sexta-feira, 1 de maio de 2020

O significado do trabalho

 Raras vezes, como agora, foi tão importante refletir sobre o trabalho. Incertezas de diversas naturezas afligem os trabalhadores em todo o mundo – as transformações tecnológicas, as novas organizações do trabalho, as mudanças nas relações trabalhistas, além, é claro, da própria crise causada pela covid-19, que forçou a interrupção de muitas atividades e transformou o dia a dia de todos os trabalhadores. Afetado drasticamente pelo presente, o trabalho vê-se envolto também nas grandes incógnitas a respeito de como será o mundo após a pandemia.

A Constituição de 1988 define, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa. O trabalho é alicerce do Estado porque antes é alicerce da sociedade, da família e do próprio indivíduo. A atividade laboral é muito mais que uma fonte de renda. Ela é expressão e construção da dignidade e da liberdade humana. Privar alguém de seu trabalho é limitar sua autonomia e sua participação na sociedade.

As mulheres sofrem especialmente a privação do trabalho. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a força de trabalho ativa das mulheres no mundo é de 47%, enquanto a dos homens é de 74%. Na América Latina, o nível médio de educação das mulheres é relativamente alto, mas elas recebem salários 17% menores que os homens, porcentual contrastante com o aumento do número de lares sustentados por mulheres.


Antes da crise da covid-19, o País já tinha um enorme desafio, econômico e social, de gerar postos de trabalho. Ao longo do ano passado, o total de desempregados, subempregados e desalentados esteve em torno de 25 milhões de pessoas. Especialmente dramática é a taxa de desemprego crônico. Mais de um quarto dos desempregados procura emprego há mais de dois anos. É a deterioração das condições do mercado de trabalho afetando de forma permanente a parcela mais vulnerável da população.

A pandemia agravou ainda mais o quadro do desemprego, bem como as condições de trabalho. Trabalhadores tiveram a renda ou o salário reduzido, chegando em muitos casos à suspensão do contrato de trabalho. É um horizonte de prejuízos e de incertezas, a afligir todos.

Na retomada após a crise, o desafio de promover o trabalho deve ser prioritário. Não basta diminuir encargos patronais, como às vezes o governo Bolsonaro deu a entender que faria. É preciso ter um diagnóstico amplo sobre o panorama do trabalho no mundo atual, em profunda transição, identificando e atuando nos gargalos, ineficiências e oportunidades – e, de posse desses dados, fazer o complemento consciencioso da reforma trabalhista iniciada no governo Temer.

Cada vez mais, trabalho não é sinônimo de emprego. Não apenas as oportunidades profissionais são diferentes, como também as aspirações das novas gerações em relação à profissão são muito distintas das dos seus pais. Tal cenário exige uma resposta abrangente, que passa necessariamente por melhorar a qualidade do ensino e da formação profissional. É ilusão supor que o País poderá enfrentar a contento os desafios do trabalho do século 21 sem uma profunda melhoria da educação.

O trabalho não deve alimentar uma espécie de casta, que divide e hierarquiza as pessoas por renda, importância ou protagonismo social. Ao contrário, toda atividade profissional – intelectual ou manual, complexa ou simples, que desperta aplausos ou passa despercebida aos olhos da maioria – é âmbito de promoção da dignidade e da autonomia. É no trabalho realizado com seriedade e competência que cada um se desenvolve, aperfeiçoando sua personalidade e fortalecendo os vínculos sociais, e pode oferecer, de forma muito prática, sua melhor contribuição à família e à sociedade. Seja qual for a tarefa, o sentido do trabalho é sempre servir, somar, construir.

O feriado do 1.º de Maio é oportunidade, na emergência da pandemia, para reconhecer o mérito de todos os trabalhadores – os que atuam em atividades essenciais, os que estão trabalhando em casa e também os que estão parados, mas, sobretudo, os que se entregam, nos serviços médicos, à missão de confortar os doentes e salvar vidas.

Mês de maio

Hoje é primeiro de maio, quer dizer que começa o mês das noivas, das flores e de Nossa Senhora.

Já foi também o mês dos trabalhadores, que justamente a primeiro de maio comemoravam o seu dia especial. Dia de recordação e reparação, aniversário do sacrifício dos mártires de Chicago.

Era dia em que se podia celebrar com entusiasmo e sem escrúpulos, antes que o fascismo, o estalinismo e o estado-novismo tomassem conta dele e o maculassem com o seu bafo demagógico. Pois aos poucos, a data quase sagrada dos trabalhadores, o dia dos socialistas de todo o mundo, se foi adulterando e corrompendo. Era no primeiro de maio que o louco da cruz gamada fazia as suas mais espetaculares exibições e que o histrião da praça Veneza assomava ao balcão venerável, soltando o verbo, mãos aos quadris, queixo para a frente. No primeiro de maio era que o falecido Stalin, na sua obra sistemática de traição às jornadas de outubro e bourrage de crânes do povo russo, organizava as suas brutais manifestações de força, os desfiles em massa ― soldados, atletas, polícia, aviões, tanques ― tudo que fosse forte, e ameaçador, e de guerra, para assustar inimigos internos e externos. E era ainda no primeiro de maio que encerrava a farsa do seu endeusamento pessoal; já que demitira o barbudo Deus dos popes, e havia lugar para outro deus, por que não preencher a vaga?


Aqui mesmo no Brasil, o 1º de maio não nos traz boas recordações. Tínhamos em certa época aqueles melancólicos e cômicos desfiles "da raça" ― Não, meu engano (feliz memória que tão cedo esquece!), meu engano: os "da raça" mal agouravam outra data, o nosso amado 7 de setembro. No 1º de maio o que havia eram as concentrações no estádio do Vasco (ainda não existia o Maracanã e o nosso heroico Vasco tinha então que servir); e a pelegada agitava faixas e pendões, e os trens circulavam grátis, e os trabalhadores arrebanhados para a "espontânea" tinham o dia de serviço pago, para ajudarem no vivório. Vivório esse que nem sempre havia e quando havia não era tão vibrante quanto o ampliavam os microfones oficiais.

Hoje tudo mudou, parece. E o imenso Maracanã fica mudo, pois tem medo que ele ecoe com o som errado, benza-o Deus.

E, assim, de tal modo comunistas e fascistas estragaram a data dos trabalhadores, que o melhor é que eles escolham outro dia, limpo de más lembranças. E volte o mês de maio às suas funções líricas de mês das flores e das noivas, de mês de Nossa Senhora.

Resuma-se às recordações que trazemos todos da infância ― quem não tem na sua saudade algum remoto mês de maio, com coroação e novenas ― um mês de maio como os recordo na Matriz da Conceição, em Guaramiranga? As moças vestidas de branco, o rosto corado do ar frio da serra, de pé ao alto do coro, respondendo à ladainha e cantando o Magnificat.

Mês de maio, mês da desobriga no sertão: já há milho e feijão novo, muito queijo, coalhada e doce de leite para oferecer a seu vigário que vem para fazer a festa. Mês dos casamentos ― tantos casamentos que são feitos por atacado: quinze, vinte pares alinhados em semicírculo em redor do altar, cada par com os seus dois casais de padrinhos atrás de si. E o padre diz a reza do casamento toda de uma vez só e faz a prédica de uma só vez também: contudo, na hora do "recebo a vós", pergunta de um se leva a gosto, e vai reunindo as mãos dos noivos entre as dobras da estola. E enquanto o primeiro é inquirido e abençoado, os outros pares suam, e se inquietam, e dançam ao aperto dos sapatos novos. Houve um ano em que se deu um caso de desmaio de noiva, e outro ano ainda pior: desistência de noivo, só por causa do nervoso, da tensão da demora: sendo o último da fila, o pobre teve mais de tempo de pensar, diziam os engraçados.

E depois que o vigário com um suspiro despede o último par, os sinos repicam e os cortejos se espalham, quem mora perto sai a pé, quem mora longe parte a cavalo, com sua dama na garupa.

Todavia, o pobre do padre nem aí tem descanso; porque depois começa a roda dos batizados ― que são o resultado dos casamentos do mês de maio do ano anterior.

Rachel de Queiroz. O Cruzeiro, 1/05/1054

Brasil da cova coletiva


E daí, Presidente Morte?

Quando ouvi o presidente exclamar “E daí?” diante das mortes provocadas pelo covid 19, tive ânsia de vômito. Em seguida, pensei: é um monstro. Um homem sem aquilo que minha mãe chamava de misericórdia. Na mesma hora, me veio a ordem do governador geral da Polônia, em janeiro de 1942, pouco antes da reunião em Wannsee, Berlim, que determinou a aceleração da Solução Final (nem Bolso nem o chancelar Arruda acreditam nela), destinada a exterminar todos os judeus, todos os inimigos do nazismo. O resultado, 6 milhões de mortos em fornos crematórios, fuzilamentos, e tudo o mais.

Sabemos hoje alguns nomes daqueles que comandaram a operação. Inesquecíveis Himmler, Heydrich, Adolf Eichmann e Josef Mengele, este chamado de o Doutor Morte, pela frieza com que executou as mais perversas “pesquisas” em nome da ciência.

E dai? Daí que me veio acachapante sensação, que não foi de repulsa ante a frieza e a indiferença com os milhões de habitantes do Brasil. Não foi de raiva, nem de ódio. Foi de uma tristeza imensa diante de tal desumanidade e desrespeito à dor alheia, à dor de uma nação. Não significamos nada para este senhor Jair. Ele tem por nós desdém, desprezo, desapego, desinteresse. Acima de tudo, desamor. Fiquei deprimido. Não sou ninguém, minha família nada é, meus amigos nada são, nenhum brasileiro tem qualquer significado, nenhum ser humano tem direito à vida. Nosso presidente não liga um pingo para nós, para nossas existências. Nem pelas vidas daqueles que votaram nele. Porque, se as mortes continuarem nessa progressão, onde vão parar? Se é que vão.
Expressão tão sórdida, me provocou sensação de asco. No mesmo momento, tive um retorno, memória afetiva (afetiva não é bem o termo aqui), que me fez mal, acabrunhou-me. Reação igual de mal estar tive em 1987, quando, em Berlim, como um dos convidados do DAAD para os 750 anos da cidade, decidi percorrer uma exposição chamada Topografia do Terror.

Em determinado espaço da cidade, estavam alguns edifícios que lembravam a zona do terror nazista, a Gestapo, a SS, a Direção de Segurança do Terceiro Reich. Um espaço relativamente (hoje é um memorial) pequeno onde se reunia a mortífera concentração de poder e terror do nazismo, a Prinz-Albecht-Strasse (hoje Niederkirchenstrasse), a Wilhelmstrasse e a Anhalterstrasse. Dali, emanavam as ordens de morte, horror, torturas, prisões, assassinatos, lugar que faria a delícia do famigerado Ustra, ícone do Messias. Dali, saíam as ordens que levaram milhões e milhões de judeus, ciganos, homossexuais, inimigos políticos para a morte em campos de concentração. Esse horror é conhecido.

Havia também o prédio, o Tiergarten 4, onde se procedia o Projeto T4 para Eutanásias, ou seja a eliminação de loucos, deficientes físicos, seres inúteis, tuberculosos, não convenientes a raça ariana. Como os idosos hoje, aqui. Quem estudou a história, há de se lembrar da Hans Frank e sua frase célebre. Em reunião na mansão de Wannseee, lago ameno na periferia de Berlim, em janeiro de 1942, quando se acertaram os ponteiros para a Solução Final, ou seja a morte de todos os judeus, Frank acentuou: “Cavalheiros, devo lhes pedir que se armem contra quaisquer sentimentos de compaixão”. Havia então, na Polônia, 3,5 milhões de judeus. Frank disse: “Não podemos atirar nesses 3,5 milhões, não podemos envenená-los, mas devemos ser capazes de tomar medidas que, de alguma forma, levem ao sucesso no extermínio absoluto”.

Assim, a morte de seis milhões de pessoas foi executada sem compaixão. Neste momento, no Brasil, enquanto hostes humanas – milhares e milhares de médicos, enfermeiros e voluntários – lutam, arriscando a própria vida, para defender a vida, o presidente, condena o isolamento e diz: “E daí?” “É humano esse homem? É isso um homem?”, como perguntou Primo Levi, em um de seus livros mais pungentes. E dai? Daí que nem eu, nem mais de 210 milhões de brasileiros queremos morrer de covid 19. Se sobrevivermos, vamos nos lembrar sempre de você, Jair, como o Presidente Morte.

Teich, a voz do dono que é o dono da voz

Uma vez que o presidente Jair Bolsonaro o proibiu de recomendar aos brasileiros que fiquem em casa e respeitem as medidas de restrição social baixadas por governadores e prefeitos, o ministro da Saúde, o médico e empresário Nelson Teich, saiu-se com esta:

– Ninguém está pensando em relaxar o isolamento, a gente está criando uma diretriz.

Teich observou que a diretriz não é equivalente a uma orientação ou recomendação, longe disso. É algo a ser avaliado pela população sem a interferência das autoridades. Uma espécie de terceira instância da Justiça, digamos assim.

O ministro esmerou-se mais uma vez em ser palavroso e vago como de hábito para escapar de encrencas com Bolsonaro e com os militares alocados no ministério para vigiá-lo de perto:

– As pessoas vão ter que pensar em todas as variáveis e pontos que vão ser pensados para que alguma política possa ser desenhada em algum ponto no futuro e ter uma segurança necessária. Se liberar uma diretriz dessa soar como orientação ou recomendação isso seria muito ruim, o que não é o caso.

Em resumo: o governo se omite de orientar ou recomendar qualquer coisa aos brasileiros sobre como combater o coronavírus. Cada um é cada um. Cada um proceda como preferir. Não é assim no resto do mundo, mas no país onde Bolsonaro manda é assim.

E não será Teich, sem intimidade com o aparelho público de saúde, preocupado em não se indispor com quem possa atrapalhar seus futuros negócios no ramo da medicina, não será ele que dirá faça isso, não faça aquilo. Ele é a voz do dono, que se sabe quem é.

Lorota oficializada

Quem tiver prazo para retomada joga na loteria
Fábio Coelho, presidente do Google

Sem bússola no olho do furacão

Hoje é dia do trabalho e só se viu até agora a ponta do iceberg do que poderá vir a ser o desemprego no Brasil. O país navega sem qualquer visibilidade no meio de uma tempestade. O mercado de trabalho já está em forte deterioração, e a economia corre o risco concreto de ficar sem indicadores para orientar as políticas públicas em qualquer área. O Caged não está sendo divulgado desde dezembro, e o IBGE dificilmente conseguirá trazer o retrato do desemprego ou dos outros índices econômicos.

A ex-presidente do IBGE Wasmália Bivar acha que a direção do Instituto deveria estar se mobilizando, falando com a sociedade brasileira para superar o impasse que se formou:

– É preciso ir ao Supremo, Congresso, trazer a OAB, fazer seminário virtual, falar com a imprensa, enfim, explicar a todos a necessidade de ter acesso a dados que permitam ao IBGE construir uma nova forma de trabalho.

A pandemia fez com que, em todo o mundo, houvesse a suspensão das pesquisas domiciliares. Wasmália acha que o IBGE está corretíssimo em ter também suspendido para proteger as famílias e a equipe de trabalho. O problema é que em seguida o governo baixou a MP determinando que o instituto tivesse acesso aos dados individuais que teriam que ser fornecidos pelas companhias telefônicas. Por ser uma MP, e pela maneira como foi feita, produziu uma onda de reação. Partidos diferentes, a OAB e outras instituições procuraram o STF, e a ministra Rosa Weber suspendeu o repasse de dados das telefônicas.

– A questão toda foi a forma, uma MP, e que ainda deixou muitas lacunas porque não mostra direito a necessidade dos dados. Era preciso ser explicado para que fosse entendido por todos os usuários do IBGE. Uma MP pedindo acesso a informações individualizadas de todos os brasileiros, de todas empresas, provocou uma reação compreensível, mas era possível ser explicado. O que me surpreende é que vejo os dias passarem e nada ser feito – alerta Wasmália.

Ontem o IBGE divulgou que a taxa de desemprego no trimestre encerrado em março ficou em 12,2%, um aumento de 1,2 milhão de pessoas desempregadas em relação ao trimestre terminado em dezembro. Todo mundo sabia que aumentaria, mas o fato é que houve uma queda em relação ao ano passado. Alguém acha que em março de 2019 o país estava pior? No meio do mês já havia muita paralisação, e a última semana de coleta já teve que ser feita via telefone.
O dado deve estar subestimado, de acordo com o economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.

– A redução da população ocupada foi muito mais forte do que o esperado. Com as medidas de isolamento as pessoas ficaram em casa e pararam de procurar emprego. Dessa forma saíram da estatística de desemprego, mascarando o número – explicou.

Os dados mostram o aumento de 1,2 milhão de desempregados na comparação com o último trimestre, e ao mesmo tempo uma queda de 2,3 milhões na população ocupada.

Segundo Donato, o desemprego teria saltado para 13,2% caso a força de trabalho tivesse mantido o mesmo ritmo de crescimento anterior. A falta de indicadores confiáveis será um dos grandes problemas nesta crise. A Pnad é uma pesquisa feita por amostra de domicílio e dificilmente conseguirá ser feita por telefone. O repórter Bruno Villas Boas, do jornal “Valor Econômico”, escreveu sobre isso esta semana.

– As pesquisas do IBGE como um todo, não só as domiciliares, porque as empresas também estão fechadas, não dá para fazer pesquisa de comércio com tudo fechado. O mundo inteiro enfrenta o problema, mas os países buscaram alternativas, e a maioria tem registros administrativos que nós não temos – disse Wasmália Bivar.

O outro termômetro do mercado de trabalho é o Caged, que mede o mercado formal. Mas o indicador não é divulgado desde dezembro. O governo fez uma mudança de método de envio dos formulários, que passou a ser eletrônico, mas as empresas não aderiram a tempo. Com isso, os dados de janeiro e fevereiro foram postergados. Em março, veio a crise do coronavírus, e, com o trabalho remoto, as informações também não foram encaminhadas ao Ministério da Economia.

No meio de uma crise econômica da proporção da que estamos vivendo, o pior que pode acontecer é não ter indicadores. É como navegar sem bússola no meio de uma tempestade.

Pergunte ao coronavírus

Num momento de ansiedade e incertezas, multiplicam-se as previsões e os cenários sobre o mundo pós-pandemia. Mas todos esses cenários, creio, dependem da evolução da mesma variável que nos pôs nesta situação tão difícil: o coronavírus.

Uma das minhas referências nas previsões sobre o coronavírus é Bill Gates. Ele dedica parte de sua fortuna ao financiamento de projetos de saúde pública. Precisa ser bem informado, no mínimo, para não jogar dinheiro fora. Em curto artigo sobre as perspectivas, Gates acha que uma vacina eficaz contra o coronavírus estará pronta até 2021. Os caminhos da pesquisa indicam duas direções. Uma delas é a vacina tradicional, que utiliza um vírus desativado. A outra, aproveitando os avanços da genética, poderia informar as células para que bloqueiem o vírus.

Existe uma possibilidade mais rápida, anunciada pelos cientistas de Oxford no jornal The New York Times. Eles acham que conseguem lançar sua vacina ainda em setembro de 2020. Fizeram experiências com seis macacos e foram bem-sucedidos. Pretendem agora experimentá-la em 5 mil pessoas e obter a licença.

Nesse cenário, o mais otimista possível, até o final do ano já estaria em circulação uma vacina eficaz contra o coronavírus. Além de algumas centenas de milhares de mortes, apenas o ano de 2020 estaria perdido.

Outra variável que Gates aborda é a dos remédios. Ele considera ter havido um subinvestimento em pesquisas de remédios antivirais, comparadas com os antibacterianos. Acho que vai se mover nesse campo. Não existe hoje uma bala de prata. Como não existiu na luta contra o HIV-aids, para o qual, finalmente, se chegou a um coquetel de drogas.


Talvez as coisas sejam mais promissoras no campo dos testes. A tendência é que evoluam, possam ser vendidos com mais facilidade e ser usados em casa. Como já o são alguns outros testes, como o de gravidez.

Gates acha que, assim como depois de 1945 foi necessário criar uma instituição internacional para garantir a paz, será também necessária uma organização internacional para combater as pandemias, novos vírus que podem vir tanto de morcegos como de pássaros. Esse desdobramento internacional não é fácil. Uma declaração da ONU de cooperação em torno de vacinas, remédios e testes não foi apoiada por EUA, Brasil e mais 12 países.

Imagino que uma das razões da reserva norte-americana seja o direito de exploração conferido pelas patentes. Suas grandes empresas investem milhões de dólares em pesquisas e, naturalmente, querem receber esse investimento de volta, com os devidos lucros.

Esse foi um grande debate travado também no período da aids, quando se questionou o respeito às patentes numa situação excepcional. O Brasil tinha razões para questionar. Adotou uma lei que garantia o coquetel gratuito aos portadores de HIV e isso custava caro ao País. O ministro da Saúde na época era o hoje senador José Serra. Ele defendeu o que me parece ter sido a posição correta de acordo com o interesse nacional.

Hoje, em plena pandemia de coronavírus e diante de outras que podem vir, o Brasil se distancia da ideia de cooperação internacional para se alinhar com os EUA, que têm interesses bem específicos. A julgar pela posição do chanceler Ernesto Araújo, estamos diante de um “comunavírus”, que tende a acentuar a influência internacional sobre os países, reduzindo sua autonomia.

É um raciocínio que se assemelha às posições do Brasil sobre o esforço internacional para atenuar os efeitos do aquecimento planetário. Assim como é difícil, hoje, prever uma nova situação sem levar em conta a trajetória da covid-19, será muito difícil também excluir a variável ambiental de qualquer cenário futuro.

Ao contrário de países como a Nova Zelândia e a Austrália, o Brasil politizou o vírus. Eles foram bem-sucedidos, assim como, de certa forma, Portugal, onde governo e oposição se uniram diante do inimigo comum.

Num dos primeiros artigos que escrevi sobre o vírus, quando ele estava circunscrito a Wuhan, na China, afirmei que para combatê-lo seria necessária uma visão nacional e solidária. Não foi isso o que aconteceu. Assim como pesou para as civilizações antigas na América ter uma visão mítica sobre os invasores, ou deve pesar no Haiti encarar com o vodu os grandes desastres naturais, o Brasil mergulhou na cegueira ideológica.

Durante muito tempo, discutiu-se se era um vírus comunista destinado a enfraquecer o governo. Da mesma forma, discutiu-se se a cloroquina era ou não um remédio de direita.

O vírus é apenas uma proteína envolvida numa capa de gordura. E a cloroquina, uma substância química usada contra malária e outras doenças.

Portanto, quando se escrever a história dessa peste no Brasil, não se pode apenas culpá-la pelos estragos que fez. O governo digeriu mal a tese da imunização pelo amplo contágio e refugiou-se nela na esperança de tocar a economia.

Se continuar se comportando com o meio ambiente com a mesma cegueira ideológica com que encara o coronavírus, os cenários do futuro, não importa quão sofisticado for o seu desenho, terão de contar com o pano de fundo de uma terra arrasada.

'Salve, lindo pendão da esperança ...'


É preciso cultivar nosso jardim e punir os anjos da morte

Sinto desconforto ao ter de escrever sobre certas vigarices políticas quando o caos da Covid-19 já engolfou Manaus e Belém, avizinha-se de Fortaleza e São Luís, preparando-se para tragar Rio e São Paulo. Desconforto e sensação de impotência. Como todo mundo. Nada disso está bem. É preciso, então, cultivar nosso jardim. Volto ao ponto mais adiante, depois de tratar do fim de uma quimera, de que o triunfo da morte é parte.


Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça ambicionando o papel de mocinho no duelo com Jair Bolsonaro. Um completo ausente em tempos de coronavírus, demitiu-se cinco dias antes de o Monitor da Violência apontar nova escalada de homicídios. O índice cresceu 8% no país —22% no Nordeste— em janeiro e fevereiro na comparação com igual período do ano passado. A incompetência é apanágio da mistificação.

Saiu atirando contra o chefe, com quem formalizou uma aliança de pornografia política explícita há meros 17 meses. O rompimento foi didático. Expôs sem filtro a natureza da Lava Jato e o seu poder de corromper instituições sob o pretexto de caçar corruptos. Foi aquele serpentário que nos relegou às trevas.

A aliança informal da operação com a extrema direita antecedia em muito o novembro de 2018, quando o então presidente eleito convidou o juiz para o cargo. No ministério, Moro condescendeu com o obscurantismo armamentista de Bolsonaro —e o resultado, tudo indica, já se traduz em corpos—, fez a defesa esganiçada e cruenta da licença para matar e se opôs ao juiz de garantias.

Os bolso-moro-fascistoides iam às ruas cobrar o emparedamento militar do Congresso e do Supremo, e o ministro se limitava ao sorriso de uma Monalisa sem mistérios. Apostava que Bolsonaro, cedo ou tarde, iria se confrontar com a sua biografia e a da família, e ele, Moro, herdaria o lamaçal de memes e a indústria de difamação. Afinal, o chefe havia sido tolo o bastante para entregar ao subordinado o controle do Papol (Partido da Polícia).

Na greve de setores da PM do Ceará, passou a mão na cabeça de criminosos amotinados e armados, apontando o seu cavalheirismo. Imperdoável e irredimível sob qualquer parâmetro civilizado que se queira! Mas eu o saúdo ao menos na derrocada. O rompimento foi útil à República. Crimes de acusado e acusador vieram à luz.

O rififi na extrema direita teve outro desdobramento positivo. Contribuiu para que o Supremo lembrasse, como quer Jacques Chevallier —citado pelo ministro Alexandre de Moraes ao impedir a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da PF— que “o objetivo do Estado de Direito é limitar o Estado pelo direito”. Estamos esmagados por uma montanha de mortos e sob a égide de espíritos homicidas, mas nem tudo está perdido. É preciso cultivar nosso jardim.

A exemplo de todo mundo, tenho repetido que um dia isso passa, mas exorto desde já a que façamos da memória uma arma de ajuste de contas com a história. Em benefício dos que estão por vir. E em memória dos que se foram. Pareceu barateamento de retórica jacobina? A proposta é muito objetiva. Se há óbices legais, e os há, para a criação de um Tribunal Penal Especial para punir os criminosos da Covid-19, nada impede que se instale um Tribunal Russell para os Crimes da Pandemia.

É preciso que se proceda ao menos à responsabilização moral daqueles que concorreram, por palavras, atos e omissões, para a morte dos brasileiros. A opinião é livre. Colaborar com atos, ou incentivá-los, que favoreçam a disseminação do vírus, precipitando o colapso no sistema de saúde, atenta contra o pacto civilizatório e os direitos fundamentais, especialmente dos mais pobres.

Que seja o mais plural e amplo possível. É preciso identificar os que ousaram substituir a ciência pela bruxaria ideológica, o direito à saúde pelo convite ao suicídio coletivo, o dever que tem o Estado de zelar pelo bem-estar dos cidadãos pela desídia calculada. Há momentos na história em que o mal se banaliza. E precisamos nos proteger, e às gerações futuras, da banalidade do mal. E dos embusteiros em pele de profetas.

'Caveirinha', aliado de morte

Não vou discutir o comportamento de ninguém, mas o presidente se preocupa, sim, com as pessoas
Nelson Teich, ministro da Saúde 

Brasil fracassa na pandemia

Hesitei muito antes de escrever esta coluna, mas acho que não há mais como adiar: a forma como o Brasil vem enfrentando a Covid-19 só pode ser classificada como um fracasso completo. Para mencionar apenas os pontos mais essenciais, fracassamos no preparo para lidar com a pandemia, fracassamos em testar nos níveis necessários para identificar os doentes e eliminar cadeias de contágio e fracassamos até mesmo em contar os mortos direito e enterrá-los com dignidade.

Não ignoro que a dificuldade é global. Faltam insumos no mundo inteiro. A carência atinge desde os sempre lembrados ventiladores até reagentes para os testes e itens de proteção pessoal como máscaras e viseiras. Faltam também produtos menos óbvios, como o swab, o "cotonete" usado nos exames moleculares.

Onde estão o governo e os engenheiros de produção? Por que o poder público não negociou com setores da indústria que estão ociosos a conversão de suas linhas para a produção emergencial de alguns desses itens?


Tampouco desconsidero o esforço, com enorme risco pessoal, das equipes de saúde. Minha mulher, Josiane, que é médica intensivista e cardiologista, já pegou o bicho e se recuperou, mas vários de seus colegas estão internados em estado crítico. A incapacidade das autoridades em fornecer equipamentos adequados de proteção custa vidas e desfalca as equipes num momento em que isso não poderia ocorrer.

Profissionais de saúde treinados para atuar em ambiente de UTI são outro gargalo importante.

O mais grave, porém, é nosso fracasso em testar de forma ampla para produzir números que permitam entender o que está acontecendo em cada área do país. Sem boas estatísticas fica impossível planejar os próximos passos, seja para ampliar o isolamento, seja para relaxá-lo, conforme a necessidade. Pior, sem testes em profusão, fica muito mais difícil promover uma estratégia de retomada controlada.

Kit de sobrevivência

Bolsonaro entrou no modo “sobreviver é preciso”. Com o ministro do Supremo Celso de Mello autorizando abertura de inquérito contra ele, mais de 31 pedidos de impeachment na gaveta de Rodrigo Maia e podendo ser atingido ainda por outros dois inquéritos, o presidente partiu para reforçar a sua linha de defesa.

Assim como Michel Temer se livrou no Congresso de dois processos por meio de uma ampla base parlamentar, Bolsonaro faz um movimento na mesma direção. Abre as portas para o Centrão adentrar solenemente em seu governo. Em um primeiro momento no segundo escalão, lembrando que alguns dos órgãos loteados valem mais do que muitos ministérios. O FNDE que o diga.

É a velha política novamente. Sem o apoio dessa turma, dificilmente um pedido de impeachment prospera ou uma CPI é instalada.


Bolsonaro cuidou também de proteger outro flanco com as nomeações dos novos diretor-geral da Polícia Federal e ministro da Justiça. Para o primeiro escalou o delegado Alexandre Ramagem, que assume o cargo sob a suspeita de ser sensível a eventuais ingerências do presidente na corporação

Para o Ministério da Justiça escolheu o atual Advogado-Geral da União, André Mendonça. Muitos veem nessa escolha uma concessão aos militares, que temiam um recrudescimento da crise se o indicado fosse alguém da copa e cozinha do presidente. Mendonça tem bom trânsito no Supremo e currículo para o cargo.

O terceiro movimento foi cuidar de seu front interno para evitar uma nova guerra intramuros, dessa vez entre intervencionistas e liberais. Bolsonaro arbitrou a disputa em favor da agenda de Paulo Guedes. Corretamente o Ministro da Fazenda defende as atuais medidas de impacto como sendo emergenciais, com data para terminar. Elas envolveram recursos da ordem de mais de meio trilhão de reais nas áreas fiscal, trabalhista e creditícia, como o auxílio de R$ 600 a trabalhadores informais, além das ações relacionadas ao INSS, o FGTS, o salário desemprego, o crédito da Caixa e Banco do Brasil ou a redução das despesas públicas de estados e municípios.

Alguns fatores jogam a favor da estratégia do presidente. Rodrigo Maia percebeu o movimento no Congresso. Quanto mais se aproxima o término de seu mandato na presidência da Câmara, menor é o seu poder de aglutinação. O Centrão começa a orbitar em outra direção. Daí a postura refratária de Maia a pedidos de impeachment ou de CPI.

Há ainda a resiliência de sua base social, como indica a mais recente pesquisa do Datafolha que mostra índices nada disprezíveis de apoio e confiança no presidente e em seu governo. O sentimento pró-impeachment também não é predominante na sociedade. Há consciência do quanto essa opção é traumática e difícil de se concretizar em meio a uma pandemia.

A outra alternativa, a renúncia, é risível. Só serve como agitação e propaganda da oposição. Chance zero de acontecer.

Mas há fatores que podem enfraquecer a estratégia presidencial. Os três inquéritos em curso são uma caixa de pandora. Não se sabe ainda o que eles vão revelar e se têm força para desgastá-lo. Serão os fatos que determinarão o humor da sociedade e, em última análise, do próprio Congresso.

O embarque do Centrão também tem desvantagens, sobretudo por sua voracidade em termos de cargos. Topa blindar o presidente, mas na situação em que ele seja refém do seu apoio. Ao atraí-lo para seu ninho, Bolsonaro trai o discurso da antipolítica que tanto encantou seu eleitorado cativo. O risco é perder parte desse apoio.

Na economia, a disputa está longe de se encerrar. A afirmação de Guedes, de que o crescimento econômico do Brasil no próximo ano vai surpreender o mundo, tem a mesma credibilidade de outro dito seu. No começo de março o ministro dizia que o Brasil ia crescer durante a pandemia. Hoje já se estima uma queda do PIB de mais de 5%. Como sua premonição dificilmente se realizará, a pressão dos “intervencionistas” voltará com força.

Já na PF, as resistências da corporação serão imensas, se o novo diretor geral adotar uma linha não republicana.

Por certo, são questões de longo prazo. Mas, como dizia John Maynard Keynes, a longo prazo estaremos todos mortos. Para Bolsonaro interessa o aqui e agora.

Nós não somos um caso perdido

Quando digo nós, eu me refiro aos seres humanos, humanos de verdade, que, diante da covid-19, perceberam que estaremos subjugados e em ritmo acelerado de extinção se não respirarmos o oxigênio da empatia, da solidariedade e da humanidade. E se não mudarmos nossas prioridades no dia a dia. A medicina jamais conseguirá inventar uma vacina contra o desprezo pela vida. 

Em meio ao luto e dor de toda uma nação, “os bolsonaros” treinam disparos de armas de fogo, exercitam sua onipotência e exibem os dentes em esgares sarcásticos. São inumanos. Estão condenados e não adianta rezar. Mesmo que os outros poderes, republicanos e alertas, acabem capitulando a podres negociatas, a História não trairá o Brasil. Os milhares de cadáveres cobrarão a conta também dos covardes. Eles não dormirão mais.

Não somos um caso perdido. Sepultaremos todas as ondas de delírios totalitários. Não precisamos de respiradores artificiais para sentir que o ar político do Brasil está contaminado. Irrespirável. O mundo não consegue entender que nossas manchetes, em tempos de pandemia, sejam trocas sucessivas de ministros & afins para piorar ainda mais o governo e blindar o presidente e seus filhos. Ficou claro quem manda na pauta. São os robôs sem alma. Os zumbis. Para eles, dedico o bonequinho que vomita verde.

Por favor, não me mandem memes com as hienas no Poder e seus asseclas burros e servis. Não consigo mais perder tempo com o exército da morte. O povo se aglomera nas filas do desespero por R$ 600, sob chuva e sol, dia e noite. As máscaras dos humildes escondem sua impotência, fome e abandono. Nunca ficou tão escancarada a absurda desigualdade no Brasil. Só a desumanidade e a ignorância explicam que um em cada três brasileiros ainda apoie esse desgoverno.

Nossos deserdados estão com medo de morrer em casa, sem socorro e sem diagnóstico. São milhões de brasileiros à deriva, os invisíveis que nos servem em tempos “normais”. Levam tiros de traficantes, milicianos e policiais, são iludidos, assaltados e perdem suas vidas e casas de risco nas enxurradas. Muitos não aprenderam a ler e escrever. Enquanto isso, muitos outros, besuntados de dinheiro e arrogância, talvez nunca aprendam a amar. Esses sim são um caso perdido.

Para os que desejam se salvar, recomendo ler o texto "O amanhã não está à venda", elaborado a partir de três entrevistas do líder indígena Ailton Krenak, em abril, para O Globo, Estado de Minas e Expresso, de Lisboa. Krenak é autor do livrinho azul "Ideias para adiar o fim do mundo". Nasceu no vale do Rio Doce.

“Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser?”, pergunta Krenak. “O mundo está agora numa suspensão. E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. É como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para olharmos o que realmente importa”. 

O futuro é aqui e agora, podemos não estar vivos amanhã. “Tomara que não voltemos à normalidade”, escreve Krenak, “pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir nos devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira”.

Que tombem rápido os falsos messias e os profetas do mal. Temos de parar de vender o amanhã. Precisamos reinventar o Brasil. Nós não somos um caso perdido.