sábado, 31 de outubro de 2020

Brasil de ETs

 


A banalização do ilegal

Bolsonaro teve com advogadas de seu filho Flávio para receber uma denúncia contra a Receita Federal é apenas a mais recente revelação, e não a menos grave.

O presidente participou de uma reunião, em 25 de agosto, no seu gabinete do Palácio do Planalto, com as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, que apresentaram um dossiê sobre “irregularidades das informações constantes de Relatórios de Investigação Fiscal” sobre o senador.

Para agravar a situação, participaram da reunião o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro e seus filhos queriam ver à frente da Polícia Federal.

A nova tentativa de anular as investigações sobre o esquema de desvio de dinheiro público, conhecido como “rachadinha”, em seu gabinete quando era deputado estadual foi feita fora da agenda, e só foi revelada porque a revista “Época” a descobriu.

Por essa nova versão, um grupo de fiscais da Receita Federal usou de meios ilegais para fornecer informações sobre as contas do hoje senador Flávio Bolsonaro aos órgãos de fiscalização como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — o que, se confirmado, feriria de morte as acusações contra ele.

A explicação para tamanha irregularidade é que o assunto envolve integrante da família presidencial, o que merece análise dos órgãos de segurança, especialmente o GSI, que cuida da segurança pessoal do presidente e sua família. Tal justificativa é de uma banalidade tão grande que, revelado o encontro, o GSI divulgou uma nota afirmando que “à luz do que nos foi apresentado, o que poderia parecer um assunto de segurança institucional configurou-se como um tema, tratado no âmbito da Corregedoria da Receita Federal, de cunho interno daquele órgão e já judicializado”. A nota do GSI concluiu: “Diante disso, o GSI não realizou qualquer ação decorrente. Entendeu que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer providência a respeito do tema”. Como se bastasse uma explicação burocrática para tamanha irregularidade.





Um presidente da República utilizar os órgãos de segurança a favor de um filho seu que é investigado por corrupção é ato gravíssimo, que precisa ser apurado e pode resultar em impeachment. No caso, apenas em tese, porque o centrão no momento está bem aquinhoado e não dará a maioria necessária.

O caso é agravado por haver uma investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a denúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro a respeito da interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal justamente para proteger seu filho das investigações. O ministro Alexandre de Moraes herdou o processo do ministro aposentado Celso de Mello e agora tem sob seus cuidados três processos que convergem.

Os das fake news e das manifestações antidemocráticas, organizadas pelo chamado “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto, são próximos entre si, e agora o da interferência na Polícia Federal, com as novas informações que devem ser anexadas, pode demonstrar que o governo se aproveita de sua estrutura e poder para defender interesses próprios, sejam pessoais ou eleitorais.

Já há diversos pedidos de políticos, como o deputado federal Alessandro Molon, do PSB, e o senador da Rede Randolfe Rodrigues, pela atuação da Procuradoria-Geral da República e do próprio STF nesse caso revelado pela “Época”, num momento em que Bolsonaro volta a assumir posições agressivas contra a Justiça. Ao afirmar que não é possível um juiz determinar que a vacinação contra a Covid-19 seja obrigatória, Bolsonaro está claramente pressionando o Supremo, que deve tratar do tema em breve.

Há indicações de que a maioria do STF é a favor da obrigatoriedade da vacinação, por uma questão de segurança sanitária. O presidente volta a usar sua força nas mídias sociais para jogar seus seguidores contra o Supremo, o que não deu resultado das outras vezes.

Até quando o Brasil suportará a situação que lhe aflige?

Nada pior que a descrença de que as coisas possam mudar. Estaria o Brasil num ponto de não retorno ou só no meio de um mar agitado? Como devolver a esperança a uma sociedade que parece endurecida pela incerteza?

Incerteza sobre o que querem fazer com a política interna e externa enquanto aumenta a incredulidade sobre quem pilota a nação. Incerteza sobre o que querem fazer com a Amazônia, cada vez mais martirizada. Incerteza com a economia deste país, cada dia mais precária e confusa, com a inflação galopante dos preços dos alimentos, que golpeia sobretudo os mais pobres. Incerteza sobre a privação das liberdades adquiridas com tanta fadiga. Incerteza sobre o que pretendem fazer com a Constituição, elogiada no mundo por sua modernidade, que assegura saúde e educação para todos e defende todas as minorias. 

Incerteza sobre a segurança de uma sociedade à qual se deseja armar como se estivesse em guerra. Incerteza sobre o crescimento das milícias já incrustadas nos poderes locais, que ameaçam se unir aos grandes traficantes de droga e armas, e cada vez mais próximas das instituições do Estado, inclusive a Justiça. Incerteza dos mais pobres com esse jogo de querer privatizar a saúde e a educação, o que significaria atirar num genocídio físico e cultural milhões de pessoas que iriam ficando pelo caminho, desprovidos de sua segurança social. 

Incerteza com nossa política interna e externa, com nossas relações com os outros povos do planeta, de quem o Brasil parece se afastar cada vez mais, encerrado em suas lutas políticas internas que o distanciam dos fóruns internacionais onde se constrói a política mundial. 


Até quando o Brasil poderá resistir com um presidente que parece cada dia mais incapaz de dirigir um país da envergadura do Brasil, com sua política incapaz de abordar os grandes problemas do país, com seu caráter às vezes infantil e às vezes altaneiro? De um presidente que parece estar cada dia mais armado de uma política destrutiva, negacionista da realidade, incapaz de escutar o grito dos mais sacrificados? Até quando o Brasil continuará sendo vítima de um Governo dividido ele mesmo entre os olavistas fanáticos e destrutivos e os militares, cada dia mais preocupados, já que não querem ser usados em uma política de ódios e rancores? Um Governo que, em vez de levar a todos para uma nova era de prosperidade, os arrasta para a divisão e o ódio. 

Nunca a sociedade do Brasil, desde os tempos da ditadura, se sentiu tão insegura quanto ao seu futuro e o de seus filhos. Que sociedade do amanhã está sendo preparada para eles com essa política cada vez mais do não que do sim? E, enquanto isso, cada dia mais pobres estão voltando a se lançar no inferno da fome e mais jovens parecem duvidosos quanto ao seu futuro. 

Sinto dor quando alguns deles me dizem que querem ir para o exterior porque aqui não encontram oportunidades de desenvolver seus talentos. Não é que estes jovens que são nosso futuro não gostem do Brasil. É que se sentem a cada dia mais impossibilitados de realizar seus sonhos. 

O Brasil vive uma crise política e existencial que prenuncia um novo dia de esperança, ou o medo o está paralisando? Estaremos no estado que se chama de “não retorno” e de mudança radical de época, ou no meio de uma tormenta que ao se desfazer deixa o céu mais limpo? 

Pelo amor que tenho a este país, quero acreditar que estamos mais às vésperas do milagre e que a política enlameada de hoje, que gera violência, possa dar lugar a uma mais próxima das dores de quem sempre paga o preço dos pecados do poder. 

Como seguir adiante com um presidente saudoso dos golpes e que ameaça colocar o Exército na rua para evitar aqui um segundo Chile, como ele mesmo declarou? Ignora o presidente que as manifestações do Chile tiveram lugar para se livrar de uma Constituição ainda dos tempos do sanguinário ditador Pinochet? Os brasileiros têm todo o direito que lhes concede a Constituição de se mobilizarem em defesa da democracia. Isso demonstra que o capitão reformado Bolsonaro que hoje dirige o país não só não se converteu aos valores da democracia como também está voltando às suas antigas nostalgias de guerra fratricida. Ele sempre preferiu que os sinos dobrassem mais pelo enfrentamento dos conflitos do que pela busca da paz. 

Hoje me uno ao grito de Zeina Latif, que em sua coluna n’O Estado de S. Paulo escreve: “A negação dos problemas pelo poder público sugere que estamos brincando na beira do precipício com olhos vendados. Nunca na história a guerra e os enfrentamentos entre irmãos criaram bem-estar e liberdade. O Brasil sofre e se empobrece cada vez que os políticos são incapazes de criar um ambiente de liberdade onde cabem todas as ideias e a confrontação positiva e democrática. 

Apesar do meu apreço pela política social que o ex-presidente Lula desenvolveu, me doeu o dia em que lançou seu lema de guerra de “nós contra eles”. Não, a paz e a justiça são criadas de mãos dadas, sem ódios nem rancores, sem divisões e com o esforço sincero de abrir um diálogo entre diferentes.

...e tome de canetada


Eu não delego a ninguém tratar sobre qualquer outro assunto relacionado ao presidente da República. E a caneta BIC é minha e ainda tem tinta
Jair Bolsonaro

Anatomia do amoralismo brasileiro

Temos mil discordâncias, mas num ponto somos quase unânimes: somos um povo moralmente escorregadio. A maioria está convencida de que somos um povo sem caráter. A esperança de nos tornarmos mais civilizados, que em certos momentos chegamos a nutrir, parece ter-se esvaído de vez.

A pandemia reduziu a quase nada a dúvida que pudesse existir a esse respeito. De fato, quem observa nosso cotidiano logo percebe que centenas de milhares – a começar pelo presidente da República – não parecem dar a mínima para a saúde alheia. Solapam os esforços dos agentes de saúde que combatem a covid-19 na linha da frente. Fomentam aglomerações e recusam-se a cumprir os cuidados básicos estipulados pelas autoridades.



Frisemos que não se trata de um traço meramente psicológico ou cultural. É algo baseado em comportamentos reais, facilmente perceptíveis. Apresenta-se sob uma infinidade de formas, desde as garrafas de plástico deixadas nas ruas e nos jardins, passa por todo aquele contingente que não carece de auxílio emergencial, mas o pleiteia com o maior descaramento, e culmina em requintadas modalidades de estelionato. Tampouco se trata de classe social. Basta olhar em volta para constatarmos que o amoralismo permeia nossa sociedade de alto a baixo. Manifesta-se tanto entre pobres como entre ricos. Entre analfabetos e entre aqueles que estudaram até cansar.

Como compreender que tenhamos chegado a esse ponto? A interpretação geralmente aceita é a de que se trata do desfecho inevitável da colonização portuguesa. São “grilhões do passado”. Confesso que essa teoria não me agrada, mas não a rejeito in totum. A debilidade de nossa ordem normativa (ou seja, de nosso sistema de valores e normas morais) em parte se deve ao curso de nossa História. Decididamente, nunca tivemos e não temos nenhuma inclinação calvinista. Entre nós, nem o catolicismo, nem as religiões de origem africana, nem a família e muito menos o sistema de ensino facilitaram a formação de padrões morais introspectivos, de caráter individual. Sem esquecer que escravos, seres por definição carentes de interesses e desejos, não tinham de optar entre alternativas, portanto, não tinham que refletir sobre critérios de opção.

De qualquer forma, prefiro partir de premissas atualizadas. Parto da proposição de que nosso país, como qualquer outro, pode ser visualizado como uma justaposição de três grupos distintos: A, B e C.

O grupo A é composto pelos verdadeiros cidadãos. Gente honesta, que respeita os semelhantes, e não se afasta dos padrões morais aceitáveis e corretos em nenhuma circunstância. “No matter what”, como se diz em inglês.

No extremo oposto, o grupo C concentra a gente da pior espécie. Não só ladrões de colarinho branco, mas ladrões de verdade, gente violenta e assassinos que cedo manifestam tal inclinação e assim se comportarão ao longo da vida, em qualquer circunstância. “No matter what”.

O grupo B, presumivelmente o maior, é um emaranhado extremamente complexo. Compõe-se de gente que pode pender para um lado ou para o outro, conforme as circunstâncias. Gente que varia da simples malandragem até tipos mais perigosos, mas sem configurar um padrão previamente determinado. É plausível supor que o grupo B seja proporcionalmente maior em países mais pobres do que em países ricos, ou em momentos de depressão econômica do que em momentos de prosperidade, e em países governados por indivíduos e instituições corroídas pela ilegitimidade – retomo esse ponto adiante. Examinado ao microscópio, o grupo B deixa entrever alguns traços principais. O mais importante é o que Thomas Hobbes (1651) descreveu como a “luta de todos contra todos”. Sim, nesse grupo a luta pela sobrevivência é renhida e constante. Muitos dos que o integram não sabem do que vão viver amanhã, e não dispõem de recursos básicos (como uma boa escolaridade) que os tornem mais competitivos na arena cotidiana. Muitos não têm emprego, ou recaem no desemprego ao primeiro impacto de uma crise. Muitos conseguem trabalho, mas em empregos de má qualidade, mal remunerados, que não propiciam segurança, perspectiva de carreira, continuidade, e muito menos motivação. E não nos esqueçamos de que o Brasil nada possui que se assemelhe a uma classe média consistente, firmemente assentada em pequenos e médios empreendimentos, urbanos ou rurais.

Pois bem, o exemplo, como sabemos, deve vir de cima. Como poderá uma sociedade cujo núcleo coexiste com a amoralidade elevar-se a um nível de civilidade mais alto, se sua cúpula institucional – o Estado e as autoridades que o dirigem – todo dia nos brinda com aberrações jurídicas e acrobacias jurídicas de toda ordem, sem esquecer a corrupção propriamente dita? Se uma multidão de desempregados e subempregados recebe diariamente a informação de que, nos três Poderes, os que mandam metem a mão em cifras astronômicas?

Brasil do eterno Halloween

 


Os padrões do comportamento civilizado

Numa democracia saudável, a luta pelo poder, por mais acirrada que seja, não pode servir de pretexto para que se violentem os padrões básicos de comportamento civilizado. Em outras palavras, todos, candidatos e eleitores, devem respeitar esses limites ditados pela decência – que, ao fim e ao cabo, é requisito fundamental para o reconhecimento mútuo da legitimidade dos que disputam o poder.

Há algum tempo, contudo, a democracia brasileira vem sendo rebaixada por alguns a uma briga de rua, em que vence aquele que desafia os paradigmas morais que, sempre se acreditou, viabilizam a vida em sociedade. A briga de rua premia os que tratam o oponente de forma desumana, sem qualquer freio ditado pelos princípios éticos; já os que nutrem respeito pelo adversário, no mínimo por honradez, são tratados como fracos.

Quando Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, sugere que seu principal adversário na disputa, o prefeito Bruno Covas, pode não terminar o mandato caso seja reeleito, revela por inteiro a ausência de limites morais que tão mal tem feito à democracia no País.

Como se sabe, o prefeito Bruno Covas sofreu de câncer. Segundo seus médicos, o tratamento a que o prefeito vem sendo submetido controlou a doença e lhe deu condições não apenas de continuar à frente do cargo, como também de concorrer à reeleição. É absolutamente repugnante que um candidato explore a doença grave de um adversário para tentar lhe tomar votos.

Ao contrário do que pensam os bolsonaristas como o sr. Russomanno, há uma linha de dignidade que não pode ser cruzada em nenhuma hipótese, pois eleição não é uma disputa terminal, de vida ou morte, que, ao menos para os amorais, justificaria toda sorte de barbaridades.

Não faz muito tempo, a presidente Dilma Rousseff, de triste memória, reconheceu que ela e seus correligionários faziam o “diabo” em época de eleição. Tal admissão causou na ocasião uma compreensível repulsa por parte dos cidadãos de bem, já bastante agastados com as artimanhas tinhosas do lulopetismo, mas ao mesmo tempo foi útil para revelar até onde estavam dispostos a ir o sr. Lula da Silva e seus discípulos para se agarrar ao poder.

Rasgada a fantasia de campeão da ética, com a qual o lulopetismo enganou muitos incautos por décadas, ficou claro para todos que a política, conforme concebida pelo PT, não era mais uma disputa de ideias, mas guerra aberta em que o adversário devia ser aniquilado.

Nisso o PT encontrou em Jair Bolsonaro seu inimigo ideal. Desde os tempos de deputado do baixo clero, o hoje presidente se notabilizou por defender nada menos que a destruição – física, até – de seus oponentes. Bolsonaro elegeu-se presidente criando e explorando fake news em redes sociais para desmoralizar seus concorrentes, atualizando o conceito de “fazer o diabo” na campanha.

Uma vez na Presidência, Bolsonaro não perde seu tempo governando, coisa que, de resto, seria incapaz de fazer; concentra suas energias em sua campanha antecipada pela reeleição e, para esse fim, não se constrange em explorar a pandemia de covid-19 e seus cerca de 160 mil mortos para tentar ganhar votos. Estimula aglomerações, menospreza a vacina e incentiva os cidadãos a tomar remédio sem eficácia comprovada, tudo para se livrar do fardo de liderar o País neste momento tão difícil e para atribuir a terceiros – seus adversários políticos – a responsabilidade pela crise.

O sucesso eleitoral de Bolsonaro inspirou muitos outros oportunistas a apostar na imoralidade como estratégia de campanha. Assim, uma verdadeira malta de arruaceiros políticos, a exemplo do mestre, investe na confusão e na truculência como ativo eleitoral.

Resta torcer para que a rejeição a candidatos apoiados tanto por Bolsonaro como por Lula, detectada em algumas pesquisas, se confirme, pois assim ficará claro que nem todos os eleitores se sentem confortáveis em viver numa sociedade desprovida de solidariedade e respeito ao próximo, que é a sociedade idealizada pelos liberticidas bolsonaristas e lulopetistas.

Ricos doentes


Todas as palavras já foram ditas sobre a miséria mas a alma dos ricos é cheia de doenças
Paulo Mendes Campos

As mulheres do presidente

A ação identitária — alguns a batizam como “cultural”, o que é rematado marketing — ganhou contornos de guerra santa na atual temporada. 

Já há tempos, os partidos se viam obrigados a lançar uma cota de mulheres a cargos legislativos. A lei eleitoral agora determina que também haja uma cota de candidatos negros a partir do próximo pleito. 

Parece lindo (ah, o inferno…). Assim como os partidos criaram artifícios para burlar as candidaturas de mulheres; do mesmo jeito que agora privilegiam com o fundo eleitoral apenas os amigos de sempre; a cota de negros também já enfrenta burlas e obstáculos construídos pela direita de turno. 

Os laranjais do PSL, em Minas e Pernambuco, exibiram já como se torce a realidade: usaram a cota feminina como vitrine.

A ideia é que haja uma representação mais eficaz da sociedade? 

Vale então olhar a ação bozonarista no campo feminino. Como a extrema-direita distorce as boas intenções da esquerda identitária.


Basta observar as três mulheres mais empoderadas da república bozo-malafista. Damares Alves, Bia Kicis e Carla Zambelli. 

Obsessivamente religiosa, Damares pretende cumprir a missão de tentar impedir qualquer tipo de aborto no Brasil — mesmo os já autorizados pelo Supremo. 

Sua cruzada lembra a do teólogo cristão (século III) Orígenes de Cesareia. Reza a lenda: inspirado por algum versículo mal-ajambrado do Evangelho de São Mateus, o maluco castrou-se… Seu receio ao desejo, à potência sexual, o conduziu ao ato solitário… de automutilação. O corta-fora o fez deparar com outros cristãos ainda mais radicais, e acabou preso e torturado — sempre em nome de Deus (cruz-credo). 

Até chegarmos ao Papa Francisco, aquele que elogiou o prazer sexual e defende a união entre pessoas do mesmo sexo, passaram-se 2 mil anos. Não no Brasil, onde o Papa é visto como afamado comunista.

O sexo (dos outros) é um problema entre os bozonaristas (menos para o chefe, né?). 

No plano legislativo, as deputadas (beneficiadas pela cota feminina) Bia Kicis e Carla Zambelli dedicam-se, além das redes sociais, à defesa histérica das insanidades dos Bolsonaros. Perto dos ataques raivosos distribuídos por ambas, Alexandre Frota é um casto de convento. São Frota. 

A cota partidária é a solução? 

Aborto? Creche? Feminicídio? São questões ainda em aberto depois de anos das cotas femininas. Onde a mulher deixará a criança para ir ao trabalho? Com o pastor? Topas, Malafaia? 

E agora as cotas raciais? Lembre-se do abissal Sérgio Camargo, da Fundação Palmares. Ele está à direita da Ku Klux Klan. 

Os chilenos farão uma Constituinte composta por metade homens, metade mulheres. Além de etnias indígenas. Vamos ver. 

O voto distrital resultaria em maior benefício para toda a sociedade. Sem dar argumentos à clivagem explorada pela extrema-direita. 

Sorte das corporações… Não está na hora de se discutir o bilionário orçamento para a área militar em troca de recursos para a renda mínima?

Rêgo Barros demonstrou que a ala militar do Planalto está sendo omissa

Já se fizeram as mais artísticas interpretações do artigo do general Rêgo Barros, publicado propositadamente no “Correio Braziliense”, o único jornal do país que é lido em Brasília de manhã cedo, porque os demais veículos da mídia só começam a chegar à capital nos primeiros voos, no início da manhã. O resultado é que a mensagem do ex-porta-voz da Presidência explodiu como uma bomba.

A principal tradução simultânea do texto é a comprovação de que não se pode contar com a suposta “competência” da ala militar que coabita o Palácio do Planalto.

Quem votou em Bolsonaro para se livrar de Lula da Silva e José Dirceu, que caminhavam para instalar no Brasil a primeira República Sindicalista do mundo, certamente julgava que os militares, especialmente os generais de quatro estrelas Hamilton Mourão e Augusto Heleno, iriam auxiliar o presidente da República a governar o país em clima de ordem e progresso, digamos assim.



Mas não aconteceu nada disso. Sob as vistas e os narizes empinados de um grupo de oficiais-generais, o capitão Bolsonaro implantou a República Terraplanista, na qual pontifica a figura caricata do filósofo e astrólogo Olavo de Carvalho, um personagem que realmente não pode ser levado a sério em nenhum país minimamente civilizado.

Passados quase dois anos, a realidade que sobressai à vista de todos está contida no artigo de Rêgo Barros. O general deixou claro que não se pode confiar na ala militar do Planalto, que se mantém em “confortável mudez”, deixando Bolsonaro fazer o que bem entende, apesar dos frequentes recados do Alto Comando, que são vazados a Bolsonaro e geralmente ele finge que nem escuta, mas adivinhem quem mandou que entrasse naquela fase do “paz e amor”? Aliás, foi a última tentativa de as Forças Armadas controlarem Bolsonaro.

Antes disso, houve a indicação do general Braga Netto para a Casa Civil. Os comandantes militares achavam que, com a experiência na intervenção no governo de Luiz Fernando Pezão, na área da segurança do Rio de Janeiro, em 2016, o general iria dar conta do recado. Mas foi mais um erro.

Na ocasião, Braga Netto ganhou uma imerecida fama de competência. Na verdade, não houve redução nas estatísticas da criminalidade. Ao contrário. Ocorreu aumento significativo do número de assassinatos e de outros crimes, chegando ao recorde de 134 policiais militares mortos pela bandidagem em 2017.

Na verdade, Braga Netto é tão incompetente que nem chegou a gastar os recursos que o governo Michel Temer ofereceu ao Rio e ia devolver cerca de R$ 400 milhões.

Houve protestos candentes e somente na reta final o interventor resolveu comprar mais equipamentos. Sua gestão no Rio foi um fracasso, que agora ele repete na Casa Civil.

Obscurantismo 2.0 e os quatro tipos de negacionistas Covid

Esquerda, direita; esquerda, direita – eram centenas de militares alinhados a desfilarem impecáveis pela avenida. No meio da parada, só o João não conseguia acertar o passo. Tropeçava nos próprios pés, enganava-se no compasso. Mas na assistência, os pais do rapaz, orgulhosos do seu rebento, bradavam para os outros: “Então, organizem-se! Não veem que estão todos mal?! O João é que vai bem!”

Esta história de caserna é o que me ocorre quando olho para a crescente vaga de negacionistas da Covid-19 que, à medida que a fadiga da pandemia se instala, alastra nas redes sociais como um vírus devorador de neurónios. Vaga esta atrás da qual vão as pessoas que gostam de ser do contra, alguns internautas desprevenidos e os adeptos das teorias da conspiração. Eu conheço vários, estou certa de que o leitor se deparará com outros tantos.


Há vários níveis destes negacionistas. No topo da escala estão os negacionistas alucinados. São os que veem em tudo forças escondidas para dominar o mundo, como nos maus filmes de ação ou de ficção científica. Os que dizem que tudo isto é muito “suspeito” e imaginam que a pandemia foi obra da China – um vírus criado em laboratório para arrasar e controlar de seguida a Humanidade. Ou os que acham que as vacinas em estudo trarão um chip localizador para nos vigiar. Ou que com a Covid só se quer confinar as populações para se instalarem antenas 5G por todo o mundo, torres estas que por sua vez enfraquecem o sistema imunológico do indivíduo. Não vamos elaborar sobre os diversos estágios de alucinação aqui envolvidos, estarão ao nível dos terraplanistas em matéria de morfologia da Terra. Adiante.

Depois, há os negacionistas chicos-espertos. Aqueles que encontram no discurso “aqui há gato” a única forma de darem nas vistas, porque no campeonato da inteligência e do bom senso ninguém lhes liga nenhuma. Alguns desses, além de dizerem disparates vários nas redes, onde lançam o caos com desinformação, preconceitos e suspeições totalmente infundadas, têm mesmo espaço de opinião com amplificação em órgãos de comunicação social. Há neste grupo perfis diferentes de pessoas: colunistas patetas e frustrados, mas também médicos, e esses são mais perigosos. Alguns entretiveram-se a desdizer, desde março, as principais indicações da DGS e das autoridades, contribuindo para desorientar ainda mais as pessoas, quando o que era preciso fazer era informá-las com o estado da arte da ciência, que também está a descobrir uma realidade completamente nova.

O terceiro grupo são os negacionistas libertários. Aqueles anarquistas tardios, que recusam a obrigação do uso da máscara como quem nunca ultrapassou o trauma de ser obrigado a comer a sopa em pequenino. Para quem a vida em sociedade só tem direitos e nenhuns deveres, e pensar no bem-estar e na proteção dos outros é algo tão distante como Vénus de Marte. O que importa é o seu umbigo e o que bem o seu dono quiser fazer com ele, e os outros que se danem.

Esses libertários andam normalmente de mão dada com os negacionistas ignorantes. Os que por sistema recusam as conclusões da ciência, quando as evidências científicas não são inteiramente consentâneas com o seu conforto ou com a manutenção da sua forma arcaica ou obtusa de fazer as coisas. São deste grupo os que também recusam as alterações climáticas, como se a ciência fosse uma matéria de crença ou de fé. No que toca à Covid, estes negacionistas recusam o perigo do vírus, alinhando com Bolsonaro e Trump na cantiga da “gripezinha”. Sublinham que a mortalidade não é muito elevada – coisa que é um facto –, sem perceberem que o perigo está na falência dos sistemas de saúde que geraria uma potencial mortalidade enorme. Desvalorizam os números, comparando-os com outras maleitas, quando estes números têm por base um mundo inteiro que se confinou e planos de contingência apertados. Nunca param para pensar na mortandade que seria se deixássemos o vírus à solta, fazendo o seu caminho sem quaisquer medidas de contenção.

Estes negacionistas ignorantes enchem as caixas de comentários, formam grupos “pela verdade” ou “Sairdecasa” e até convocam manifestações sem distanciamento e sem máscaras. Se Portugal e o SNS fossem organizados à medida do seu egoísmo, da sua desumanização e da sua insipiência, mereciam uma pulseira branca para as urgências Covid, que os colocaria algures no fim da lista da assistência e das vagas nos ventiladores. Felizmente, não é. O SNS quando nasceu foi para todos, mesmo para os idiotas e para quem não faz nada para o merecer.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Salada indigesta

Qualquer um que erre pouco e, portanto, colha sucessos em série corre o risco crescente de alguma hora cometer um erro muito grave. Costuma ser um subproduto da autossuficiência. Será o caso de Jair Bolsonaro se continuar colocando dificuldades no caminho da produção e distribuição em massa por aqui de alguma vacina eficaz contra o SARS-CoV-2.

Imagine o leitor ou leitora uma situação em que a vacinação já tenha começado em diversos lugares do planeta, mas esteja parada aqui devido a questiúnculas políticas.

Um que errava pouco e quando errou decidiu caprichar foi Donald Trump. Só olhar as pesquisas de março para cá. Se Joe Biden ganhar na terça 3, a maior parte da conta irá para o comportamento errático e politicamente primário do incumbente. Que deixou de bandeja para o adversário a defesa da saúde e do bem-estar coletivos.

Trump, a exemplo de Bolsonaro, apostou no ponto futuro. Alguma hora as pessoas passariam a ter mais medo da ruína do que do vírus. Não deixa de fazer sentido. Onde estava o risco maior para Trump? No meio do caminho tinha uma eleição, e era prudente saber como estaria a pandemia na hora de os eleitores saírem para a urna.

Bolsonaro leva algumas vantagens sobre o colega. Duas são as principais. Não enfrenta uma oposição unificada e o mandato dele só estará em jogo daqui a dois anos. Por enquanto, o preço que paga pela imagem de certo desdém diante da vida humana não compromete decisivamente sua musculatura político-eleitoral.

E é altamente provável que em 2022 a Covid-19 já esteja bem mais controlada.

“Se o presidente raciocinar bem, a judicialização da guerra da vacina talvez seja uma solução para ele”

Acontece que, ao contrário de Trump, o presidente brasileiro não tem uma base parlamentar sólida e coesa. Foi o que salvou o americano do impeachment. O risco para Bolsonaro caso mergulhe na impopularidade é bem maior. Os animais selvagens no ecossistema de Brasília têm um faro especialmente aguçado para sentir o cheiro de patos mancos.

Todas as pesquisas mostram que, quando existir uma vacina, a esmagadora maioria da população vai querer se vacinar. Há aqui e ali preferências sobre a nacionalidade do imunizante, mas, na hora do “vamos ver”, o cidadão e a cidadã comuns não ficarão indiferentes a um passaporte para a volta à normalidade no transporte, na escola, no trabalho, no lazer.

Bolsonaro tem mostrado desconforto sobre a possibilidade de a guerra da vacina acabar judicializada. Se raciocinar bem, talvez seja uma solução para o presidente. Ele fica por aí adulando o núcleo mais duro da sua base, enquanto outros resolvem o problema prático, que, se não for resolvido, vai causar grave dor de cabeça ao ocupante do Planalto.

Aconteceu assim com o auxílio emergencial. E, por falar nele, Bolsonaro já tem bons desafios para abrir 2021. O fim do auxílio. A necessidade declarada de cumprir draconianamente o teto de gastos. A sucessão nas presidências da Câmara e do Senado. O rescaldo de um resultado (até agora) não brilhante da eleição municipal. A possível derrota de Trump.

Uma crise com a vacina contra a Covid-19 será um tempero e tanto para essa salada já indigesta.

O jabutizeiro do SUS

A Prefeitura de Vitória (ES) tem uma das melhores redes de atendimento básico à saúde do país, resultado de sucessivas administrações, mas, sobretudo, do avanço tecnológico promovido pelo atual prefeito, Luciano Rezende (Cidadania), que encerra o seu segundo mandato. Com as inovações, foi possível ampliar o atendimento em 30%, sem contratação de médicos ou construção de novos postos de saúde. Qualquer cidadão atendido na rede, inclusive nos dois pronto atendimentos (PAs) da cidade, recebe um torpedo no celular para dar uma nota de 0 a 10 de avaliação do atendimento. A nota média, em setembro, mesmo na pandemia da covid-19, foi 9,11. O ovo de Colombo surgiu depois de uma viagem de avião, quando o prefeito recebeu uma mensagem pedindo uma nota de avaliação do serviço da companhia aérea.

A revolução tecnológica começou pelo Pronto Atendimento de São Pedro, antiga região de palafitas, erradicadas nas administrações de Vitor Buaiz (PT) e Paulo Hartung (MDB). Na administração do tucano Luiz Paulo Velozzo Lucas, da qual Rezende foi secretário de Saúde e de Educação, esses serviços foram ampliados. Mas, foi preciso muita inovação tecnológica para que a gestão da saúde fosse focada 100% na ponta do atendimento ao público. Quando os torpedos começaram a ser disparados, houve muitos questionamentos, porque tudo influencia a avaliação, e não apenas o atendimento médico propriamente dito. O PA de São Pedro, por exemplo, foi o mais mal avaliado. Esse resultado levou a que os diretores dos dois melhores postos de saúde da cidade fossem transferidos para lá, onde a população mais pobre da cidade é atendida na emergência, 24 horas, todos os dias, inclusive domingos e feriados. A média da avaliação dos usuários, em setembro passado, foi de 8,66. Mesmo com a pandemia, a menor nota de avaliação do PA de São Pedro foi 7,29, em março.



A chave para o alto desempenho foi a sinergia entre as secretarias de Saúde e da Fazenda, que colocou o time da subsecretaria de Tecnologia de Informação para desenvolver soluções que melhorassem a gestão da Saúde, obrigada a fazer mais com menos, devido à queda de 25% da arrecadação da cidade, com o fim do Fundap (fundo de desenvolvimento extinto em 2002, que beneficiava o complexo exportador capixaba). Ao contrário de outros municípios, que estão na latitude dos poços da Bacia de Campos, Vitória se beneficia pouco dos royalties de petróleo destinados aos capixabas.

Para melhorar o atendimento à população, o acesso à informação, a organização e o controle das unidades de saúde, a Secretaria Municipal de Saúde (Semus) registra a fila de atendimento, a classificação de risco, os procedimentos da sala de medicação, com prescrição e checagem de forma eletrônica. Os sistemas informatizados permitem agilizar procedimentos administrativos, gerenciais, de atendimento e acesso à informação de pacientes. Além disso, o sistema gera o prontuário eletrônico com os dados do atendimento prestado ao paciente. Para que o atendimento seja mais rápido, basta o usuário apresentar um documento com foto e ele será encaminhado para a classificação de risco. Depois, aguarda o atendimento médico ou odontológico de acordo com a gravidade do caso. As consultas são automaticamente remarcadas em caso de não confirmação. O time de engenheiros e programadores da prefeitura, funcionários de carreira, acabou com as filas de atendimento e reduziu a 5% as faltas às consultas médicas, que representavam 30% do total.

Além da rede de postos de saúde e centros de referência, a prefeitura mantém atendimentos psicossocial para adultos e infantojuvenil, de prevenção e tratamento de toxicômanos, atenção a idosos, gestantes e pediatria. São oferecidos serviços de cardiologia, dermatologia, endocrinologia, gastroenterologia, neurologia, obstetrícia (alto risco), oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, proctologia, psiquiatria, reumatologia, urologia, homeopatia, acupuntura e pequenas cirurgias, além de tratamento odontológico (radiologia, endodontia, periodontia e prótese dentária), e de diagnóstico de câncer de boca. Tudo gratuito. Além de equipes de médicos de família, agentes comunitários de saúde e orientadores de exercícios físicos.

E quando é que os jabutis subiram na árvore? Quando a pandemia do novo coronavírus passar, a medicina nunca mais será a mesma. As consultas por teleconferência, por exemplo, que foram introduzidas em massa na rede pública de Vitória durante a crise sanitária, vieram para ficar, assim como outras inovações tecnológicas introduzidas por lá. Acontece que grandes empresas de tecnologia já estão operando na área médica, aqui no Brasil, como a Afya, que oferece ensino especializado e treinamento a distância em larga escala (Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Pará, Tocantins e Distrito Federal). Há grande interesse na gestão dos serviços do SUS. As soluções que a Prefeitura de Vitória oferece de graça às demais prefeituras do país, via Frente Nacional de Prefeitos, na ótica dos grupos de medicina privada, são um grande business inexplorado. Por isso, as unidades básicas de saúde inacabadas do governo federal são quatro mil jabutis. Falta descobrir quem armou o “jabutizeiro” do SUS, que é muito maior. Com certeza, não foi enchente, foi mão de gente.

Brasil à deriva

 


A falta que os mortos na pandemia farão também para a riqueza do Brasil

Os quase 160 mil mortos até agora pela covid-19 no Brasil eram filhos, pais, mães e avós. Mas também eram professores, médicos, enfermeiros, engenheiros, prestadores de serviços ou aposentados pensionistas, por exemplo - em outras palavras, pessoas que que contribuíam para o sustento de suas famílias e para movimentar a economia do país.

Um levantamento preliminar recém-publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre, da FGV) traça hipóteses para esmiuçar justamente o quanto o Brasil perdeu — e deixou de ganhar — com as vidas que estão se esvaindo na pandemia.

As 63,2 mil pessoas entre 20 e 69 anos (ou seja, em idade produtiva) que haviam morrido de covid-19 até 6 de outubro tinham rendimentos mensais estimados em R$ 108,6 milhões. Por ano, elas geravam em renda estimados R$ 1,3 bilhão.

Soma-se a isso o quanto provavelmente ganhavam do Estado, em média, as 72,3 mil pessoas com mais de 70 anos que morreram até 6 de outubro. Considerando a aposentadoria média de R$ 1,8 mil, elas recebiam por mês, juntas, estimados R$ 138,3 milhões. Em um ano, isso equivale a R$ 1,7 bilhão.



Os pesquisadores Claudio Considera e Marcel Balassiano fizeram as estimativas cruzando dados do Portal da Transparência do Registro Civil, que traz informações sobre as pessoas mortas na pandemia, com a Pesquisa Nacional Por Amostras de Domicílios Contínua (Pnad Contínua, de 2018, do IBGE), que traça um panorama de nível de educação e renda da população brasileira.

"Essa tragédia já alcança todos nós social ou individualmente. Esse é seu lado humano", escrevem os pesquisadores no estudo.

"Mas há outro lado: essas pessoas vitimadas tinham um certo conhecimento, certas habilidades adquiridas ao longo da vida, que utilizando e transmitindo para os colegas poderiam, por muito tempo ainda, contribuir para gerar renda para si, para eventuais dependentes e, portanto, para o país. Eles farão falta."

Considera e Balassiano estimaram, também, o quanto as pessoas em idade produtiva ainda poderiam, em teoria, gerar de renda para o país, levando-se em conta a expectativa de vida nacional.

Calcularam que as pessoas entre 20 e 69 anos poderiam ter tido a chance de gerar, juntas, mais R$ 36,1 bilhões ao longo de sua vida, caso elas tivessem sobrevivido à pandemia.

"O presidente fala que todo mundo vai morrer mais cedo ou mais tarde (em referência à fala, de Jair Bolsonaro, de que "a morte é o destino de todo mundo", ao comentar os mortos pela pandemia em mais de uma ocasião). Isso é uma besteira", afirma Claudio Considera à BBC News Brasil.

"Ele ignora um aspecto, que é essa perda de habilidades que de certa forma é irreparável. Para o país, cada morte é uma perda de capital e de capacidade de gerar renda. Se uma máquina deixa de produzir, você pode rapidamente colocar outra no lugar, ela não tem que aprender nada. Uma vida não tem substituição imediata, e talvez não tenha mesmo (nunca)."

Esse conhecimento e essas habilidades intangíveis que as pessoas acumulam ao longo de sua vida profissional são chamados por economistas de capital humano.

E uma de suas principais variáveis é a educação, tanto a formal (anos de estudo) quanto a prática (ou seja, a experiência adquirida durante o trabalho), que impactam enormemente a capacidade produtiva — por isso que o Brasil, com seu histórico de problemas na educação, é considerado globalmente como um país de nível mediano em acumulação de capital humano.

E isso nos prejudica tanto no âmbito individual quanto nacional.

"O capital humano permite às pessoas ter ciência de seu potencial como membros produtivos da sociedade", afirma o Banco Mundial, instituição que mede anualmente o capital humano médio dos países.

"Mais capital humano está associado a renda mais alta às pessoas, mais ganhos para os países e uma coesão mais forte da sociedade. É uma força central no crescimento sustentável e na redução da pobreza."

Para os pesquisadores do Ibre, o mesmo raciocínio da perda de capital humano decorrente da pandemia poderia ser aplicado (e calculado) para outras mortes potencialmente evitáveis, resultado de outras tragédias brasileiras — como os altíssimos índices de homicídios e as mortes decorrentes de acidentes de trânsito do país.

Só no ano passado, o Brasil teve 47.773 mortes violentas intencionais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado neste mês de outubro.

As mortes no trânsito, embora em queda, foram 30.371 no ano passado.

Esses dois números, juntos, equivalem a quase um Maracanã lotado de pessoas mortas a cada ano.

Em 2016, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calculou que os homicídios de jovens custava ao Brasil R$ 150 bilhões por ano.

"Cada vida é única, e óbvio que isso é muito mais importante do que a questão econômica", afirma o pesquisador Marcel Balassiano à BBC News Brasil.

"(Mas) todas as tragédias que ocorrem sempre têm uma perda de capital humano com impacto econômico no curto prazo e para o resto da vida — de o quanto essas pessoas poderiam produzir."

A mesma lógica vale para outros países que perderam capital humano, seja na pandemia ou em guerras e eventos trágicos.

Considera cita, por exemplo, os 6 milhões de mortos no Holocausto. "Pense em quantos eventuais prêmios Nobel estariam ali, quantas pessoas que poderiam ter contribuído para o bem da humanidade, ou na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais. São perdas também do ponto de vista econômico."

Considera e Balassiano fazem a ressalva de que, na atual crise econômica do Brasil, muitas das vítimas fatais do coronavírus talvez estivessem entre os mais de 65 milhões de brasileiros que, segundo dados de 2019, já viviam em situação vulnerável no mercado de trabalho e possivelmente sofreriam precarização profissional ainda mais intensa por causa da pandemia. Muitos talvez estivessem desempregados.

Isso não muda, porém, o fato de que suas habilidades e conhecimentos foram precocemente perdidos.

Do ponto de vista dos aposentados — que, embora talvez não gerassem mais renda e dependessem do Estado para sustentar a si e a parentes —, os economistas apontam que "algumas das mortes (na pandemia) levarão a pagamento de pensão. (...) Do lado fiscal, se de um lado temos os aposentados que deixarão de pesar no INSS, do outro (haverá) mais pensões em alguns casos. Pesquisas futuras para quantificar esse efeito fiscal ficam como sugestões".

Ambos os pesquisadores ressaltam que seu levantamento é preliminar, com o objetivo de, mais do que estabelecer um cálculo definitivo sobre a perda de capital humano na pandemia, "provocar um debate e falar disso mais qualitativamente do que quantitativamente".

O problema, claro, é compartilhado pelo restante do mundo, em meio às disrupções socioeconômicas provocadas pelo coronavírus. Em relatório de setembro, o Banco Mundial afirmou que a pandemia "ameaça reverter muitos dos ganhos recentes" na melhoria do capital humano global.

Para voltar a promover o acúmulo de capital humano, o Banco sugere que os países não apenas deem apoio às comunidades mais vulneráveis, como voltem seus olhares à educação: desde investir em estímulos cognitivos para as crianças menores (na fase em que seu cérebro está no auge do desenvolvimento) até promover habilidades nas crianças mais velhas e adolescentes.

Isso tudo no cenário desafiador da volta às aulas presenciais, ainda sob a ameaça do contágio pelo coronavírus, que demanda conciliar os esforços da educação à distância com "recursos personalizados de ensino e aprendizagem, urgentemente necessários principalmente para compensar (as oportunidades de aprendizado) perdidas pelas crianças em situação de desvantagem".

E, mesmo antes da pandemia, a desigualdade social já impedia muitos jovens de atingirem seu pleno potencial de capital humano. Agora, o desafio é ainda maior, diz o relatório do Banco Mundial.

"No mundo, uma criança nascida pouco antes da chegada da covid-19 teria como expectativa, em média, alcançar apenas 56% de sua produtividade potencial como trabalhadora futura. (Porque) os abismos em capital humano continuam especialmente profundos em países de baixa renda e os que são afetados pela violência, conflitos armados e fragilidade institucional."

Novas batalhas de Itararé

O mundo ainda vive o impacto da pandemia. A segunda onda atinge a Europa, alguns países, como a Bélgica, estão com os hospitais sobrecarregados. Recordes planetários em número de casos foram batidos várias vezes em outubro. Só os Estados Unidos registraram 80 mil casos diários.

Com oito Estados tendendo para um aumento, o Brasil deveria estar preocupado. Deveríamos estar vacinados contra as bobagens de Bolsonaro e esse estéril duelo com Doria. No entanto, entramos numa estúpida guerra da vacina, como se estivéssemos ainda em 1904 nos bairros insalubres do Rio de Janeiro.

Bolsonaro recusa-se a comprar vacinas de origem chinesa e desautoriza seu general na Saúde. Ele ignora que neste mundo ninguém se importa tanto com a origem de uma vacina, mas apenas com sua segurança e eficácia. É um ébrio ideológico que não pode saber que os chineses inventaram a pólvora, senão vai interditar todos os paióis do País.

O programa brasileiro de imunização deve se basear apenas nos critérios técnicos e a exclusão de uma vacina aprovada pela Anvisa pode ser anulada pelo Supremo.

Bolsonaro prefere a hidroxicloroquina. Disse que talvez fosse melhor investir na cura do que na vacina contra o vírus. Ainda bem que é apenas uma opinião pessoal. O Brasil já investiu mais em vacina do que em hidroxicloroquina porque essa é a lógica científica. O que não significa que não devamos, como se faz lá fora, pesquisar antivirais eficazes.

No outro canto do ringue está o governador João Doria. Todos os políticos realmente vocacionados proporiam, antes de tudo, que a vacina fosse gratuita. Há um grande interesse em se vacinar, mas nem todos poderão comprar sua dose. Doria preferiu afirmar que a vacina seria obrigatória e isso acabou desfechando um debate que acabará no Supremo Tribunal, como a batalha final do ciclo Itararé.




Ainda não temos a vacina. Não sabemos qual será o seu nível de eficácia, algo que talvez seja possível conhecer no início do ano que vem. Não sabemos ainda em quanto tempo haverá vacina disponível para todo mundo. Talvez leve um ano. Qual o sentido de tornar obrigatório algo inalcançável num determinado espaço de tempo?

As vacinas podem ser apenas 50% eficazes. Já existem mais de 5 milhões de brasileiros com anticorpos, porque foram contaminados. E há doenças, como a do uruguaio José Mujica, que são incompatíveis com a vacina.

O Supremo será levado a determinar algo que talvez seja desnecessário. Há mais gente querendo a vacina do que vacina disponível. Se 80% da população se vacinar, tem sentido impor restrições aos restantes 20%? Não teríamos atingido, por esse caminho, a imunização de rebanho?

Se abstrairmos o episódio da Revolta da Vacina, no início do século 20, o tema parece absurdo. Acontece que Bolsonaro sabe que alguns bolsões da internet se encantam com os movimentos antivacina modernos. Uma teoria conspiratória as associa ao poder dos chineses, ou à forma como Bill Gates vai se apoderar do mundo.

São grupos minoritários e vivem, como Bolsonaro, numa espécie de bolha da teoria conspirativa que lhes dá a sensação de serem especiais, de entenderem o significado secreto de acontecimentos de que as pessoas comuns só captam a superfície.

É uma escolha política, como foi a de Trump de não denunciar o supremacismo branco quando chamado a opinar sobre isso. Ou de fingir que não conhece o grupo QAnon, que divulga a existência de uma associação de políticos pedófilos que se reúnem em porões de pizzaria.

Com a existência de pessoas isoladas em seus grupos de internet é possível alimentar a insanidade, até mesmo com a ajuda das grandes plataformas sociais. Os terraplanistas, por exemplo, encontram farto material para sustentar sua tese.

O fato de Trump e Bolsonaro terem triunfado nas eleições explorando ressentimentos, ou mesmo a ingenuidade das pessoas, é um dado real da conjuntura das duas Américas. No entanto, a maneira errática como governam, por meio de mensagens vulgares e sensacionalistas, vai mostrar que a vitória de ambos foi um acidente histórico, uma alerta.

Isto não significa que depois dessa vulgaridade virá o melhor dos mundos. Haverá tempo para corrigir alguns erros e avançar modestamente.

É possível que o resultado das eleições americanas seja a vitória de Joe Biden. Estaremos apenas acordando de um pesadelo, mas dentro das condições dramáticas que o tornaram possível.

De certa forma, Camus previu isso no romance sobre a peste, que pode ser vista como o ataque do vírus ou o assalto do obscurantismo autoritário. Essa ameaça nunca desaparece, ela está em toda parte, à espreita, pronta para reaparecer.

Com Trump e Bolsonaro tivemos uma combinação nefasta. No caso de Bolsonaro, não bastou o elogio da hidroxicloquina. Era preciso lançar dúvidas sobre a vacina, enfraquecer a busca nacional por esse recurso.

Em A Peste, o vírus é apenas uma alusão a regimes opressivos. No Brasil e nos Estados Unidos vivemos uma redundância: pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas.

Os padrões do comportamento civilizado

Numa democracia saudável, a luta pelo poder, por mais acirrada que seja, não pode servir de pretexto para que se violentem os padrões básicos de comportamento civilizado. Em outras palavras, todos, candidatos e eleitores, devem respeitar esses limites ditados pela decência – que, ao fim e ao cabo, é requisito fundamental para o reconhecimento mútuo da legitimidade dos que disputam o poder.

Há algum tempo, contudo, a democracia brasileira vem sendo rebaixada por alguns a uma briga de rua, em que vence aquele que desafia os paradigmas morais que, sempre se acreditou, viabilizam a vida em sociedade. A briga de rua premia os que tratam o oponente de forma desumana, sem qualquer freio ditado pelos princípios éticos; já os que nutrem respeito pelo adversário, no mínimo por honradez, são tratados como fracos.

Quando Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, sugere que seu principal adversário na disputa, o prefeito Bruno Covas, pode não terminar o mandato caso seja reeleito, revela por inteiro a ausência de limites morais que tão mal tem feito à democracia no País.

Como se sabe, o prefeito Bruno Covas sofreu de câncer. Segundo seus médicos, o tratamento a que o prefeito vem sendo submetido controlou a doença e lhe deu condições não apenas de continuar à frente do cargo, como também de concorrer à reeleição. É absolutamente repugnante que um candidato explore a doença grave de um adversário para tentar lhe tomar votos.

Ao contrário do que pensam os bolsonaristas como o sr. Russomanno, há uma linha de dignidade que não pode ser cruzada em nenhuma hipótese, pois eleição não é uma disputa terminal, de vida ou morte, que, ao menos para os amorais, justificaria toda sorte de barbaridades.



Não faz muito tempo, a presidente Dilma Rousseff, de triste memória, reconheceu que ela e seus correligionários faziam o “diabo” em época de eleição. Tal admissão causou na ocasião uma compreensível repulsa por parte dos cidadãos de bem, já bastante agastados com as artimanhas tinhosas do lulopetismo, mas ao mesmo tempo foi útil para revelar até onde estavam dispostos a ir o sr. Lula da Silva e seus discípulos para se agarrar ao poder.

Rasgada a fantasia de campeão da ética, com a qual o lulopetismo enganou muitos incautos por décadas, ficou claro para todos que a política, conforme concebida pelo PT, não era mais uma disputa de ideias, mas guerra aberta em que o adversário devia ser aniquilado.

Nisso o PT encontrou em Jair Bolsonaro seu inimigo ideal. Desde os tempos de deputado do baixo clero, o hoje presidente se notabilizou por defender nada menos que a destruição – física, até – de seus oponentes. Bolsonaro elegeu-se presidente criando e explorando fake news em redes sociais para desmoralizar seus concorrentes, atualizando o conceito de “fazer o diabo” na campanha.

Uma vez na Presidência, Bolsonaro não perde seu tempo governando, coisa que, de resto, seria incapaz de fazer; concentra suas energias em sua campanha antecipada pela reeleição e, para esse fim, não se constrange em explorar a pandemia de covid-19 e seus cerca de 160 mil mortos para tentar ganhar votos. Estimula aglomerações, menospreza a vacina e incentiva os cidadãos a tomar remédio sem eficácia comprovada, tudo para se livrar do fardo de liderar o País neste momento tão difícil e para atribuir a terceiros – seus adversários políticos – a responsabilidade pela crise.

O sucesso eleitoral de Bolsonaro inspirou muitos outros oportunistas a apostar na imoralidade como estratégia de campanha. Assim, uma verdadeira malta de arruaceiros políticos, a exemplo do mestre, investe na confusão e na truculência como ativo eleitoral.

Resta torcer para que a rejeição a candidatos apoiados tanto por Bolsonaro como por Lula, detectada em algumas pesquisas, se confirme, pois assim ficará claro que nem todos os eleitores se sentem confortáveis em viver numa sociedade desprovida de solidariedade e respeito ao próximo, que é a sociedade idealizada pelos liberticidas bolsonaristas e lulopetistas.

O futuro sem Bolsonaro

Um dos pesadelos dos americanos é que, mesmo que Donald Trump seja derrotado na eleição de terça-feira e varrido de volta para a Idade Média, o trumpismo continue a existir nos EUA. Era uma inflamação que só esperava um furúnculo para estourar, e esse furúnculo foi Trump. Já o nosso pesadelo é que o mesmo possa acontecer aqui, quando Jair Bolsonaro for levado a responder por seus crimes contra as instituições, a democracia e a vida —que o bolsonarismo não dependa mais da existência do seu Führer.



Se pensarmos bem, ele já existia antes da candidatura de Bolsonaro à Presidência, da facada em Juiz de Fora e de sua vitória nas urnas. Claro que Lula foi decisivo para essa vitória, ao sabotar outras candidaturas para que Bolsonaro —“fácil de derrotar”— chegasse à final contra o PT. Lula subestimou a aversão ao lulismo, alimentada durante 13 anos pelos desmandos de seu partido. A prova dessa aversão é que, com toda a demência e bestialidade do governo Bolsonaro, o PT está à beira da extinção.

Um indício da sobrevivência do bolsonarismo sem Bolsonaro é que, para seus fanáticos, não importa que Bolsonaro minta, alie-se aos corruptos que fingia combater, proteja genocidas e incendiários ou troque o país por sua miserável reeleição —o que sobrar do país depois de seu primeiro mandato. O Exército, que ele desmoraliza aos olhos da nação, continua a apoiá-lo. Os empresários, cujos negócios são prejudicados pela imagem de pária do Brasil no exterior, não o abandonam. O Congresso, que ele já ameaçou fechar, fecha com ele. E, a depender dos juízes, os zeros não se sentarão no banco dos réus.

Tudo isso é bolsonarismo e, se tantas categorias se sujeitam a ser corrompidas por ele, é porque não é mais Bolsonaro que importa.

Bolsonaro, por incrível que pareça, às vezes nos dá saudade da ditadura. Imagine se, no futuro, o Brasil chegar a ter saudade dele.

Pensamento do Dia

 


Quem adota nome debochado na eleição é inimigo do povo

Desde que uma lei federal de 1997 admitiu a possibilidade de que os candidatos alterem o próprio nome civil para adotar na urna um nome que diga ao eleitor quem são, o lado oculto de muitos políticos veio à luz. Por esse meio, fragilidades da composição do sistema político brasileiro também ficaram visíveis.

O voto é instrumento de representação política. Por meio dele, o eleitor e cidadão se faz presente na tomada de decisões sobre a ordem política. Representação quer dizer presença do ausente. Mas não quer dizer ausência do representado. Mesmo que meu candidato não seja eleito, eu estarei representado pelos eleitos. Como corpo político, são o corpo simbólico da nação, do qual faço parte.

No voto, há um pacto entre o povo e o poder. Por meio dele, delego à maioria formada na eleição minha vontade política de cidadão, e não estritamente ao candidato em que votei. Goste ou não dos eleitos.

Há uma certa resignação cívica do eleitor vencido, o que não significa abrir mão de sua militância cidadã contra as ideias e a conduta do vencedor, sobretudo se não tratar com respeito as ideias dos vencidos. É isso a civilização na política.

O que envolve reciprocidade. Os eleitos não representam a si mesmos, engano frequente que, quando cometido, atesta que as eleições são para muitos renúncia de quem vota à representação de sua vontade política, e o mandato acaba sendo exercido como usurpação e roubo dos direitos políticos do povo e da propriedade privada do eleito. Não adianta o eleitor ser cidadão se o eleito não o é, nem sabe sê-lo.

Quem adota na eleição nome de palhaço ou nome debochado e se comporta como tal no poder é inimigo da sociedade e do povo porque deprecia as altas funções sociais e políticas das instituições que o representam. Partidos que perfilham esses mascaramentos não são partidos.

Muitos brasileiros encaram as anomalias que há no uso do nome de urna como indicação de que somos um povo politicamente ignorante e bizarro. Só num certo e limitado sentido o somos porque no Brasil o Estado conspira todo o tempo contra a consciência propriamente política.

O uso de apelido como nome de urna, no entanto, tem entre nós raízes antropológicas e históricas. Uma primeira fonte antropológica dos apelidos brasileiros é a tradição indígena dos nomes secretos. O nome só é conhecido por quem o deu.

Um caso célebre é o da brasileira branca Helena Valero, do Amazonas, raptada quando adolescente, nos anos 1930, pelos índios ianomâmi. Na tribo, no rapto que durou 20 anos, casou duas vezes e teve quatro filhos. Só conseguiu escapar em 1956. Ficou sabendo o nome de seu primeiro marido quando ele morreu.

Uma segunda fonte é a tradição comunitária e familiar das populações rurais, de que todos somos herdeiros, em que as pessoas são designadas pelos vínculos de família e procriação. Mesmo já adultas, são designadas pelo parentesco, geralmente com a mãe: Tonho da Maria, Zeca [Jeca] da Nhá Florinda. O apelido sobrepõe ao nome formal a precedência de um nome relacional, comunitário e afetivo. O que é peculiar da organização das sociedades tradicionais.

Hoje, a atribuição mesmo dos apelidos que parecem depreciativos da pessoa apelidada, como alguns de conotação racial, é rito de incorporação simbólica da pessoa apelidada à comunidade de família ou à comunidade local, mesmo que seja para inferiorizá-la.

Se há pouco caso pelas instituições em muitos nomes de urna, a maioria parece ser de nomes decorrentes da profissão ou da ocupação da pessoa. Ao acaso, valho-me de Anápolis, Goiás, cidade culta e próspera. Estes são alguns dos nomes de urna destas eleições: Alessandra Campos da Funerária, Diego da Ortopedia, Beto do Gás, Zé do Fogão, Wilson do Gesso, Ary do IPTU.

Quase sempre profissões de valimento dos que a esses profissionais recorrem em momentos adversos. Resquício do clientelismo político brasileiro, da troca de favores. Propina ideológica sendo cobrada no pedido de voto. Sobretudo a função pública sendo utilizada não como serviço à sociedade, mas como favor privado.

Sem contar pastores e militares, como tais identificados, que esperam os votos dos que entendem que os políticos e a política precisam mudar de endereço: ou o templo ou o quartel ou a delegacia de polícia. Uma explícita negação do que é a política.

A Justiça e os partidos toleram essas anomalias que viciam e corroem o sistema político. Às vezes proíbem nomes como o de Paulo Bosta, de Bauru, vendedor de esterco, porque “é vulgar, irreverente e, sim, contrário aos bons costumes”. Esses nomes, no entanto, deveriam ser vetados porque ao desmoralizar os candidatos que os usam, desmoralizam a função a que concorrem, que é a que justifica o voto.

Forças Armadas não se sentem representadas por Bolsonaro nem pela ala militar

O explosivo artigo do general Rêgo Barros contém o travo de amargura de quem foi escanteado do poder, porque talvez ele continuasse até hoje quietinho no Planalto, em “dolce far niente”, caso não tivesse sido exonerado. Diante dessa realidade, o texto realmente necessita de tradução simultânea, embora os termos estejam claros, numa redação perfeita e culta, não há reparos a fazer, pois esse retrato de Jair Bolsonaro é de um impressionismo irretocável.

Como todos sabem, o presidente é tudo aquilo que o general traçou, com algumas características adicionais que não foram mencionadas, como o fato de ser ignorante e mau educado. Aliás, aqui na trincheira da TI, eu não mudo a definição que fiz dele antes da eleição – é um completo idiota.

O mais importante a extrair do precioso e oportuno artigo do oficial-general é saber até que ponto o atual presidente conta com apoio das Forças Armadas.



Saudado de início como o salvador, que iria encher o governo de militares e dar jeito no país, não é de hoje que Bolsonaro vem desgostando os Altos Comandos das três armas, pois é isso que interessa, embora a grande massa dos militares esteja muito satisfeita com os aumentos dos salários, a privilegiada previdência e tudo o mais.

Mas o que importa é a visão dos comandantes, aqueles que realmente se preocupam com os interesses nacionais e não estão à disposição no mercado, para serem comprados por 30 dinheiros, “isso non ecziste”, diria padre Quevedo. O capitão Bolsonaro pode até ter conquistado o apoio da patuleia militar, porém jamais conseguiria cooptar o apoio do oficialato.

Fazendo jus a seu apelido na caserna, Bolsonaro estava usando sua ignorância cavalar para sonhar que os chefes militares o acompanhariam num golpe de estado, a pretexto de estar sendo “boicotado” pelo Supremo e pelo Congresso.

A audácia foi tamanha que sua trupe organizou, convocou e realizou um ato pró-golpe diante do Forte Apache, com a entusiástica participação do próprio Bolsonaro, que discursou em cima de uma caminhonete, maculando aquele território venerado pelos militares e emporcalhando a imagem das Forças Armadas.

De lá para cá, o apoio do Alto Comando das Forças Armadas ao governo passou a ser apenas constitucional. Os oficiais-generais das três armas limitam-se a cumprir a legislação, não há mais o menor vestígio de cobertura político-militar.

Em resumo, os problemas são dos civis, pois Bolsonaro e os ministros da ala militar exercem funções governamentais que pouco têm a ver com as Forças Armadas. Os militares continuarão nos quartéis ou dando apoio na questão da Amazônia, na construção de pistas de pouso, na abertura de estradas e em outras obras que lhes sejam solicitadas.

O que a pandemia nos ensina sobre a luta por habitação social digna na América Latina

Após meses de confinamento, a América Latina está começando a sair às ruas aos poucos. Porém, para muitos, tem sido difícil ficar em casa, pois nem sempre sua vivenda é digna de ser chamada assim. Um ano antes da declaração desta pandemia, que revelou desigualdades sociais, o Banco Mundial alertou que duas em cada três famílias da região precisavam melhorar suas casas por não atenderem a padrões mínimos de bem-estar e segurança. Essas mudanças estão pendentes.

Algumas casas não têm água, esgoto, ventilação, transporte, eletricidade ou acesso à Internet; um coquetel de deficiências que podem causar problemas ocupacionais e de saúde durante longos períodos de confinamento. “As cidades têm sido o epicentro desta pandemia e a habitação tem sido a primeira linha de defesa e proteção, que lança luz sobre um problema pendente de solução há décadas”, enfatiza Tatiana Gallego, chefe da Divisão de Habitação e Desenvolvimento Urban do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Além disso, essa população vive em periferias distantes do restante da população, em bairros sem acesso a serviços básicos, áreas verdes, escolas ou hospitais. Mais problemas.

Moradia vandalizada em conjunto habitacional nos arredores de Tijuana (México)

Apesar de todas essas evidências que emergem novamente com o desejado, a luta para ter uma casa decente e resiliente parece estar congelada. Questionada sobre a situação atual, Catherine Paquette, pesquisadora e urbanista do Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), especializado no México e no Chile, está muito preocupada: “O que está acontecendo é muito dramático para os pobres e os novos pobres que ainda não vemos [que vão cair nesta situação quando perderem os seus empregos nesta crise]. É muito cedo para saber o que a pandemia trará porque ainda estamos em uma fase de sobrevivência”. Mas agora que os latino-americanos estão começando a tirar suas cabeças da água e entrar em sua nova normalidade, que lições podem ser aprendidas com a pandemia?

A pandemia mais uma vez trouxe à tona um problema conhecido: o tamanho diminuto das habitações sociais e a falta de serviços e saneamento em seus bairros.

No Chile, a habitação social para famílias chegava a medir apenas 36 metros quadrados e em casos extremos não mais que 27. Hoje, a lei chilena estabelece o padrão mínimo de 55. A pesquisadora francesa explica que este país foi o primeiro a implementar uma política de produção em massa de habitação social nos anos 90 com padrões de qualidade muito baixos. A partir dos anos 2000, as coisas melhoraram.

Mesmo assim, os chilenos vivem pensando em sua casa. Os mais pobres, sobre como conseguir um decente. As condições em que vivem, principalmente em condomínios sociais herdados da fase de produção de moradias em massa, ainda deixam muito a desejar. Isso é confirmado por Marta Benedicto Cabello, psicóloga comunitária especializada em participação cidadã, intervenção social e gestão de projetos de desenvolvimento, com oito anos de experiência com comunidades vulneráveis em vários países da América Latina. Um dia ela entrou em uma casa em Alto Hospicio (Chile) cujo inquilino vivia há mais de um ano com fezes em sua cozinha. O cano estava quebrado e ninguém tinha vindo para consertar nada. “Quando passei pela porta, eles disseram ‘finalmente alguém está vindo para nos ajudar’", diz a especialista. Naquele lugar, ela nunca viu um planejamento do uso do solo ou políticas de desenvolvimento urbano. “Eles não têm áreas verdes, nem serviços, nem transporte. Atualmente é uma das cidades com pior qualidade de vida em todo o Chile”, afirma.

Mas o vírus fez com que algumas autoridades abrissem os olhos. O médico e Ministro da Saúde do Chile, Jaime José Mañalich, reconheceu durante o confinamento que não estava ciente da magnitude do problema habitacional, nem do nível de pobreza e superlotação em seu país. Isso foi noticiado por vários meios de comunicação chilenos no final de maio. No início do mês seguinte, o movimento social UKAMAU se levantou para pedir um plano de emergência nacional para a construção de moradias de interesse público e para acabar com o déficit habitacional e o desemprego.

Em outros países, como México, Brasil ou Colômbia, que também seguiram o exemplo do Chile nos anos 1990, a situação é ainda mais preocupante: os padrões, por enquanto, não mudam. Ainda há casas que não medem mais de 40 metros quadrados e onde não cabem móveis básicos. “Nessas condições, de fato, esses tempos de pandemia e confinamento são muito difíceis”, confirma Paquette.
Agilizar processos: o erro de tomar a casa como mercado

As dores de cabeça vão além das portas das casas. “A moradia não se expressa como um direito. Faz parte de um mercado e, além disso, não estão reunidas as condições de acesso a uma moradia social digna”, denuncia Benedicto.

O salário mínimo na América Latina aumentou desde 2000, segundo Antonio Prado, ex-secretário executivo adjunto da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), mas ainda não é muito adequado: entre cerca de 200 e 400 euros por mês dependendo do país, em janeiro de 2020. Com a crise, a região afunda em um contexto de retrocesso: a pandemia vai trazer a renda per capita de volta aos níveis de 2009. Sujeita a essa fragilidade econômica, como uma família pode ter acesso à habitação social? No Chile, por exemplo, você tem que pertencer à faixa mais pobre da população com uma renda inferior a 300 euros (o salário mínimo é de 388,7) e ter esse valor na conta poupança de sua casa, detalha Cristóbal Céspedes Díaz, Assistente social chilena especializada em estudos internacionais e políticas públicas para o desenvolvimento. “Antes de 2015, era preciso pedir um empréstimo ao banco para conseguir uma habitação social. Agora não. Felizmente”, diz ele antes de relatar a quantidade de papelada que atrapalha o processo. O acesso por crédito, no entanto, ainda vigora em muitos outros países do continente.

E aqui está outro problema: muitas pessoas perderam seus empregos por causa da pandemia, especialmente em famílias pobres, e não podem continuar a pagar por suas casas. Na América Latina, com ou sem coronavírus, o endividamento por hospedagem é muito alto e é possível que o apartamento, por sua má qualidade, não dure o tempo correspondente ao empréstimo hipotecário.

Céspedes explica que os “mais pobres” recebem um subsídio com o qual dificilmente podem ter acesso a uma casa sem serviços próximos e com materiais de péssima qualidade. Benedicto acrescenta: “Ainda há muitos desabrigados no Chile porque, se a economia se baseia na construção de cada vez mais, muitas outras questões são deixadas de lado, como melhorar e facilitar o acesso”. O objetivo dessas políticas, acredita a especialista, é manter as pessoas unidas ao Estado para promover o mercado, as privatizações e que os mais necessitados continuem a pedir subsídios, sem direito ao território, dando origem a mais favelas que ninguém presta atenção.

A pandemia destacou a necessidade de reforma para expandir a proteção social para os mais vulneráveis. Em linha com esta ideia, Gallego acrescenta que nos últimos 12 meses, países como o México ou o Brasil lançaram novos apoios à regularização e titulação, combinados com soluções (subsídios e microcréditos) para melhoria, crescimento e autoprodução assistida da habitação.

Uma questão muito importante para o chefe da Divisão de Habitação e Desenvolvimento Urbano do BID são “os efeitos perversos da superlotação estrutural”, que em condições de confinamento compulsório não só aumenta as chances de contágio dentro da família, mas também pode aumentar a violência. O Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat) estima que um quarto da população urbana mundial ainda vive em favelas e a mesma porcentagem se aplica à América Latina. “Nesses bairros com habitação social existe bastante desconfiança e medo dos vizinhos”, descreve Paquette. “Lembro-me que em um trabalho de campo no Norte do México, uma família em um grupo de habitação social me disse que nunca saia de casa sozinha. Sempre havia gente porque era comum um dos vizinhos entrar para roubar”, testemunha. Esta falta de coesão entre as pessoas deve-se, entre outras coisas, ao facto de não terem sido eles que criaram o seu bairro e aí os instalaram, em casas individuais, longe de tudo e em particular das suas redes de solidariedade, essenciais para a vida cotidiana.

Porém, após esses meses de crise, as pessoas começaram a se conhecer, se apoiar e se organizar. “Agora é importante ver como podemos preservar essas formas de organização de bairro para o futuro. É muito valioso e deve ser fortalecido”, propõe o pesquisador francês. Benedicto e Céspedes também gostariam que fosse mais longe. Para eles, os movimentos sociais não são tão exigentes como deveriam, dada a situação deplorável em que se encontram alguns cidadãos. “É verdade que muito se conseguiu com os movimentos no Chile, mas em Arica, por exemplo, não vi nada, não há ajuda e a situação em muitos lugares continua desastrosa e não está progredindo”, lamenta a mulher. Em busca de soluções, Gallego reconhece que a interação social precisa reativar seus espaços públicos graças a métodos inovadores, como o chamado do BID Volver a la calle.

Por outro lado, os Governos locais, não estando envolvidos na produção em massa de programas de habitação de interesse social, podem recusar-se a assumir a gestão dos bairros depois de construídos por falta de recursos. Para resolver estes percalços, como muitos especialistas, Paquette é mais favorável ao Governo apoiando a produção social do habitat, ou seja, os locais construam e melhorem as suas casas com apoio técnico; que, além disso, irá promover a coesão social.

A lista de benfeitorias necessárias é longa, mas um dos maiores desafios para Gallego e Paquette é a reabilitação urbana, ou seja, a reforma de casas existentes, antes de se dedicarem à construção de novas. “A política habitacional foca no segundo objetivo e pouco no primeiro porque não gera mais economia e não beneficia os incorporadores”, explica a urbanista francesa. E conclui: “Gostaria que o retorno ao ‘novo normal’ pudesse gerar uma mudança de paradigma na matéria. A menos que os governos mais uma vez optem por contar com a produção maciça de moradias para reativar a economia... O risco é muito real”.

Gallego reconhece o perigo existente de uma suburbanização “ineficiente e expansiva”, mas é mais esperançoso: “A recente pandemia nos permitiu fazer uma reflexão profunda sobre os desafios apresentados pelo atual modelo de desenvolvimento urbano e habitacional e sobre as oportunidades que pode ser aberta em resposta a mudanças no comportamento da população”. Do seu ponto de vista, a pandemia revelou novas possibilidades para reavaliar sistemas de planejamento e ordenamento do território mais equitativos e adaptados.

A especialista se propõe a estabelecer um padrão de múltiplas centralidades, tendo o bairro como unidade humana e econômica. Este modelo pode “melhorar a gestão dos mercados de terras e, portanto, a acessibilidade da moradia e os níveis de segregação socioespacial enfrentados pela região”, diz ele. Também está comprometida com a densificação inteligente que, ao contrário da superlotação, maximiza o uso da área e ao mesmo tempo responde aos aspectos geofísicos, climáticos e culturais adequados para a área.

A estimativa do déficit habitacional permite calibrar os objetivos das políticas de produção de habitação social. O UN-Habitat elaborou um estudo a esse respeito que mostrou a alta complexidade do tema. O BID estima o déficit em cerca de 38 milhões de unidades, das quais 17 milhões são novas casas que deveriam ser construídas e o restante, aquelas que deveriam ser melhoradas. Soma-se a isso as necessidades anuais geradas pela formação de novas moradias, que são de dois milhões por ano. “Mas todas as casas incluídas no déficit habitacional não são realmente casas a serem construídas [muitas devem ser melhoradas] e aqui está o problema”, diz Catherine Paquette.

Os números variam amplamente dependendo das fontes. Não existe um procedimento de medição único e cada país tem sua metodologia. Além disso, a estimativa do déficit quantitativo (casas necessárias atualmente) depende do que é considerado uma família. Geralmente, toma-se como referência a família nuclear, ou seja, pais e filhos. No entanto, muitas famílias são constituídas por mais membros que se apoiam mutuamente dentro dos lares, uma forma de vida muito comum na região e essencial para as famílias mais humildes. Mas essas pessoas extras também são introduzidas no cálculo do déficit quando, muitas vezes, isso não significa que não possam comprar uma casa. O problema, neste caso, não é a falta de moradia, mas a pobreza. “A questão do déficit, aparentemente muito técnica e objetiva, não é nada disso. É político e altamente subjetivo. Estimar é um desafio maior”, finaliza Paquette.