segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A Primavera é para os fracos

Não será surpresa para esta coluna se uma alta autoridade do governo central do país anunciar em seu Twitter que, a despeito de estar prevista para amanhã, a primavera não chegará. É feito o vírus e o fogo na mata. Não existe. Coisa de pessoas fracas, esperançosas de que uma estação dedicada ao culto das flores possa melhorar o fluxo de vida da população. Mentira. No fim, todos morrem.

Segundo a alta fonte de coturno federal, a primavera, pelo positivismo exagerado de suas pretensões, é mais uma criação da mente torpe da esquerda, useira e vezeira na prática de associar girassóis, bem-te-vis e a brisa morna com a chegada da revolução comunista. É ativismo, coisa de ong, do Foro de São Paulo, uma floresta de ideologia a ser motosserrada pela associação evidente com o aborto, a pedofilia e o revisionismo stalinista que Caetano Veloso viu em Domenico Losurdo.


Artistas, principalmente os de música, “acreditam nas flores vencendo os canhões”, e isso prova que a primavera urge ser desmentida. É mais um movimento dos intelectuais, seguirá a voz do cancelamento, com suas canções de amor feitas para derrubar o governo. O patriota do bem não quer saber de amar, mas armar. Assim como a cultura, a ciência, a exaltação à vida e os bons modos, a primavera terá o crédito negativado. E ponto final.

Uma das tradições brasileiras mais felizes era a de todo ano a chegada da primavera ser saudada nos jornais do Rio por uma multidão de cronistas, todos unidos pelo apego ao uso exclusivo de palavras delicadas. As amargas, nunca.

Um deles poderia ir até a varanda, com o fito banal de ver como estavam as coisas, e ser surpreendido por um tico-tico, folhinha seca de capim no bico, construindo o ninho numa touceira de samambaia. Pronto, era o breaking news tão ansiado. Chegara o momento de botar aquilo em palavras garrafais, gerânios em flor pelas janelas dos parágrafos, e fazer o pequeno jornaleiro do Centro gritar a novidade: “É primavera!!!!”

Tecnicamente, a primavera no hemisfério sul corresponde ao período entre o equinócio de setembro e o solstício de dezembro. Existencialmente, a primavera é a percepção poética de que a vida reflorescerá, um jeito de o Criador dos tempos e das naturezas sinalizar um reflorestamento da confiança. É uma oportunidade, como diz o poema, para começar a andar descalço e ir assim até o fim do outono.

Em 1976, a primavera me chegou anunciada presencialmente por Tom Jobim. Eu entrevistava o compositor no quintal de sua casa no Jardim Botânico, uma tentativa de escarafunchar detalhes da bossa nova, quando de súbito, no meio de uma pergunta sobre o processo de criação com Vinícius de Moraes, Tom travou uma baforada no charuto. Gritou quase infantil, apontando para o alto: “Olha o urubu-gereba, tá começando seu voo de primavera” – e me apontou a ave, musa de muitas de suas músicas. A partir daí, o urubu pousou na entrevista e eu precisei voltar no dia seguinte para falar da garota de Ipanema. 

Eu gostaria de ser o cronista a saudar em primeira mão a chegada da primavera de 2020 e todo o seu pacote de delicadezas. Ontem, seguindo os passos dos colegas de outrora fui até a varanda observar o que estava escrito no tico-tico dos passarinhos e vi que o pronunciamento do governante de alto coturno já tinha sido posto em prática. Havia um sabiá laranjeira coberto de fuligem da mata queimada, a prova de que chegou um tempo sem poesia em que os homens se orgulham de incendiar árvores. Mas, sem problema. A primavera é o protocolo da esperança. Se não chegar amanhã, chega depois.

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