sexta-feira, 20 de março de 2020

Imagine

Imagine there's no heaven/It's easy if you try/
No hell below us/Above us only sky/
Imagine all the people living for today

John Lennon

Serão meses muito difíceis. Poderemos perder pessoas queridas — próximas ou não. Ficaremos em isolamento, nossas vidas de pernas para o ar. Talvez tenhamos a doença, talvez não. Como muitos, sou de uma geração para a qual as grandes guerras são de interesse histórico, mas não estão no plano da vivência, da travessia. Sou de uma geração para a qual a gripe espanhola, que matou dezenas de milhões de pessoas, pertence aos livros e aos artigos científicos. Não pretendo minimizar a gripe espanhola e o sofrimento que ela causou. Mas ela foi uma gripe. O Covid-19, como tenho dito, não é.

Será duro, insisto. E todo mundo precisa de um alívio, de uma exalada forte, de um pouco de alento nesses tempos de incerteza brutal e de muita dor.

Assim como a imaginação nos serve para construir cenários e pensar sobre a crise, como ela haverá de se manifestar e que medidas o governo deve tomar — escrevi sobre o assunto recentemente neste espaço — a imaginação também pode nos orientar para o que virá depois. E haverá um depois, isso é certo. Países não vão desaparecer, o mundo não vai desaparecer. A China não desapareceu. A Itália — quanta dor pela Itália — tampouco desaparecerá. Então, o que pode vir depois? Pode ser que o mundo se desarranje por completo, pode ser que tudo permaneça desarticulado por muito tempo. Mas prefiro imaginar saídas pela capacidade de superação das pessoas. E prefiro imaginá-las a partir de alguns sinais dados pelas respostas de política econômica mundo afora.


Logo antes de a crise estourar, um dos grandes problemas para a economia mundial era a desigualdade e suas ramificações políticas. Vimos muitos eleitores ao redor do planeta irem às urnas com raiva e desilusão, não sem razão. Em muitos casos, da raiva e da desilusão vieram os populistas, os extremistas, os nacionalistas. Parecia que um ciclo se fechava, abrindo outro sombrio. Mas, de súbito, tudo parou. Governos eleitos pelo calor visceral que havia tomado a sociedade foram forçados a mudar de rumo. E falo de líderes autoritários, refratários à ciência, veiculadores de notícias falsas, misóginos, racistas e merecedores de tantos outros adjetivos que não cabe citá-los, porque o espaço acaba. Viram a húbris e a valentia imaginária sucumbir a uma fitinha de RNA. O vírus, em seu estado natural — fora do corpo humano —, não passa de algo que derrete ao toque de um sabonete. Entretanto, ele leva vidas como derruba mitos.


Há dez dias, ninguém imaginava que o governo de Donald Trump ofereceria cheques para sustentar a população americana. Há dez dias, ninguém imaginava que Paulo Guedes e sua turma do Estado minimalista viriam a mudar radicalmente o discurso, agora voltado para os mais pobres e para os mais vulneráveis. Considero as medidas anunciadas ainda insuficientes, mas isso já não importa mais. O Rubicão foi cruzado. Repito: o Rubicão. Os olhos do governo foram forçosamente voltados para aqueles que muita gente resiste a enxergar. Pensei em Victor Hugo.

A crise será longa, o que significa que as medidas e a visibilidade dos vulneráveis não desaparecerão. O mundo que renascerá disso, imagino, será marcado por uma construção mais atenta à solidariedade. Um mundo em que o momento presente, este agora em que talvez você esteja lendo este artigo preso dentro de sua residência, espero que cercado de pessoas queridas, passe a ser o mais importante de todos. Neste mundo, em que o presente se impõe, é muito difícil ignorar nossa própria humanidade e os gestos que dela nascem para acolher os menos afortunados.

Para enfrentar o que vem pela frente, deixo a imaginação. Deixo os versos de John Lennon:

No need for greed or hunger/A brotherhood of man/Imagine all the people sharing all the world.
Monica de Bolle

Pobre não tem recomendação

Isolamento domiciliar não é descer para tomar banho de piscina e dar festa no play
Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde

Exterminador do futuro

A máscara caiu. Não há uma Presidência da República no Brasil, mas um pesadelo. A cada dia fica mais evidente a tragédia que estava anunciada em 2018 e que não foi compreendida a tempo pela maioria do eleitorado. A partir de agora, teremos de matar um leão por dia. Não merecemos isso, nem o vírus que se dissemina, nem o presidente que não governa nem lidera o País nesse momento extremamente delicado.

É simplesmente patética a foto do presidente e de alguns ministros paramentados com máscaras descartáveis. Bolsonaro foi à manifestação, abraçou e beijou um monte de gente, acha que o distanciamento social e o confinamento não passam de histeria desnecessária. Depois, posou de higiênico e cuidadoso. Feitas as fotos, se atrapalhou para tirar a máscara. Ela caiu sozinha, por inteiro. Uma figura aparvalhada, sem saber o que fazer, sem atinar para a gravidade e a dimensão da pandemia. O olhar de todos à mesa de entrevista era de gente assustada.

Dá medo ver que há quem o aplauda e continue a tratá-lo como “mito”. Pessoas assim são uma correia de transmissão, espalham ódio e vírus. Quem são elas, como justificam suas atitudes perante os demais? A chave do fanatismo explica parte do fenômeno. Estamos diante de um tipo social – o indiferente com raiva do mundo — que não surgiu hoje, mas que, de repente, se espalhou e ganhou visibilidade. Gente que pede ditadura, Estado de exceção, AI-5, no exato momento em que mais se necessita de paz, diálogo, cooperação. Gente para quem a vida em sociedade é um fardo, conflito, atrito, violência, que não está nem aí para o bom senso e o espírito público. Um perigo.

A mentira, especialmente quando contumaz, é o pior modo de enfrentar o Covid-19 ou qualquer outro vírus. Desmobiliza e confunde. Trump mordeu a língua depois de passar semanas dizendo que o vírus nada mais era que uma “manobra chinesa”. Bolsonaro segue o mesmo caminho. Passará para a História como um exterminador do futuro.

Depois de banalizar o coronavírus e debochar das medidas sanitárias de seu próprio governo, Bolsonaro encaminhou pedido de calamidade pública. Medida dura e necessária. Mas são chocantes as oscilações presidenciais, que emitem sinais contraditórios para a população e ao fazer isso aumentam a exposição ao vírus. Os panelaços dos últimos dias estão a demonstrar que o bolsonarismo regrediu alguns pontos.

Em termos de capacidade de gestão, equilíbrio e solidariedade, de liderança, o presidente é um fiasco completo. Um caso grave, sem cura. Seu despreparo, seu caráter tosco e grosseiro, só faz atrapalhar. A cada dia, mais gente está se dando conta disso.

Marco Aurélio Nogueira

Reinações de Bananinha

No momento em que o Brasil começa a contar mortos pelo coronavírus, o deputado Eduardo Bolsonaro resolveu fabricar uma crise diplomática. Na noite de quarta, o Zero Três culpou a China pela pandemia. No mesmo tuíte, sugeriu a derrubada do regime comunista, que governa o país há 70 anos.

A provocação enfureceu a embaixada chinesa em Brasília. Não era para menos. A China é o maior parceiro comercial do Brasil. No ano passado, foi responsável por 65% do superavit na nossa balança comercial. Em resposta ao ataque, o embaixador Yang Wanming acusou Eduardo de imitar seus “queridos amigos”. Referia-se ao presidente americano Donald Trump, que politiza a doença e espalha preconceito contra os asiáticos.

Além de ofender os chineses, a molecagem do Zero Três irritou o empresariado e a cúpula do Congresso. Em vez de esfriar a crise, o ministro Ernesto Araújo reforçou a grosseria. Numa nota desastrada, ele cobrou retratação do agredido e passou a mão na cabeça do agressor. A atitude reforçou seu status de chanceler decorativo, que desonra o Itamaraty para adular o filho do chefe.

Em perfil publicado na revista “Piauí”, a repórter Thais Bilenky contou que os amigos de Eduardo costumavam chamá-lo de “Loide”. O apelido fazia referência ao filme “Debi & Loide: Dois Idiotas em Apuros”. Só um néscio teria a ideia de atacar uma nação amiga que acaba de perder 3.245 pessoas para o coronavírus. Graças a uma mobilização em massa, a China virou o jogo e passou a enviar médicos e equipamentos a outros países.
Ontem o embaixador Wanming escreveu que quem insiste em atacar o povo chinês “acaba sempre dando um tiro no próprio pé”. Para colher novos likes da ultradireita, Eduardo pode ter alvejado milhares de brasileiros que serão infectados nas próximas semanas.

O vice Hamilton Mourão, que andava calado, reapareceu para dizer que o deputado não fala pelo governo. “Se o nome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema”, ironizou. Depois de se apresentar como um moderado entre radicais, o general havia submergido. Ele ressurge no momento em que Bolsonaro, o pai, começa a enfrentar panelaços e pedidos de impeachment.

Dançou, Bolsonaro

Ele dançou para uma plateia planetária no seu baile de máscaras. A pantomima encenada na entrevista coletiva rodou o mundo e ficará para a História. O chefe da nação expôs de maneira incontestável seu despreparo e sua ignorância, sua falta de liderança e de senhoridade. Com um figurino coletivo que, esse sim, sugere suprema histeria, o desfile dos mascarados revelou que Bolsonaro testou negativo para presidente. A contraprova foi o panelaço da classe média.


A máscara branca que Bolsonaro manuseava, sem saber onde estavam o nariz, as orelhas, a boca e os olhos, diante de câmeras de televisão, é apenas detalhe alegórico de um atabalhoado que parecia imitar o humorista Marcelo Adnet. Lembrei-me dos exames, no consultório do neurologista, em que fechamos os olhos e levamos o dedo ao nariz, para testar coordenação motora, equilíbrio e saúde mental. Mais uma vez, Bolsonaro mentiu, culpou a imprensa e ensinou tudo errado ao povo brasileiro. Mas o povo não é bobo.

Não sei quem teve a brilhante ideia de tentar passar seriedade e calma ao Brasil com aqueles 10 homens brancos mascarados de terno. Isso é esquete de comédia de terror. Se acreditarmos na OMS e no Ministério da Saúde, só os infectados, os imunocomprometidos, os suspeitos graves e os profissionais de saúde devem usar máscaras para não arriscar contaminação. Bolsonaro mirou sua arminha no próprio pé. E acertou! Virou pato manco.

Nenhum outro presidente de nenhuma outra nação teve ideia tão surreal. O baile sentado de máscaras foi a tradução do coronavírus dos trópicos com um incompetente no poder. Acabou o carnaval, Bolsonaro. Não tem mais futebol, samba nem selfie com seguidores. Metrôs lotados são um crime contra a população e não um lugar para fazer média política. Quem quer proteger a família brasileira não endossa manifestações ao ar livre. Bolsonaro não está nem aí para a ciência e a verdade. Nunca esteve. Anunciou dois dias de “festinha” de seu aniversário e da mulher.

Deveria ter palavras para as famílias dos que já morreram. Solidariedade, empatia e compaixão. Deveria se mostrar apreensivo com a falta de água nas populações carentes, que não têm condições de se proteger adequadamente e lavar as mãos. Muitos estão há 15 dias sem uma gota d’água. Essa é nossa maior tragédia no combate à pandemia. E o presidente afirma que o Brasil está “ganhando de goleada” do coronavírus? Quando poderemos pedir responsabilidade aos milhões de pobres sem nos sentirmos hipócritas?

Um mascarado improvável surgiu na coletiva. O ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Até então nos encantava por sua articulação, clareza, competência, firmeza e cooperação com os outros poderes. Mas se rendeu ao puxa-saquismo explícito a Bolsonaro. Mandetta foi claramente enquadrado pelo presidente, enciumado de seu poder de liderança e mobilização. Afaste de si essa máscara, ministro. Não caia na esparrela política. Assuma seu protagonismo técnico. Ignore as intrigas palacianas. Continue a defender “a galhardia” da China, combata o preconceito e a xenofobia. O oposto da família Bolsonaro.

O panelaço ensurdecedor me emocionou. Que prova de vitalidade e autodeterminação! Na Itália, as óperas nas varandas expressam solidariedade. Música e canto aliviam o isolamento em um país com uma escalada trágica de mortos por coronavírus. No Brasil, as janelas exibem panelas e gritos vindos da alma, contra o presidente. Dançou, Bolsonaro.

Brasil de vírus próprio


Sociedade brasileira desperta e diz basta a Bolsonaro

Não foi a oposição política e os militares que entenderam que, como já havia profetizado o decano do Supremo Tribunal do Brasil, Celso de Mello, o presidente Jair Bolsonaro “se tornou indigno de seu cargo”. Foi a sociedade que, sem sair às ruas, das janelas de importantes cidades do país, com o rito dos panelaços noturno, pediu a saída do mandatário brasileiro.

E é emblemático que está sendo, como revelam as pesquisas, a grave epidemia do novo coronavírus, que está assustando o mundo e que Bolsonaro minimiza e até ridiculariza, o que pode fazê-lo perder o cargo.


Instigar nesse momento seus apoiadores para sair às ruas e defender seu Governo e ele próprio participar, saindo ao encontro dos manifestantes e desprezando todas as orientações dadas por seu ministro da Saúde, foi a gota que transbordou o copo da irritação popular. Enquanto são impostas restrições graves à população, o presidente desobedecia a todas as normas impostas por seu Governo.

Pode parecer uma ironia, mas a chuva de pedidos para a saída do presidente, incluindo dois pedidos formais de impeachment do presidente ao STF, assim como os protestos populares, estão se multiplicando na velocidade do coronavírus do qual ele faz pouco caso.

Se até o escritor ultradireitista Olavo de Carvalho, o guru de Bolsonaro e família, começa a duvidar de seu pupilo, como afirmou pelo Twitter, é porque a queda de seu mito se acelera a cada dia.

Já antes da tragédia da epidemia que está confinando a sociedade em suas casas e que ameaça esse país com tantos bolsões de pobreza de ser mais mortal do que em outros países, o presidente dava sinais claros de não estar à altura de sua responsabilidade para dirigir a nação.

Agora sua postura arrogante diante dessa guerra que ele continua negando quando três ministros de seu Governo, o presidente do Senado e muitos outros políticos de seu entorno foram contaminados, torna insuportável sua continuação à frente de um país grande e rico como o Brasil que se sente, nesse momento de crise, órfão de liderança política.

Se alguns analistas já não negam que a queda de Bolsonaro está encaminhada e que esse despertar da sociedade que pede sua saída não tem volta, é prudente lembrar que faltam alguns ingredientes para selar seu destino. O primeiro, de ordem prática: para colocar um impeachment em andamento, é preciso que Rodrigo Maia, o poderoso e cordato presidente da Câmara dos Deputados, o autorize. Em segundo lugar, a popularidade de Bolsonaro está em queda livre, mas não há sinais de que perdeu sua base mais fiel, entre 20% e 30% da população – situação diferente de Dilma Rousseff em sua época.

Há outro fator, os militares. A situação anômala do Brasil é que o Governo de Bolsonaro, pela primeira vez após a ditadura militar, é formado em sua maioria por militares da reserva e até da ativa. Com mais de cem militares no Governo e nos cargos importantes da Administração pública, nesse delicado momento de crise política, recai sobre eles uma grande responsabilidade.

Os militares são hoje no Brasil uma das instituições do Estado com maior apoio popular. De que lado estarão os militares, muitos deles com biografias de prestígio, para que não manchem sua provada trajetória democrática e a fidelidade à Constituição da ditadura aos dias de hoje, é uma pergunta crucial. As consequências de uma Presidência que não honra com seus gestos e suas atitudes de hostilidade constante à imprensa e às outras instituições do Estado acabariam caindo sobre a classe militar que hoje mantém a confiança da nação. É um momento em que cada dia que passa se torna mais delicado aos militares, por se verem arrastados nessa corrida louca ao abismo político.

O Brasil está às vésperas de uma mudança histórica. Já não se trata da disputa entre direita e esquerda. Milhões de votos dados nas urnas a Bolsonaro pelos que não queriam que a esquerda voltasse ao poder hoje se dizem arrependidos por votar nele. Isso não significa que desejam o retorno aos Governos do PT, mas sim que a Presidência de Bolsonaro se tornou inviável não só para parte da sociedade, como até para famosos gurus intelectuais e empresariais da direita liberal e democrática.

Culpa geral

A pátria é destruída constantemente. Os destruidores estão dentro de nós
Pablo Neruda, "Pelas praias do mundo"

As jabuticabas que vão agravar a crise do coronavírus no Brasil

Nem mesmo os otimistas de plantão – como chefes de torcida e alguns ministros de finanças – conseguem esconder que o mundo terá um ano de forte redução no nível de atividade econômica. Em alguns casos poderemos ver até algumas nações (das grandes) voltarem a encolher de novo.

Nesta altura do campeonato, é difícil fazer projeções muito objetivas: qual será o impacto total da pandemia do coronavírus sobre a economia global? Qual país sofrerá a maior perda de dinamismo econômico? Quem vai conseguir se reabilitar mais rapidamente? Qual o fundo do poço para os mercados financeiros?

Alguns fatores, entretanto, permitem apontar quais países podem viver situações mais agudas da atual crise econômica, de proporções tão gigantescas quanto às registras na grande recessão de 2008.



O Brasil, infelizmente, desponta como integrante da lista das nações onde o ruim pode ficar pior. Tudo isso por conta de algumas jabuticabas.

A primeira delas é a tão comentada lenta recuperação da economia brasileira.

Depois do governo Dilma Rousseff ter produzido a maior retração da atividade econômica nacional registrada na história recente – um mergulho de praticamente 9 pontos percentuais do conjunto de riquezas produzidas pelo país – o Brasil vem escalando o poço como se não houvesse pressa alguma para alcançar o cume.

Mesmo considerando os números revisados do IBGE, a produção de bens e serviços do país – que atende pela sigla de PIB – avançou 1,3% no primeiro ano pós-Dilma. Andou na mesma velocidade no ano seguinte, o segundo do mandato tampão de Michel Temer. E apesar de todo o discurso “anima torcida” do atual ministro da Economia, Paulo Guedes, durante a campanha eleitoral, os primeiros dozes meses da nova administração federal produziram uma taxa de crescimento ainda menor do que a registrada nos dois anos anteriores.

Se a pandemia pode fazer com que a economia dos Estados Unidos, que vinha em forte recuperação, amargue uma retração de até 14% no segundo trimestre deste ano, como estima o banco JP Morgan, imagine o que acontecerá com um país que praticamente se arrasta há três anos?

A segunda jabuticaba é o comportamento do governo Jair Bolsonaro frente à pandemia e suas consequências conhecidas até agora. O presidente tratou com desdém, até muito pouco tempo, a crise de saúde. Não faz dez dias que o presidente, num evento nos Estados Unidos, disse que a “questão do coronavírus” não era “isso tudo” e, na prática, representava uma “fantasia” propagada pela mídia mundial. Só ontem, a Itália registrou 475 mortos da fantasia bolsonariana. A lista de vítimas fatais no Brasil começou a ganhar nomes nesta semana.

Para fechar a equação, o deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do inquilino do terceiro andar do Palácio do Planalto, abriu ontem uma crise diplomática com o maior parceiro comercial do país, ao responsabilizar a China pela pandemia de coronavírus.

Escrevendo numa rede social, o parlamentar e aspirante a chanceler fez a acusação usando como paralelo uma série de TV sobre ao acidente nuclear de Chernobyl.

A provocação pode custar caro, na hora em que a China voltar a produzir no ritmo pré-coronavírus. O governo pode fingir não saber, mas muitas empresas grandes no país afundariam se o gigante asiático resolvesse fazer compras em outros lugares do mundo.

Todas essas jabuticabas podem fazer com que os efeitos do coronavírus sobre a economia local sejam mais profundos e duradouros. Não há como estimar, neste momento, o tamanho do estrago. Mas que ele irá acontecer, infelizmente, isso já dá para cravar.

Impeachment só em 2021. E olhe lá...

Tal como aquela criança da fábula de Hans Christian Andersen que, com a inocência de quem diz a verdade que outros calam por medo, apontou que o rei estava nu, o imigrante haitiano disse a Jair Bolsonaro, na porta do Alvorada, o que todo mundo já percebeu: ele não é mais presidente do Brasil. Pode até ser formalmente, já que ocupa legalmente o cargo. É presidente também para a fatia de seguidores radicais que o apóia. Mas vem perdendo com velocidade a legitimidade para liderar a nação brasileira, sobretudo na crise do coronavírus, depois de tantas demonstrações de incapacidade. Tenta correr atrás do prejuízo, mas parece tarde. Confiança se perde num instante e leva-se anos para reconstruir.


Isso quer dizer que Bolsonaro está prestes a deixar o cargo? Não. Soam infantis e demagógicas declarações que se multiplicam, como a da deputada estadual Janaína Paschoal, com sugestões para que as autoridades da República convençam o presidente a renunciar. Ou como a do jurista Miguel Reale Junior, para quem Bolsonaro deveria ser examinado por uma junta médica para atestar sua loucura. No caso específico desses dois, as afirmações talvez estejam mais para um sinal de constrangimento por terem patrocinado o impeachment de uma presidente da República sob o pretexto de ridículas “pedaladas fiscais” do que para a realidade.

Os últimos dias vêm mostrando que o establishment político e econômico, com seu comportamento volúvel, já quer se livrar de Bolsonaro. Só que não é fácil assim. Janaína deve saber muito bem que ele não é do tipo que ouve conselhos racionais, muito menos para renunciar ao próprio cargo. O ex-capitão é do tipo que vai se entrincheirar no Planalto com os filhos e resistir enquanto puder.

A sugestão da junta médica não pode ser levada a sério. Os psiquiatras examinam Bolsonaro, constatam que ele sofre de um desequilíbrio mental, fazem laudo para o psicopata. E aí? Quem vai declarar o impedimento constitucional com base na loucura?

Vai sobrar para o Congresso, e no modelito de sempre, o impeachment. Só que não, há, no curto prazo, condições políticas para tocar um processo de impedimento do presidente da República. Antes de tudo, porque não se faz isso em meio a uma grave pandemia como a do coronavírus, que vai se arrastar por meses. Em segundo lugar, porque ninguém faz impeachment em ano eleitoral, e teremos o pleito municipal em outubro.

Acima de tudo, está a insegurança do establishment e de seu braço político, o Congresso, quanto à conveniência do impeachment. Para alguns, sobretudo na oposição, a sangria de Bolsonaro até 2022 pode ser mais interessante do que sua substituição pelo general Mourão. A alternativa preferida pela esquerda, o afastamento de presidente e vice para convocação de novas eleições, parece fora do alcance.

Entre os parlamentares mais ligados ao PIB e ao mercado, incluindo aí o Centrão, há uma sensação de que Bolsonaro não terminará o mandato, mas há cautela. Nas contas dessa maioria, as condições para o impeachment virão pelo desgaste do governo na economia, pelo empobrecimento, pela quebradeira das empresas e pela recessão que se avizinha. Mas é preciso esperar seu amadurecimento.

Uma dica: é bom ficar de olho nas eleições de outubro, que se refletirem a desidratação política do presidente e do bolsonarismo, podem ser a senha para o início do processo de impeachment.