quinta-feira, 19 de novembro de 2020

'Hospício' Brasil

 


'Vamos ter fomes de proporções bíblicas em 2021'

“Fomos capazes de evitar (a fome) em 2020 porque os líderes mundiais responderam com dinheiro, pacotes de estímulo e diferimento de dívidas”, começa por explicar David Beasley, líder do Programa Alimentar Mundial (PAM) da ONU, em entrevista à agência Associated Press. Avisa, no entanto, que a missão de atenuar a fome e desnutrição em 2021 será muito mais difícil, já que a Covid-19 está a crescer e o impacto económico vai ser devastador.

Galardoado recentemente com o Nobel da Paz, Beasley tem utilizado o prémio atribuído ao PAM para ganhar mais peso nas conversações com líderes políticos e para enviar “uma mensagem ao mundo de que está a piorar lá fora”. Em abril, alertava o Conselho de Segurança da ONU de que a pandemia ia trazer consigo um efeito pior: “uma pandemia de fome” que iria conduzir o mundo para “múltiplas fomes de proporções bíblicas” em alguns meses.

Agora, com 2020 a chegar ao fim, o líder do PAM mantém a posição, mas com os olhos postos no próximo ano: “O nosso trabalho mais árduo ainda está por vir”. Garante que se tem encontrado com chefes de Estado virtual e presencialmente para reunir esforços, mas “o dinheiro que estava disponível em 2020 não estará disponível em 2021”, já que a economia está a cair em todos os países, incluindo nos mais ricos.

“Agora, precisamos de nos concentrar nos icebergs e os icebergs são a fome, a desestabilização e a migração”, diz. Segundo o Relatório Global de Crises Alimentares, assinado pelo PAM em 2019, os dez países com o maior número de pessoas a passar por uma crise alimentar são, por ordem crescente, Haiti, norte da Nigéria, Sudão, Síria, Sudão do Sul, Etiópia, Venezuela, Afeganistão, República Democrática do Congo e Iémen.

À mesma agência noticiosa, Beasley afirma que, em 2021, o Programa Alimentar Mundial necessita de cerca de 15 mil milhões de dólares, que se dividem em duas vertentes. Num primeiro momento, cinco mil milhões são canalizados “apenas para evitar a fome” e que os restantes dez mil milhões de dólares servem “para realizar os programas globais da agência”, incluindo iniciativas como o lanche escolar, “que muitas vezes são as únicas refeições que os jovens recebem”. “Se eu conseguisse isso com o nosso dinheiro normal, evitaríamos a fome em todo o mundo”, conclui.

A queda da economia fragilizou os governos e, por isso, Beasley tem uma “grande esperança” de que os bilionários que lucraram com a pandemia possam ajudar na luta contra a fome. Disse ainda que vai começar a divulgar a mensagem em dezembro ou janeiro.

A crise de Covid-19 veio agudizar os problemas de fome no mundo. Aos 135 milhões de vítimas deste flagelo, Beasley estima que a pandemia acrescente mais 130 milhões de pessoas. Segundo o líder do PAM, serão cerca de 20 os países que “provavelmente enfrentarão picos potenciais de insegurança alimentar aguda” nos próximos meses.

Iémen, Sudão do Sul e Burkina Faso estão na lista devido a conflitos armados, mas também Afeganistão, Camarões, República Centro-Africana, Congo, Etiópia, Haiti, Líbano, Mali, Moçambique, Níger, Serra Leoa, Somália, Sudão, Síria, Venezuela e Zimbábue requerem uma “atenção urgente”. Para isso, o relatório do Programa Alimentar Mundial chegou a enumerar alguns pontos para a prevenir um maior impacto socioeconómico da crise sanitária nestes e noutros países.

De acordo com o documento, é necessário “expandir sistemas de monitorização remoto de segurança alimentar quase em tempo real” de forma a partilhar informações sobre o impacto da doença “na segurança alimentar e meios de subsistência, saúde, acesso a serviços, mercados e cadeias de abastecimento, entre outros”. É preciso ainda “preservar alimentos humanitários essenciais, subsistência e assistência nutricional para grupos vulneráveis”. A juntar a isto, o programa propõe ainda aumentar o apoio ao “processamento de alimentos, transporte e mercados locais”, com o objetivo de haver sempre um funcionamento contínuo de abastecimento alimentar.

A fome e desnutrição afetam todos os continentes, com destaque para África. As pessoas no estado de Nova Iorque, nos EUA, pagam 0,6% do seu rendimento por um prato de comida. No caso do Sudão do Sul, por exemplo, um prato de comida custa, em média, 186.17% do rendimento. A comparação pode ser feita com outros países, aqui.

Estupidez brutal

Daqui dos EUA de onde escrevo, a bruma da estupidez, do negacionismo, da incompetência já começou a se dissipar. Sim, Trump ainda é presidente, mas ele e seus asseclas não dominam mais as páginas dos jornais. De um lado, isso acontece porque Trump, apesar de sua frívola judicialização eleitoral, já desistiu de presidir o país dois meses antes da posse de Joe Biden. De outro porque o presidente eleito tem ocupado os espaços com anúncios sobre quem vai compor o seu governo, quais serão as medidas prioritárias, o que fará para combater a terceira e a mais terrível onda da pandemia, e como pretende resguardar a economia. No Brasil, ao contrário do que ocorre ao Norte, a estupidez brutal corre sem rédeas.

Que a estupidez brutal impere não é uma surpresa. Ninguém espera que esse governo que está aí aprenda o que quer que seja, até porque sua incapacidade já se revelou tamanha que todas as máscaras caíram. As eleições municipais deram sinais – ainda tênues, é verdade – de que a população pode estar começando a se cansar das gritarias, dos absurdos, dos desditos.

As pessoas querem políticas públicas, clamam por uma agenda, uma estratégia, um plano, qualquer coisa, enfim, que permita um vislumbre dos rumos do País e da vida de cada um quando 2021 chegar. E 2021 é o ano em que o Brasil estará lidando com desafios simultâneos: o de uma campanha eleitoral precoce para 2022 e o de uma segunda onda da pandemia. A segunda onda da pandemia é tão certa quanto a existência do vírus que a provoca. Ela já está evidente em vários números: o de leitos ocupados nos hospitais, o de novos casos, o de óbitos. Mesmo assim, há quem a negue.



Claro que há quem a negue e é claro, também, que os negacionistas não poderiam estar em outro lugar senão dentro do Ministério da Economia. Há um quê de março no ar. Lembram-se de março? Mais especificamente, do dia 16 de março? Foi há oito meses. Nesse dia, quando a pandemia já estava presente no Brasil, o ministro da Economia veio a público dizer que a economia cresceria mais de 2,5% em 2020. Perto da mesma data, Paulo Guedes também disse que enxotaria o vírus do País jogando sobre o RNA encapsulado uns R$ 5 bilhões. Não se deu conta de que o RNA encapsulado não reage nem às notas, nem às palavras que profere. A única coisa da qual ele precisa é de uma célula hospedeira para parasitar, replicar e se proliferar. Dito e feito, a primeira onda estourou bem na cara do ministro. Com volúpia.

Passada essa experiência, era, se não razoável, justificado imaginar que o Ministério da Economia não iria deixar-se pegar novamente no contrapé, sobretudo porque o vírus nunca deixou o País. Mas as oportunidades de engolir as ondas sucessivas de um RNA encapsulado e obstinado não podem ser desperdiçadas.

Em pleno alvorecer da segunda onda, um dos secretários de Guedes veio a público dizer que não há onda alguma e que os Estados brasileiros estão muito bem, obrigado, porque muitos já obtiveram a imunidade de rebanho. Lembram-se dela? Lembram-se de como teve gente insistindo que era esse o caminho, o modelo da Suécia? “Deixem a infecção natural acontecer, que logo, logo estará todo mundo imune!”, bradou a estupidez brutal.

É curioso porque a Suécia acaba de abandonar o modelo sueco por causa da segunda onda e acaba de abandoná-lo devido à segunda onda porque já está comprovado, inclusive na Suécia, que imunidade de rebanho é conceito inaplicável a uma situação de infecção natural. Como já escrevi neste espaço, o termo usado por epidemiologistas se refere àquelas situações em que existe uma vacina para uma doença infecciosa com eficácia comprovada.

Por exemplo, se a eficácia das vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna forem comprovadas, quando começarem a ser distribuídas e as campanhas de imunização estiverem em andamento, seremos capazes de dizer algo sobre imunidade de rebanho. Mas não agora. E certamente não será pelo secretário de Guedes, que já revelou não entender nem de pandemia, nem de economia. Trata-se do mesmo secretário que inventou conceitos inexistentes na disciplina, como PIB privado. Melhor nem perguntar o que é.

Portanto, a estupidez brutal. Brutal e renitente, como o RNA encapsulado. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso.

O ataque dos maricas

O FBI, a CIA e outros órgãos da inteligência americana têm tido dificuldade em entender os relatórios que recebem dos seus agentes no Brasil. Discursos e manifestações do presidente brasileiro são monitorados regularmente, mas, de uns tempos para cá, isso tornou-se uma tarefa problemática. Para começar, ninguém parece saber quem realmente é o presidente do Brasil e faz as declarações que intrigam os agentes americanos. Há quem diga que o presidente é Hamilton Mourão, outros dizem que é Paulo Guedes, outros têm certeza de que é José Simão, e ainda outros sustentam (a opção menos provável) que é Jair Bolsonaro ou um dos seus filhos. O jeito é monitorar todos ao mesmo tempo. O objetivo é detectar e prevenir qualquer ameaça à segurança dos Estados Unidos.



Uma recente fala presidencial de improviso aumentou a confusão. Os termos do pronunciamento ainda estão sendo estudados. Eles podem indicar que o Brasil prepara-se para invadir os Estados Unidos e:

 a) manter o Trump no poder, cercando a Casa Branca e repelindo qualquer tentativa de retirá-lo de lá a cusparadas — o que explicaria a críptica referência à saliva transformando-se em pólvora, no discurso do presidente;

b) sequestrar o Biden, disfarçá-lo com uma peruca loira, soltá-lo no meio de uma manifestação contra o racismo e correr atrás dele gritando “É o Trump! Pega! Pega!”.

Os analistas americanos também tentam decifrar o sentido da palavra “maricas”. Não fica claro, no discurso, se “maricas” é apenas quem tem medo de morrer e, portanto, é um desprezível, ou se o presidente estava fazendo uma ameaça velada aos americanos, avisando que brasileiros maricas podem ter medo de morrer e horror a baratas, mas não os desafiem, eles podem ser ferozes. Os americanos decidem que um ataque dos maricas virá e preparam suas defesas. A segurança nas fronteiras é reforçada. Todos devem ficar atentos a grupos barulhentos que lotam os aeroportos . São os maricas que chegam. 
Luis Fernando Veríssimo

Como agem os inimigos da democracia

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, disse que “milícias digitais entraram em ação tentando desacreditar o sistema” de votação e apuração eleitoral, referindo-se aos ataques virtuais sofridos pela Justiça Eleitoral no primeiro turno das eleições municipais. E o ministro foi além: disse que “há suspeita de articulação de grupos extremistas que se empenham em desacreditar as instituições, clamam pela volta da ditadura e muitos deles são investigados pelo Supremo Tribunal Federal”.

Trata-se de grave revelação, que demanda investigação policial e punição exemplar dos envolvidos. A suspeita levantada pelo ministro Barroso mostra que estamos diante de um atrevido repto à democracia.

A estratégia desses criminosos é simples: semear a dúvida sobre as instituições democráticas para desmoralizá-las aos olhos dos cidadãos, fortalecendo o discurso autoritário dos que pretendem governar diretamente com o “povo”, sem a intermediação do establishment político-partidário.

A suspeita sobre a lisura do sistema de votação é central nessa estratégia. Os inimigos da democracia a levantam para questionar a legitimidade do resultado da eleição se este lhes for desfavorável. A rigor, segundo essa narrativa, nem haveria necessidade de eleição, pois o único resultado possível de qualquer consulta popular, desde que não haja “fraude”, é a vitória incontestável dos liberticidas.

Ou seja, se o vencedor da eleição não fizer parte dessa gangue será imediatamente desqualificado como representante do povo e será denunciado como preposto do “sistema”, supostamente desenhado para impedir, por meio de maquinações e conspirações, que a vontade popular seja realizada.


Esse embuste obviamente nada tem a ver com democracia. Oposição é fundamental num regime democrático, mas deixar de reconhecer a legitimidade da vitória eleitoral de um adversário é coisa bem diferente: significa negar a alternância do poder, sem a qual tiranos se perpetuam.

Parece sintomático, assim, que o presidente do TSE tenha mencionado que os suspeitos do ataque ao sistema da Justiça Eleitoral sejam extremistas que “clamam pela volta da ditadura”, pois esse parece ser o fulcro do plano original desses marginais que o bolsonarismo trouxe ao centro da política nacional.

Os inconformados com a redemocratização do Brasil não descansarão enquanto não realizarem sua obra deletéria. As manifestações contra o Supremo Tribunal Federal e contra o Congresso ao longo do governo de Jair Bolsonaro foram apenas um aperitivo do que essa gente é capaz. A criação de um clima de desconfiança generalizada, que esgarça laços de solidariedade e inviabiliza a democracia, é o passo seguinte.

Por isso, é reconfortante saber que a Justiça Eleitoral não somente manteve intacto o sistema de votação, reconhecidamente um dos mais seguros do mundo, como reagiu rapidamente ao ataque que sofreu e indicou de maneira clara que tipo de ideologia criminosa o motivou. Os brasileiros devem saber que suas eleições são limpas, de modo que não pairem dúvidas sobre a legitimidade dos eleitos.

Para que a democracia seja preservada, contudo, é preciso que Jair Bolsonaro, na condição de chefe de Estado, pare de questionar a confiabilidade das urnas eletrônicas, como fez seguidas vezes desde que chegou ao poder e tornou a fazer depois das eleições de domingo passado – como a justificar a acachapante derrota que sofreu.

A mudança de comportamento do presidente é especialmente necessária ante a suspeita de que houve, nas palavras do ministro Barroso, uma “orquestração” contra o sistema eleitoral e as instituições – ou seja, o ataque teria sido realizado apenas com o intuito de alimentar a narrativa segundo a qual o sistema não é confiável – e que essa “orquestração” teria como protagonistas conhecidos manipuladores das redes sociais. Cabe então a Bolsonaro desvincular-se dessa trama, expressando sua confiança no sistema; se não o fizer, estará se prestando ao vergonhoso papel de cúmplice da trama.

Pensamento do Dia

 


A esperança no combate ao ódio está nos livros

Estou lendo “O infinito num junco”, da escritora espanhola Irene Vallejo, uma história do livro e da leitura, já publicado em Portugal, mas, tanto quanto sei, ainda não disponível nas livrarias brasileiras. A páginas tantas, a propósito da insistente prática humana em queimar livros e bibliotecas — desde a destruição da Biblioteca de Alexandria até as fogueiras nazis —, Irene Vallejo cita uma frase do cartunista Andrés Rábago, El Roto: “As civilizações envelhecem, a barbárie renova-se.”

Concordo no que diz respeito às civilizações, mas não estou tão certo quanto à barbárie. A barbárie é sempre a mesma, move-se às cegas pelas ruas, gritando idênticas frases de ódio contra qualquer transformação. A estupidez não evolui. Transmite-se, como uma doença infame, ao longo dos séculos. Só as circunstâncias se renovam.


Uma das várias versões sobre a destruição da Biblioteca de Alexandria implica no crime o então governador provincial do Egito, Amer Ibn Alas. Quando lhe perguntaram o que fazer com tantos livros, Amer teria retorquido: “Se esses livros estiverem de acordo com o Corão, então são redundantes e, portanto, supérfluos. Se não estiverem, são heréticos.” Esta mesma versão assegura que os livros foram utilizados para aquecer os banhos públicos. Terão sido necessários seis meses para queimar todos os papiros.

Irene Vallejo mostra-nos que a história do livro é também uma história contra o livro — ou seja, contra o pensamento. Há as grandes fogueiras e há as pequenas fogueiras. Normalmente, as grandes começam por ser pequenas. Pensemos no Brasil: hoje, fundamentalistas cristãos queimam os livros de Paulo Coelho e de João Paulo Cuenca. Amanhã, estarão ateando fogo à Biblioteca Nacional. Depois de amanhã, se os deixarem, arrastarão até à fogueira os próprios escritores.

Na essência, não há diferença alguma entre a deformidade espiritual de um fundamentalista islâmico e de um fundamentalista cristão.

Uma única nuvem do tipo cumulus — aqueles flocos de algodão, bem definidos, que se destacam no azul do céu — pode pesar tanto quanto uma manada de elefantes. Obviamente, uma dessas nuvens é muito maior do que um elefante. Um cumulonimbus pode alcançar até 15 quilômetros de altura. Junta, a água esmaga. Dispersa, levita.

Acontece o mesmo com o ódio. Isolado, mal se dá por ele. O ódio isolado quase não tem peso. Um único homem tomado pelo ódio suscita mais facilmente troça do que terror. O problema é quando surgem homens que atuam como catalisadores de ódio. Estamos a ver isso acontecer neste preciso momento em países como Moçambique, onde, no último fim de semana, um grupo associado ao Estado Islâmico decapitou 50 camponeses.

Embora num contexto muito diferente, estamos a ver também isso suceder nos EUA, em torno do inacreditável delírio de Donald Trump, ocupado agora em criar uma laboriosa realidade paralela que lhe permita perpetuar-se no poder.

A única esperança no combate ao ódio e à loucura — como se conclui lendo “O infinito num junco” — está nos próprios livros. Como canta o português Manuel Freire, “não há machado que corte / a raiz ao pensamento. // Nada apaga a luz que vive / no amor, no pensamento.”

Já deixou...


O Brasil foi um líder no passado, seria uma pena se deixasse de ser

Barack Obama

A maré não está nada boa para Bolsonaro

Seria melhor mesmo se Bolsonaro tivesse ficado de fora das eleições municipais, como pretendia inicialmente. Mas a tentação de humilhar seu arqui-inimigo João Doria era, claramente, grande demais. Entretanto, a aposta de que Celso Russomanno poderia derrotar em São Paulo o PSDB do prefeito Bruno Covas e, logo, indiretamente, de João Doria, saiu pela culatra. Russomanno começou, mais uma vez, forte, e depois afundou mais fortemente ainda.

Também em outros lugares, os candidatos de Bolsonaro tiveram um desempenho ruim. É claro que eleições municipais não necessariamente indicam tendências no plano federal, pois muitas vezes tratam de problemáticas locais. Mas, quando o presidente entra na briga, não tem como não avaliar o resultado. Portanto, seria esse desempenho ruim de Bolsonaro apenas um ponto baixo temporário ou uma tendência que deve levá-lo a enfrentar um destino semelhante ao de seu modelo, Trump?

Sempre é difícil fazer comparações e paralelos entre Brasil e Estados Unidos. Mas já que Bolsonaro se apresenta como o "Trump tropical" e tenta copiar seu modelo político, não há como escapar de uma busca por semelhanças.

Os EUA têm um sistema bipartidário no qual os republicanos de Trump se transformaram em uma direita radical com características antidemocráticas. Embora esse campo tenha perdido, Trump ganhou, ao mesmo tempo, cerca de 8 milhões de votos a mais do que em 2016. Com isso, se posiciona para um possível retorno em 2024 – desde que consiga manter o controle sobre os republicanos.



Já Bolsonaro e a direita radical e antidemocrática no Brasil não têm uma base partidária tão sólida quanto Trump. O presidente brasileiro está até sem partido, porque não conseguiu criar sua Aliança pelo Brasil. O PSL, com o qual ganhou de forma fulminante em 2018, conseguiu ganhar cargos nas eleições municipais, mas apenas em cidades pequenas.

Bolsonaro é, portanto, o one man show da extrema direita, sem qualquer apoio partidário. E com adversários perigosos no campo da direita. Assim, a direita moderada do Democratas e do PSD pode festejar vitória nessas eleições.

Por outro lado, a esquerda brasileira se saiu mal, sobretudo o PT, mas também PSB e PDT. Somente o PSOL cresceu, se consolidando cada vez mais como uma liderança no campo de esquerda. Mas isso não será suficiente para ameaçar Bolsonaro na eleição presidencial de 2022. A empreitada requer uma ampla aliança de forças democráticas moderadas, tanto da esquerda, como do centro à direita moderada.

Essa aliança existe nos EUA, onde os democratas atualmente unem socialistas, social-democratas e a direita democrática moderada. Juntos, levaram às urnas cerca de 11 milhões de votos a mais do que Hillary Clinton recebeu em 2016 e foram capazes de derrotar Donald Trump.

Mas será que tal aliança seria concebível no Brasil para as eleições de 2022? E quem seria o Joe Biden brasileiro para criar uma aliança tão ampla?

Ainda há um longo caminho a percorrer até as eleições de 2022. Mas se existe uma tendência, é o enfraquecimento do poder dos extremos, tanto de esquerda quanto de direita, que ainda dominavam as eleições de 2018.

Em vez disso, os brasileiros parecem ansiar por uma política menos agitada. Por uma figura como o presidente do Congresso, Rodrigo Maia, por exemplo, que poderia construir uma frente ampla contra Bolsonaro com tons mais calmos. Esse pode ser o sinal de novembro de 2020, um mês ruim para Jair Messias Bolsonaro.
Thomas Milz

Uma campanha propositiva

A festa domingueira da democracia brasileira já merece ser saudada como um dos maiores eventos democráticos nos últimos anos em nosso país. Quantos desafios! E foram superados.

O Tribunal Superior Eleitoral, com condução firme e transparente, venceu todos os obstáculos e permitiu que cerca de cento e trinta milhões de brasileiros pudessem acorrer às urnas e legitimamente escolher os seus representantes municipais da próxima quadra.

Se pudéssemos eleger o vencedor dos vencedores, ele foi, sem sombra de qualquer dúvida: o POVO BRASILEIRO.


O povo que não se deixou abater pelo medo e enfrentou, com regras sociais adequadas, o alarmante surto de Coronavírus. E votou consciente.

O povo que demonstrou uma sutil tendência de fugir ao estereótipo maniqueísta vencedor do último pleito.

O arco ideológico encaminhou-se mais para o centro do ideário político. E indicou possíveis mudanças!

Alguns destemperados poderiam jocosamente “viralizar” mais uma piada de mau gosto: “são uns isentões”. Aliás, até pouco tempo, quase uma ofensa contra pessoas menos propensas ao confronto.

Mais de cinco mil municípios encerraram suas disputas e precisarão, os eleitos, se organizarem para transformar a vontade do povo expressa nos votos, em ações que dignifiquem ainda mais o processo democrático.

Entretanto, duelos importantes, sobretudo em colégios eleitorais de capitais, ainda se desenvolvem. O caldo resultante dessas disputas mais emblemáticas, por certo, influenciará nos próximos dois anos o ritmo, as alianças e os processos para a seleção aos postos de maior relevância nos legislativos e executivos em todo o país.

A frase mais ouvida nas muitas entrevistas concedidas a órgãos de imprensa pelos candidatos ainda em disputa foi: desejo uma campanha propositiva.

Surpreendeu-me o uso dessa expressão. Ora bolas!

Alguém busca convencer pessoas, em contenciosos eleitorais, que não seja propondo ideias a realizar?

Como sempre existe uma exceção. Até se pode tentar esse caminho pantanoso, sob determinadas circunstâncias e em curtos períodos de tempo.

É quando as ideias são transformadas em vagas de ódio para fortalecer a sanha de seguidores inescrupulosos; é quando o concorrente passa a ser um inimigo a ser eliminado; é quando o programa de governo a ser desenvolvido não passa de uma quimera, mas oferece pão e circo aos eleitores menos preparados para a escolha consciente. Aí não se apresentam propostas, apenas rancor, ódio e engodo.

É por isso mesmo eleitor, passada a adrenalina desse primeiro embate, que você deve refletir e se preparar para expurgar líderes que conduzem a sua trajetória política como se guiasse carros desgovernados.

A cada curva, um freio de supetão para mostrar quem manda. A cada chicana, uma mudança de postura, ansiando obter vantagens ao passar reto onde deveria reduzir a velocidade. A cada falta de combustível, uma parada para abastecer com apenas um galão que o leve até o próximo posto. A cada infração à regra, um pedido de reconsideração, mesmo sabendo que não lhe é merecido o perdão.

Melhor pressionar a tecla ENTER dos candidatos que se mostram aptos a conduzir “na ponta dos dedos” o seu destino, eleitor.

Candidatos que demonstrem conhecer verdadeiramente os problemas da sua urbe. Que utilizem planejamentos claramente factíveis e que, em consequência, tenham foco para chegar até a linha da vitória, conquistando para vocês o troféu mais importante: o da paz e o do bem-estar social.

Meia volta, volver

O resultado mais importante desta eleição municipal é que ela parece marcar o fim da polarização dos extremos políticos, caldo de cultura que levou Bolsonaro ao poder em 2018. A sensação é de que essa maneira de fazer política cansou os eleitores, que estão procurando coisas novas, não necessariamente do ponto de vista etário, mas diferente do cardápio que foi oferecido em 2018.

O fracasso do governo Bolsonaro, juntamente com a “nova política”anunciada na campanha presidencial e que acabou ancorada na velha política, mostra que o presidente fez bem ao escolher aliar-se ao Centrão para organizar sua base congressual, mas também que ele agora tem menos força na negociação com seus novos parceiros.

PP e PSD são as estrelas do Centrão, mas partidos que abandonaram o grupo para uma posição independente, como DEM e MDB, também se destacaram. O Centrão é tradicionalmente formado por partidos que se adaptam a qualquer governo, e essa maleabilidade também é uma ameaça à composição parlamentar de Bolsonaro, pois, para se posicionarem em outros caminhos, não custa. Até na esquerda os eleitores procuraram novas alternativas, a mais emblemática o PSOL, que não quer ser moderado, mas não está envolvido em corrupção, ao contrário, nasceu da revolta de alguns membros do PT com relação à corrupção, quando da confissão do marqueteiro Duda Mendonça, que admitiu ter recebido pagamento do PT em contas no exterior no mensalão.

O choro na ocasião de deputados petistas como Chico Alencar, que ontem teve uma grande votação no Rio como vereador pelo PSOL, ainda marca essa dissidência. Não é de estranhar que o PSOL continue aliado do PT, assim como o PSDB, nascido de uma dissidência dentro do MDB, ganhou vida própria, mas não impediu que os tucanos aderissem ao governo Michel Temer. Mas são bichos diferentes.




Está claro que as pessoas querem eficiência – para prefeito, essa exigência ainda é mais forte –, mas diante da tragédia que é o governo Bolsonaro, essa tendência vai contar mais na disputa presidencial em 2022 do que contou em 2018. A capacidade de gestão, o conhecimento, a experiência do candidato, passaram a contar para além da disputa ideológica.

Em São Paulo, o candidato do PSOL Guilherme Boulos, que teve uma votação importante, superando candidatos tradicionais como Marcio França ou Russomano e tornando-se o líder hegemônico da esquerda neste momento, vai procurar jogar o prefeito Bruno Covas para a direita, enquanto Covas já começou a colocá-lo como radical.

Ontem mesmo, depois do discurso de Covas na noite anterior dizendo que os paulistanos recusam o radicalismo, o governador tucano João Doria, candidato potencial do PSDB à presidência da República, disse uma frase que resume o que será a campanha nesse segundo turno: “Aqui, nós defendemos a propriedade privada, eles invadem”.

A pandemia foi fator preponderante nessa eleição. Ficou claro que governadores e prefeitos que tiveram atitudes firmes no combate ao coronavirus, à Covid -19, que adotaram desde o início o afastamento social e a obrigatoriedade de usar máscaras foram recompensados no final pela população, que entendeu que não era uma política contra, mas a favor dela.

É a antítese da pregação de Bolsonaro, que foi derrotado fortemente nessa eleição, não apenas pelos candidatos que apontou terem sido derrotados na ampla maioria dos casos, mas porque a visão dele da pandemia foi derrotada. Ele mesmo ficou irritado, recentemente comentou não entender como os políticos que fecharam tudo, quebraram a economia, estão sendo reeleitos.

Bolsonaro, num claro declínio, só recuperará sua popularidade se conseguir colocar o auxílio emergencial de novo na mão desses milhões de brasileiros que estão perdidos, sem emprego, sem perspectiva. Mas isso ele dificilmente vai conseguir, pois quebraria o país. A deputada mais votada no Brasil em 2018 foi Joyce Hasselman, que ontem foi das ultimas na eleição para a prefeitura de São Paulo. A deputada Carla Zambelli não conseguiu eleger o irmão, e apelou, insinuando fraude na eleição, seguindo os passos do próprio Bolsonaro, que ontem, aproveitando-se do problema técnico na apuração do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), voltou a insistir na inconfiabilidade de nossa urna eletrônica. Michele Bolsonaro apoiou quatro candidatos a vereador, e nenhum se elegeu. A ex-mulher de Bolsonaro, mãe dos 01,02,03, não se elegeu. Carlos Bolsonaro teve menos votos do que em 2016.

Assim como 2016 deu sinais do que poderia acontecer em 2018, agora parece que o vento deu meu volta, no sentido da direita civilizada .