca de 6 milhões de judeus no Holocausto levado a cabo pelo nazismo alemão. A sua vez, o previsto Estado palestiniano, ficaria a marcar passo, fruto de confluência de três circunstâncias diferenciadas: a oposição dos Estados Árabes à existência de um Estado Judaico, a firmeza do sionismo em sentido contrário e a inexistência de uma unidade palestina visando a constituição de um Estado próprio, o que só viria a conhecer a luz do dia em 1964 com a OLP (Organização de Libertação de Palestina) sob a liderança de Yasser Arafat.
De então para cá, a questão Israel-Palestina viria a conhecer uma vasta gama de acontecimentos, sendo de destacar os dois Acordos de Oslo (1993). Porém, o seu deturpado cumprimento veio a viabilizar a prática de Colonatos Israelitas, traduzidos na anexação de terrenos palestinianos e inerente expulsão dos habitantes destes. Deste procedimento resultaria um acréscimo territorial israelita superior a 22% quando comparado com os 56% da terra palestina que a Resolução havia alocado aos judeus. A Resolução 2334 do CS/ONU(2016) afirmou a ilegalidade dos colonatos (‘settlements’) israelitas em território palestiniano ocupado, incluindo os de Jerusalém Oriental tendo em conta as fronteiras de 1967.
Voltando à atualidade, não se pode dizer, por isso, que Israel esteja inocente de tudo quanto se está passar na Faixa de Gaza. Estivesse em funcionamento um Estado de Palestina e, porventura, no dizer do Professor Yuval Noah Harari na Universidade de Te-Aviv, “os israelitas (não) estariam a pagar o preço pelos seus anos de arrogância, durante os quais os seus governos e muitos israelitas comuns sentiram que eram muito mais fortes do que os palestinianos” (Público 12.10.2023, pgs 5).
É puramente quimérico estar-se a negar a existência do Estado de Israel de pleno direito. Fazê-lo seria um retrocesso da história, como estar a interrogar sobre as realidades existenciais dos EUA ou duma Austrália. A história não espera por nós, mas nós fazemos parte dela. É o avanço da civilização que o exige. Houve historicamente ocupações e usurpações de terras que a realidade consagrou como definitivas com o passar do tempo – uma espécie de usucapião histórico político. Foi a época de deslocação e fixação definitivas de povos dos séculos transatos. Mas se a história não retrocede, podem evitar-se os seus erros e abusos para o futuro. Daí que, no presente – 2º metade do seculo XX e XXI – a ocupação forçada de terras alheias qualifica-se, nem mais nem menos, como usurpação por falta de qualquer título de legitimidade. E qualquer ideia de facto consumado ou prescrição jurídica é afastada, dada a permanente contestação e repúdio a que a ONU vota tais colonatos. Neste domínio, e nesta parte, a lei internacional e a nacional regem-se pelos mesmos princípios.
Ora, é patente que os palestinianos não estão num processo de luta ou de guerra de libertação face ao Estado de Israel já que ninguém pode ser prisioneiro na sua própria casa. É tão simples quanto isto. Por isso, se não tem justificação o barbarismo do ato pratico pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, também certo é que nada pode justificar a barbárie cometida pelas Forças Armadas Israelitas, sob o comando do Governo de Benjamim Netanyahu. Neste quadro, não podem deixar de merecer o mais veemente e profundo repúdio a posição dos políticos americanos e europeus, que sob a cobertura das sua angélicas posturas políticas, acabam por patrocinar, fomentar e sustentar a continuação desta barbárie sob a capa de que estão a defender a liberdade e a democracia.
Não está em causa o direito ao exercício de autodefesa contra a investida do Hamas. A boa hermenêutica jurídica (nacional ou internacional) exige, porém, que a mesma seja exercida num imediatismo razoável e seja proporcional. Ora o que está a acontecer até ao presente, pelo menos até à data deste escrito, é uma deliberada e programada eliminação física de dezenas de milhares de palestinianos civis, a destruição de edifícios, hospitais e escolas do ativo, eliminação física de crianças e idosos em campo de refugiados e a deslocação territorial de mais de um milhão de pessoas carentes de alimentação e de saúde.
Posto isto, o que dizer de Israel? A razão apresentada para este procedimento é de que os combatentes do Hamas se escudam nos hospitais, nas escolas e misturam-se no meio da população. É …. vá daí, elimina-se tudo e todos. Certo, porém, é que a máscara caiu, o Kipá merece mais respeito e de pouco valem as “fantasias messiânicas”, as ortodoxias estéreis ou as lamentações junto ao muro, não o de apartheid da Cisjordânia, mas o de lamentações.
Israel é tido como um país bastante avançado e desenvolvido no contexto do Médio Oriente, dispondo de uns serviços secretos ultra-eficientes e havendo mesmo notícias que algumas das suas ações militares tem já dispositivo instrumental operado por Inteligência Artificial. Neste contexto, é pertinente a indignação quanto à grandiosidade de umas Forças Armadas que para desarticular um grupo armado demonstra não ter capacidade para os individualizar do resto da população tendo, para tanto, necessidade de dizimar mais de 40.000 civis para além de milhares de feridos! Neste afã de ataque e destruição não é de pôr de parte que estas forças possam ter atingido os 6 reféns israelitas.
Como se referiu, não está em causa o direito de autodefesa por parte de Israel. A legitima autodefesa pressupõe que a parte que a alega não crie situações de insustentabilidade que levem a parte contrária a reagir. Dito ‘alio modo’, o ‘auto-defendente’ não pode gerar contextos para depois, com base nestes, invocar este instituto. Nestes termos, a alegada autodefesa por Israel esgotou-se na resposta à intervenção de 7 de Outubro do Hamas pelo seu imediatismo e por tal ocorrer no seu território (não contemplando os excessos cometidos e que continuam a cometer-se em Gaza).
Mas, Israel parece estar a tentar contornar todo o contexto político, procurando estender a sua autodefesa a toda a problemática do conflito israelo-palestino em jeito de uma guerra. “Numa guerra, se um lado é mau, não significa que o outro seja bom……Basta ser guerra para não ter lados bons” (Eduardo Aqualusa – VISÃO 31 e Março de 2012, pgs 96). É aqui que perde toda a sua inocência e assinala a má-fé que rege o seu estofo ético histórico e político. Assumindo-se um Estado democrático, assente não numa Constituição escrita, mas em Leis Fundamentais avulsas, viu em 1 de setembro deste ano o seu Supremo Tribunal determinar a suspensão de uma greve geral “por motivos políticos” (ou seria, suspensão ‘por motivos políticos’ uma greve geral?)
A continuada política de colonatos ilegais por terras palestinianas, com a consequente expulsão dos donos das casas e das terras, sob a complacência das autoridades, nomeadamente dos tribunais, a conivência da população israelita neste processo e a perseguição de cidadãos palestinianos que rondam as dezenas de milhares – prática esta que tem vindo a ser condenada por n Resoluções das Nações Unidas, (organismo do qual Israel faz parte), mas que tem sido obstinadamente desrespeitadas demonstra ser a principal e basilar razão material deste conflito. Um tal comportamento poderia justificar a expulsão de Israel da ONU, porém a solução seria contraproducente, pois deixar o Estado de Israel ainda mais em roda livre, agravando o estatuto de “rogue-country” que já aparenta ser. Com qualificar um ‘leader’ político que tenta desacreditar a ONU, por o seu secretário-geral criticar veementemente Israel pela eliminação física e indiscriminada de uma população, já quase equiparada a um genocídio e desrespeita a decisão do Tribunal Internacional de Justiça de 19 de julho, por configurar a presença de Israel em território ocupado palestiniano como ilegal e apelando à imediata suspensão de construção de colonatos?
Dando o merecido crédito e respeito às recentes manifestações do povo israelita, a verdade é que Netanyahu foi eleito três vezes para primeiro-ministro, com a agravante de ser bem evidente que desta vez beneficiava do declarado apoio do setor ultraortodoxo do sionismo. Afere-se assim, que uma parte significativa do eleitor israelita tem a sua quota parte de responsabilidade no que esta a acontecer. A questão dos “reféns”, apesar da sua gravidade, assume neste âmbito a natureza de um “falso problema”, salvo se se entender que a vida de um refém israelita vale mais que a vida de 100 palestinianos!
Tudo leva a crer que a questão mediata se relaciona com o fanatismo e/ou chauvinismo doutrinário. A frase “religião é o ópio do povo” parece ter aqui toda a pertinência, de parte a parte, não no sentido da sua eliminação ou superação, mas como um ‘prius’, um agente intolerante de convivência entre povos e Nações, apelidando-se de “Estados religiosos”. A eliminação desta confusa mancomunação política/religião passa por uma abordagem conciliatória entre os responsáveis das religiões mais tradicionais. É de saudar por isso a Declaração Conjunta de Isteqlal de Jacarta – agosto 2024 – subscrita pelo Papa Francisco e o Grande Imã Nasaruddin Umar, ao reconhecer a existência de “valores comuns a todas as religiões para “derrotar a cultura de violência e de indiferença.
Numa altura em que, pelo mundo fora, se clama cada vez com mais ressonância por uma maior solidariedade e humanismo entre os povos e nesta dinâmica uma generalizada repulsa pelas atrocidades de que o povo palestiniano é vítima, eis que surge a deliberação da Assembleia Geral da ONU de 18 de setembro, votada por uma maioria de 2/3 dos seus membros (124, quando a ONU tem 193 membros), no sentido de exigir que Israel ponha termo à sua presença ilegal em Gaza, na Cisjordânia ocupada e Jerusalém Oriental, a cessação de novos colunatos, a restituição de terras e propriedades usurpadas e o regresso de palestinianos deslocados, no prazo de um ano.
Um prazo, diga-se de passagem, algo dilatado para Israel continuar com as suas investidas, havendo por isso quem interrogue pela não utilização do dispositivo de intervenção da Força Militar de Paz da ONU no caso presente, postura que contrasta com a prontidão com que agiu noutras paragens como o Ruanda, Kosovo e outros.
Os EUA foram um dos 14 países que votou contra a deliberação. Assumido que as constantes visitas de Anthony Blinken ao Médio Oriente não são de recreio, as mesmas mais se revestem de vendedor de promessas angélicas, permitindo incessantes adiamentos para a solução do conflito, sempre propícias para as Forças Armadas continuarem com as atrocidades (os tais 10% do acordo que ainda falta atingir) e a propulsão da indústria armamentista.
Do contexto gerado, há três situações desastrosas a temer e que despontam no horizonte: o sofrimento e dizimação do povo palestiniano, um crescente antissemitismo israelita e o alastramento de uma guerra generalizada pelo Médio Oriente.
Quo Vadis Israel?
A tónica é avaliar a credibilidade ética de um Estado e, por tabela, de todo um estrato populacional (exceções aparte), ao qual historicamente se tem atribuído foros de ‘povo eleito’. Urge sublinhar a este respeito que semitismo diz respeito tanto a árabes como a judeus, pois, em termos bíblicos, ambos descendem de Abraão (os árabes – descendentes de Ismael, 1º filho de Abraão, nascido da escrava Agar, e os judeus – descendentes de Isaac, 2º filho de Abraão, nascido da esposa Sara).
A Resolução 181 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS/ONU) de 28 de novembro de 1947 intitula-se Plano de partilha de Palestina em um Estado Árabe e um Estado Judeu com união económica e regime especial para Jerusalém. Em apreço estava uma reivindicação anterior, bem ou mal assente na ideia-força de que o povo judaico tinha o direito a um espaço em terra palestina. Assim nasceram os alicerces do que hoje conhecemos como o Estado de Israel. O seu reconhecimento viria a ser impulsionado pela tragédia genocida dos cerca de 6 milhões de judeus no Holocausto levado a cabo pelo nazismo alemão. A sua vez, o previsto Estado palestiniano, ficaria a marcar passo, fruto de confluência de três circunstâncias diferenciadas: a oposição dos Estados Árabes à existência de um Estado Judaico, a firmeza do sionismo em sentido contrário e a inexistência de uma unidade palestina visando a constituição de um Estado próprio, o que só viria a conhecer a luz do dia em 1964 com a OLP (Organização de Libertação de Palestina) sob a liderança de Yasser Arafat.
De então para cá, a questão Israel-Palestina viria a conhecer uma vasta gama de acontecimentos, sendo de destacar os dois Acordos de Oslo (1993). Porém, o seu deturpado cumprimento veio a viabilizar a prática de Colonatos Israelitas, traduzidos na anexação de terrenos palestinianos e inerente expulsão dos habitantes destes. Deste procedimento resultaria um acréscimo territorial israelita superior a 22% quando comparado com os 56% da terra palestina que a Resolução havia alocado aos judeus. A Resolução 2334 do CS/ONU(2016) afirmou a ilegalidade dos colonatos (‘settlements’) israelitas em território palestiniano ocupado, incluindo os de Jerusalém Oriental tendo em conta as fronteiras de 1967.
Voltando à atualidade, não se pode dizer, por isso, que Israel esteja inocente de tudo quanto se está passar na Faixa de Gaza. Estivesse em funcionamento um Estado de Palestina e, porventura, no dizer do Professor Yuval Noah Harari na Universidade de Te-Aviv, “os israelitas (não) estariam a pagar o preço pelos seus anos de arrogância, durante os quais os seus governos e muitos israelitas comuns sentiram que eram muito mais fortes do que os palestinianos” (Público 12.10.2023, pgs 5).
É puramente quimérico estar-se a negar a existência do Estado de Israel de pleno direito. Fazê-lo seria um retrocesso da história, como estar a interrogar sobre as realidades existenciais dos EUA ou duma Austrália. A história não espera por nós, mas nós fazemos parte dela. É o avanço da civilização que o exige. Houve historicamente ocupações e usurpações de terras que a realidade consagrou como definitivas com o passar do tempo – uma espécie de usucapião histórico político. Foi a época de deslocação e fixação definitivas de povos dos séculos transatos. Mas se a história não retrocede, podem evitar-se os seus erros e abusos para o futuro. Daí que, no presente – 2º metade do seculo XX e XXI – a ocupação forçada de terras alheias qualifica-se, nem mais nem menos, como usurpação por falta de qualquer título de legitimidade. E qualquer ideia de facto consumado ou prescrição jurídica é afastada, dada a permanente contestação e repúdio a que a ONU vota tais colonatos. Neste domínio, e nesta parte, a lei internacional e a nacional regem-se pelos mesmos princípios.
Ora, é patente que os palestinianos não estão num processo de luta ou de guerra de libertação face ao Estado de Israel já que ninguém pode ser prisioneiro na sua própria casa. É tão simples quanto isto. Por isso, se não tem justificação o barbarismo do ato pratico pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, também certo é que nada pode justificar a barbárie cometida pelas Forças Armadas Israelitas, sob o comando do Governo de Benjamim Netanyahu. Neste quadro, não podem deixar de merecer o mais veemente e profundo repúdio a posição dos políticos americanos e europeus, que sob a cobertura das sua angélicas posturas políticas, acabam por patrocinar, fomentar e sustentar a continuação desta barbárie sob a capa de que estão a defender a liberdade e a democracia.
Não está em causa o direito ao exercício de autodefesa contra a investida do Hamas. A boa hermenêutica jurídica (nacional ou internacional) exige, porém, que a mesma seja exercida num imediatismo razoável e seja proporcional. Ora o que está a acontecer até ao presente, pelo menos até à data deste escrito, é uma deliberada e programada eliminação física de dezenas de milhares de palestinianos civis, a destruição de edifícios, hospitais e escolas do ativo, eliminação física de crianças e idosos em campo de refugiados e a deslocação territorial de mais de um milhão de pessoas carentes de alimentação e de saúde.
Posto isto, o que dizer de Israel? A razão apresentada para este procedimento é de que os combatentes do Hamas se escudam nos hospitais, nas escolas e misturam-se no meio da população. É …. vá daí, elimina-se tudo e todos. Certo, porém, é que a máscara caiu, o Kipá merece mais respeito e de pouco valem as “fantasias messiânicas”, as ortodoxias estéreis ou as lamentações junto ao muro, não o de apartheid da Cisjordânia, mas o de lamentações.
Israel é tido como um país bastante avançado e desenvolvido no contexto do Médio Oriente, dispondo de uns serviços secretos ultra-eficientes e havendo mesmo notícias que algumas das suas ações militares tem já dispositivo instrumental operado por Inteligência Artificial. Neste contexto, é pertinente a indignação quanto à grandiosidade de umas Forças Armadas que para desarticular um grupo armado demonstra não ter capacidade para os individualizar do resto da população tendo, para tanto, necessidade de dizimar mais de 40.000 civis para além de milhares de feridos! Neste afã de ataque e destruição não é de pôr de parte que estas forças possam ter atingido os 6 reféns israelitas.
Como se referiu, não está em causa o direito de autodefesa por parte de Israel. A legitima autodefesa pressupõe que a parte que a alega não crie situações de insustentabilidade que levem a parte contrária a reagir. Dito ‘alio modo’, o ‘auto-defendente’ não pode gerar contextos para depois, com base nestes, invocar este instituto. Nestes termos, a alegada autodefesa por Israel esgotou-se na resposta à intervenção de 7 de Outubro do Hamas pelo seu imediatismo e por tal ocorrer no seu território (não contemplando os excessos cometidos e que continuam a cometer-se em Gaza).
Mas, Israel parece estar a tentar contornar todo o contexto político, procurando estender a sua autodefesa a toda a problemática do conflito israelo-palestino em jeito de uma guerra. “Numa guerra, se um lado é mau, não significa que o outro seja bom……Basta ser guerra para não ter lados bons” (Eduardo Aqualusa – VISÃO 31 e Março de 2012, pgs 96). É aqui que perde toda a sua inocência e assinala a má-fé que rege o seu estofo ético histórico e político. Assumindo-se um Estado democrático, assente não numa Constituição escrita, mas em Leis Fundamentais avulsas, viu em 1 de setembro deste ano o seu Supremo Tribunal determinar a suspensão de uma greve geral “por motivos políticos” (ou seria, suspensão ‘por motivos políticos’ uma greve geral?)
A continuada política de colonatos ilegais por terras palestinianas, com a consequente expulsão dos donos das casas e das terras, sob a complacência das autoridades, nomeadamente dos tribunais, a conivência da população israelita neste processo e a perseguição de cidadãos palestinianos que rondam as dezenas de milhares – prática esta que tem vindo a ser condenada por n Resoluções das Nações Unidas, (organismo do qual Israel faz parte), mas que tem sido obstinadamente desrespeitadas demonstra ser a principal e basilar razão material deste conflito. Um tal comportamento poderia justificar a expulsão de Israel da ONU, porém a solução seria contraproducente, pois deixar o Estado de Israel ainda mais em roda livre, agravando o estatuto de “rogue-country” que já aparenta ser. Com qualificar um ‘leader’ político que tenta desacreditar a ONU, por o seu secretário-geral criticar veementemente Israel pela eliminação física e indiscriminada de uma população, já quase equiparada a um genocídio e desrespeita a decisão do Tribunal Internacional de Justiça de 19 de julho, por configurar a presença de Israel em território ocupado palestiniano como ilegal e apelando à imediata suspensão de construção de colonatos?
Dando o merecido crédito e respeito às recentes manifestações do povo israelita, a verdade é que Netanyahu foi eleito três vezes para primeiro-ministro, com a agravante de ser bem evidente que desta vez beneficiava do declarado apoio do setor ultraortodoxo do sionismo. Afere-se assim, que uma parte significativa do eleitor israelita tem a sua quota parte de responsabilidade no que esta a acontecer. A questão dos “reféns”, apesar da sua gravidade, assume neste âmbito a natureza de um “falso problema”, salvo se se entender que a vida de um refém israelita vale mais que a vida de 100 palestinianos!
Tudo leva a crer que a questão mediata se relaciona com o fanatismo e/ou chauvinismo doutrinário. A frase “religião é o ópio do povo” parece ter aqui toda a pertinência, de parte a parte, não no sentido da sua eliminação ou superação, mas como um ‘prius’, um agente intolerante de convivência entre povos e Nações, apelidando-se de “Estados religiosos”. A eliminação desta confusa mancomunação política/religião passa por uma abordagem conciliatória entre os responsáveis das religiões mais tradicionais. É de saudar por isso a Declaração Conjunta de Isteqlal de Jacarta – agosto 2024 – subscrita pelo Papa Francisco e o Grande Imã Nasaruddin Umar, ao reconhecer a existência de “valores comuns a todas as religiões para “derrotar a cultura de violência e de indiferença.
Numa altura em que, pelo mundo fora, se clama cada vez com mais ressonância por uma maior solidariedade e humanismo entre os povos e nesta dinâmica uma generalizada repulsa pelas atrocidades de que o povo palestiniano é vítima, eis que surge a deliberação da Assembleia Geral da ONU de 18 de setembro, votada por uma maioria de 2/3 dos seus membros (124, quando a ONU tem 193 membros), no sentido de exigir que Israel ponha termo à sua presença ilegal em Gaza, na Cisjordânia ocupada e Jerusalém Oriental, a cessação de novos colunatos, a restituição de terras e propriedades usurpadas e o regresso de palestinianos deslocados, no prazo de um ano.
Um prazo, diga-se de passagem, algo dilatado para Israel continuar com as suas investidas, havendo por isso quem interrogue pela não utilização do dispositivo de intervenção da Força Militar de Paz da ONU no caso presente, postura que contrasta com a prontidão com que agiu noutras paragens como o Ruanda, Kosovo e outros.
Os EUA foram um dos 14 países que votou contra a deliberação. Assumido que as constantes visitas de Anthony Blinken ao Médio Oriente não são de recreio, as mesmas mais se revestem de vendedor de promessas angélicas, permitindo incessantes adiamentos para a solução do conflito, sempre propícias para as Forças Armadas continuarem com as atrocidades (os tais 10% do acordo que ainda falta atingir) e a propulsão da indústria armamentista.
Do contexto gerado, há três situações desastrosas a temer e que despontam no horizonte: o sofrimento e dizimação do povo palestiniano, um crescente antissemitismo israelita e o alastramento de uma guerra generalizada pelo Médio Oriente.
Quo Vadis Israel?
Os munícipes que não reclamam
Na gestão em que se dedicaria a equilibrar as contas do município, enfrentar o desperdício e a ineficiência na administração, extinguir favores a compadres, pôr fim às extorsões que afligiam os mais pobres e, o mais inconveniente, relatar de forma clara e honesta o que fez e o que não conseguiu fazer durante o mandato, o prefeito de Palmeira dos Índios escreve, após o primeiro ano de trabalho: “Há descontentamento. Se a minha estada na prefeitura (...) dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos”.
O prefeito impopular, bem como o dono da autoavaliação seca, irônica e sobretudo literária, era Graciliano Ramos. O futuro romancista administrou Palmeira dos Índios, próxima a sua cidade natal, Quebrangulo, de janeiro de 1928 a abril de 1930, e no começo de cada ano escreveu relatórios de prestação de contas ao Conselho Municipal e ao governo de Alagoas. Desde aquela época os balanços da prefeitura chamaram a atenção da imprensa pela qualidade literária, e agora estão reunidos no livro O Prefeito Escritor: Dois Retratos de uma Administração (Record, 2024).
A leitura de texto tão burocrático, “com algarismos e prosa de guarda-livros”, interessa quase cem anos depois em primeiro lugar pelo que se pode antever do estilo do autor de Vidas Secas, já elogiado pelos contemporâneos dos relatórios. Em um trecho sobre os custos da administração, por exemplo, o prefeito escreve: “E lá se vão mais de trinta contos gastos sem uma varredela nas ruas, um golpe de picareta nas estradas, um professor, mesmo ruim, na Brecha ou no Anum”. Aos leitores atuais de Graciliano, interessa também o aspecto biográfico dos documentos, que ajudam a compreender o pensamento do homem que se tornaria preso político mais tarde. Por fim, para um público mais amplo, a leitura dos balanços interessa hoje porque muitos dos problemas que o prefeito escritor teve de lidar na Palmeira dos Índios do fim da década de 1920 o Brasil ainda enfrenta, como o patrimonialismo e o clientelismo.
No começo do mandato, diz um documento, o prefeito encontrou obstáculos dentro e fora da prefeitura: “Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro”. A dificuldade de arrecadação do município, o que o autor explica por serem todos, prefeitos e contribuintes, mais ou menos compadres, foi um dos desafios em que Graciliano teve sucesso durante a gestão, marcada pelo aumento da receita, mas também pela impopularidade.
Austero com uns, incluindo amigos e familiares, o prefeito registrou gastos com serviços públicos sanitários e de instrução, investiu nos subúrbios e aliviou a arrecadação dos mais pobres, estabelecendo “a equidade que torna o imposto suportável”. “Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcarme.” Quanto aos prestadores de serviço da prefeitura, se não foram valorizados pelo gestor, ao menos constam nos relatórios exemplos de indignação com as remunerações pagas a eles (“uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários miseráveis”).
O corte de gastos nem sempre era possível, como no contrato para o fornecimento de energia elétrica firmado em outra gestão, no qual a cidade pagava “até a luz da Lua”. “Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras”, graceja o prefeito. Se era obra importante mas prorrogável, ele adiava, a exemplo da construção do cemitério novo: “Os mortos esperarão mais um tempo. São os munícipes que não reclamam”. E enterrava os recursos na conservação.
“Aí está, em traços largos, o estado em que se encontra a Prefeitura de Palmeira do Índios”, conclui o prefeito no primeiro relatório. Do interior de Alagoas, os documentos chegaram até o editor Augusto Frederico Schmidt, no Rio de Janeiro, que imaginou que quem escreve um relatório de prestação de contas com tamanha graça deveria ter um romance na gaveta. E tinha mesmo. Caetés, o primeiro livro de Graciliano Ramos, foi escrito durante a gestão, e saiu pela editora de Schmidt em 1933. O romance, aliás, se passa em Palmeira dos Índios, e tem como protagonista um guarda-livros que deseja ser escritor e fazer parte da elite social da cidade.
Como uma obra literária inacabada, Graciliano não terminou o mandato, mas seus relatórios deixam reflexões sobre o papel do prefeito, esse cargo cada vez mais esquecido em relação às pautas de política nacional que dominam as conversas nos ônibus e padarias, mas fundamental para o lugar onde a vida acontece, ou seja, o município.
Matando-lhe “o bicho do ouvido”, as reclamações fizeram parte do começo ao fim da gestão do escritor, inclusive colaborando para a renúncia. Mas a indiferença da população à política local não ajudaria Graciliano a construir uma cidade mais próspera e justa. Pelo contrário, o prefeito escreve: “Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão”. A apatia política, em vez disso, tende a buscar soluções tão fáceis quanto falsas, não se importando em destruir o que não afeta mais. É melhor que reclamem.
O prefeito impopular, bem como o dono da autoavaliação seca, irônica e sobretudo literária, era Graciliano Ramos. O futuro romancista administrou Palmeira dos Índios, próxima a sua cidade natal, Quebrangulo, de janeiro de 1928 a abril de 1930, e no começo de cada ano escreveu relatórios de prestação de contas ao Conselho Municipal e ao governo de Alagoas. Desde aquela época os balanços da prefeitura chamaram a atenção da imprensa pela qualidade literária, e agora estão reunidos no livro O Prefeito Escritor: Dois Retratos de uma Administração (Record, 2024).
A leitura de texto tão burocrático, “com algarismos e prosa de guarda-livros”, interessa quase cem anos depois em primeiro lugar pelo que se pode antever do estilo do autor de Vidas Secas, já elogiado pelos contemporâneos dos relatórios. Em um trecho sobre os custos da administração, por exemplo, o prefeito escreve: “E lá se vão mais de trinta contos gastos sem uma varredela nas ruas, um golpe de picareta nas estradas, um professor, mesmo ruim, na Brecha ou no Anum”. Aos leitores atuais de Graciliano, interessa também o aspecto biográfico dos documentos, que ajudam a compreender o pensamento do homem que se tornaria preso político mais tarde. Por fim, para um público mais amplo, a leitura dos balanços interessa hoje porque muitos dos problemas que o prefeito escritor teve de lidar na Palmeira dos Índios do fim da década de 1920 o Brasil ainda enfrenta, como o patrimonialismo e o clientelismo.
No começo do mandato, diz um documento, o prefeito encontrou obstáculos dentro e fora da prefeitura: “Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro”. A dificuldade de arrecadação do município, o que o autor explica por serem todos, prefeitos e contribuintes, mais ou menos compadres, foi um dos desafios em que Graciliano teve sucesso durante a gestão, marcada pelo aumento da receita, mas também pela impopularidade.
Austero com uns, incluindo amigos e familiares, o prefeito registrou gastos com serviços públicos sanitários e de instrução, investiu nos subúrbios e aliviou a arrecadação dos mais pobres, estabelecendo “a equidade que torna o imposto suportável”. “Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcarme.” Quanto aos prestadores de serviço da prefeitura, se não foram valorizados pelo gestor, ao menos constam nos relatórios exemplos de indignação com as remunerações pagas a eles (“uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários miseráveis”).
O corte de gastos nem sempre era possível, como no contrato para o fornecimento de energia elétrica firmado em outra gestão, no qual a cidade pagava “até a luz da Lua”. “Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras”, graceja o prefeito. Se era obra importante mas prorrogável, ele adiava, a exemplo da construção do cemitério novo: “Os mortos esperarão mais um tempo. São os munícipes que não reclamam”. E enterrava os recursos na conservação.
“Aí está, em traços largos, o estado em que se encontra a Prefeitura de Palmeira do Índios”, conclui o prefeito no primeiro relatório. Do interior de Alagoas, os documentos chegaram até o editor Augusto Frederico Schmidt, no Rio de Janeiro, que imaginou que quem escreve um relatório de prestação de contas com tamanha graça deveria ter um romance na gaveta. E tinha mesmo. Caetés, o primeiro livro de Graciliano Ramos, foi escrito durante a gestão, e saiu pela editora de Schmidt em 1933. O romance, aliás, se passa em Palmeira dos Índios, e tem como protagonista um guarda-livros que deseja ser escritor e fazer parte da elite social da cidade.
Como uma obra literária inacabada, Graciliano não terminou o mandato, mas seus relatórios deixam reflexões sobre o papel do prefeito, esse cargo cada vez mais esquecido em relação às pautas de política nacional que dominam as conversas nos ônibus e padarias, mas fundamental para o lugar onde a vida acontece, ou seja, o município.
Matando-lhe “o bicho do ouvido”, as reclamações fizeram parte do começo ao fim da gestão do escritor, inclusive colaborando para a renúncia. Mas a indiferença da população à política local não ajudaria Graciliano a construir uma cidade mais próspera e justa. Pelo contrário, o prefeito escreve: “Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão”. A apatia política, em vez disso, tende a buscar soluções tão fáceis quanto falsas, não se importando em destruir o que não afeta mais. É melhor que reclamem.
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