segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Pensamento do Dia

 


A aritmética da demagogia

Visto de Brasília, o Brasil é um paraíso tão pródigo que, nele, as leis da matemática não se aplicam. No pensamento mágico predominante na capital federal, o Orçamento tende ao infinito – nele cabe tudo, fazendo com que a soma das partes supere sempre, de longe, o todo.

Já se sabe, por exemplo, que, tudo o mais constante, não há dinheiro para produzir um programa de transferência de renda que ao mesmo tempo compense o fim do auxílio emergencial para quem ficou à míngua na pandemia e substitua com vantagens o Bolsa Família, como queria o presidente Jair Bolsonaro, de olho no potencial eleitoral de tal iniciativa.

Quando a equipe econômica sugeriu que o programa fosse bancado com o congelamento das aposentadorias ou com a abolição de outros benefícios sociais, o presidente Bolsonaro foi às redes sociais para desancar seus assessores, acusando-os de falta de compaixão com os mais pobres – como se não fosse ele o presidente da República e, portanto, responsável por tudo de bom e de ruim que seu governo produz. Como Bolsonaro não demitiu até agora nenhum de seus desalmados economistas, presume-se que talvez aceite suas ideias, desde que sejam tratadas com discrição.

Para todos os efeitos, contudo, Bolsonaro anunciou que havia desistido do Renda Brasil, como disse em sua agastada mensagem, acrescentando que o assunto estava “proibido” no governo e que manteria o que já existe – o Bolsa Família – e “ponto final”. Mas eis que o “ponto final”, menos de 24 horas depois, se tornou vírgula.


O relator do Orçamento de 2021, senador Marcio Bittar (MDB-AC), foi a Bolsonaro para lhe propor que o natimorto Renda Brasil fosse revivido. A ideia, segundo disse o parlamentar, é incluir o programa bolsonarista no Orçamento agora, mas sem especificar de onde viria o dinheiro para financiá-lo. O objetivo seria, em suas palavras, “evitar informações desencontradas, que vazam, em que pesem terem lógica, mas acabam abortadas”. Para o senador, “não adianta agora a gente especular do que vai tirar, de onde vai cortar”.

Por esse raciocínio, tudo poderia ser incluído no Orçamento, já que a decisão sobre quais serão as fontes de financiamento, crucial em qualquer planejamento, fica para depois. É espantoso, mas muito característico da fantasia fiscal brasiliense.

Bolsonaro, é claro, esqueceu-se rapidamente de seu peremptório “ponto final” e deu sinal verde ao relator do Orçamento para retomar a ideia de um novo programa de transferência de renda, que teria enorme potencial eleitoral. Autorizado pelo presidente, o senador Marcio Bittar foi conversar com o ministro da Economia, Paulo Guedes, para tentar encontrar a quadratura do círculo – isto é, criar um novo auxílio sem fazer sacrifícios de qualquer natureza, vedados pelo presidente Bolsonaro.

A promessa é que o tal programa e talvez sua fonte de financiamento sejam revelados nesta semana, mas, a julgar por tudo o que se especulou, a realidade de hoje, de penúria fiscal e falta de alternativas, não terá mudado até lá: “Quero saber de onde o governo vai tirar para dar R$ 300 (valor atual do auxílio emergencial). Sei que nessa questão vamos ter muita dificuldade”, disse o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), designado presidente da Comissão Mista de Orçamento.

O fato, incontornável, é que o fim do auxílio emergencial lançará em breve milhões de brasileiros em angustiante incerteza, uma vez que a economia, embora com alguns sinais de recuperação, está muito longe de prover os empregos e a renda necessários para tanta gente vulnerável. Por isso, é claro que o governo e o Congresso devem se mobilizar para encontrar meios de amparar esses cidadãos enquanto a crise não passa. Mas a emergência não pode servir de pretexto para a irresponsabilidade fiscal eleitoreira travestida de socorro, enquanto se mantêm privilégios e se adiam as reformas que dariam ao Estado condições de fazer frente a crises como essa. O pensamento mágico pode até iludir alguns eleitores, mas causa mais danos ao País, no longo prazo, do que a pandemia.

O dilema das redes sociais

Acabo de assistir ao documentário sobre as redes “The Social Dilemma”. É assustador mesmo para mim, que tenho tratado do tema, sobretudo pelo ângulo das fake news e teorias conspiratórias que impulsionam o tecnopopulismo de direita.

Uma das razões para ampliar minha abordagem do tema é contar com depoimentos de insiders, pessoas de dentro do universo tecnológico que trabalharam e ajudaram a construir plataformas como Twitter, Facebook, Instagram e YouTube.

A maior parte da crítica disponível até então era de observadores de fora desse universo. Outra limitação de meu enfoque era observar apenas as consequências negativas das redes sociais no universo político, gerando uma atmosfera de ódio e mentiras.

Ao ver o documentário, fica claro para mim que as consequências políticas foram apenas um subproduto diante da tarefa central: usar a insegurança e a ansiedade das pessoas para torná-las dependentes do uso das redes e, com o acúmulo dos seus dados, impulsionar vendas.

Isso não chega a ser uma descoberta. O interessante é ouvir de alguém que encontrou o Facebook nos seus primórdios e teve como tarefa descobrir uma forma de fazer dinheiro com aquilo.

Quase todos os talentos contratados no início viam nas redes sociais algumas de suas inegáveis qualidades: unir famílias, ampliar o conhecimento coletivo, facilitar a solidariedade.

O caminho para financiar era a publicidade. Ela seria mais eficaz quanto maior o tempo de permanência do usuário, e muito mais eficaz também, na medida em que, conhecendo sua personalidade, às vezes mais profundamente do que ele próprio, fosse possível ampliar seu consumo.

Essa é a matriz que acabou produzindo as aberrações político-sociais que vivemos hoje. A radicalização política é necessária para prender a atenção das pessoas. As fake news são atraentes diante de uma realidade tediosa.

Isolado em sua bolha, o indivíduo tem a sensação de tudo compreender pelas teorias conspiratórias. Se alguém diz que pedófilos se reúnem no porão de uma pizzaria, ele tenta invadi-la armado de um fuzil, apesar de a pizzaria nem ter porão.

Se alguém acredita que a Terra é plana, será alimentado com inúmeras interpretações que fortalecem essa ilusão. Na busca do Google, dependendo da região, o aquecimento global aparece como uma fraude ou uma tese científica.

O problema central é que, ao contrário da TV ou do cinema, a inteligência artificial tende a se modificar num ritmo cada vez mais alucinante. Alguns dos participantes do documentário preveem que o processo deve acentuar polarizações e produzir guerras civis. Mas é evidente que algo pode ser feito para atenuar esses imensos efeitos negativos do avanço tecnológico.

Certamente não é criando comissão da verdade, como queriam alguns parlamentares brasileiros. Apesar de assustador, ou por causa disso, o documentário nos estimula a buscar soluções.

Às vezes invejamos a intimidade das crianças com essas novas linguagens, um mundo fantástico se desenrolando com o simples toque de seus dedinhos. Mas nossa geração intermediária talvez possa contribuir com suas lembranças do mundo real. Outro dia, falando sobre o tema, lembrei-me de que muitos de nós foram influenciados pela filosofia do Pós-Guerra, o existencialismo. Uma de suas frases lapidares, de Jean-Paul Sartre, talvez fosse de utilidade para os jovens: o inferno são os outros.

Assim como é preciso estimular o estudo de ideias conflitantes, talvez compense retirar do armário o antigo conceito de autenticidade, que estimula a pessoa ser ela mesma, independente de likes, dislikes e ofensas grosseiras.

Voltando ao plano político, uma das questões básicas é achar o caminho para limitar o acúmulo de informações sobre as pessoas. Um dos entrevistados chegou a falar de impostos para reduzir o intenso consumo de dados pessoais pelas empresas. Não sei se é por aí.

Alguém no documentário lembrou que essas gigantes tecnológicas e a indústria das drogas são as únicas que chamam seus clientes de usuários. É um pouco exagerado, mas depois de ver “The Social Dilemma”, creio que todo mundo vai se perguntar até que ponto está viciado nas redes sociais e quais os caminhos da libertação.
Fernando Gabeira

'Desdemocratização'

A democracia desce a escada que permitiu sua ascensão desde ágora, em Atenas, em que os cidadãos exerciam seu dever de servir à polis. Em alguns momentos, travou gloriosas lutas contra os sistemas autoritários, batendo forte em ditaduras. Ganhou e perdeu.

Passadas apenas duas décadas deste século, a democracia enfrenta retrocessos, submissão ao autoritarismo, quebra de suas estacas, como as liberdades de manifestação e de associação, direitos das minorias, discriminações e conflitos vários.

Bandeiras são trocadas. A maior democracia do mundo não é mais a Índia. Um estudo de nome de DeMax, feito na Alemanha, insere esse país de mais de 1,3 bilhão de habitantes na categoria de regime híbrido, após análise de 200 fatores, a partir de liberdade política, igualdade e sistema legal. A Índia e outras Nações atravessam o status de desdemocratização.

Pelo estudo, um grupo de 13 países sujou sua democracia em 2019 em função da perda de liberdades, violação de direitos humanos, colisão com Judiciário etc. Apenas 3 deixaram a autocracia (governo da visão de uma só pessoa): Maldivas, República Centro-Africana e República Dominicana. Mais de 100 perderam qualidades democráticas e 69 registraram pequenos avanços.

E por que a volta ao autoritarismo? Um denso conjunto pode explicar. Lembrarei uns poucos. A democracia representativa vive uma crise crônica sob o fluxo do arrefecimento ideológico, pasteurização partidária, fragilidade dos Parlamentos, desideologização das oposições, liberalismo, socialismo ou social-democracia sem respostas adequadas às demandas, mudança de paradigmas (luta de classes abre diálogo entre patronato e setor laboral), novos polos de poder, organicidade social. Com o descrédito da política, a sociedade cria núcleos e movimentos de pressão.

Também a globalização acirra tensões. Maior fluxo de mercadorias gera um neo-nacionalismo e movimentos em defesa das produções nacionais, como mostram o Brexit e as relações China/EUA. O populismo ganha musculatura, o que expõe o dilema: como fortalecer o colchão social sem recursos? As economias cavam seu próprio buraco.

O estudo mostra que se forma uma convergência em direção ao centro, expandindo regimes híbridos. Caso bem conhecido é o nosso. Ao lado da Hungria, Turquia e Sérvia, o Brasil aparece de forma emblemática. Nossa pontuação caiu 32% na última década, de 79,6 (numa escala de 0 a 100) em 2010 para 60,2 em 2019.

Sabemos as causas: corrupção, más administrações, descontroles, discriminação, tensões entre os Poderes, fisiologismo, visões radicais e conservadoras, filhotismo político, ausência de reformas vitais, ataque aos meios de comunicação, fake news, negação da ciência, defesa de ditaduras etc.

"Desdemocratização" chega até aos EUA, que deixaram o nível superior desse regime. Hoje são considerados pela Economist como uma democracia falha. Haverá conserto? Basta que o ideário democrático faça parte de nossas vivências. Pela grandeza territorial e suas riquezas, pela índole ordeira e acolhedora de seu povo e, claro, com a diminuição da corrupção, ainda poderemos aparecer na galeria das grandes democracias.

Coveiros dançarinos do Brasil

 


Trabalho degradante na infância

Há dias, o presidente da República voltou a defender o trabalho infantil com argumentos simplórios que revelam grave desconhecimento da realidade social do país. Sobretudo do que é, propriamente, infância e adolescência, e maior desconhecimento, ainda, do que a ciência tem a dizer contra aquilo que, nessa questão, ele defende, aprova e recomenda.

O “papo”, para ficar na linguagem própria da circunstância do pronunciamento presidencial, ocorreu em encontro promovido por uma associação de bares e restaurantes, em Brasília. Segundo “O Estado de S. Paulo”, estiveram presentes “donos de botequim”. Na verdade, não era o público mais recomendável e mais indicado para ouvir e aplaudir a defesa de uma prática que põe em risco a saúde moral e a formação de imaturos indefesos.

Sou autoridade no assunto. Quando terminei o curso primário na periferia de São Paulo, na roça, minha família voltou para o subúrbio operário. Aos 11 anos de idade eu já estava trabalhando numa fabriqueta clandestina, de fundo de quintal, em trabalho perigoso e insalubre. Oito horas de trabalho por dia, seis dias por semana. Cem cruzeiros por mês de salário. Apenas um sexto do salário-mínimo obrigatório para o menor de idade, na época.


O presidente alega e defende o trabalho infantil que ele fazia: trabalhava num botequim de 4 a 5 horas por dia, quando havia pouca gente, antes que chegasse a “galera que gosta de uma birita”. Passava, pois, mais tempo sendo socializado por frequentadores de boteco do que por professores da escola. Aliás, já na época, a legislação trabalhista previa a possibilidade do trabalho do menor, a partir dos 14 anos de idade, como aprendiz. Mas, num botequim, aprendiz de quê?

Jair Messias, em quase tudo que indevidamente faz de transgressivo como presidente, revela a influência que em sua socialização secundária pode ter tido a cultura de botequim. São deformações e insuficiências que ficam para sempre, no senso comum tosco e na visão de mundo pobre e distorcida que dela se dissemina. O que ficou dolorosamente evidente na deplorável reunião ministerial de 22 de abril.

Ele atrai gente que vê o mundo como ele o vê. A socialização imprópria, no boteco de Sete Barras, por meio dele, criou uma concepção de poder no Brasil.

Ele não vê os estigmas que em sua personalidade ficaram em decorrência da familiaridade precoce com o que há de pior no mundo adulto, que ao prejudicá-lo nos prejudica a todos. Um exemplo é a conduta transgressiva que adotou em relação à pandemia. Ele se firma na transgressão.

Seu raciocínio binário reflete as enormes limitações dessa cultura de balcão, de um lado de lá e um lado de cá. Para ele, o menor que não está trabalhando está fumando “um paralelepípedo de crack”, afirmou. Ou seja, para o brasileiro menor de idade só há duas alternativas: trabalhar ou fumar crack.

Existe, porém, a alternativa da lei: a educação, a escola, o direito ao estudo e à formação profissional. É só o governo cumprir a lei.

O Estatuto da Criança e do Adolescente não proíbe o trabalho do menor. Apenas estabelece algumas precárias restrições a ele. No que disse, o presidente da República quer uma legislação mais permissiva e transgressiva em relação às restrições ao trabalho moralmente arriscado à formação do caráter do menor. É a interpretação possível do que disse.

Nos tempos de Vargas, o salário do menor, metade do salário do adulto pelo mesmo trabalho, supostamente correspondia a um período compulsório de aprendizado até que chegasse aos 18 anos de idade e à maioridade. Era uma forma de baratear o trabalho, mas não necessariamente de educar. Os pais diziam que seus filhos estavam aprendendo um ofício.

O Estatuto da Criança e do Adolescente não resolveu essa injustiça. Criou-lhe um novo álibi. Hoje o menor não pode trabalhar antes dos 16 anos. Mas pode trabalhar como aprendiz a partir dos 14 anos. Tudo na mesma. Mudaram para manter.

Na verdade, os despistamentos do governo nesse assunto cai no agrado da população, cúmplice da injustiça laboral. A valorização do trabalho da criança é tradição muito forte na classe trabalhadora. Proibir o trabalho infantil parece aos pais, de fato, estímulo à deseducação da vagabundagem e dos riscos que a rua representa na socialização das novas gerações.

Os que quiseram proibir o trabalho infantil para proteger a criança não cuidaram devidamente da contrapartida, os direitos da criança, o que colocar no lugar do trabalho proibido, que seja ao mesmo tempo remunerador e educativo. Sabemos contra o que somos, mas não sabemos a favor do que somos e de como viabilizá-lo. Qual a moral que temos para combater ditos e decisões irracionais do governante?

Sem diálogo o abismo

As democracias deveriam governar através de seus representantes. Do presidente e do Parlamento. São eles os que deveriam dialogar e construir consensos. Mas hoje usam as redes para plebiscitar seus governos e suas políticas. Assim se rompe o diálogo entre representantes e representados. Os moderados sofrem, porque ficam no meio de uma guerra na qual os dois lados falam alto.

 

As redes sociais não esclarecem posições, elas confundem. Temos milhões de fontes para confirmar que a Terra é redonda, mas existe um auge de terraplanistas. Hoje ver para crer não basta, posso ver e continuar acreditando no que quero acreditar. As pessoas podem consumir qualquer coisa, a questão é onde colocamos o limite. Acho que é essencial educar, para que as pessoas possam operar num ambiente de alta densidade informativa e saber diferenciar o que é informação do que é desinformação
Juan Battaleme, secretário acadêmico do Conselho Argentino de Relações Internacionais

O povo dos macacos

Há uma diferença entre dizer como é o fascismo e dizer o que é o fascismo. Não é raro tomar-se uma coisa pela outra. Conhece-se o fascismo, mas compreender é tarefa distinta. Giambattista Vico, filósofo que Marx apreciava, dizia que somente podemos ter a ciência verdadeira do que criamos. Não da natureza, mas da História, porque é obra nossa. Contemplar a natureza, descrever os fenômenos, é um conhecimento incompleto, útil certamente, mas somente o criador, se existe, poderá ter a ciência da natureza porque o sujeito criador é verdadeiramente o sujeito cognoscente. Ele sabe porque algo existe, seu destino e finalidade. Nós conhecemos, ele compreende.

Vejamos, por exemplo, o popular texto (na verdade uma conferência) de Umberto Eco sobre o que ele denomina de Ur-Fascismo, fascismo eterno. Eco identifica uma série de características do fascismo presentes ao longo da História, desde o helenismo, há 2 mil anos e alguma coisa, na reação à revolução francesa, e assim por diante: irracionalismo, ressentimento social, elitismo, culto da tradição, nacionalismo, a mitologia do herói, etc.

O que Eco não explica é o porquê de, por volta do fim da segunda década do século XX, tudo isso se amalgama e se torna uma terrível e selvagem força social que muda a História. Portanto, embora seja útil descrever o fascismo, o que Eco fez elegantemente, ficamos sem compreender o que é o fascismo. Assim como os físicos, que são capazes de descrever com minúcias o big bang, mas não podem dizer por que ele ocorreu. Mas quando se trata da História a resposta pode ser uma ciência completa.

Outro exemplo é a recente resolução do Parlamento europeu que se valeu da categoria totalitarismo para equiparar nazismo e stalinismo. O fascismo é um dos modos de dominação sob o capitalismo, o que faz toda diferença para compreender o conceito. Apenas analisando a estrutura de classes do capitalismo é possível saber a quem ele serve, seu processo, gênese e desenvolvimento, natureza de classe, forças sociais que o impulsionam. Se não compreendemos verdadeiramente o fenômeno, que está vivo e nos ameaçando, como enfrentá-lo?


O fascismo tem uma, digamos, moldura, que passa pela estrutura de classes do capitalismo. Pelas duas classes fundamentais – a que detém os meios de produção e a que detém apenas a mercadoria força de trabalho, e pela classe “intermediária”, pequena burguesia e estratos médios. Não há um fascismo, há fascismos. O estado das relações entre classes, conflitos e tensões no interior de cada uma delas, crises de acumulação e crises ideológicas aparecem com características específicas em cada fascismo. Mas a moldura é “reação – base de massa”, sua singularidade.

O que distingue fascismo das conhecidas e históricas formas de repressão sob o capitalismo, domínio e violência de classe, é a pequena burguesia como força política e social na esfera da reação, que responde pelo termo “base de massa” na moldura.

Pequenos produtores ou comerciantes que escassamente empregam mão de obra assalariada, quando empregam, e a classe média vinculada ao grande capital, técnicos, burocratas, também funcionários do Estado (a nova pequena burguesia, como a denominava Nicos Poulantzas) compõem o núcleo dessa base de massa. Ambas se põem na esfera ideológica da sociedade burguesa, embora a primeira tenda a ser esmagada pelo grande capital. A segunda tem seu destino ligado a ele (para uma “radiografia” da pequena burguesia, Nicos Poulantzas, Fascismo e Ditadura, vol. II).

São extremamente valiosas as análises “a quente”, praticamente fontes primárias, feitas no momento da gênese do fascismo na Itália, a partir de 1919, como as de Clara Zetkin e Gramsci. Depauperada pela crise italiana do pós-guerra, a pequena-burguesia sente-se ameaçada de um lado pela crescente mobilização dos trabalhadores (que tinha ainda o influxo da Revolução Bolchevique) e de outro pelo que confusamente vê como o establishment. Pela identificação ideológica com a burguesia, quer mudanças no establishment, mas não na estrutura capitalista, por cujos privilégios anseia, e vê como inimiga a luta popular, sindicatos e movimentos dos trabalhadores.

Clara Zetkin, em um informe e proposta de resolução apresentados no III Pleno Ampliado da Internacional Comunista, em 1923, logo após a Marcha sobre Roma e o biennio nero (a feroz repressão contra os trabalhadores pelas milícias fascistas, basicamente compostas pela pequena burguesia, nos anos 20 e 21) mostrava a diferença entre o conhecido terror burguês e a o fascismo. O primeiro havia sido a repressão à revolução húngara, a execução de 5 mil pessoas levada a cabo por uma casta de oficiais feudais. Mas na Itália fascista – eis a novidade – a repressão tinha uma base de massas, primordialmente a pequena burguesia, porém alcançando desabrigados políticos, socialmente desenraizado, desiludidos, lúmpens, aventureiros.

A análise de Clara Zetkin demonstrava empiricamente, a partir da ascensão de Mussolini ao poder, o vínculo entre fascismo e burguesia, “uma fraude desmascarada pouco a pouco”. A promessa de proteção legal para a jornada de 8 horas havia sido completamente desfigurada por centenas de exceções, permissão de ignorá-la em certos casos e extinta para ferroviários, funcionários dos correios, comunicações e transportes; a promessa de salário-mínimo resultou em reduções salariais de 20 a 30% em média, chegando a 60% em certos casos; políticas de proteção social para idosos, enfermos e doentes abolidas; cortes no orçamento para as agências de emprego e de apoio aos desempregados; empresas públicas entregues a administradores privados; a manufatura de fósforos, que era monopólio estatal, passou a investidores privados, assim como entregas postais, indústrias telefônicas, rádio, telégrafos e ferrovias; a reforma tributária que seria destinada a taxar progressivamente o capital eliminou impostos sobre bens de luxo, carros, carruagens e se planejava uma ampliação dos impostos indiretos; foi revogada a exigência de que títulos tivessem o nome dos possuidores, facilitando a vida dos sonegadores de impostos.

Zetkin concluía: “a ‘nação’ se revelou como sendo a burguesia; o Estado fascista ideal revelou-se como sendo, em sua vulgaridade e falta de escrúpulos, o Estado de classe da burguesia” (Como nasce e morre o fascismo, Autonomia Literária).

Já estamos aptos a dizer agora da impressionante semelhança entre esse processo, o fascismo e sua gênese na Itália, e o Brasil de 2016 até este momento, apenas colocando algum grano salis. A nossa massa pequeno-burguesa, homens e mulheres brancos de classe média, camisas amarelas, nas ruas aos milhões, vociferando de ódio contra o que, em seu imaginário, representava os trabalhadores. O golpe parlamentar de 2016, que fez as vezes da Marcha sobre Roma. A ascensão ao poder de Mussolini e a de Bolsonaro em um regime com parlamento e instituições liberais formais (somente em 1926 aparece a ditadura aberta fascista) com amplo apoio do grande capital e da classe média branca nas cidades mais ricas. O descarado favorecimento ao grande capital, aniquilação de direitos trabalhistas, entrega de serviços públicos à iniciativa privada. Aqui podemos ver como o neoliberalismo e o fascismo são momentos e circunstâncias diferentes de uma só coisa e podem aparecer em um “mix” de formas ou modos de dominação – uma categoria nova e híbrida em desenvolvimento.

Em um artigo de 1921 (publicado no Ordine Nuovo), dizia Gramsci que a pequena burguesia imita a classe trabalhadora, sai às ruas, mas segundo a “tática que se faz pelos modos e formas permitida a uma classe de charlatães, de céticos, de corruptos”. “É como a projeção na realidade do relato da selva de Kipling (…) o povo dos macacos, que se crê superior a todos os demais povos da selva”. Mas, “em sua última encarnação política do fascismo, mostrou-se definitivamente em sua verdadeira natureza de escrava do capitalismo e da propriedade latifundiária, de agente da contrarrevolução. Também demonstrou ser fundamentalmente incapaz de desempenhar qualquer missão histórica: o povo dos macacos ocupa as páginas de sucessos, mas não cria história, deixa rastros nos jornais, mas não oferece material para escrever livros”. Impressionantemente, Gramsci descreve em 1921 o que vemos se desenrolar no Brasil contemporâneo, a natureza do povo dos macacos estampada nas redes sociais.

O fascismo sempre está em potência em uma formação capitalista por força de sua estrutura de classe (por isso a cadela está sempre no cio). Seu móvel é o favorecimento do grande capital, a exploração dos trabalhadores, aniquilação política ou física de suas lideranças, e então amalgama-se com a natureza volátil, confusa e individualista da pequena burguesia, instrumentaliza sua submissão e cegueira ideológica que a conduzem ao ódio, não aos reais opressores, mas a qualquer bode expiatório que cumpra o papel de ocultá-los.

Esse amálgama entre grande burguesia, pequena burguesia, lúmpens, aventureiros e aparelho de Estado legitima socialmente a anomia moral que é a marca do fascismo e então tudo é permitido. Para compreender o que é fascismo não basta descrever essa anomia e irracionalidade, mas saber a quem elas servem.

O exemplo dos brasileiros

“Somos um exemplo para o mundo”, disse o presidente Jair Bolsonaro em evento do agronegócio em Sinop (MT), referindo-se à política ambiental do País. Há alguns dias, a propósito da pandemia de covid-19, o presidente declarou que o Brasil foi “um dos primeiros países que melhor enfrentou (sic) essa crise”.

Na concepção do presidente da República, portanto, nada do que se constata a olho nu – tanto a devastação da Amazônia e do Pantanal como a tragédia múltipla causada pela pandemia, ambos os casos resultantes em parte da inépcia militante do governo federal – é real. Ao contrário: segundo Bolsonaro, o Brasil vai muito bem, melhor do que os outros países do mundo, e as críticas que o governo recebe são fruto de ignorância ou má-fé.

Declarações como essas mostram a profunda desconexão da realidade por parte do presidente Bolsonaro, o que é extremamente preocupante por se tratar da autoridade máxima do Poder Executivo. Se não é capaz de reconhecer os problemas, mesmo os mais evidentes, tampouco o será para pensar em soluções.



A tônica do discurso de Bolsonaro tem sido desde sempre atribuir a terceiros as responsabilidades que são principalmente de seu governo em relação às crises, muitas das quais criadas ou agravadas sobretudo por sua própria incompetência. Essa tática pode até livrá-lo momentaneamente do ônus eleitoral de seus equívocos, pois afinal é apenas isso o que lhe interessa, mas deixa o País desgovernado.

Justamente quando mais precisa de uma liderança que conduza o debate político de maneira racional para encontrar as melhores soluções para tão graves problemas, o Brasil está sob a direção de um negacionista contumaz, que enxerga a destruição como sinal de progresso. É o pior dos mundos.

Felizmente, o Brasil não se restringe aos devaneios palanqueiros de seu presidente, cada vez mais desacreditado aqui e no exterior. A sociedade, na ausência de governo – ou, o que é mais grave, muitas vezes tendo que enfrentar a oposição do próprio governo –, se mobiliza, com recursos próprios e movida por altruísmo, para mitigar os efeitos mais danosos das crises.

Tome-se o exemplo dos incêndios no Pantanal. Enquanto o governo permanece indeciso em relação à destruição de parte da rica fauna daquela região como resultado das queimadas, organizações não governamentais – desde sempre demonizadas por Bolsonaro e seus fanáticos seguidores – têm atuado de maneira corajosa para salvar os animais da região. Como bem lembrou Fernando Gabeira em recente artigo no Estado, “não importam os insultos vindos do mundo oficial, a esperança de reduzir o impacto destrutivo dessa passagem do fundamentalismo pelo poder ainda se baseia em solidariedade e trabalho voluntário”.

A mesma solidariedade se verifica no enfrentamento da pandemia, menosprezada desde o primeiro dia pelo presidente Bolsonaro, que trocou de ministros da Saúde até que encontrasse um que corroborasse suas fantasias delirantes. São muitos os exemplos de filantropia e desprendimento pessoal com o propósito de ajudar no esforço contra a doença e seus efeitos econômicos e sociais mais nefastos. Enquanto o governo federal, na pessoa de seu presidente, tudo fazia para sabotar os esforços de coordenação do combate à pandemia, a sociedade se mobilizava para fazer frente a esse desafio. Não fosse por isso, a calamidade seria muito maior.

O exemplo que o País tem a dar ao mundo e a si mesmo, portanto, não é a gritante insensatez do presidente da República, e sim a força de sua sociedade. Uma vez chamados a cooperar diante de crises graves como essas que ora enfrentamos, os brasileiros, ricos e pobres, dão um passo à frente e se apresentam para o trabalho – seja por meio de doações, seja por intermédio da ação de ONGs e organizações comunitárias que fazem seu trabalho muitas vezes longe dos holofotes.

Que o País dependa cada vez menos de seu presidente da República para superar seus grandes desafios é um tanto exótico, mas, em se tratando de Bolsonaro, talvez seja melhor assim.

A Primavera é para os fracos

Não será surpresa para esta coluna se uma alta autoridade do governo central do país anunciar em seu Twitter que, a despeito de estar prevista para amanhã, a primavera não chegará. É feito o vírus e o fogo na mata. Não existe. Coisa de pessoas fracas, esperançosas de que uma estação dedicada ao culto das flores possa melhorar o fluxo de vida da população. Mentira. No fim, todos morrem.

Segundo a alta fonte de coturno federal, a primavera, pelo positivismo exagerado de suas pretensões, é mais uma criação da mente torpe da esquerda, useira e vezeira na prática de associar girassóis, bem-te-vis e a brisa morna com a chegada da revolução comunista. É ativismo, coisa de ong, do Foro de São Paulo, uma floresta de ideologia a ser motosserrada pela associação evidente com o aborto, a pedofilia e o revisionismo stalinista que Caetano Veloso viu em Domenico Losurdo.


Artistas, principalmente os de música, “acreditam nas flores vencendo os canhões”, e isso prova que a primavera urge ser desmentida. É mais um movimento dos intelectuais, seguirá a voz do cancelamento, com suas canções de amor feitas para derrubar o governo. O patriota do bem não quer saber de amar, mas armar. Assim como a cultura, a ciência, a exaltação à vida e os bons modos, a primavera terá o crédito negativado. E ponto final.

Uma das tradições brasileiras mais felizes era a de todo ano a chegada da primavera ser saudada nos jornais do Rio por uma multidão de cronistas, todos unidos pelo apego ao uso exclusivo de palavras delicadas. As amargas, nunca.

Um deles poderia ir até a varanda, com o fito banal de ver como estavam as coisas, e ser surpreendido por um tico-tico, folhinha seca de capim no bico, construindo o ninho numa touceira de samambaia. Pronto, era o breaking news tão ansiado. Chegara o momento de botar aquilo em palavras garrafais, gerânios em flor pelas janelas dos parágrafos, e fazer o pequeno jornaleiro do Centro gritar a novidade: “É primavera!!!!”

Tecnicamente, a primavera no hemisfério sul corresponde ao período entre o equinócio de setembro e o solstício de dezembro. Existencialmente, a primavera é a percepção poética de que a vida reflorescerá, um jeito de o Criador dos tempos e das naturezas sinalizar um reflorestamento da confiança. É uma oportunidade, como diz o poema, para começar a andar descalço e ir assim até o fim do outono.

Em 1976, a primavera me chegou anunciada presencialmente por Tom Jobim. Eu entrevistava o compositor no quintal de sua casa no Jardim Botânico, uma tentativa de escarafunchar detalhes da bossa nova, quando de súbito, no meio de uma pergunta sobre o processo de criação com Vinícius de Moraes, Tom travou uma baforada no charuto. Gritou quase infantil, apontando para o alto: “Olha o urubu-gereba, tá começando seu voo de primavera” – e me apontou a ave, musa de muitas de suas músicas. A partir daí, o urubu pousou na entrevista e eu precisei voltar no dia seguinte para falar da garota de Ipanema. 

Eu gostaria de ser o cronista a saudar em primeira mão a chegada da primavera de 2020 e todo o seu pacote de delicadezas. Ontem, seguindo os passos dos colegas de outrora fui até a varanda observar o que estava escrito no tico-tico dos passarinhos e vi que o pronunciamento do governante de alto coturno já tinha sido posto em prática. Havia um sabiá laranjeira coberto de fuligem da mata queimada, a prova de que chegou um tempo sem poesia em que os homens se orgulham de incendiar árvores. Mas, sem problema. A primavera é o protocolo da esperança. Se não chegar amanhã, chega depois.