A tónica é avaliar a credibilidade ética de um Estado e, por tabela, de todo um estrato populacional (exceções aparte), ao qual historicamente se tem atribuído foros de ‘povo eleito’. Urge sublinhar a este respeito que semitismo diz respeito tanto a árabes como a judeus, pois, em termos bíblicos, ambos descendem de Abraão (os árabes – descendentes de Ismael, 1º filho de Abraão, nascido da escrava Agar, e os judeus – descendentes de Isaac, 2º filho de Abraão, nascido da esposa Sara).
A Resolução 181 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS/ONU) de 28 de novembro de 1947 intitula-se Plano de partilha de Palestina em um Estado Árabe e um Estado Judeu com união económica e regime especial para Jerusalém. Em apreço estava uma reivindicação anterior, bem ou mal assente na ideia-força de que o povo judaico tinha o direito a um espaço em terra palestina. Assim nasceram os alicerces do que hoje conhecemos como o Estado de Israel. O seu reconhecimento viria a ser impulsionado pela tragédia genocida dos cerca de 6 milhões de judeus no Holocausto levado a cabo pelo nazismo alemão. A sua vez, o previsto Estado palestiniano, ficaria a marcar passo, fruto de confluência de três circunstâncias diferenciadas: a oposição dos Estados Árabes à existência de um Estado Judaico, a firmeza do sionismo em sentido contrário e a inexistência de uma unidade palestina visando a constituição de um Estado próprio, o que só viria a conhecer a luz do dia em 1964 com a OLP (Organização de Libertação de Palestina) sob a liderança de Yasser Arafat.
De então para cá, a questão Israel-Palestina viria a conhecer uma vasta gama de acontecimentos, sendo de destacar os dois Acordos de Oslo (1993). Porém, o seu deturpado cumprimento veio a viabilizar a prática de Colonatos Israelitas, traduzidos na anexação de terrenos palestinianos e inerente expulsão dos habitantes destes. Deste procedimento resultaria um acréscimo territorial israelita superior a 22% quando comparado com os 56% da terra palestina que a Resolução havia alocado aos judeus. A Resolução 2334 do CS/ONU(2016) afirmou a ilegalidade dos colonatos (‘settlements’) israelitas em território palestiniano ocupado, incluindo os de Jerusalém Oriental tendo em conta as fronteiras de 1967.
Voltando à atualidade, não se pode dizer, por isso, que Israel esteja inocente de tudo quanto se está passar na Faixa de Gaza. Estivesse em funcionamento um Estado de Palestina e, porventura, no dizer do Professor Yuval Noah Harari na Universidade de Te-Aviv, “os israelitas (não) estariam a pagar o preço pelos seus anos de arrogância, durante os quais os seus governos e muitos israelitas comuns sentiram que eram muito mais fortes do que os palestinianos” (Público 12.10.2023, pgs 5).
É puramente quimérico estar-se a negar a existência do Estado de Israel de pleno direito. Fazê-lo seria um retrocesso da história, como estar a interrogar sobre as realidades existenciais dos EUA ou duma Austrália. A história não espera por nós, mas nós fazemos parte dela. É o avanço da civilização que o exige. Houve historicamente ocupações e usurpações de terras que a realidade consagrou como definitivas com o passar do tempo – uma espécie de usucapião histórico político. Foi a época de deslocação e fixação definitivas de povos dos séculos transatos. Mas se a história não retrocede, podem evitar-se os seus erros e abusos para o futuro. Daí que, no presente – 2º metade do seculo XX e XXI – a ocupação forçada de terras alheias qualifica-se, nem mais nem menos, como usurpação por falta de qualquer título de legitimidade. E qualquer ideia de facto consumado ou prescrição jurídica é afastada, dada a permanente contestação e repúdio a que a ONU vota tais colonatos. Neste domínio, e nesta parte, a lei internacional e a nacional regem-se pelos mesmos princípios.
Ora, é patente que os palestinianos não estão num processo de luta ou de guerra de libertação face ao Estado de Israel já que ninguém pode ser prisioneiro na sua própria casa. É tão simples quanto isto. Por isso, se não tem justificação o barbarismo do ato pratico pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, também certo é que nada pode justificar a barbárie cometida pelas Forças Armadas Israelitas, sob o comando do Governo de Benjamim Netanyahu. Neste quadro, não podem deixar de merecer o mais veemente e profundo repúdio a posição dos políticos americanos e europeus, que sob a cobertura das sua angélicas posturas políticas, acabam por patrocinar, fomentar e sustentar a continuação desta barbárie sob a capa de que estão a defender a liberdade e a democracia.
Não está em causa o direito ao exercício de autodefesa contra a investida do Hamas. A boa hermenêutica jurídica (nacional ou internacional) exige, porém, que a mesma seja exercida num imediatismo razoável e seja proporcional. Ora o que está a acontecer até ao presente, pelo menos até à data deste escrito, é uma deliberada e programada eliminação física de dezenas de milhares de palestinianos civis, a destruição de edifícios, hospitais e escolas do ativo, eliminação física de crianças e idosos em campo de refugiados e a deslocação territorial de mais de um milhão de pessoas carentes de alimentação e de saúde.
Posto isto, o que dizer de Israel? A razão apresentada para este procedimento é de que os combatentes do Hamas se escudam nos hospitais, nas escolas e misturam-se no meio da população. É …. vá daí, elimina-se tudo e todos. Certo, porém, é que a máscara caiu, o Kipá merece mais respeito e de pouco valem as “fantasias messiânicas”, as ortodoxias estéreis ou as lamentações junto ao muro, não o de apartheid da Cisjordânia, mas o de lamentações.
Israel é tido como um país bastante avançado e desenvolvido no contexto do Médio Oriente, dispondo de uns serviços secretos ultra-eficientes e havendo mesmo notícias que algumas das suas ações militares tem já dispositivo instrumental operado por Inteligência Artificial. Neste contexto, é pertinente a indignação quanto à grandiosidade de umas Forças Armadas que para desarticular um grupo armado demonstra não ter capacidade para os individualizar do resto da população tendo, para tanto, necessidade de dizimar mais de 40.000 civis para além de milhares de feridos! Neste afã de ataque e destruição não é de pôr de parte que estas forças possam ter atingido os 6 reféns israelitas.
Como se referiu, não está em causa o direito de autodefesa por parte de Israel. A legitima autodefesa pressupõe que a parte que a alega não crie situações de insustentabilidade que levem a parte contrária a reagir. Dito ‘alio modo’, o ‘auto-defendente’ não pode gerar contextos para depois, com base nestes, invocar este instituto. Nestes termos, a alegada autodefesa por Israel esgotou-se na resposta à intervenção de 7 de Outubro do Hamas pelo seu imediatismo e por tal ocorrer no seu território (não contemplando os excessos cometidos e que continuam a cometer-se em Gaza).
Mas, Israel parece estar a tentar contornar todo o contexto político, procurando estender a sua autodefesa a toda a problemática do conflito israelo-palestino em jeito de uma guerra. “Numa guerra, se um lado é mau, não significa que o outro seja bom……Basta ser guerra para não ter lados bons” (Eduardo Aqualusa – VISÃO 31 e Março de 2012, pgs 96). É aqui que perde toda a sua inocência e assinala a má-fé que rege o seu estofo ético histórico e político. Assumindo-se um Estado democrático, assente não numa Constituição escrita, mas em Leis Fundamentais avulsas, viu em 1 de setembro deste ano o seu Supremo Tribunal determinar a suspensão de uma greve geral “por motivos políticos” (ou seria, suspensão ‘por motivos políticos’ uma greve geral?)
A continuada política de colonatos ilegais por terras palestinianas, com a consequente expulsão dos donos das casas e das terras, sob a complacência das autoridades, nomeadamente dos tribunais, a conivência da população israelita neste processo e a perseguição de cidadãos palestinianos que rondam as dezenas de milhares – prática esta que tem vindo a ser condenada por n Resoluções das Nações Unidas, (organismo do qual Israel faz parte), mas que tem sido obstinadamente desrespeitadas demonstra ser a principal e basilar razão material deste conflito. Um tal comportamento poderia justificar a expulsão de Israel da ONU, porém a solução seria contraproducente, pois deixar o Estado de Israel ainda mais em roda livre, agravando o estatuto de “rogue-country” que já aparenta ser. Com qualificar um ‘leader’ político que tenta desacreditar a ONU, por o seu secretário-geral criticar veementemente Israel pela eliminação física e indiscriminada de uma população, já quase equiparada a um genocídio e desrespeita a decisão do Tribunal Internacional de Justiça de 19 de julho, por configurar a presença de Israel em território ocupado palestiniano como ilegal e apelando à imediata suspensão de construção de colonatos?
Dando o merecido crédito e respeito às recentes manifestações do povo israelita, a verdade é que Netanyahu foi eleito três vezes para primeiro-ministro, com a agravante de ser bem evidente que desta vez beneficiava do declarado apoio do setor ultraortodoxo do sionismo. Afere-se assim, que uma parte significativa do eleitor israelita tem a sua quota parte de responsabilidade no que esta a acontecer. A questão dos “reféns”, apesar da sua gravidade, assume neste âmbito a natureza de um “falso problema”, salvo se se entender que a vida de um refém israelita vale mais que a vida de 100 palestinianos!
Tudo leva a crer que a questão mediata se relaciona com o fanatismo e/ou chauvinismo doutrinário. A frase “religião é o ópio do povo” parece ter aqui toda a pertinência, de parte a parte, não no sentido da sua eliminação ou superação, mas como um ‘prius’, um agente intolerante de convivência entre povos e Nações, apelidando-se de “Estados religiosos”. A eliminação desta confusa mancomunação política/religião passa por uma abordagem conciliatória entre os responsáveis das religiões mais tradicionais. É de saudar por isso a Declaração Conjunta de Isteqlal de Jacarta – agosto 2024 – subscrita pelo Papa Francisco e o Grande Imã Nasaruddin Umar, ao reconhecer a existência de “valores comuns a todas as religiões para “derrotar a cultura de violência e de indiferença.
Numa altura em que, pelo mundo fora, se clama cada vez com mais ressonância por uma maior solidariedade e humanismo entre os povos e nesta dinâmica uma generalizada repulsa pelas atrocidades de que o povo palestiniano é vítima, eis que surge a deliberação da Assembleia Geral da ONU de 18 de setembro, votada por uma maioria de 2/3 dos seus membros (124, quando a ONU tem 193 membros), no sentido de exigir que Israel ponha termo à sua presença ilegal em Gaza, na Cisjordânia ocupada e Jerusalém Oriental, a cessação de novos colunatos, a restituição de terras e propriedades usurpadas e o regresso de palestinianos deslocados, no prazo de um ano.
Um prazo, diga-se de passagem, algo dilatado para Israel continuar com as suas investidas, havendo por isso quem interrogue pela não utilização do dispositivo de intervenção da Força Militar de Paz da ONU no caso presente, postura que contrasta com a prontidão com que agiu noutras paragens como o Ruanda, Kosovo e outros.
Os EUA foram um dos 14 países que votou contra a deliberação. Assumido que as constantes visitas de Anthony Blinken ao Médio Oriente não são de recreio, as mesmas mais se revestem de vendedor de promessas angélicas, permitindo incessantes adiamentos para a solução do conflito, sempre propícias para as Forças Armadas continuarem com as atrocidades (os tais 10% do acordo que ainda falta atingir) e a propulsão da indústria armamentista.
Do contexto gerado, há três situações desastrosas a temer e que despontam no horizonte: o sofrimento e dizimação do povo palestiniano, um crescente antissemitismo israelita e o alastramento de uma guerra generalizada pelo Médio Oriente.
Quo Vadis Israel?
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