sábado, 23 de novembro de 2019

Para relaxar


Em cena, o Partido do Três Oitão

O nome oficial é Aliança pelo Brasil. Mas pode chamá-lo de Partido da Família Bolsonaro. Ou Partido do Três Oitão. Na hora de votar, se preferir, crave 38. “Acho que é um bom número, né?” – perguntou o presidente Jair Bolsonaro no ato de lançamento da nova legenda. E justificou: “Mais fácil de gravar”.

De fato, mais fácil. E coerente com o programa do partido que fala no “direito inalienável dos brasileiros de possuir e portar armas de fogo”. O programa chama aborto de “assassinato de criança”. E condena o “ativismo judiciário – bandidos que estejam no poder munidos de armas ou de canetas”.



Nada a ver com caneta azul, azul caneta com a qual Bolsonaro assina seus despachos. Ontem mesmo, ele assinou mais um que, se aprovado pelo Congresso, facilitará a vida de militares e policiais destacados para restabelecer a ordem pública. Estarão liberados para “atirar na cabecinha” de bandidos.

Se o nome Partido do Três Oitão inspira medo em almas sensíveis, o outro é mais acolhedor e faz sentido. O presidente do Partido da Família Bolsonaro será Jair, o pai. O vice, Flávio, seu primogênito. A Comissão provisória será formada por dois assessores de Bolsonaro, um de Eduardo e dois advogados da família.

Jair Renan, o Zero Quatro, e o único dos filhos de Bolsonaro sem mandato, apareceu ao lado do pai no ato de lançamento e ainda poderá ganhar uma vaga na comissão provisória do novo partido. O desafio da comissão é conseguir em tempo recorde cerca de 500 mil assinaturas de eleitores em pelo menos nove Estados.

Do contrário, o partido não participará das eleições do próximo ano. Caberá à Justiça Eleitoral decidir se as assinaturas poderão ser digitais ou se terão de ser físicas como foram para a criação dos demais partidos. As físicas demandam tempo. É mais lento o processo de conferir uma por uma para evitar repetição.

Até se eleger presidente, Bolsonaro combateu o voto digital. Dizia que ele não era confiável. Bateu-se pelo retorno do voto impresso, segundo ele, menos sujeito à fraude. Bolsonaro e seus filhos mudaram. Querem que as assinaturas de apoio ao partido da família possam ser digitais. O argumento deles não é mal.

“Já temos o cadastramento biométrico de 75% dos eleitores brasileiros”, observa Flávio, o senador. “A assinatura física já não tem cabimento”. A manada de seguidores dos Bolsonaro está nos cascos para reunir as assinaturas. Se a Justiça autorizar será vap vupt. Afinal, tempos modernos!

Tempos estranhos também. No país campeão continental em número de partidos, jamais houve um tão escandalosamente a serviço de uma única família. Alvíssaras! Nasce uma jabuticaba de fato brasileira, coisa nossa e de mais ninguém.

A bancada do racismo

A imunidade parlamentar existe para garantir o direito à crítica e à liberdade de expressão. Não deve ser usada para proteger políticos que incitam o ódio e cometem crime de racismo.

Na véspera do Dia da Consciência Negra, dois deputados do PSL fizeram declarações explicitamente discriminatórias. A dupla destilou preconceito a pretexto de explicar por que 75,4% dos mortos em intervenções policiais são negros.


A primeira ofensa partiu do deputado Coronel Tadeu, que arrancou e pisoteou uma charge sobre a violência policial. Não foi um ato impulsivo. O parlamentar levou um assessor para filmar a performance e divulgá-la nas redes sociais.

Em entrevista à “Folha de S.Paulo”, o deputado-coronel disse que os negros seriam maioria no tráfico de drogas. Por isso, correriam mais risco de morrer nas mãos da PM. “Em confronto com policiais, as (pessoas) que estão no tráfico acabam sendo vitimadas. E aí, se a maioria é negra, o resultado só pode ser esse”.

O deputado Daniel Silveira, cabo da PM fluminense, reforçou o racismo na tribuna. “Tem mais negros com armas, mais negros no crime e mais negros confrontando a polícia”, disse. “Não venha atribuir à Polícia Militar do Rio as mortes porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado”, acrescentou.

Eleitos na onda bolsonarista, os nobres deputados têm em quem se espelhar. Em sete mandatos na Câmara, o atual presidente sempre pregou o ódio e a intolerância sem sofrer qualquer punição. No ano passado, a Procuradoria-Geral da República tentou processá-lo por crime de racismo. Numa só palestra, ele havia insultado quilombolas, indígenas, refugiadas, mulheres e homossexuais.

A Primeira Turma do Supremo rejeitou a denúncia por 3 votos a 2. No julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso alertou que engavetar o caso significaria “passar à sociedade brasileira a mensagem errada de que é possível tratar com menosprezo, desprezo, diminuição e menor dignidade as pessoas negras e homossexuais”.

Os deputados do PSL parecem ter recebido a mensagem.

Ironias do pinochetismo brasileiro

Depois de “o nazismo foi de esquerda”, a nova temporada na série de falsificações históricas do bolsonarismo tem o ditador chileno Augusto Pinochet como herói principal. O pinochetismo é outra ideologia que, depois de bem velhinha, veio morar no Brasil: a direita chilena hoje no poder, a começar pelo próprio presidente Sebastián Piñera, tenta ao máximo se afastar do pesadelo dos anos Pinochet.

Não por acaso, quando Jair Bolsonaro atacou o pai da ex-presidente Michelle Bachelet, torturado e assassinado pela ditadura chilena, Piñera —recém-chegado de Brasília, no auge da crise dos incêndios na Amazônia— foi forçado a ir à TV se distanciar do aliado brasileiro.

A ironia maior é que Pinochet representa a antítese de vários valores que o bolsonarismo diz representar.

Aos lavajatistas roxos, por exemplo, vale lembrar que Pinochet foi talvez o líder mais corrupto da história do Chile. Quem descobriu isso não foi Cuba, mas o Senado e o Departamento de Justiça dos EUA —o mesmo que ajudou o Ministério Público brasileiro a derrubar o cartel das empreiteiras, na era petista.


Quando os EUA apertaram o cerco contra lavagem de dinheiro, no pós-11 de setembro, encontraram milhões de dólares de Pinochet em um arquipélago global de contas secretas e offshores. A investigação acabou por destruir o Riggs Bank, de Washington, que ajudava o ditador a esconder a fortuna.

Aos saudosistas do regime militar brasileiro: seis meses após o golpe no Chile, Pinochet já havia se tornado uma figura tão tóxica que o novo presidente Ernesto Geisel, por meio do Itamaraty, pediu explicitamente que não viesse à sua posse, em Brasília. Ele veio mesmo assim, mas Geisel recusou convites insistentes para uma visita oficial ao Chile.

As repressões chilena e brasileira colaborariam —agentes da Dina, a polícia secreta chilena, chegaram a ser treinados no Brasil—, mas o país terminaria por boicotar os planos mais ambiciosos de Pinochet, sobretudo na Operação Condor.

Trumpistas brasileiros talvez se esqueceram de que Pinochet ordenou um atentado terrorista no coração de Washington, com o carro-bomba que matou o ex-ministro Orlando Letelier e dois cidadãos americanos. Aliás, Ronald Reagan, herói conservador, tinha péssimas relações com o ditador.

Os EUA ajudaram a destruir a democracia chilena, em 1973, mas também pressionaram pela saída de Pinochet, em 1990.

Quem defende pena de morte a traficante faria bem em saber que a Dina, sob ordens de Pinochet, tornou-se um cartel da cocaína aliado aos narcos colombianos. Segundo o chefe da agência, Manuel Contreras, uma de suas inovações foi a chamada “coca negra”, supostamente à prova de cães farejadores.

Chicago Boys (ou “Oldies”) deveriam ver a nova literatura sobre história econômica do Chile. Resumo: Salvador Allende destruiu o país, mas o chamado “milagre chileno” é um mito e, sob a democracia, o Chile cresceu muito mais e acelerou a melhora de todos os indicadores sociais. Claro, isso foi possível porque a esquerda incorporou parte da agenda da direita —mas, pelas últimas notícias de Santiago, os custos desse programa foram gravemente subestimados.

E, mais ainda, como pode alguém que diz defender valores judaico-cristãos, a família e a castidade adular um regime que perseguiu líderes religiosos, desapareceu crianças e usou o estupro como arma?

Talvez o pinochetismo tupiniquim seja fruto da ignorância histórica, da política feita de memes e gritaria online —e espero que as informações acima tragam alguma luz. Mais provável, porém, é que Pinochet esteja sendo celebrado no Brasil de hoje justamente pelo que, de fato, foi: um assalto à democracia, ao Estado de direito, às liberdades e à condição humana.
Roberto Simon, diretor sênior de política do Council of the Americas

Os bruzundangas (prefácio)

Na Arte de furtar, que ultimamente tanto barulho causou entre os eruditos, há um capítulo, o quarto, que tem como ementa esta singular afirmação: "Como os maiores ladrões são os que têm por oficio livrar-nos de outros ladrões."

Não li o capítulo, mas abrindo ao acaso um exemplar do curioso livro, achei verdadeira a cousa e boa para justificar a publicação destas despretensiosas "Notas".

A "Bruzundanga" fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos. Sua missão é, portanto, como a dos "maiores" da Arte, livrar-nos dos outros, naturalmente menores.

Bem precisados estávamos nós disto quando temos aqui ministros de Estado que são simples caixeiros de venda, a roubar-nos muito modestamente no peso da carne-seca, enquanto a Bruzundanga os tem que se ocupam unicamente, no seu ofício de ministro, de encarecerem o açúcar no mercado interno, conseguindo isto com o vendê-lo abaixo do preço da usina aos estrangeiros. Lá, chama-se a isto prover necessidades públicas; aqui, não sei que nome teria…

E semelhante ministro daqueles "maiores" de que a Arte nos fala, destinados a ensinar-nos como nos livrar dos nossos modestos caixeiros de mercearias ministeriais.


Não contente com ter dessas cousas, a Bruzundanga possui outras muitas que desejava enumerar todas, pois todas elas são dignas de apreço e portadoras de ensinamentos proveitosos.

Como não poderíamos aproveitar aquele caso de um doutor da Bruzundanga, ele mesmo açambarcador de cebolas, que vai para uma comissão, nomeada para estudar as causas da carestia da vida, e propõe que se adotem leis contra os estancadores de mercadorias?

É que este doutor dos "maiores" de que nos fala o célebre livrinho sabia perfeitamente que não estancava e tinha o hábito de reservas mentais. Não açambarcava, mas "aliviava" logo uma grande porção de mercadorias para o estrangeiro, por qualquer cousa, de modo que… Le pauvre homme! Podia até iludir o nosso pobre Beckman!

Com este exemplo, os menores daqui poderão ser denunciados por este grandalhão de lá, tão generoso e desinteressado, e o nosso povo poderá livrar-se deles.

Conheci na Bruzundanga um rapaz (creio que está nas "Notas"), de rabona de sarja e ares de familiar do Santo Ofício, mas tresandando a Comte, senão a anticlericalismo, que, de uma hora para a outra, se fez reitor do Asilo de Enjeitados, apandilhado com padres e frades, depois de ter arranjado um rico casamento eclesiástico, a fim de ver se, com o apoio da sotaina e do solidéu, se fazia ministro ou mesmo mandachuva da República. Que "maior" não acham?

E aquele que, tendo sido ministro do imperador da Bruzundanga e seu conselheiro, se transformou em açougueiro para vender carne aos vizinhos a dez réis de mel coado, graças às isenções que obteve com o prestígio do seu nome, dos seus amigos, da sua família e das suas antigas posições, enquanto os seus patrícios pagavam-lhe o dobro?

Quantos exemplos de lá, bem grandes, nos irão precaver contra os pequeninos de cá… A Arte fala a verdade…

Outra cousa curiosa da Bruzundanga, das grandes, das extraordinárias, é a sua "Defesa Nacional".

Lá, como em toda a parte, se devia entender por isso a aquisição de armamentos, munições, equipamentos, adestramento de tropas, etc.; mas os doges do Kaphet (vide texto) entenderam que não; que era dar-lhes dinheiro, para elevar artificialmente o preço de sua especiaria. De que modo? Retendo o produto, proibindo-lhe a exportação desde certo limite, conquanto se houvessem tenazmente oposto a que semelhante medida fosse tomada no que toca às utilidades indispensáveis à nossa vida: cereais, carnes, algodão, açúcar, etc.

É preciso notar que tais utilidades, como já fiz notar, iam para o estrangeiro por metade do preço, menos até.

Aprendamos por aí a conhecer os nossos "menores".

Poderia muito bem falar de outros grossos casos de lá, capazes de nos livrar dos tais pequenos daqui; mas, para quê?

As páginas que se seguem vão revelá-los e eu me dispenso de narrá-los neste curto prefácio, Pobre terra da Bruzundanga! Velha, na sua maior parte, como o planeta, toda a sua missão tem sido criar a vida e a fecundidade para os outros, pois nunca os que nela nasceram, os que nela viveram, os que a amaram e sugaram-lhe o leite, tiveram sossego sobre o seu solo!

Ainda hoje, quando o geólogo encontra nela um queixal de Megatherium ou um fêmur de Propithecus tem vontade de oferecer à Minerva uma hecatombe de bois brancos!

Vivos, os bons são tangidos daqui para ali, corridos, vexados, se têm grandes ideais; mortos, os seus ossos esperam que os grandes rios da Bruzundanga os levem para fecundar a terra dos outros, lá embaixo, muito longe…

Tudo nela é caprichoso, e vário e irregular. Aqui terreno fértil, úbere; acolá, bem perto, estéril, arenoso.

Se a jusante sobra cal, falta água; se há para montante, falta cal…

As suas florestas são caprichosas também; as essências não se associam. Vivem orgulhosamente isoladas, tornando-lhes penosa a exploração. Aqui, está uma espécie e outra semelhante só sé encontrará mais além, distante…

Envelheceu, está caduca e tudo que vem para ela sofre-lhe o contágio da sua antiguidade: caduquece!

Contudo, e talvez por isso mesmo, os seus costumes e hábitos podem servir-nos de ensinamento, pois, conforme a Arte de furtar diz: "os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões".

Por intermédio dos dela, dos dessa velha e ainda rica terra da Bruzundanga, livremo-nos dos nossos: é o escopo deste pequeno livro.
Lima Barreto, Todos os Santos, 2-9-17

Pensamento do Dia


Problema do MEC é Bolsonaro, não Weintraub

Em novo ataque às universidades brasileiras, Abram Weintraub insinuou numa entrevista que a autonomia universitária virou um biombo para o tráfico de drogas. Há "plantações extensivas de maconha" nas universidades federais, acusou o ministro da Educação. Laboratórios de química das universidades desenvolvem "drogas sintéticas", ele acrescentou, assim, em timbre genérico.


Ao fazer esse tipo de declaração numa entrevista sem exibir um ofício de comunicação do fato ao Ministério Público, Weintraub confessa a prática de um crime. Gestor público que deixa de tomar providências quando submetido a ilegalidades tão gritantes incorre no crime de prevaricação. Pena de três meses a um ano de cadeia, mais multa.

Há incontáveis razões para criticar Abram Weintraub. Mas não fica bem falar mal do ministro e usar luvas de renda para analisar o desempenho de Jair Bolsonaro no desastre gerencial em que se transformou o MEC. O que é pior, um ministro inepto ou um presidente que nomeia ministros incapazes? Um súdito de Olavo de Carvalho no MEC ou um seguidor de Olavo de Carvalho na Presidência da República?

Muitos pacientes se salvariam da morte se fosse obrigatório identificar o médico ao lado do nome do morto no atestado de óbito. Do mesmo modo, o presidente da República talvez selecionasse melhor os seus ministros se soubesse de antemão que suas culpas seriam mencionadas no obituário dos maus gestores que nomeou. Bolsonaro é reincidente no MEC. Antes Weintraub, nomeara outro olavista: Vélez Rodrigues, uma piada colombiana. Portanto, deve-se realçar, para que não reste dúvida: o bunker ideológico que se instalou no MEC tem as digitais de Jair Bolsonaro.

Mito do Ipiranga

Discordo radicalmente de uma linha mais antiga, que é fazer o bolo crescer para depois distribuir. O bolo não vai crescer, a situação do país é precária e altamente instável. Essas coisas [redução da desigualdade] têm de acontecer em paralelo com outras mudanças.

(...) A desigualdade segue alta, o Estado não age adequadamente no investimento em pessoas e infraestrutura. Além disso, o Estado brasileiro é relativamente grande e pouco produtivo
Armínio Fraga,  ex-presidente do Banco Central 

Fatos incompletos

A Queda do Muro de Berlim foi lembrada com a importância de um dos maiores feitos da história da humanidade. Quem observava a geopolítica mundial nos anos 80 podia perceber as dificuldades que a União Soviética atravessava pela ineficiência da economia e pela ânsia de liberdade das repúblicas nacionais. Mas era impossível esperar a derrubada do Muro tão cedo, tanto quanto o fim da União Soviética, logo depois.

A derrubada do muro de concreto significou o fim da separação entre povos conforme o regime político, mas, no lugar dele, foram erguidos muros entre nações. Ainda hoje, milhares de pessoas morrem tentando atravessar os muros e mares que separam a pobreza da riqueza.

Impedir o pobre de sair da pobreza de onde vive para uma região com abundância é tão indecente quanto impedir uma pessoa de pular um muro para sair da ditadura em direção à liberdade. Celebramos 30 anos de uma derrubada incompleta do Muro de Berlim.


Aqui, no Brasil, comemoramos o que muitos não acreditávamos ver em vida: nossas estatísticas mostram que, nas universidades estatais, o número de afrodescendentes já é maior que o de eurodescendentes, refletindo a realidade demográfica da sociedade. Mas essa comemoração é incompleta porque ainda há 12 milhões de adultos analfabetos e nossa educação de base permanece entre as piores do mundo.

Parece estarmos repetindo com as universidades estatais o que fizemos com a escola pública de base. Enquanto era para poucos, mantivemos a qualidade. Ao abrir as portas a todos, abandonamos as escolas, entregando-as aos municípios.

Devemos comemorar o esforço para mudar a cor da cara da elite universitária, mas é uma celebração incompleta, porque ainda não temos o que comemorar na qualidade e na equidade da educação de base nem na garantia dos recursos necessários à universidade estatal.

Em grande parte por causa desse descuido com a educação de base, comemoramos os 130 anos de Proclamação da República sabendo que ela segue incompleta. Em 1889, fizemos uma nova bandeira em que, ainda hoje, 12 milhões de brasileiros não conseguem ler “Ordem e Progresso”. Nossa República mantém até hoje uma sociedade tão ou mais dividida que em muitas monarquias, entre uma minoria “nobre” e uma imensa maioria excluída, sem moradia, saúde, educação, cultura, liberdade; prendemos pequenos ladrões que não podem pagar advogado e deixamos soltos os grandes ladrões corruptos que podem postergar seus julgamentos em instâncias intermináveis. Políticos e juízes não respeitam a República, base fundamental de um regime republicano pleno.

Comemoramos a República antes de completá-la. Neste fim de novembro, comemoramos incompletudes.

Partido de Bolsonaro revela desprezo por evolução e diversidade

Parece apropriado que o novo partido de Jair Bolsonaro tenha retrocedido cinco séculos para formular suas bandeiras. O programa da Aliança pelo Brasil faz uma distorção grosseira dos valores conservadores para revelar seu desprezo pela evolução, pela diversidade e pelas transformações da sociedade.

O panfleto ultraconservador lido no lançamento da sigla, nesta quinta (21), não apresentou um projeto para o Brasil real. Sua visão sobre políticas públicas ficou reduzida a quatro pilares genéricos: respeito a Deus, resgate de tradições culturais, proteção da vida e defesa da ordem.

Os autores do texto viajaram a 1500 para anunciar que o partido seguirá os “valores fundantes do Evangelho”. Motivos: o primeiro ato oficial celebrado no Brasil foi uma missa e o primeiro nome atribuído ao território foi Terra de Santa Cruz (na verdade, foi Ilha de Vera Cruz).


A influência religiosa é mesmo significativa na cultura nacional, e seus valores integram a atuação política de milhões de brasileiros. A sigla do presidente, porém, explora um tradicionalismo rasteiro para justificar seus princípios, como se uma sociedade majoritariamente cristã devesse viver de acordo com seus dogmas e ignorar avanços civilizatórios.

Num país com alto desemprego e desigualdade crônica, a “restauração dos valores tradicionais do Brasil” é uma prioridade da nova legenda. O princípio pode parecer razoável, mas esconde uma visão de país preconceituosa e exclusivista.

O texto menciona o “reconhecimento a tudo de bom que herdamos de outras nações”. Cita apenas princípios lusitanos, hispânicos, do direito romano, da filosofia grega e da moral judaico-cristã. Nenhuma menção às culturas africana, indígena ou de milhões de imigrantes.

A agenda econômica ficou reduzida aos parágrafos finais, que apontam a defesa do livre mercado e da livre iniciativa, além de críticas a interferências estatais. Ficou claro, de vez, que a única razão de existir do partido é servir como máquina para mobilizar as bases bolsonaristas.