quarta-feira, 12 de junho de 2019

Roraima exporta 194 kg de ouro à Índia sem ter nenhuma mina operando legalmente

Policiais federais, procuradores e técnicos da Agência Nacional de Mineração (ANM) tentam decifrar um enigma: como o ouro se tornou em 2019 o segundo maior produto de exportação de Roraima sem que o Estado tenha uma única mina operando legalmente?

As exportações têm como destino quase exclusivo a Índia e ocorrem enquanto a Terra Indígena Yanomami, parcialmente localizada em Roraima, enfrenta a maior invasão de garimpeiros desde sua demarcação, nos anos 1990 - o que leva autoridades ouvidas pela BBC News Brasil a afirmar que o ouro exportado está sendo retirado ilegalmente do território indígena.

Há décadas Roraima lida com garimpos ilegais, atividade associada a graves danos ambientais e sociais. Mas o ouro extraído dessas áreas costumava ser negociado no mercado negro e sua origem não aparecia nas estatísticas do governo.

A diferença é que, agora, ao menos parte das transações tem entrado nos cadastros federais. Investigadores trabalham com as hipóteses de que o garimpo ilegal cresceu tanto que ficou difícil ocultá-lo dos registros oficiais e de que há um esquema para fraudar a origem do ouro proveniente de áreas indígenas.
Garimpo na Terra Indígena Yanomami, onde índice de pessoas
contaminadas por mercúrio chega a 92% em algumas aldeias
Uma das suspeitas é que garimpeiros estejam comprando notas fiscais de uma empresa autorizada a explorar minérios em Roraima, "esquentando" o ouro extraído ilegalmente e permitindo que ele seja vendido por preços de mercado, mais altos que os do mercado negro.

Segundo o Comex Stat, portal do Ministério da Economia sobre comércio exterior, desde setembro de 2018, 194 kg de ouro originário de Roraima foram exportados para a Índia.

Dono de uma poderosa indústria de joias, o país asiático é o quarto maior importador de ouro brasileiro no mundo. Só outro país além da Índia comprou ouro roraimense: os Emirados Árabes Unidos, que receberam 1 kg do metal em maio deste ano.

Iniciadas em setembro de 2018, as vendas de ouro oriundo de Roraima já renderam US$ 7,8 milhões (o equivalente a R$ 30,2 milhões) e tiveram um salto a partir de janeiro, após Jair Bolsonaro assumir a Presidência e o Exército desativar bases que dificultavam o acesso de garimpeiros ao território yanomami.

Bolsonaro costuma exaltar as riquezas minerais da terra yanomami e já defendeu liberar a exploração econômica na área. Segundo o CPRM (empresa pública de pesquisa geológica), o território indígena abriga a maioria das reservas de ouro conhecidas de Roraima. Não há estudos que estimem o tamanho dos depósitos.

As vendas para a Índia em 2019 somaram US$ 6,5 milhões e tornaram o ouro o segundo produto mais exportado por Roraima, atrás da soja.

O cruzamento de dados divulgados pelo Ministério da Economia indica que ao menos parte do metal foi vendido por meio de uma empresa de Caieiras, na Grande São Paulo.

No entanto, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão responsável por conceder e monitorar licenças para mineradores, não há e não havia nenhuma mina de ouro operando legalmente em Roraima no período em que as exportações aconteceram. O Ministério de Minas e Energia confirma a informação.

"Tudo leva a crer que o ouro esteja saindo de garimpos ilegais", afirma à BBC News Brasil Eugênio Tavares, representante da ANM em Roraima e ex-superindentente do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) no Estado.

Tavares diz que o metal exportado está provavelmente saindo da região do rio Uraricoera, na Terra Indígena Yanomami. No fim de maio, uma comitiva com líderes dos povos yanomami e ye'kwana denunciou a órgãos federais em Brasília que ao menos 10 mil garimpeiros estariam atuando dentro do território.

O volume de garimpeiros equivale a quase 40% da população da terra indígena.

Coordenador de Povos Isolados e de Recente Contato da Funai (Fundação Nacional do Índio), Bruno Pereira endossa a estimativa dos indígenas sobre o número de invasores na Terra Yanomami.

Ele afirma que o garimpo na região tem tido um efeito "devastador, disseminando doenças e provocando fortes interferências no modo de vida das comunidades". Pereira afirma ainda que a atividade ameaça grupos sem contato com o mundo exterior.

Há um povo isolado confirmado no território yanomami e ao menos outros seis cuja existência está sendo investigada, segundo a Funai. Pereira diz que as malocas do grupo isolado confirmado ficam a 17 km de focos de garimpo.

No fim de maio, a Funai anunciou que acataria uma decisão da Justiça e reabriria três bases na terra indígena fechadas há quatro anos por problemas financeiros e de pessoal.

Pereira diz esperar que as bases ajudem a barrar barcos que abastecem os garimpos com comida e combustível. "Inutilizar o garimpo todo é impossível, eles são ratinhos, mas podemos reduzir significativamente o fluxo."

Um controle ainda mais efetivo da atividade exigiria a destruição de pistas de pouso usadas por garimpeiros - e que tendem a ser mais procuradas se o acesso fluvial for bloqueado. Centenas de pistas foram dinamitadas em operações policiais no passado, mas muitas acabaram reconstruídas.

"Não consigo segurar o garimpo só com meus homens (da Funai), também precisamos do Exército, da Polícia Militar, precisamos de uma agenda de Estado ali dentro", afirma Pereira.

A Polícia Federal e o Ministério Público Federal disseram à BBC que estão investigando denúncias sobre o ouro exportado por Roraima e sobre o garimpo no território yanomami, mas que o caso tramita sob sigilo.

O Ministério de Minas e Energia afirmou que "não tinha conhecimento" do caso e "tomará as providências cabíveis na alçada de suas competências", coordenando-se com outros órgãos para averiguar a situação in loco.

O Exército, por meio do Comando Militar da Amazônia, diz ter realizado diversas operações contra o garimpo ilegal em Roraima em 2018. A BBC questionou por que o órgão desativou no fim de 2018 bases nos rios Uraricoera e Mucajaí que dificultavam o acesso de barcos ao território yanomami.

O Exército respondeu que as instalações eram temporárias e funcionaram por 107 dias, em sistema de rodízio de pessoal. O órgão afirmou ainda que, em 30 de maio, soldados voltaram a transitar pelos dois rios para combater o garimpo, e que militares patrulham a fronteira permanentemente para reprimir atividades ilegais.

A Secretaria de Segurança de Roraima não respondeu perguntas sobre o tema.

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