quarta-feira, 12 de junho de 2019

O Brasil irá à guerra

A primeira baixa no processo de radicalização que vivemos no Brasil é a elegância. As pessoas se tornam mesquinhas e mal-educadas quando convidadas ao debate, ansiosas pelo sangue dos outros entre os dentes.

Nada, nem ninguém, é poupado, nem velhas amizades, nem o rito milenar do respeito ao “santuário”, local em que se conversa educadamente sobre questões em disputa sem tentar vencer o outro. Aprofundemos um pouco esse mau presságio.

Polarização, faccionalismo, radicalização. Suspeito que o termo polarização já não apreenda a totalidade da experiência política no Brasil atual. Expressões como faccionalismo, no sentido dado pelos federalistas americanos (voltaremos a eles depois), capturam nossa experiência no país hoje de forma mais ampla e profunda. Por último, radicalização, à semelhança do uso no caso islâmico, parece-me descrever melhor o dano cognitivo, afetivo e político-social que a polarização causa no Brasil.

A polarização política poderá nos levar à exaustão. Infelizmente, mesmo os agentes públicos do pensamento se radicalizam à medida que o tempo passa, num movimento psicológico de infantilização intelectual e afetiva.

Trago para o diálogo os federalistas americanos Alexander Hamilton, James Madison (o mais essencial deles) e John Jay, autores de um volume não muito conhecido no Brasil cujo título é “O Federalista”, na tradução portuguesa da editora Calouste Gulbenkian, de Lisboa —em inglês o livro é conhecido como “The Federalist Papers”, e foi escrito nos últimos anos do século 18.

Com esse diálogo, pretendo oferecer recursos bibliográficos para aqueles que tiverem a boa vontade de combater a polarização. Esta está para a junk food assim como a tentativa de superá-la está para uma dieta ampla. A polarização é uma forma de regressão política.

Um dos riscos sempre temidos nos regimes populares (leia-se, as democracias) é o faccionalismo. Esse fenômeno, um dos focos de atenção dos federalistas, é quando grupos de diferentes tamanhos e densidade elegem como foco privilegiado sua própria agenda em detrimento da agenda do país como um todo.

Sua vocação é distinta daquela conhecida por nós como lobby, porque seu ethos é o da guerra, da intransigência e da violência. O faccionalismo destrói a capacidade de convívio, e faz com que conflitos outrora tratados no âmbito da institucionalidade transbordem para a violência autojustificada. A competição entre manifestações é um primeiro passo para o faccionalismo pleno.

A trajetória provável do faccionalismo é a desarticulação da democracia, e sua possível lenta destruição. O Brasil de hoje tem ao mesmo tempo um presidente faccionalista com um guru faccionalista (Olavo de Carvalho), e uma oposição faccionalista com um guru faccionalista (o Lula), que vê a si mesma como uma legião de boas almas cuja missão é salvar o país de si mesmo. O PT sempre teve uma vocação faccionalista.

O bolsonarismo é seu reflexo no espelho. Julgar-se do bem na política sempre carrega um traço de faccionalismo.

Quanto à radicalização, vejamos outro clássico da política: “Considerações sobre a Revolução na França”, livro do britânico Edmund Burke publicado pela É Realizações e datado dos últimos anos do século 18.

Nesta peça literária sobre filosofia política, Burke imagina a invasão dos aposentos da rainha Maria Antonieta pelos jacobinos enraivecidos: “logo descobrirão que a rainha é só uma mulher, e que uma mulher é só um animal”.Essa passagem é conhecida como a matriz do conceito de imaginação moral, que não trataremos aqui.

O próprio Burke sabia que essa raiva era fundamentada: a aristocracia francesa rompera seu acordo de cuidar da nação francesa, levando seu povo ao desespero.

Não me refiro aqui aos “miseráveis” a perder a elegância e perceber que uma mulher ou um homem são meros animais, passando a tratá-los como tais. Refiro-me à elite intelectual brasileira, que está a ponto de perder a elegância no debate entre nós mesmos. Se não há nada a fazer a não ser o ódio prático, o que nos resta? A guerra? Querer “ganhar” a briga intelectual não é indício de bolsonarismo e petismo mentais?

Se a responsabilidade é de nós todos, a maior parte cabe, sem dúvida, ao governo. Romper o faccionalismo é a tarefa diante dele e da oposição. A vaidade é uma inimiga mortal de quem quer cuidar de uma nação. A humildade é a única virtude que cabe aos líderes. E sua filha dileta, a prudência.
Luiz Felipe Pondé

Governo precariza política de combate à tortura com exoneração de fiscais

O presidente Jair Bolsonaro extinguiu nesta terça-feira todos os onze cargos de peritos do órgão federal responsável por fiscalizar casos de tortura nas penitenciárias e outras instituições de privação de liberdade no país. Até então, os fiscais lotados no chamado Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) recebiam uma remuneração mensal de aproximadamente 10.000 reais para realizar um trabalho que envolve desde o levantamento de dados e a análise de denúncias de violações até missões in loco nas instituições públicas para a produção de relatórios com recomendações ao poder público para combater e prevenir violações de direitos. Com o decreto 9.831, o Governo diz que manterá o órgão, mas sob um "novo paradigma" de atuação. Agora, os fiscais do colegiado deverão ser voluntários sem vínculos com ONGs ou universidades e designados por ato direto do presidente.


A mudança é vista por especialistas e profissionais da área como um "desmonte" da já frágil política nacional de combate à tortura, em um país que tem a terceira maior população carcerária do mundo (com em torno de 720.000 detentos) e um vasto histórico de violações em instituições estatais. Bolsonaro — que já manifestou apoio à tortura no passado — chegou a ser denunciado na ONU por entidades de direitos humanos nesta terça-feira pela medida. As organizações argumentam que o decreto fere os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na área. Segundo pesquisadores, as mudanças estabelecidas pelo presidente dificultam a atuação do Mecanismo porque não garante ao órgão uma estrutura adequada nem profissionais capacitados, além de limitar sua independência de atuação. E isso, avaliam, pode repercutir em mais violência nas ruas e nas penitenciárias, especialmente diante do atual contexto de crises de segurança motivadas em parte pela violação de direitos nos presídios, como os recentes casos do Amazonas e do Ceará.

"É um tiro no coração do Mecanismo, que foi pensado pra ser um órgão longínquo e mantido pelo Estado. O objetivo do decreto é tornar o Mecanismo estéril", diz o ex-integrante do MNPCT e professor da Universidade de São Paulo, Paulo Endo. Ele argumenta que é obrigação do poder público combater a violação dos direitos humanos, que acontece em larga escala em instituições de detenção geridas por ele. E teme que esses casos sejam agravados com as mudanças impostas pelo Governo na fiscalização. "O MNPCT é hoje o único capaz de entrar nas unidades sem aviso prévio. Sem o órgão, a sociedade fica sem nenhum instrumento de fato para a averiguação do que acontece nos locais de detenção", considera. Um estudo da Pastoral Carcerária publicado em dezembro do ano passado revela que nenhum dos 175 casos de denúncias de tortura em penitenciárias do país registrados nos últimos quatro anos resultaram em punição dos autores.

Nos últimos meses, peritos do Mecanismo Nacional já vinham se queixando de um enfraquecimento do órgão na atual gestão com os obstáculos colocados para a liberação de viagens necessárias para as inspeções. Além disso, desde janeiro deste ano o órgão vinha funcionando com apenas sete dos onze peritos previstos na sua lei de criação, de 2013. "O Mecanismo é um órgão operativo. Quando estávamos com o corpo completo, tínhamos a meta de seis visitas regulares por semestre, além dos casos em que éramos chamados. Sem a estrutura completa, a capacidade de atuação vai sendo tolhida", afirma o perito Daniel Melo, que foi exonerado pelo decreto do presidente.

Apesar da equipe reduzida, o órgão teve uma atuação relevante nas duas mais recentes crises penitenciárias do país. Foram eles que elaboraram os relatórios sobre a situação de presídios no Amazonas, onde pelo menos 111 detentos foram mortos enquanto cumpriam pena sob a tutela do Estado desde 2017. No último mês de maio, mais de 50 presos foram assassinados no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus. O caso, somado a outras dezenas de mortes em unidades de privação de liberdade de Manaus, motivou uma força-tarefa federal do ministro da Justiça, Sergio Moro.

O Mecanismo Nacional também atuou na recente crise de segurança do Ceará. Em janeiro, o Estado viveu um clima de terror com sucessivos ataques a ônibus, órgãos públicos e viadutos. Os atos criminosos, realizados durante vários dias, eram comandados por presos, supostamente em resposta ao anúncio feito pelo Governo do Estado de que não necessariamente separaria os detentos nas unidades conforme a facção da qual faziam parte. Em meio a uma das maiores crises de segurança do Ceará e provocados por denúncias, os peritos do MNPCT prepararam uma inspeção in loco, mas encontraram resistência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (ao qual é vinculado), que alegava falta de verbas e de justificativa de urgência para a viagem. O Governo acabou recuando, e os fiscais viajaram duas vezes ao Estado, onde constataram uma série de violações de direitos dentro dos presídios cearenses — como superlotação e ausência de atendimento médico e condições sanitárias adequadas.

O relatório produzido tem servido como norte para que ONGs e conselhos do Estado monitorem as ações do Governo para mudar esse cenário de violações, aponta a presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Ceará, Beatriz Xavier. "Essa atuação do Mecanismo Nacional só é possível porque há um corpo de profissionais e não militantes, com experiência e disposição para atuar em um ambiente de insegurança. Esse trabalho não é compatível com o voluntariado", afirma. Para ela, as alterações do Governo são uma forma velada de acabar com a atuação do órgão.

Em nota, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos diz que o Mecanismo Nacional continuará ativo e "sem prejuízos" e defende que as alterações feitas pelo decreto poderão ampliar a rede de combate à tortura. "Os Estados poderão instituir também os seus Mecanismos sem, contudo, serem obrigados a criar leis com novos cargos de natureza remunerada", afirma a nota.

Pesquisadores na área, porém, temem justamente um efeito contrário: o enfraquecimento de órgãos semelhantes já criados e uma dificuldade maior para criar novos. Isso, conforme avaliam, deve inclusive repercutir nas ruas. "Você tira o freio que se tinha, e situações de violação e autoridade agora tendem a prosperar", afirma o pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência do Ceará, Luiz Fábio. Ele argumenta que as facções criminosas têm crescido e se fortalecido dentro dos presídios nos últimos anos em uma guerra que travaram contra um Estado violento e incapaz de promover de fato uma ressocialização. "A facção passa a ser o único meio do preso de proteger de situações de violência dentro dos presídios", diz o pesquisador. Com menos controle social sobre os casos de torturas nos presídios, explica Luiz Fábio, a tendência é que haja repercussão violenta nas ruas nos próximos anos. "A situação já é recorrente em vários estados. O enfraquecimento do controle social sobre a tortura promovida pode resultar no incremento da violência dentro dos presídios, que costuma repercutir também nas ruas", acrescenta o sociólogo Ítalo Lima.

Paisagem brasileira


 Paisagem serrana com casario , Carlos Gomes

Onde ninguém se considera suspeito...

Hilário ler que o CNMP está discutindo em grupo de Whatsapp o que fazer com os procuradores que se falaram em grupo de Whatsapp. Será que ninguém percebe o pitoresco da situação?



Em um país em que parentes de Ministros advogam nos Tribunais Superiores; em que a nata da advocacia criminal faz jantar homenagem ao Presidente da Corte que julgará suas causas; em que o magistrado da causa oferece jantar de aniversário para a parte, em que um ex-Ministro de Estado se refere a um Ministro do STF como ‘nosso advogado’ e ninguém se considera suspeito, DATA VENIA, parece piada querer fazer um carnaval por causa de três frases em um grupo de Whatsapp. Faz-me rir!

Janaina Paschoal (PSL-SP)

A lei do mais forte

Durante muito tempo dissemos que a competição e a eliminação dos mais fracos eram o motor da evolução natural. Sem querer, demos crédito à chamada lei do mais forte. Sancionamos o pecado da ira dos poderosos no extermínio dos chamados fracos. Sabemos hoje que a simbiose é um dos mecanismos mais poderosos de evolução. Mas deixámos que isso ficasse no esquecimento. E continuamos ainda hoje vasculhando exemplos isolados de simbiose quando a Vida é toda ela um processo de simbiose global. Sabemos hoje que a capacidade de criar diversidade foi o mais importante segredo da nossa época como espécie que se adaptou e sobreviveu. No entanto, vamo-nos contentando com o estatuto que a nós mesmos conferimos: o sermos a espécie «sabedora».

Alimentámo-nos de receios e essa será mais uma manifestação da gula. Temos medo de errar. Esse medo leva à proibição de experimentar outros caminhos, sufocados pelo cientificamente correcto, pelo estatisticamente provado, pelo laboratorialmente certificado. Deveríamos ser nós, biólogos, a mostrar que o erro é um dos principais motores da evolução. A mutação é um erro criativo que funciona, um erro que fabrica a diversidade.

Os avanços no domínio do conhecimento fazem-se através de caminhos paradoxais. A nossa ciência, sendo da vida, fez-se também por estradas da morte: a biologia sacrificou a planta para a herborizar, matou o bicho para o dissecar, laminou a célula para a mergulhar nos solventes e espreitá-la sob a lente do microscópio. Mas há outros modos de matar. Não matar o objecto do conhecimento mas o próprio conhecimento. Um desses modos de aniquilar é aprisionar em conceitos estreitos essa infinita complexidade a que damos o nome de Vida.
Mia Couto, "Pensatempos"

Moro, Dallagnol e o vazamento de conversas

Ao longo de toda a sua atuação na Operação Lava Jato, o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa que investiga o megaescândalo de corrupção, e o ex-juiz federal Sergio Moro, hoje ministro da Justiça, sempre foram alvo de críticas daqueles que arquitetaram a pilhagem das estatais para fortalecer o projeto de poder petista. Acusações de parcialidade – uma delas, contra Moro, está para ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal –, de messianismo e até mesmo de desrespeito às garantias mais básicas do Estado Democrático de Direito, tão frequentes quanto infundadas, cresceram em intensidade quando a Lava Jato chegou ao ex-presidente Lula, hoje corrupto condenado em três instâncias da Justiça brasileira.

Os críticos da Lava Jato ganharam um presente nos últimos dias: a divulgação de supostas conversas entre Moro e Dallagnol, cujo conteúdo teria sido obtido por um hacker e enviado ao site de esquerda The Intercept, que por sua vez vem divulgando o que alega ser a troca de mensagens. As reportagens publicadas até o momento não oferecem provas consistentes (como capturas de tela) de que efetivamente se trata do diálogo entre o então juiz e o procurador; por outro lado, até agora nenhum dos personagens envolvidos negou que o conteúdo das mensagens fosse verdadeiro.


Com a divulgação das mensagens obtidas ilegalmente, a esquerda inicia uma nova tentativa de impor a fábula segundo a qual a Lava Jato não passaria de uma conspiração para derrubar o PT e, especialmente, colocar Lula na cadeia. A estratégia de deslocar todo o foco para as supostas conversas entre Moro e Dallagnol, no entanto, não é capaz de derrubar o enorme conjunto probatório que a força-tarefa construiu ao longo de anos de investigação laboriosa, e que embasou as sentenças de Moro e do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em processos nos quais a defesa teve todas as oportunidades de se manifestar. Restaria, portanto, à defesa dos articuladores do petrolão tentar anular processos alegando violações de conduta da parte de investigadores e julgador. As mensagens tornariam isso possível?

Tendo em mente apenas o que foi divulgado até o momento, é preciso analisar o caso sob duas óticas. A primeira diz respeito à obtenção das mensagens, e aqui não há a menor dúvida de que houve crime da parte de quem invadiu os celulares das autoridades, do eventual mandante da invasão e de quem as distribuiu para o site The Intercept. O mesmo não se pode dizer dos jornalistas que publicaram as reportagens; eles estão exercendo seu direito à liberdade de imprensa – se o fazem de forma ética, é outra discussão – e têm inclusive garantido o sigilo da fonte, tanto quanto um veículo que divulgue o conteúdo de outros vazamentos, inclusive ligados aos processos da Lava Jato. A invasão de telefones de autoridades é um fato gravíssimo, pois demonstra um grau de ousadia e domínio tecnológico que tem um enorme potencial de instabilidade, e por isso merece apuração criteriosa da Polícia Federal. E a ilegalidade envolvida na forma como as conversas foram obtidas é tanta que chega a surpreender o fato de o Conselho Nacional do Ministério Público, em decisão absurda, já ter aberto processo disciplinar contra Dallagnol e outros procuradores da Lava Jato, apoiando-se em evidências provenientes de violações da lei.

Quanto ao conteúdo das mensagens, o que foi divulgado até o momento – pois Glenn Greenwald, fundador do Intercept e um dos jornalistas que assinam as reportagens, diz haver mais conversas ainda não publicadas – não nos permite endossar nem a narrativa de parcialidade, nem a de trabalho conjunto entre acusador e julgador, nem aquela que vê violações dos códigos que regem o comportamento da magistratura e dos membros do Ministério Público. A realidade da Justiça brasileira, e que qualquer advogado conhece, é uma em que juízes, acusação e defesa não dialogam apenas nos autos dos processos, algo que vem sendo ressaltado na repercussão da divulgação das conversas.

Os supostos diálogos mostram, sim, o que seria uma proximidade entre juiz e procurador, talvez até maior que o observado costumeiramente, mas qualquer conclusão até o momento será totalmente precipitada. Isso porque, como lembramos, mesmo dias depois do início da publicação das reportagens, ainda não surgiu nem mesmo a comprovação de que as mensagens trocadas foram efetivamente enviadas por Moro e Dallagnol. E, ainda que surja essa prova, será preciso ter acesso à íntegra das conversas – ou seja, sem omissões de trechos que poderiam até mesmo demonstrar que os interlocutores procederam de forma correta. Entre os supostos diálogos já divulgados, há aqueles que revelam certa imprudência de juiz e procurador, sendo eles os reais autores? Talvez. Há violação do devido processo legal? Só a análise do conteúdo integral permitiria chegar a essa conclusão, o que ainda não é possível fazer.

Brasil descartável


O estilo Bolsonaro

“Le style, c’est l’homme même” (“O estilo é o próprio homem”). O conceito é de autoria de George-Louis Leclerc, conde de Buffon, em discurso na Academia Francesa, em 25 de agosto de 1753. Referência na análise do “gênio” dos homens públicos, tem suscitado críticas e elogios.

A história é farta de exemplos que demonstram a força da assertiva. Gandhi, despojado de ambição, surge como expressão de grandeza moral. Para ele, os conflitos podem ser resolvidos com a sabedoria, não com armas. Hitler, com seu ideário de pureza de raça e domínio pela força, é a síntese do mal. Kennedy, em sua estampa jovem e exuberante, simboliza o ideal de uma América próspera e feliz. De Gaulle, do alto de sua autoridade, tem a imagem de herói da França. Churchill, culto e persistente, emerge como o maior estrategista da vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial. Juscelino Kubitschek, o nosso JK, de sorriso aberto deu ao Brasil a cara de modernidade. O estilo de cada um, com suas atitudes e comportamentos, lhes deu fama e reconhecimento.

Como se traduz o estilo Jair Bolsonaro? No plano estético, sobressai a imagem do capitão fazendo com as mãos o gesto de atirar com arma. Não é um gesto de paz. Na semântica, destaca-se a figura de um radical, cujas expressões ferem os direitos humanos, a partir da posição contrária à igualdade de gêneros.

Não há projetos que abrilhantem a vida parlamentar de 28 anos. Farta é a carga de elogios a envolvidos com a tortura nos tempos de chumbo. Eleito por vestir o manto da moralidade, ganhou a identidade de guerreiro contra o lulopetismo, a bandidagem das ruas e a velha política.

A facada transformou-o em vítima da violência, amaciando a imagem dura. O jeito Bolsonaro de ser é inconfundível. Seu estilo, essa mistura de “inputs” estéticos e semânticos, pode ser lapidada? Difícil. Uma coisa é ser deputado, outra é ser presidente de todos os brasileiros. O axioma é demonstrável. Mas, em se tratando de caráter, personalidade, há pouca chance de mudança.

É o que se infere dos sinais que o presidente emite: conservador em matéria de costumes, armamentista, crítico ao modo de operar do presidencialismo de coalizão (“velha política”), defensor da inserção do Brasil na extremidade do arco ideológico.

Por isso, é razoável apostar na hipótese de Bolsonaro não mudar. Imbui-se da missão de cumprir o ideário com o qual se identifica parcela da sociedade. No xadrez da política, ele joga as pedras que acha necessárias para ganhar o jogo. Nisso está certo. Mas terá de conviver com um país rachado, um apartheid social que tende a aprofundar as bandas que o lulopetismo criou, o “nós e eles”, os bons e os maus.

Governar para todos os brasileiros será praticamente um lema impossível de ser cumprido. Em seu lugar, teremos uma expressão acirrada, insuflando manifestações do “povo” em apoio ao governo.

O amanhã é uma incógnita. Mas as alternativas são claras: o Brasil andará para frente ou para trás. O avanço dependerá das reformas. Recuo significará derrotas do governo no Congresso. A luz no fim do túnel seria a aprovação das reformas e a consequente recuperação da economia.

Pela índole bolsonariana, conviver com a esfera política será um cipoal de difícil travessia. O governo poderá chegar ao final exibindo índices positivos. Mas a ideia de um pacto pelo Brasil —como esse que se anuncia— não resiste a uma análise da “incompatibilidade de gênios” entre o mandatário-mor e os mandatários do Parlamento.

O clima será sempre muito quente. O estilo do capitão deve continuar a execrar o que chama de toma lá, dá cá. Quanto às massas, não se moverão em direção ao abismo. Conservam o instinto de sobrevivência. Apoiarão o presidente até quando os ecos da campanha derem o tom. Sem resultados positivos na economia, o povo mudará seu apoio. Os extremos não se anularão, mas diminuirão de volume. A caminhada para o meio é o trajeto mais viável.
Gaudêncio Torquato 

Do que Bolsonaro tem medo

Foi duro arrancar do presidente Jair Bolsonaro pelo menos uma frase em defesa do ex-juiz Sérgio Moro, seu ministro da Justiça e da Segurança Pública, enrolado em conversas com o procurador Deltan Dallagnol. Por fim, ele disse por meio de um assessor: “Nós confiamos irrestritamente no ministro Moro”. Mas foi só.

Bolsonaro e o ministro conversaram ontem pela manhã no Palácio da Alvorada e foram juntos de lancha para o Grupamento de Fuzileiros Navais de Brasília onde a Marinha comemorou o 154º Aniversário da Batalha Naval do Riachuelo. Ali, em uma espécie de palanque, Moro foi posto do lado direito de Bolsonaro.

No início desta madrugada, 91 fotos oficiais da cerimônia estavam disponíveis no site da presidência da República. Em todas, Bolsonaro dedica a Moro um tratamento protocolar. Em nenhuma aparece sorrindo para ele. Sorri para os demais ministros.

Mais tarde, em São Paulo, Bolsonaro decretou bruscamente o fim de uma entrevista coletiva quando um repórter perguntou sobre a situação de Moro. Irritado, Bolsonaro bateu a palma de uma mão contra a outra, fechou a cara e foi embora.

Diante de uma plateia de mais de mil pessoas no auditório da Federação das Indústrias de São Paulo, Bolsonaro, ao discursar, destacou como de praxe a natureza técnica da equipe que montou para governar. Citou vários dos seus ministros. Não citou Moro.

Bons tempos para Moro aqueles onde era apontado como uma das duas principais colunas de sustentação do governo. A outra seria o ministro Paulo Guedes, da Economia. Hoje, é Bolsonaro que sustenta Moro embora ainda se sustente em Guedes.

Se o tempo fechar de vez para o ex-juiz, Bolsonaro não verterá uma lágrima por ele. Bolsonaro só não quer ser contaminado pelo desgaste que Moro começa a amargar. Imagine se restar provado que os dois já haviam se acertado bem antes de Bolsonaro se eleger.

Planalto prevalece fazendo a velha e boa política

Jair Bolsonaro viveu uma experiência nova nesta terça-feira. Chama-se negociação. Precisava aprovar na Comissão de Orçamento do Congresso o crédito extra de R$ 248,9 bilhões que o livrará de repetir as "pedaladas fiscais" que derrubaram Dilma Rousseff. A oposição condicionou a votação ao atendimento de uma pauta de reivindicações. Ameaçou obstruir a sessão. Foi cedendo que o Planalto prevaleceu. Praticou-se a velha e boa política.

Representado na negociação pelo ministro Onyx Lorenzoni, da Casa Civil, Bolsonaro não teve de ceder cargos nem emendas. Entregou o descongelamento de verbas da Educação (R$ 1 bilhão), de casas populares (R$ 1 bilhão), das obras de recuperação do Rio São Francisco (R$ 550 milhões) e de bolsas científicas do CNPq (R$ 330 milhões). Tudo justificável segundo critérios, digamos, republicanos.



O governo poderia ter adiantado o relógio fechando o mesmo acordo na semana passada. Mas Bolsonaro está mais habituado a virar a mesa do que a sentar-se ao redor ao redor dela. Teve de negociar, veja você, com os oposicionistas PT e PCdoB (irrrc, diria o guru Olavo de Carvalho). Transacionou também com a turma do centrão, aquele aglomerado partidário que "virou palavrão". Graças ao surto de maleabilidade, a proposta seguiu, finalmente, para o plenário do Congresso.

Bolsonaro tem ojeriza à ideia de se relacionar com esses congressistas que os brasileiros elegeram para representá-los. Acha que não representam senão a si mesmos. Talvez por isso tenha tanta dificuldade para negociar. Como passou 28 anos na Câmara, o capitão sabe como é político. Reconhece esse tipo de gente na imagem do espelho. Leva sustos diariamente, ao escovar os dentes. Nesta terça, descobriu que o toma-lá-dá-cá é aceitável quando o que tudo o que se toma e o que se dá pode ser anunciado à luz do dia. Alvíssaras!

Pensamento do Dia


Roraima exporta 194 kg de ouro à Índia sem ter nenhuma mina operando legalmente

Policiais federais, procuradores e técnicos da Agência Nacional de Mineração (ANM) tentam decifrar um enigma: como o ouro se tornou em 2019 o segundo maior produto de exportação de Roraima sem que o Estado tenha uma única mina operando legalmente?

As exportações têm como destino quase exclusivo a Índia e ocorrem enquanto a Terra Indígena Yanomami, parcialmente localizada em Roraima, enfrenta a maior invasão de garimpeiros desde sua demarcação, nos anos 1990 - o que leva autoridades ouvidas pela BBC News Brasil a afirmar que o ouro exportado está sendo retirado ilegalmente do território indígena.

Há décadas Roraima lida com garimpos ilegais, atividade associada a graves danos ambientais e sociais. Mas o ouro extraído dessas áreas costumava ser negociado no mercado negro e sua origem não aparecia nas estatísticas do governo.

A diferença é que, agora, ao menos parte das transações tem entrado nos cadastros federais. Investigadores trabalham com as hipóteses de que o garimpo ilegal cresceu tanto que ficou difícil ocultá-lo dos registros oficiais e de que há um esquema para fraudar a origem do ouro proveniente de áreas indígenas.
Garimpo na Terra Indígena Yanomami, onde índice de pessoas
contaminadas por mercúrio chega a 92% em algumas aldeias
Uma das suspeitas é que garimpeiros estejam comprando notas fiscais de uma empresa autorizada a explorar minérios em Roraima, "esquentando" o ouro extraído ilegalmente e permitindo que ele seja vendido por preços de mercado, mais altos que os do mercado negro.

Segundo o Comex Stat, portal do Ministério da Economia sobre comércio exterior, desde setembro de 2018, 194 kg de ouro originário de Roraima foram exportados para a Índia.

Dono de uma poderosa indústria de joias, o país asiático é o quarto maior importador de ouro brasileiro no mundo. Só outro país além da Índia comprou ouro roraimense: os Emirados Árabes Unidos, que receberam 1 kg do metal em maio deste ano.

Iniciadas em setembro de 2018, as vendas de ouro oriundo de Roraima já renderam US$ 7,8 milhões (o equivalente a R$ 30,2 milhões) e tiveram um salto a partir de janeiro, após Jair Bolsonaro assumir a Presidência e o Exército desativar bases que dificultavam o acesso de garimpeiros ao território yanomami.

Bolsonaro costuma exaltar as riquezas minerais da terra yanomami e já defendeu liberar a exploração econômica na área. Segundo o CPRM (empresa pública de pesquisa geológica), o território indígena abriga a maioria das reservas de ouro conhecidas de Roraima. Não há estudos que estimem o tamanho dos depósitos.

As vendas para a Índia em 2019 somaram US$ 6,5 milhões e tornaram o ouro o segundo produto mais exportado por Roraima, atrás da soja.

O cruzamento de dados divulgados pelo Ministério da Economia indica que ao menos parte do metal foi vendido por meio de uma empresa de Caieiras, na Grande São Paulo.

No entanto, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão responsável por conceder e monitorar licenças para mineradores, não há e não havia nenhuma mina de ouro operando legalmente em Roraima no período em que as exportações aconteceram. O Ministério de Minas e Energia confirma a informação.

"Tudo leva a crer que o ouro esteja saindo de garimpos ilegais", afirma à BBC News Brasil Eugênio Tavares, representante da ANM em Roraima e ex-superindentente do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) no Estado.

Tavares diz que o metal exportado está provavelmente saindo da região do rio Uraricoera, na Terra Indígena Yanomami. No fim de maio, uma comitiva com líderes dos povos yanomami e ye'kwana denunciou a órgãos federais em Brasília que ao menos 10 mil garimpeiros estariam atuando dentro do território.

O volume de garimpeiros equivale a quase 40% da população da terra indígena.

Coordenador de Povos Isolados e de Recente Contato da Funai (Fundação Nacional do Índio), Bruno Pereira endossa a estimativa dos indígenas sobre o número de invasores na Terra Yanomami.

Ele afirma que o garimpo na região tem tido um efeito "devastador, disseminando doenças e provocando fortes interferências no modo de vida das comunidades". Pereira afirma ainda que a atividade ameaça grupos sem contato com o mundo exterior.

Há um povo isolado confirmado no território yanomami e ao menos outros seis cuja existência está sendo investigada, segundo a Funai. Pereira diz que as malocas do grupo isolado confirmado ficam a 17 km de focos de garimpo.

No fim de maio, a Funai anunciou que acataria uma decisão da Justiça e reabriria três bases na terra indígena fechadas há quatro anos por problemas financeiros e de pessoal.

Pereira diz esperar que as bases ajudem a barrar barcos que abastecem os garimpos com comida e combustível. "Inutilizar o garimpo todo é impossível, eles são ratinhos, mas podemos reduzir significativamente o fluxo."

Um controle ainda mais efetivo da atividade exigiria a destruição de pistas de pouso usadas por garimpeiros - e que tendem a ser mais procuradas se o acesso fluvial for bloqueado. Centenas de pistas foram dinamitadas em operações policiais no passado, mas muitas acabaram reconstruídas.

"Não consigo segurar o garimpo só com meus homens (da Funai), também precisamos do Exército, da Polícia Militar, precisamos de uma agenda de Estado ali dentro", afirma Pereira.

A Polícia Federal e o Ministério Público Federal disseram à BBC que estão investigando denúncias sobre o ouro exportado por Roraima e sobre o garimpo no território yanomami, mas que o caso tramita sob sigilo.

O Ministério de Minas e Energia afirmou que "não tinha conhecimento" do caso e "tomará as providências cabíveis na alçada de suas competências", coordenando-se com outros órgãos para averiguar a situação in loco.

O Exército, por meio do Comando Militar da Amazônia, diz ter realizado diversas operações contra o garimpo ilegal em Roraima em 2018. A BBC questionou por que o órgão desativou no fim de 2018 bases nos rios Uraricoera e Mucajaí que dificultavam o acesso de barcos ao território yanomami.

O Exército respondeu que as instalações eram temporárias e funcionaram por 107 dias, em sistema de rodízio de pessoal. O órgão afirmou ainda que, em 30 de maio, soldados voltaram a transitar pelos dois rios para combater o garimpo, e que militares patrulham a fronteira permanentemente para reprimir atividades ilegais.

A Secretaria de Segurança de Roraima não respondeu perguntas sobre o tema.

O dinheiro e o egoísmo

Estou firmemente convencido de que nem todas as riquezas do Mundo poderiam fazer progredir a Humanidade, mesmo que se encontrassem na mão de um homem tão dedicado quanto possível à causa do progresso. Só o exemplo dos grandes e dos puros pode conduzir a concepções e feitos nobres. O dinheiro atrai o egoísmo e arrasta consigo o desejo irresistível de dar-lhe mau uso. Alguém poderá imaginar Moisés, Jesus ou Gandhi equipados com o saco de dinheiro de Carnegie?
Albert Einstein, "Como Vejo o Mundo"

A violência no deserto

Dados irrefutáveis: somos um dos países mais violentos do mundo, até mais que o Haiti, ocupando a 103ª posição no ranking Global da Paz, com taxa de homicídio 30 vezes maior que a da Europa. Mais de meio milhão de pessoas foram assassinadas na última década, cerca de 52 mil assassinatos por ano, quase 25 mortes em cada 100 mil, a 12ª maior taxa do mundo.

Sob essa teia, vamos à reflexão. Imaginar segurança com população armada é ignorar a realidade. Ter armas em casa para a segurança da família é grande engano. Em dez anos aumentou em 30% o número de homicídios de mulheres por arma de fogo em casa. Nosso povo não é treinado para se defender. E mais: nem temos índole tão pacífica como se apregoa. É falso. Tiroteio resulta em mortandade.


Os sinais desanimam. Educação voltada para a segurança não faz parte de nossa cultura. Apelar para o revide é atiçar a violência. Vejam o que o ex-presidente Barack Obama disse em São Paulo sobre o uso de armas nos EUA: “as leis sobre armas nos Estados Unidos não fazem muito sentido”. Atentados nas escolas se sucedem.

A maneira de ser do nosso presidente incentiva a agressividade. Muita gente reage contra os agressores. Bolsonaro exibe um jeito belicoso de guerra, combatendo inimigos, gritando palavras de ordem a simpatizantes, despertando neles mecanismos de projeção e identificação. Desse modo influencia o comportamento social, abrindo a pauta do debate público, conforme atesta pesquisa recente do Projeto de Opinião Pública da América Latina/Fundação Getúlio Vargas.

Enfim, o presidente é um agente de polarização e conflito. Não se espere dele o pacifismo de Gandhi. Ao contrário, expande a tensão entre apoiadores e adversários. Para complicar, os brasileiros, segundo a pesquisa Barômetros das Américas, andam insatisfeitos com a democracia. Cerca de 35% são favoráveis a um golpe militar ante a expansão da corrupção; 38% (pasmem) concordam com o fechamento do Supremo Tribunal Federal e 22% justificam fechar o Congresso Nacional. Índices assombrosos.

A insegurança se dissemina, a violência se espraia. Já se ouve com naturalidade: “bandido bom é bandido morto”. Assim, prenunciamos o aumento de covas nos cemitérios, também na esteira do abrandamento dos códigos de trânsito (de 20 para 40 pontos para perda da CNH), extinção de multas no caso das cadeirinhas para crianças, fim dos radares nas estradas, etc.

Legislação permissiva e criação de arsenais caseiros aumentarão o índice de acidentes/incidentes. Não se projeta um cenário de harmonia social com mais armas ou com meios de transporte disparados nas estradas.

Pior é que parcela ponderável da sociedade aplaude a barbárie. Dado revelador: 43% da população afirmam sua convicção: “se eu pudesse teria uma arma de fogo para proteção”.

Nesta paisagem não há oásis à vista, apenas deserto de areia e borrasca. Oásis só em país de povo bem educado. Mas os ventos da Educação não refrescam. É lamentável ver um ministro da Educação mais “fechador” de salas de aula do que educador aberto aos novos tempos. Desolador.</p>
Gaudêncio Torquato 

O minúsculo sonho do Presidente do Brasil

Li de passagem que o Presidente Jair Bolsonaro “tinha um sonho”. Fiquei curioso e procurei a notícia. O sonho de um Presidente como o do Brasil com tanto poder e tantos motivos para utopias poderia chegar a me emocionar. Seu sonho, entretanto, pouco se parecia ao sonho de Martin Luther King, quando disse: “Sonho que um dia os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos donos possam sentar-se juntos à mesa da irmandade”. O sonho de Bolsonaro era menor, era poder compartilhar uma moeda única com a Argentina. Um sonho de pouca importância e pouca poesia. A moeda se chamaria “peso real”. Esse sonho logo se eclipsou quando os analistas lembraram que hoje na Argentina são necessários 45 pesos para comprar um dólar e no Brasil, 3 reais. E que a inflação do país irmão é de 40% enquanto a brasileira é dez vezes menor.

A poesia do sonho de Bolsonaro foi imediatamente um prato cheio para os humoristas. Não seria melhor chamá-la de PESO MORTO ou também PELADONA, mistura de Pelé e Maradona? A moeda dos sonhos do Presidente já tem nome. Ele, cujo lema é “Brasil acima de tudo”, não pôde nomeá-la. No “peso real”, a moeda argentina aparece à frente da do Brasil. Por que, dadas as dimensões dos dois países e as diferenças econômicas que os separam, não poderia se chamar então “real peso”?

O sonho que encanta o Presidente coincide com esse momento difícil e crucial vivido pelos brasileiros que não têm tempo e forças para sonhar já que se veem esmagados por suas preocupações de todos os dias, agoniados por suas dívidas, suspirando por um emprego sem possibilidades de dar aos seus filhos o que um dia sonharam para eles. O Presidente poderia pelo menos ter o sonho de cumprir com a Constituição que exige trabalho e casa para todos os brasileiros, este sim um sonho real e urgente.

Eu imaginei que se pedíssemos aos brasileiros que mais sofrem com a crise econômica nesse momento e têm medo de seu futuro, uma lista de 20 sonhos que desejariam poder realizar, em qual lugar apareceria o da moeda única com a Argentina. Teria uma boa surpresa.

Se o Presidente quisesse emular o sonho de Luther King poderia aumentá-lo para que não só os filhos dos velhos escravos e dos velhos patrões pudessem se sentar em uma mesma mesa. Poderia sonhar com um Brasil onde possam viver em paz, sem violências, respeitando-se pessoas de diferentes cores de pele e diferentes preferências sexuais. Poderia sonhar com um Brasil em que todos as crenças religiosas sejam respeitadas, em que as crianças nas escolas aprendam o gosto pela liberdade, pela democracia, sem agredirem-se pensando em resolver seus conflitos com um abraço em vez de uma arma.

Melhor do que esse sonho tão pequeno que não acho que tenha emocionado alguém, Bolsonaro, com o poder de seu cargo, poderia sonhar algo melhor para aliviar o coração dos que sofrem a discriminação e o esquecimento. Dos que já nem se lembram do que significa sonhar. E poderia começar por ordenar uma pesquisa nacional em que os pequenos e grandes, homens e mulheres, pessoas do asfalto e do barro das favelas lhe apresentem uma lista do que gostariam que fossem os sonhos do Presidente para suas vidas duras.

Quando os que governam um país não conseguem entender que seus sonhos não passam de insignificâncias incapazes de acabar com a dor, a discriminação e a solidão de milhões dos que são lembrados somente no momento de pedirem seu voto, não devem estranhar que um dia, cansados do esquecimento em que são lançados, em vez de sonhos devolvam seus pesadelos carregados de raiva e violência.

O sonho do Presidente do Brasil apaixonado por essa moedinha argentino-brasileira enquanto não consegue realizar outros sonhos libertadores para os 207 milhões de brasileiros dos quais deveria sentir, como responsável do país, o peso de suas necessidades essenciais, não é mais do que uma bolha de sabão. Não deveria estranhar que um dia receba a cobrança do desencanto dos que se sentem enganados. Ou já está acontecendo, arrependidos de terem dado a ele seu voto de confiança que hoje sentem atraiçoada?

Quando os sonhos dos que deveriam e poderiam aliviar a dor das pessoas e assegurá-las o direito a viver sem impor a elas suas crenças autoritárias e discriminatórias são vistos mais como piada do que como esperança, lembram a ironia do famoso escritor espanhol Calderón de la Barca, que já no século XVII em de seus dramas escreve esse solilóquio:
“Sonha o rei que é rei, e segue,com esse enganomandando,ordenando egovernando;e esse aplauso, querecebeemprestado, no ventoescreve,e em cinzasa morteo transforma,grandedesgraça!Que há quemtente reinar,vendo que é precisodespertarno sonho damorte?”
Juan Arias