terça-feira, 1 de novembro de 2022

Por qual das portas do Palácio do Planalto ele pretende ir embora?

Bolsonaro foi uma doença, que por mais grave que parecesse acabaria passando. Entrará para a história como o único presidente do Brasil que até aqui não conseguiu se reeleger. E como o pior presidente da história desde o fim da ditadura.

Tão logo sua derrota se desenhou, trancou-se no Palácio da Alvorada e não recebeu ninguém – nem os ministros mais chegados, nem seu candidato a vice, o general Braga Neto. No domingo, acordara convencido de que seria reeleito.

Não se preparou para a eventualidade de perder. Perdeu para Lula, que governará o país pela terceira vez e à sombra de quem transcorreu todas as eleições presidenciais de 1989 para cá; mas perdeu sobretudo para si mesmo. Abusou de errar.


O maior adversário de Bolsonaro foi Bolsonaro. Natural que fosse. No início de 2018, quem diria que aquele deputado federal do baixo clero, que nunca aprovou um projeto na Câmara, parasita dos militares que queriam distância dele, se elegeria presidente?

Ele estava cansado da sua desimportância e planejava desfrutar o resto da vida na companhia de Michelle e de Laura, a filha que nascera “de uma fraquejada”. Concorrendo à presidência, impulsionaria a carreira política dos filhos e iria descansar.

Era o que lhe bastaria. De repente, ao acordar da operação que em Juiz de Fora salvou sua vida, deu-se conta de que seria eleito. “Agora, é só administrar”, murmurou ainda sob efeito da sedação. Teve uma crise de choro no dia em que se elegeu e ficou em casa.

Não teria o que dizer às dezenas de jornalistas brasileiros e estrangeiros reunidos para ouvi-lo em um hotel da Barra da Tijuca. Precisava acostumar-se à ideia de que governaria o país por quatro anos sem dispor de um plano, nem de mínimas condições para tal.

Quando acordar hoje, terá de fazer uma escolha que definirá seu futuro: reconhecer ou não a derrota. Se reconhecer e facilitar a transição para o próximo governo, poderá sonhar, pelo menos sonhar, em liderar a oposição ou parte dela de olho em 2026.

Se não reconhecer, se disser que a eleição foi fraudada, seu destino será a lata do lixo. Quem o apoiaria na aventura de tentar melar as eleições? Os militares? Esqueçam. Eles choram a derrota que também foi deles, mas em breve baterão continência para Lula.

O Centrão? Piada. O Centrão já está em outra. Não jogará fora das “quatro linhas da Constituição” porque só ganha jogando dentro. Lembrem-se: em 1964, a maioria dos políticos acreditava que a ditadura seria algo fugaz. Não foi. Durou 21 anos.

Em 1961, ao renunciar à presidência com apenas seis meses no cargo, Jânio Quadros voou a São Paulo carregando a faixa que recebera de Juscelino Kubistchek e que enfeitou o peito de todos que o antecederam. Jânio imaginou voltar nos braços do povo.

Teve que devolver a faixa que, mais tarde, enfeitaria o peito dos generais que o sucederam na presidência. O último deles foi João Baptista de Oliveira Figueiredo, um oficial da Cavalaria, que ao saber que passaria a faixa a José Sarney, negou-se.

Figueiredo poderia ser melhor lembrado pela história, afinal deu continuidade à política de abertura política inaugurada pelo general Ernesto Geisel, concedeu a anistia aos exilados e presos políticos e resignou-se a ir embora – mas, não.

O general é lembrado por ter saído do Palácio do Planalto pelas portas do fundo para não cruzar com Sarney. Na verdade, foi por uma porta lateral, mas a história é impiedosa. Figueiredo não acabou no Irajá, mas na Barra da Tijuca a mendigar atenção.

Bolsonaro tem casa em um condomínio na Barra da Tijuca. E sempre terá Fabrício Queiroz, o administrador da rachadinha dos filhos Zero, para pescar com ele. Queiroz candidatou-se a deputado federal pelo Rio e perdeu. Serão dois sem mandato.

Pensamento do Dia

 


Protesto de caminhoneiros ressalta a importância do segundo turno

As manifestações de caminhoneiros, ontem, com bloqueios de estradas em 16 estados, em protesto contra a vitória do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, no domingo, não são propriamente uma surpresa; são ações planejadas por uma extrema direita golpista, que sempre procurou desacreditar as urnas eletrônicas e trabalhou para construir um cenário de deslegitimação do resultado das eleições, caso o presidente Jair Bolsonaro fosse derrotado. Entretanto, é um movimento que não tem a menor chance de dar certo.

As lideranças dos caminhoneiros talvez nem saibam, mas estão derrotados desde o 7 de Setembro de 2021, quando ocuparam a Esplanada dos Ministérios e ameaçaram invadir o Supremo Tribunal Federal (STF), furando o bloqueio da Polícia Militar do Distrito Federal. Àquela ocasião, foram insuflados pelas manifestações bolsonaristas de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, e pelos ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas. A reação das instituições e da sociedade foi inequívoca: não haveria apoio suficiente para impedir que as eleições deste ano fossem realizadas, com a utilização do sistema de urna eletrônica, nem que o ex-presidente Lula fosse candidato.

Todas as tentativas de tumultuar o processo eleitoral e desacreditá-lo, desde então, foram frustradas. Em todos os momentos em que Bolsonaro atacou a Justiça Eleitoral e, principalmente, o seu presidente, ministro Alexandre de Moraes, houve fortes reações das lideranças políticas e das instituições democráticas, que culminaram no manifesto lançado em 25 de agosto passado, por estudantes e professores da tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (USP), que teve o papel de grande divisor de águas entre os setores democráticos da sociedade e aqueles que apostavam numa aventura autoritária, com a qual Bolsonaro acabou identificado.

Esse divisor de águas está tendo um papel decisivo no reconhecimento do resultado das eleições de domingo. A estreita vantagem numérica de Lula, ao obter 60.345.999 votos (50,9% dos votos válidos), contra 58.206.354 votos (49,1% dos votos válidos) de Bolsonaro, não reflete a dimensão do apoio que o resultado da eleição obteve imediatamente após o encerramento da apuração. A vitória de Lula foi reconhecida pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); pelo governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos); e pelo presidente do PL, Valdemar da Costa Neto. Seus principais aliados afastam qualquer possibilidade de uma reação golpista.

O reconhecimento internacional ao resultado das eleições, entre os quais destacam-se a rapidez com que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o presidente francês, Emmanuel Macron, saudaram a vitória de Lula, e o acompanhamento em tempo real do pleito pela mídia internacional são outra barreira a eventuais intenções golpistas. Mas o que realmente torna inequívoca a vitória do petista é o fato de termos uma eleição em dois turnos, desde a Constituição de 1988, uma sábia decisão dos constituintes, tomada com base na nossa história política.

Getúlio Vargas voltou ao poder em 1950 numa eleição consagradora, com 48,83% dos votos, o que não impediu que seu mandato fosse confrontado até a crise de agosto de 1954, quando se matou, embora seu principal adversário, Eduardo Gomes, tivesse obtido apenas 29,66% dos votos. É famosa a frase de Carlos Lacerda, o líder da UDN: “O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Os setores que contestam o resultado da eleição repetem exatamente o mesmo raciocínio, porém, nenhuma liderança política de expressão da base governista defende essa posição.

Juscelino Kubitschek, o construtor de Brasília, foi um grande presidente da República, mas sua posse também foi contestada. Fora eleito com 36% dos votos, seguido por Juarez Távora, que obteve 30%. A UDN passou a defender a deposição de JK. Em 1956, iniciou-se em Jacareacanga-PA um movimento de militares contrários a JK; em 1959, na cidade de Aragarças-GO, ocorreu outro levante militar contra o presidente, reprimido por forças legalistas lideradas pelo marechal Henrique Teixeira Lott.

Caso a eleição fosse em turno único, Lula seria vitorioso com 57.259.504 (48,43%) votos, contra 51.072.345 (43,20%) de Bolsonaro, uma boa vantagem em relação ao atual presidente, mas não a maioria dos votos. O segundo turno foi realizado exatamente para que a maioria fosse inequívoca, como aconteceu. A demora de Bolsonaro para reconhecer a vitória de Lula alimenta especulações e a agitação golpista. Entretanto, ao mesmo tempo, funciona como um fator de desgaste político, que pode resultar numa liderança menor do que aquela que teria, com a grande votação que obteve, se optasse por reconhecer logo o resultado e assumisse o papel de líder da oposição, em bases democráticas.

Fragmentos da comemoração na Avenida Paulista

Caminhar pela Paulista até o MASP foi como aterrissar no coração da democracia. A vitória de Lula fez milhares de pessoas esquecerem o medo de uma vingança dos fascistas que desatariam violências para tentar acabar com a festa. Não apareceram, e a avenida só recepcionou sorrisos e abraços.

A velha militância petista, com seus cabelos grisalhos e os olhos marejados, se misturou a muitos jovens, que exalavam a energia política das próximas décadas. Essa eleição provocou essa nova geração, ao menos a parte dela que não se submete ao racismo, à homofobia e ao machismo.



Assim, os dois sentidos da Paulista foram tomados pela diversidade. Estavam lá também famílias com crianças, todos esperando que Lula subisse no carro de som e os saudasse. Quando seria? A expectativa aumentava o volume do coro, as canções da campanha, “ôôô, o Lula voltou”, as caixas de som berravam “”Tá na hora do Jair já ir embora”. O ainda atual presidente foi lembrando com um carinhoso “Ei Bolsonaro vai toma no cu”.

Desgarrar os símbolos nacionais, como a bandeira e a camisa da seleção da extrema-direita pareceu o primeiro projeto político da avenida. Uma bandeira do Brasil gigante foi estendida, camisas amarelas da Nike pipocavam e pequenas bandeiras de plástico enfrentavam freneticamente o vento. Mas o vermelho prevaleceu. Falando de futebol em ano de copa, Neymar foi reverenciado com xingamentos e uma canção que exaltava sua ex-namorada Bruna Marquezine.

Quando Lula subiu no carro de som, o formigueiro se espremeu e o espaço entre as pessoas sumiu. Os braços levantados empunhavam o “L” e as vozes se fundiram em “Lula, guerreiro, do povo brasileiro”. Voltaram as lembranças de 2002, quando essa mesma avenida se derramou de esperança.

Acompanhado do carisma de Janja, da discrição Geraldo Alckmin (PSD), da lealdade de Fernando Haddad e Gleisi Hoffman, Lula disse que “essa não é uma vitória minha, uma vitória só do PT. É uma vitória de toda nação, de quem resolver liberar o país do autoritarismo”. Agradeceu Simone Tebet mais uma vez.

“A partir de amanhã eu tenho que começar a me preocupar como é que a gente vai governar este país. Eu preciso saber se o presidente que nós derrotamos vai permitir que haja uma transição para que a gente tome conhecimento das coisas”, discursou o novo presidente.

Houve um emocionado minuto de silêncio para as vítimas da pandemia. E enquanto Daniela Mercury cantava, as pessoas começaram a se dispersar. Antes o Hino Nacional foi cantado a plenos pulmões. Perguntei a um vendedor de água, o que ele achava da vitória de Lula: “Pra mim não vai mudar nada, vou continuar trabalhando e morando na rua”.

Domingo foi dia de comemorar. Mas a segunda-feira cinza e chuvosa em São Paulo parece anunciar os enormes desafios e dificuldades que o país e a democracia enfrentarão nos próximos anos.

Acabou o pesadelo!

Acabou! Chega! Depois de muitas fake news, muita gritaria nas redes sociais e de muito medo de pessoas armadas fazendo loucuras, o Brasil se livrou de um incendiário para respirar novamente. O país elegeu um presidente que busca a paz, a pacificação, a volta ao normal.

Parece uma viagem no tempo: vejo as imagens da Avenida Paulista tomada por apoiadores de Lula, festejando sua terceira eleição. Em 2002 e 2006, estive na Paulista para ver a festa das vitórias de Lula. Eram tempos de esperança, de ventos novos e fortes.

Depois, estive nas manifestações de junho de 2013, quando o PT de Dilma começou a perder a rua. E estive em 2015 e 2016, quando a massa verde e amarela pediu a cabeça de Dilma. Ah, também vi o boneco inflável de Bolsonaro na Paulista. Agora o boneco broxou, e o PT retomou a Paulista.


Voltamos para o final do ano de 2010, com o terceiro mandato de Lula. Será? Parece que os anos de 2011 a 2022 foram uma década perdida. E dolorosa demais. As manifestações de 2013, o 7 a 1 de 2014, a tempestade perfeita de 2015 e 2016, os anos Temer, a Lava Jato e a prisão de Lula. E o mandato de Jair Messias, com as florestas queimando, o desprezo pelo coronavírus, a escalada armamentista e as ondas de fake news.

Acordamos agora de um pesadelo? Não, foi tudo real. Quantas experiências horríveis, quanta desgraça, quantas brigas. Mas agora chega. Agora o Brasil volta a ter relações normais com o resto do mundo e consigo mesmo. Espero.

E o Brasil volta a proteger os indígenas e as florestas. Volta a ter uma política para a cultura. Volta a priorizar livros e não armas. Volta a valorizar universidades e não quartéis.

Para isso, o Brasil se livrou da extrema direita, como os Estados Unidos fizeram há dois anos ao eleger Joe Biden. Temos a sorte que os pesadelos acabaram mais cedo do que o previsto. Pois nunca antes um presidente havia perdido a reeleição. Agora perdeu, mesmo abusando da máquina governamental.

Mas, para livrar o país, Lula precisou de mais de 60 milhões de votos. Bolsonaro, por sua vez, juntou mais de 58,2 milhões de votos, uma imensidão. Foi por pouco – 2 milhões de votos – que o Brasil escapou de mais uma tragédia. Imaginem!

Foram os pobres e as mulheres, a maioria deles do Nordeste, que salvaram a democracia brasileira. Não vamos esquecer disso. E não vamos esquecer que é um homem condenado em processos duvidosos e sem provas concretas, que teve que passar 580 dias na prisão, que agora estende a mão para pacificar o país. Isso é de uma grandeza impressionante.

Enquanto isso, do Palácio do Planalto em Brasília, sai um silêncio estarrecedor. Nenhuma palavra, nem a ligação obrigatória para dar os parabéns para o vencedor. Nem para uma saída digna serve. Mas vai acabar logo, no 1º de janeiro o Brasil volta ao normal. Espero que os incendiários larguem os fósforos e baixem as armas. Chega dessa loucura.
Thomas Milz

O golpe de Estado continuado

Neste domingo tornou-se evidente que está em curso um golpe de Estado no Brasil. É um golpe de tipo novo, cujo curso poderá não ser substancialmente afetado pelo resultado das eleições, ainda que a vitória de Lula da Silva certamente afetará o seu ritmo.

É um golpe que começou a ser posto em movimento em 2014 com a contestação dos resultados das eleições presidenciais ganhas pela presidente Dilma Rousseff; prosseguiu com o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016; com a prisão ilegal do ex-presidente Lula da Silva em 2018 de modo a impedi-lo de concorrer às eleições que foram ganhas pelo presidente Jair Bolsonaro, beneficiário principal do golpe de Estado na sua fase atual.

Com a eleição de Jair Bolsonaro encerrou-se a primeira fase do golpe e iniciou-se uma segunda. Tal como Adolf Hitler em 1932, Jair Bolsonaro tornou claro desde o primeiro momento que se servira da democracia exclusivamente para chegar ao poder e que, uma vez atingido este objetivo, exerceria o poder com o exclusivo objetivo de a destruir. Nesta segunda fase, o golpe assumiu a forma de esvaziamento lento da institucionalidade e da cultura política democráticas, cujos principais componentes foram os seguintes.

No domínio da institucionalidade: exploração de todas as debilidades do sistema político brasileiro, nomeadamente do poder legislativo, aprofundando a mercantilização da política, a compra e venda de votos dos representantes do povo no período entre eleições e a compra e venda de votos de eleitores durante os períodos eleitorais; a cumplicidade do sistema judiciário conservador incapaz de imaginar a igualdade dos cidadãos perante a lei e habituado a conviver tanto com o primado do direito como com o primado da ilegalidade, dependendo dos interesses em causa; a captura das Forças Armadas através da distribuição massiva de cargos ministeriais e administrativos.

No domínio da cultura política democrática: a apologia da ditadura e dos seus métodos repressivos, incluindo a tortura; utilização massiva das redes sociais para divulgar notícias falsas e promover a cultura do ódio e uma ideologia de bem-estar esvaziada de outro conteúdo que não o do mal-estar ou sofrimento infligido ao “outro” construído como inimigo; a capilarização no âmago do tecido social do imperialismo religioso conservador dos EUA (evangelismo neopentecostal) em vigor desde 1969 como preferencial política contra-insurgente.


Esta fase concluiu-se no final do primeiro turno das eleições presidenciais em 2 de outubro passado. A partir daí, entrou numa fase nova assente no ataque frontal ao núcleo duro da democracia liberal, o processo eleitoral e as instituições encarregadas de garantir o seu decurso normal. Esta fase é qualitativamente nova em razão de dois fatores.

Em primeiro lugar, tornou-se mais clara a internacionalização do ataque à democracia brasileira por via de organizações de extrema direita globais originárias e financiadas pela plutocracia norte-americana. O Brasil transformou-se no laboratório da extrema direita global; aí se testa a vitalidade do projeto fascista global em que o neoliberalismo joga um novo (último?) fôlego.

O objetivo principal é a eleição de Donald Trump em 2024. Informações fidedignas dão-nos conta de que as empresas de desinformação e de manipulação eleitoral ligadas ao notório fascista Steve Bannon estiveram instaladas em dois andares de uma das ruas principais de São Paulo donde dirigiram as operações.

Nesta fase eleitoral, as duas estratégias principais foram as seguintes. A primeira foi a intimidação para impedir o “voto errado” e os benefícios em troco do “voto certo” oferecido pelo baixo empresariado e por políticos locais. A segunda, há muito utilizada pelas forças conservadoras nos EUA, sob o nome de vote suppression, foi a supressão do voto. Tratou-se de um conjunto de medidas excecionais, sempre sob o verniz da normalidade legal, destinadas a impedir os grupos sociais mais inclinados a votar no candidato oposto aos golpistas de exercer o seu direito de voto: bloqueios de estradas, excesso de zelo na fiscalização de veículos que transportam potenciais votantes, intimidação de modo a provocar a desistência, suspensão de transportes gratuitos decretados pela lei eleitoral para promover o exercício do direito de voto aos mais pobres.

E agora, Brasil? A democracia brasileira sobreviveu a esta nova fase do golpe de Estado continuado. Para isso contribuiu o notável e destemido envolvimento dos democratas brasileiros que viram no seu voto a prova de uma vida minimamente digna, a afirmação da sua auto-estima civilizatória, o princípio ativo da energia democrática para os tempos difíceis que se avizinham. Contribuiu também a firmeza das instituições da justiça eleitoral, no meio de pressões, de desautorizações e de intimidações de todo o tipo. Mas seria estultícia irresponsável pensar que o processo golpista terminou. Não terminou e vai entrar numa nova fase porque as condições e as forças nacionais e internacionais que o reclamam desde 2014 continuam vigentes e só se fortaleceram nestes anos mais recentes.

O golpe de Estado continuado vai entrar numa nova fase. De imediato, será provavelmente a contestação dos resultados eleitorais para compensar o fracasso dos golpistas em não terem conseguido os resultados que pretendiam com as múltiplas fraudes que praticaram. Depois, o golpe assumirá outras formas, ora mais subterrâneas com a utilização do crime organizado para intimidar as forças democráticas, ora mais institucionais com a mobilização desviante do poder legislativo para criar uma situação de permanente ingovernabilidade, nomeadamente com a ameaça de impeachment do governo eleito e dos quadros superiores do sistema judicial.

Embora o objetivo de médio prazo dos golpistas seja impedir que o Presidente Lula da Silva termine o seu mandato, o processo do golpe continuará e só será verdadeiramente neutralizado quando os democratas brasileiros se derem conta de que a vulnerabilidade da democracia é em boa medida auto-infligida, pela arrogância em pretender ser a única condição para a legitimidade do poder em vez de assumir que a sua legitimidade estará sempre à beira do colapso numa sociedade socioeconómica, histórica, racial e sexualmente muito injusta.