sexta-feira, 1 de maio de 2020

Mês de maio

Hoje é primeiro de maio, quer dizer que começa o mês das noivas, das flores e de Nossa Senhora.

Já foi também o mês dos trabalhadores, que justamente a primeiro de maio comemoravam o seu dia especial. Dia de recordação e reparação, aniversário do sacrifício dos mártires de Chicago.

Era dia em que se podia celebrar com entusiasmo e sem escrúpulos, antes que o fascismo, o estalinismo e o estado-novismo tomassem conta dele e o maculassem com o seu bafo demagógico. Pois aos poucos, a data quase sagrada dos trabalhadores, o dia dos socialistas de todo o mundo, se foi adulterando e corrompendo. Era no primeiro de maio que o louco da cruz gamada fazia as suas mais espetaculares exibições e que o histrião da praça Veneza assomava ao balcão venerável, soltando o verbo, mãos aos quadris, queixo para a frente. No primeiro de maio era que o falecido Stalin, na sua obra sistemática de traição às jornadas de outubro e bourrage de crânes do povo russo, organizava as suas brutais manifestações de força, os desfiles em massa ― soldados, atletas, polícia, aviões, tanques ― tudo que fosse forte, e ameaçador, e de guerra, para assustar inimigos internos e externos. E era ainda no primeiro de maio que encerrava a farsa do seu endeusamento pessoal; já que demitira o barbudo Deus dos popes, e havia lugar para outro deus, por que não preencher a vaga?


Aqui mesmo no Brasil, o 1º de maio não nos traz boas recordações. Tínhamos em certa época aqueles melancólicos e cômicos desfiles "da raça" ― Não, meu engano (feliz memória que tão cedo esquece!), meu engano: os "da raça" mal agouravam outra data, o nosso amado 7 de setembro. No 1º de maio o que havia eram as concentrações no estádio do Vasco (ainda não existia o Maracanã e o nosso heroico Vasco tinha então que servir); e a pelegada agitava faixas e pendões, e os trens circulavam grátis, e os trabalhadores arrebanhados para a "espontânea" tinham o dia de serviço pago, para ajudarem no vivório. Vivório esse que nem sempre havia e quando havia não era tão vibrante quanto o ampliavam os microfones oficiais.

Hoje tudo mudou, parece. E o imenso Maracanã fica mudo, pois tem medo que ele ecoe com o som errado, benza-o Deus.

E, assim, de tal modo comunistas e fascistas estragaram a data dos trabalhadores, que o melhor é que eles escolham outro dia, limpo de más lembranças. E volte o mês de maio às suas funções líricas de mês das flores e das noivas, de mês de Nossa Senhora.

Resuma-se às recordações que trazemos todos da infância ― quem não tem na sua saudade algum remoto mês de maio, com coroação e novenas ― um mês de maio como os recordo na Matriz da Conceição, em Guaramiranga? As moças vestidas de branco, o rosto corado do ar frio da serra, de pé ao alto do coro, respondendo à ladainha e cantando o Magnificat.

Mês de maio, mês da desobriga no sertão: já há milho e feijão novo, muito queijo, coalhada e doce de leite para oferecer a seu vigário que vem para fazer a festa. Mês dos casamentos ― tantos casamentos que são feitos por atacado: quinze, vinte pares alinhados em semicírculo em redor do altar, cada par com os seus dois casais de padrinhos atrás de si. E o padre diz a reza do casamento toda de uma vez só e faz a prédica de uma só vez também: contudo, na hora do "recebo a vós", pergunta de um se leva a gosto, e vai reunindo as mãos dos noivos entre as dobras da estola. E enquanto o primeiro é inquirido e abençoado, os outros pares suam, e se inquietam, e dançam ao aperto dos sapatos novos. Houve um ano em que se deu um caso de desmaio de noiva, e outro ano ainda pior: desistência de noivo, só por causa do nervoso, da tensão da demora: sendo o último da fila, o pobre teve mais de tempo de pensar, diziam os engraçados.

E depois que o vigário com um suspiro despede o último par, os sinos repicam e os cortejos se espalham, quem mora perto sai a pé, quem mora longe parte a cavalo, com sua dama na garupa.

Todavia, o pobre do padre nem aí tem descanso; porque depois começa a roda dos batizados ― que são o resultado dos casamentos do mês de maio do ano anterior.

Rachel de Queiroz. O Cruzeiro, 1/05/1054

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