terça-feira, 17 de março de 2020

Dois governos e o Monstro do Pântano

Um debocha de nós. Faz pouco da preocupação de milhões de brasileiros expostos ao vírus e à avalanche de noticias ruins vindas de todo o mundo, de todo o Brasil. Irresponsável, ignóbil, execrável, Bolsonaro é o Monstro do Pântano que assombra o País.

Na série da HBO, a cientista Abby Arcane é aterrorizada pelo monstro enquanto tenta desesperadamente investigar um vírus mortal incubado no pântano. Nossa heroína fica diante de um pesadelo: a humanidade corre perigo pelo avanço do vírus e ela ameaçada pelo Monstro do Pântano.


O governo que o monstro governa é inqualificável. Até seus antigos aliados se rebelam. Quando depende dele, ou dos seus, é um Deus nos acuda. Paulo Guedes deu inicio a uma entrevista coletiva nessa segunda reunindo o maior número de bla-bla-blás da história. Terminou com um “só peru morre de véspera”.

Não é não, Guedes. Em todo o mundo, milhares de pessoas sucumbiram ao coronavírus. Morreram, ministro. Já temos casos graves no Brasil. Só Bolsonaro trouxe 14 novos casos para o Brasil em sua comitiva vinda dos Estados Unidos. Guedes anunciou medidas de enganar bobo. Medo da sua frieza e de sua visão elitista da economia.

O maior medo, entretanto, é que o Monstro do Pântano engula Mandetta, o ministro da Saúde que cada dia mais impressiona profissionais de saúde, ou não, pela competência e objetividade com que está lidando com o novo mal da humanidade.

O governo de Mandetta é outro. Os tresloucados da internet pedem sua saída. Afinal, o coronavirus, para Bolsonaro, foi inventado na China, ou é coisa de Satanás. Seus amigos, Bispos Macedo e Malafaia pregam aos infernos que ninguém fechará seus templos, mesmo que isso signifique a explosão da pandemia no Brasil. Precisam arrecadar.

Qual dos dois governos sobreviverá até 2022? O coronavirus tem vida curta, dizem os entendidos. Rezemos por isso. Três ou quatro meses. Bolsonaro tem vida longa demais para nossa saúde mental e econômica: dois anos e 9 meses.

Estamos ao léu. Crise sem precedentes. Cenário imprevisível. Nesse momento, nos resta Mandetta e o fim da pandemia. Uma coisa de cada vez.
Mirian Guaraciaba

A face mais cruel do coronavírus é abandonar, sem nenhuma razão científica, os animais de estimação

Na tragédia global da pandemia do coronavírus, que amedronta e mata, existe um drama agregado. É talvez sua face mais sombria, seu rosto mais cruel, porque nos despoja da compaixão que é o coração da convivência.

Os protagonistas desta nova face da epidemia, somada ao medo que aflige a todos nós, são os animais de estimação, nossos companheiros de vida, que estão sendo abandonados à própria sorte em muitos países por um temor sem fundamento médico nem científico de que também eles possam se contagiar, conforme informou a Organização Mundial da Saúde.

Da China à Espanha, esses animais que até ontem nos ofereciam seu carinho estão sendo muitas vezes atirados para fora das casas, quando não sacrificados, como estão denunciando os veterinários. É um holocausto filho de um pânico irracional. O site espanhol El Diario titulava dias atrás: “Cães e gatos são abandonados, e nos casos mais extremos são atirados pela janela”.
Homem usa uma máscara preventiva contra coronavírus passeia
com seu cachorro em Bogotá (Raul Arboleda - AFP)
Nós, humanos, às vezes somos tão absurdos que afastamos de nós aqueles que poderiam ser um motivo de companhia na hora da doença, abandonando-os à própria sorte. E quem é capaz de abandonar suas mascotes poderia acabar abandonando também os idosos, os mais vulneráveis à epidemia, condenando-os a um isolamento psicológico.

Nesta hora de risco de psicose do medo e da depressão são justamente os psicólogos e psiquiatras, além dos médicos, que estão recomendando medidas especiais que nos vacinem contra o medo e a depressão. E é justamente a companhia amorosa de nossas mascotes de estimação uma das receitas mais valiosas para grandes e pequenos. Há países, como o Reino Unido, que há tempos permitem e até estimulam que os doentes possam receber a visita de seus amigos animais nos hospitais para aumentar suas defesas e alegrar suas horas de dor e solidão.

Nos hospitais e também nas prisões. Lembro-me que numa prisão de Barcelona, na Espanha, deixavam alguns detentos terem em suas celas um cachorro do qual deviam cuidar. Segundo os psicólogos da penitenciária, aquela presença e cuidado do animal ofereciam resultados visíveis no comportamento do preso. Alguns deles, quando chegava sua hora de retomar a liberdade, preferiam ficar na prisão a ter que abandonar seu bichinho.

A crueldade com esses animais de companhia nestas horas de preocupação mundial lança uma sombra de desamor sobre nossa condição humana. Mas como até nos antros mais lúgubres da crueldade podem aparecer raios de esperança inesperados, também nestes dias a história que li em um jornal italiano, de uma menina de cinco anos, revelou-me que nem tudo está perdido no mundo dos sentimentos. A história é simples, mas luminosa. A menina tinha escutado em família que seu avô teria que ser isolado num quarto porque tinha dado resultado positivo no exame do coronavírus. A pequena se dirigiu à mãe e lhe disse: “Mamãe, eu também quero ser infectada e fazer companhia ao avô para que não fique sozinho”.

Como dizia o lúcido escritor italiano Leonardo Sciascia, “nem a infância é inocente”. Mas também é verdade que seus sentimentos estão menos poluídos que os nossos, porque não tiveram tempo de se envenenar com nossa maldade adulta. Voltar os olhos em alguns momentos para os nossos pequenos nos ajudará a nos oxigenar dos nossos vírus de egoísmo, que são piores que os físicos, porque nos transformam em mortos-vivos.

Essa menina anônima é como um arco-íris no meio da tormenta da nova epidemia que retumba ameaçadora em todo o planeta, creia ou não o presidente Jair Bolsonaro, que está envergonhando, desafiando e assombrando até a muitos de seus seguidores com seus gestos de desprezo e de irresponsabilidade frente à tragédia que nos espera. Que alguém, por favor, seja capaz de deter sua loucura, porque, como escreveu Abraham Lincoln, “pecar pelo silêncio, quando se deveria gritar, nos transforma em covardes”.
Juan Arias

Como atenuar a crise?

Nos últimos dias me envolvi em intenso debate sobre como o Brasil deve responder à crise econômica proveniente da pandemia global de COVID-19. Primeiramente, esclareço aos leitores: a crise que o mundo atravessa hoje não tem precedentes. Comparações com a crise de 2008 não são pertinentes pois aquela foi uma crise financeira, originada nas instituições que não sabiam como as inovações que haviam criado estavam espalhando risco pelos mercados mundo afora. Apesar da crise de 2008 ter sido extremamente severa e única em muitos sentidos, os economistas sabem o que fazer tanto para apagar o incêndio, quanto para sustentar as economias quando crises financeiras ocorrem. Nosso problema agora é outro.

A crise econômica proveniente da pandemia tem duas manifestações. De um lado, a extrema incerteza atrelada à disseminação de um vírus altamente contagioso e com taxa de mortalidade assustadora. Essa incerteza paralisa investimentores e consumidores. De outro, a resposta das autoridades de saúde pública e de diversos governos mundo afora. Para conter a epidemia, vários países decretaram fechamento de escolas, universidades, bares, restaurantes, museus, fronteiras. A indústria de turismo já sofre baque sem tamanho, as companhias aéreas que o digam. O que isso significa é que há uma paralisia sem precedentes da demanda e da oferta. A insuficiência aguda de demanda exige dos governos medidas urgentes e extraordinárias para impedir a asfixia econômica.


Como fazer isso no Brasil? O país, cuja economia enfrenta essa crise a partir de uma posição fragilizada, precisa reconhecer que o cenário mudou abruptamente. Mudanças de cenário requerem que as prioridades se reorientem. As reformas de médio prazo são importantes, mas não para agora. Para agora o que se precisa é de medidas que deem ao SUS a capacidade de atender milhares de pacientes, às pequenas empresas a liquidez de que necessitam, além de reforçar as redes de proteção social e impulsionar o investimento público. No Brasil, os vulneráveis não são apenas os idosos, mas as pessoas que trabalham na informalidade e que não terão salário se forem obrigadas a ficar em casa, as crianças que dependem das escolas para comer, as mães solteiras que poderão ter de deixar de trabalhar com o fechamento de escolas, as famílias de baixa renda que moram em favelas aglomeradas e se deslocam por meio de transportes lotados por horas a fio. No plano macroeconômico, é preciso atenuar a insuficiência aguda de demanda com investimentos públicos que criem empregos – defendo que esses investimentos sejam feitos em infraestrutura.

A crise será longa, pois a insuficiência de demanda conosco estará durante a epidemia e depois que ela se for. Estamos falando de meses, possivelmente de um ano ou mais. Portanto, urge considerar a seguinte estratégia: de início, isto é, no curtíssimo prazo, a flexibilização da meta fiscal e o uso do crédito extraordinário para liberar os recursos necessários para a saúde e para os mais vulneráveis. Isso, entretanto, poderá ser insuficiente para sustentar a economia brasileira caso a crise seja tão prolongada quanto imagino. Nesse caso, será necessário considerar a flexibilização do teto de gastos, sobretudo para dar o suporte necessário ao SUS.

A ideia de flexibilizar o teto tem gerado muita controvérsia, mas o fato é que ele, hoje, é excessivamente rígido. Muitos economistas não gostam da ideia, mas o teto não é uma vaca sagrada. O país não será castigado se tiver de modificá-lo. Os que tiverem de fazê-lo poderão salvar vidas, e no momento, é isso o que importa.

Livremo-nos das amarras que nos prendem e pensemos em conjunto como ajudar o Brasil, as pessoas. É hora de debate, sim, mas mais importante é reconhecer que é hora de agir. Não agir numa crise dessa envergadura é deixar a população exposta à loteria do vírus.

Brasil sob nova direção


A epidemia do golpismo

O presidente foi ou não infectado pelo novo coronavírus? Ninguém saberá. Há um estímulo oficial à descrença constante. Diz-se que não. Mas quem acredita?

O procedimento bolsonarista já está mapeado: plantar — neste caso, lá fora (numa TV americana) — a notícia (de que Jair Bolsonaro estaria contaminado) que se negará em seguida. O que interessa é desmentir; subsidiar a trombada de versões, a desconfiança generalizada.

Estamos na mais baixa cavidade da depressão política que nos consome desde 2013 — da qual o bolsonarismo é a mais intensa convulsão. A degradação é veloz. Mas o fundo do poço é fundo. O presidente comete sucessivos crimes de responsabilidade. Estica progressivamente — todos os dias — a corda dos arreganhos autoritários. Sem qualquer resposta institucional de corpo, ousa — ousará — cada vez mais. Escrevi, na semana passada, que não tardaria até que tomasse parte numa das manifestações contra os Poderes da República. Aí está.

A ação é coerente se considerarmos a série de imposturas e irresponsabilidades por meio da qual, nos últimos 30 dias, Bolsonaro liderou uma implacável blitz autoritária contra o equilíbrio democrático no Brasil. Não é dinâmica de quem pretenda se submeter aos filtros republicanos por muito tempo. Há um quê de desespero. O prometido crescimento econômico não veio. O presidente sabe que frustrará e perderá apoio. Sua única gramática — tanto mais se acuado— é a da guerra. Ele vai — foi —para a briga de rua. O clima de crise é a temperatura ideal para medidas de exceção.

Onde estão as provas de que a eleição presidencial de 2018 foi fraudada? Não se pode esquecer desse esboço para golpe. Tampouco se pode esquecer da reação covarde do Judiciário.

Faz já mais de semana desde que o presidente atentou, com gravidade sem precedente, contra o sistema eleitoral — auge de um arco dramático totalitário encenado enquanto a linha evolutiva da Covid-19 já se traçava como alarmante realidade mundial. Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional optaram pela omissão. Bolsonaro captou o recado: o próprio convite a que comparecesse a uma manifestação que, ora, alvejaria Congresso e STF.

Nada exprimirá melhor a mentalidade bolsonarista — o projeto autocrático de poder — do que a fala do presidente à nação, na quinta-feira passada. O eixo do pronunciamento jamais foi a gravidade da situação decorrente do avanço da Covid-19, mas uma mensagem sectária, destinada exclusivamente a seu povo, acerca dos últimos atos de rua.

O país desafiado por uma pandemia, mas a preocupação de Bolsonaro era — é — com o fomento aos grupos organizados em que investe como instrumento de força para emparedar as instituições. Para que não haja dúvida: o presidente se valeu de cadeia de rádio e TV para difundir uma falsa desconvocação para os protestos. No domingo, comportando-se como um sociopata, foi prestigiá-los in loco.

É estratégia arriscada — mas que, por isso mesmo, impõe que se reflita sobre seus propósitos. A possibilidade de que tenha ido para o all-in não é remota.

A linguagem reacionária bolsonarista é inconsistente com o trânsito da normalidade — com os parâmetros da estabilidade democrática — e não tem recursos para se sustentar em longo prazo senão sob a aposta no golpismo. Atenção: golpismo. Donde se explicaria o elevado aporte na radicalização chantagista que caracteriza a tentativa de implantar uma cultura plebiscitária entre nós.

O Palácio do Planalto é uma célula difusora de mentiras — uma estrutura inconfiável, incapaz de semear o terreno de previsibilidade necessário a pactos e contratos. O governo não tem palavra. Trai. Dinamita pontes. Confunde. Age como situação e oposição simultaneamente. Só o firme propósito autocrático de fomentar a anomia — numa circunstância propícia à ruptura institucional — justifica que, em meio a tamanha crise, com todos os elementos de uma tempestade perfeita, o centro do governo se coloque, deliberadamente, como centro gerador de desinformação e conflito.

É uma atitude para o choque que cansa, que estressa — e que é avessa a qualquer ambiente de negócios, que fere as mais básicas necessidades de um chão em crise. Quem investirá aqui? Há um horizonte projetado. A economia, mal saída da recessão, regredirá. Os tais mercados — que aderiram ao bolsonarismo sem considerar que reforma liberal é inconsistente com projeto revolucionário — não tardarão a pular fora. Não tardará a pular fora também o trabalhador cujo saco cheio financiou o ressentimento bolsonarista, mas que agora percebe que instabilidade não gera emprego. Um cenário a que Bolsonaro, com menor base social, responderá com ainda maior tribalismo golpista.

As chances de o Brasil singrar celeremente para a ingovernabilidade são grandes. Até o impasse absoluto, entretanto, o novo coronavírus servirá de desculpa para muita incompetência, muito embuste — e alguns crimes.

Homicídio de governo é genocídio

Quando as autoridades têm o poder e o dever de tomar providências para evitar um resultado danoso, e assim não procedem, elas respondem por esse resultado. Isso é homicídio doloso. Será atribuído ao governador do estado de São Paulo, será atribuído ao presidente da República, principalmente ao presidente da República, porque o que ele fez ontem (domingo) é inadmissível, é injustificável, é indefensável. É um crime contra a saúde pública
Janaína Paschoal (PSL-SP)

Chega! É hora de pensar em impeachment

Alguma chave virou em mim na semana passada, dia 9 de março, quando Bolsonaro afirmou ter provas de que a eleição que o elegeu teria sido fraudada. Até então, eu era contra sequer pensar em impeachment, apesar das muitas afrontas à democracia.

Afinal, o custo do impeachment para o país é muito alto. Além disso, com cerca de 30% de popularidade, trata-se na melhor das hipóteses de um sonho distante e, portanto, irrelevante. Mas ali, naquele momento, com a acusação grave e mentirosa à Justiça Eleitoral, algo deveria ter sido feito. Foi, para mim, a gota d’água. O copo transbordou.

Desde então, as indignidades de Bolsonaro só aumentaram: ele não só promoveu como participou de um protesto que pedia fechamento do Congresso e um novo AI-5, no meio de uma epidemia grave da qual ele é potencial vetor. Com seu mau exemplo, ainda desautorizou o trabalho competente do ministro da Saúde. Bolsonaro não só ataca a democracia como é um risco à saúde pública.


Para tirar fotos junto a fanáticos ignorantes, ele vai sorridente. Quando o dever chama, no entanto, Bolsonaro foge. Ausentou-se de videoconferência com líderes de países sul-americanos para discutir medidas de combate ao vírus. Se já fomos liderança continental, hoje estamos atrasados em relação aos nossos vizinhos.

Tampouco fez falta à reunião entre Maia, Alcolumbre, Mandetta, ministros do Supremo e outras autoridades. Não demonstra saber nada e nos faz passar vergonha perante o mundo. Para que serve o presidente?

Para piorar, há evidências preocupantes de que Bolsonaro acredita que a Covid-19 seja um plano chinês para prejudicar o Ocidente. Teorias da conspiração e pseudociência estão no posto mais alto da República. (Caso alguém tenha alguma suspeita: até agora, o saldo da Covid-19 para a China são 5 milhões de desempregados e redução brutal do consumo e das projeções para o PIB de 2020. Não é “histeria”.)

A confusão criada pelo presidente e seu entorno é tamanha que não temos sequer a resposta a uma pergunta simples e crucial: Bolsonaro está ou não está infectado pelo coronavírus?

Não é à toa que vozes públicas, outrora apoiadoras, estejam se arrependendo publicamente. É o caso de Francisco Razzo, filósofo conservador, em artigo para a Gazeta do Povo (“Por que me arrependo de ter votado em Bolsonaro”, 11/03). E também de Janaina Paschoal, em discurso nesta segunda-feira (16) na Assembleia Legislativa de São Paulo. No caso, ela não só se diz arrependida do apoio dado como defende o impeachment, no que tem razão.

É impossível derrubar um presidente ainda popular. A resistência seria grande demais. Além disso, o momento de crise pede toda a atenção do setor público. Não podemos nos dar ao luxo de paralisar a política por meses em meio à crise do coronavírus. Assim, por enquanto, o melhor é deixar o presidente esquecido, isolado, enquanto os adultos do Congresso e de alguns ministérios trabalham.

Ao final da crise, no entanto, caso a popularidade de Bolsonaro tenha caído devido aos problemas econômicos e à sua incompetência, que o Congresso faça logo seu trabalho.

Os crimes de responsabilidade se acumulam, com gravidade cada vez maior. As ilegalidades, as mentiras, os ataques, as indignidades, o caos, o golpismo, a covardia e a falta de liderança só vão piorar. O atual presidente é indigno do cargo, afronta nossas leis e coloca o país em risco. O Brasil é maior que Bolsonaro.

Mau exemplo contagioso

Com a chegada da Covid-19, somos instados a ter juízo, manter distância social e responsabilidade cidadã, proteger a nós mesmos e aos outros. Buscar sensatez. Seria bom ter bons exemplos. </p><p>Ainda outro dia, tínhamos de escolher entre os amotinados da polícia, em ação definida como inconstitucional pelo STF, ou o tresloucado senador da retroescavadeira avançando contra eles. Sem falar na difamação e ataques chulos a mulheres jornalistas a reverberar por hostes parlamentares. E convocações do Executivo para se ir às ruas contra o STF e o Congresso. Além da maluquice à solta, temos o contagioso mau exemplo que vem de cima.


Se o presidente pode engrossar à vontade, na certeza de que tudo fica por isso mesmo, o que não fará o famoso guarda da esquina, que nem ao menos está o tempo todo sob o testemunho das câmeras para que se saiba o que faz de horrível? Se, em cada encontro com jornalistas ou eleitores munidos de celular, ele pode xingar a mãe a qualquer pretexto, dar banana ou apontar arminha gestual enquanto libera uso de armas reais pelo país afora, o que não fará o brutamontes anônimo com arma de verdade e força física, entre quatro paredes, contra a mulher que não quer mais aturar suas ameaças e violência? Se secretário da Cultura considerado “de verdade” pelo presidente podia ecoar discurso nazista em ultrajante vídeo oficial, e se governante estadual pode fazer lista de livros a serem recolhidos, o que não fará a diretora da escola ou o pastor no escurinho do anonimato?

Alguém se surpreenderá se amanhã aparecer um vídeo do presidente, palhaço a tiracolo ou em voo solo, botando a língua de fora ou baixando as calças e exibindo o traseiro para a nação, sob aplausos de sua claque? Tudo indica que há uma estratégia de provocação, para que todo mundo se acostume, siga o exemplo e ache natural alimentar a violência dessa forma, criando um ambiente antidemocrático e de barbárie.

Só que não é natural nem está certo. Passa do limite. Não acaba bem.

Ana Maria Machado

Bolsonaro se alia ao coronavírus para fazer mal ao Brasil

No último domingo, dia 15, enquanto Jair Bolsonaro desrespeitava a ordem médica de manter-se isolado, confraternizava com seus devotos à porta do Palácio do Planalto e fazia contato físico com 272 deles, o presidente Donald Trump, a quem ele reverencia e tenta imitar, ainda recomendava aos norte-americanos que relaxassem e garantia que o seu governo estava fazendo o melhor para deter a pandemia de coronavírus.

Menos de 24 horas depois, Trump admitiu que as medidas adotadas contra a doença poderão se prolongar até o segundo semestre, e reconheceu: “O vírus não está sob controle em nenhum lugar do mundo”. Recomendou evitar reuniões com mais de 10 pessoas e pediu que os idosos fiquem em casa. São Francisco, na Califórnia, se tornou a primeira cidade americana a proibir que todos os cidadãos saiam de casa a partir de hoje.

Emmanuel Macron, presidente francês, anunciou a proibição de entrada no seu país de quem chegar de fora da União Europeia. A partir de hoje, e pelo menos por 15 dias, os franceses não poderão sair de suas casas. Cem mil policiais patrulharão as ruas. O número de casos de coronavírus tem dobrado a cada três dias na França. Macron usou a expressão “guerra” meia dúzia de vezes para se referir ao combate ao “inimigo invisível”.


O que se ouviu Bolsonaro dizer por aqui foi que tudo não passa de uma “histeria”. Provocado a respeito do seu comportamento no domingo, exasperou-se e retrucou: “Se eu me contaminei isso é responsabilidade minha. Ninguém tem nada a ver com isso”. De fato, terá sido sua, unicamente sua a escolha de se contaminar. O problema é que ele pode ter contaminado muita gente ao seu redor, embora isso não pareça preocupá-lo nem um pouco.

Bolsonaro deveria ter participado, ontem, de duas reuniões importantes. Uma, com os presidentes dos países da América do Sul por meio de teleconferência. Na pauta, a doença que assombra o mundo. A segunda, com os presidentes do Supremo Tribunal Federal, da Câmara dos Deputados e do Senado. Na pauta, o mesmo assunto, e ações integradas que poderiam ser executadas pelos três poderes da República. Bolsonaro faltou às duas.

O mais inacreditável foi saber que ele pressionou o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, para que negasse ajuda aos governadores João Doria (PSDB), de São Paulo, e Wilson Witzel (PDC), do Rio de Janeiro, os dois maiores Estados do país e os mais atingidos até agora pela doença. Bolsonaro trata Doria e Witzel como inimigos políticos. E a inimigos, segundo entende, nada deve ser concedido. Nem mesmo uma trégua.

Seria perda de tempo sugerir a Bolsonaro que lesse a Bíblia para ver “as consequências invariáveis decorrentes do ódio”. Ele detesta ler. Livro tem muita letra. Mas Bolsonaro poderia reler o trecho da carta que lhe enviou seu ex-ministro Gustavo Bebbiano onde está dito: “O senhor cultiva e alimenta teorias de conspiração, intrigas e ódio, e ensinou seus filhos a fazerem o mesmo.  O ódio é uma energia terrível e incontrolável que tudo destrói”.

Hoje, Bolsonaro se submeterá a um novo exame. Subiu para 14 o número de pessoas que estiveram com ele durante sua recente viagem aos Estados Unidos e que apresentaram resultado positivo para a Covid-19. Se Bolsonato estiver infectado, ficará sujeito a uma quarentena como as demais vítimas da doença. O que significa... O que no caso dele não dá para dizer o que significa. 

A mente de um paranoico é fértil, confusa e difícil de decifrar. Se afastado do poder temporariamente, Bolsonaro ainda assim disporá de um celular para libertar seus demônios e infernizar a vida alheia no momento em que o país mais clama por uma condução firme, segura e responsável. Com ou sem o coronavírus, Bolsonaro continuará até o fim a fazer mal ao país. Esse é o seu destino e a nossa punição.

Pensamento do Dia


Escassez de estadistas

Em novembro de 1954, o então primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, ao completar 80 anos, foi homenageado no Parlamento de seu país. Em seu pronunciamento, o líder da oposição trabalhista Clement Attlee destacou que os discursos de Churchill durante a 2.ª Guerra Mundial, que tanto inspiraram os britânicos a enfrentar a tirania nazista, “expressavam a determinação não só do Parlamento, mas de toda a nação”. Essa capacidade inigualável de traduzir em palavras a alma de um povo, motivando-o a seguir adiante e superar as piores adversidades, fez de Churchill o maior estadista de seu tempo.

Seu grande legado é a preciosa lição de que governantes não são apenas gestores de recursos públicos; antes, são líderes políticos que devem ser a referência de sobriedade e determinação em momentos de incerteza, quando a voz respeitada da moderação deve se sobrepor ao alarido irresponsável da confusão.


Assim, são justamente turbulências graves como esta causada pelo coronavírus, com consequências tão amplas quanto imprevisíveis, que separam os estadistas dos políticos medíocres. Os primeiros são aqueles que sabem preparar seus governados para os inevitáveis sacrifícios que certamente terão de ser feitos nos próximos tempos, em razão do impacto econômico e social da crise. Já os segundos são aqueles que mobilizam a opinião pública com assuntos irrelevantes ou apenas polêmicos, muitas vezes com o objetivo de esconder sua incapacidade de governar e lidar com problemas dessa profundidade.

No primeiro caso, os estadistas, por se interessarem genuinamente pelo futuro e o bem-estar da nação, conseguem atrair o apoio mesmo de quem deles pensa diferente, com o objetivo de superar eventuais divergências e unir esforços para fazer o que é necessário.

Infelizmente, o mundo em geral, e o Brasil em especial, enfrenta uma escassez de estadistas e um excesso de governantes despreparados, não apenas do ponto de vista da administração, mas, sobretudo, sob o aspecto da liderança.

Nestes tempos de vulgaridade militante, confunde-se liderança política com capacidade de arregimentar seguidores em redes sociais. Quanto mais barulhentos e irracionais forem os discursos desses oportunistas, maior é o engajamento de quem prefere a ofensa ao diálogo. Pouco importa, no ambiente tóxico das redes, se esse tipo de liderança é eficiente para conduzir o País a bom porto; ali, o que interessa é apenas alimentar o tribalismo e, assim, estigmatizar, muitas vezes em termos violentos e impublicáveis, quem tem outra opinião.

É evidente que, nesse clima de guerra, não se pode falar em convergência de esforços e ideias para solucionar os problemas ou ao menos para mitigar seus efeitos mais sérios. Ao contrário, são cada vez mais numerosos os que torcem pela ampliação da crise como forma de minar o governo e as chances eleitorais do presidente. Em qualquer circunstância, trata-se de um óbvio disparate, pois o colapso da economia e a deterioração das instituições não ajudam ninguém - a não ser os incendiários.

Por mais difícil e desgastante que seja, é preciso que os políticos conscientes de seu papel se apresentem ao duro trabalho de convencer os brasileiros de que esse confronto, tão ruidoso quanto vazio de significado, não levará a nada, a não ser a um dispêndio de preciosa energia, necessária para o enfrentamento dos graves transtornos que o País atravessa.

No Brasil, o cargo de estadista está vago, pois temos um presidente que não está à altura nem do cargo nem dos desafios que se lhe apresentam. É claro que nenhum dos candidatos a essa missão precisa ser um Churchill, mas é possível pelo menos almejar seu grande exemplo. Na tempestade perfeita que une um governo perdido, uma atmosfera de discórdia, uma economia letárgica e um vírus descontrolado, urge parar de perder tempo com tolices extremistas, produzidas pelo submundo delinquente da internet, e concentrar esforços para mobilizar a opinião pública contra o nosso grande e resiliente inimigo: a mediocridade.
Editorial - O Estado de S. Paulo

O coronavírus e a arte do possível

Sempre se diz que a política é "a arte do possível". Na maior parte das vezes, a frase é acompanhada de um dar de ombros e é dita quando medidas decisivas não são tomadas, quando chances de futuro são perdidas ou quando injustiças não são combatidas de forma resoluta.

Depois de pouco mais de uma semana de acontecimentos e decisões com consequências profundas sobre a vida pública e privada, estamos esfregando os olhos, admirados: na verdade, é possível fazer muito mais do que se acredita de forma geral.

De repente, os cientistas estão dando o tom na política. Modelos de computador se tornaram a base de amplas decisões. A usual primazia da economia foi invalidada, pelo menos temporariamente. Diante da ameaça muito concreta da covid-19, parece que um sentimento decidido de "vamos conseguir, não importa como" está se espalhando.


Por mais aguda e complexa que seja a pandemia do coronavírus: ela é a ameaça mais urgente, mas, de longe, não é a única contra o ser humano. Tomemos o meio ambiente como exemplo, mais especificamente as mudanças climáticas, para as quais os cientistas soaram o alarme há décadas. Modelos de computador muito convincentes mostram assombrosamente como a vida mudará na Terra se não houver ações para coibir o aquecimento global – quanto mais cedo, melhor. Até agora, isso não resultou em ações realmentes decisivas.

Ou um outro problema ambiental: o avanço do lixo plástico no planeta. Ou a extinção em massa de espécies. Na maioria dos casos, sabemos exatamente o que deveria ser feito. Mas muito pouco acontece muito devagar.

É claro que é mais fácil mobilizar uma sociedade inteira quando se trata de proteger a própria vida ou a dos seres amados no momento atual, quando não se luta contra um perigo visto como abstrato e futuro – ou quando esse perigo se revela mais intensamente em outros lugares do que nas proximidades.

Além disso, há o problema dos oportunistas. Para ficar no exemplo das mudanças climáticas: não são apenas os países que adotam medidas para a proteção do clima que se beneficiam delas.

Em algum momento, a pandemia do coronavírus fará parte do passado. Se, então, alguém disser que a política é apenas a arte do possível, poderemos lembrar que o possível é muito mais do que se pensa.

Coragem ou irresponsabilidade?

Ao ver sua claque em frente ao Alvorada, Jair Bolsonaro saiu tocando mãos, deixando-se apalpar e tirando selfies com celulares de apoiadores que ele não sabe se estavam com o nariz escorrendo. Coragem ou irresponsabilidade? Se Bolsonaro está convicto de que o coronavírus é uma invenção da mídia e não liga para sua saúde, ótimo —os brasileiros de bem agradecem.


O problema é que ele não é dono apenas de seu nariz. Sua atitude de ontem gerou um péssimo exemplo. Para desespero das autoridades sanitárias, inclusive as de seu governo, ele deu sinal verde para que ninguém tome as precauções para evitar contágio. Com seu populismo de coronel da roça, Bolsonaro contrariou a maciça recomendação médica de que, em nome da saúde pública, as pessoas lavem constantemente as mãos, policiem-se para não levá-las ao rosto e evitem contatos em aglomerações.

Para fazer jus à alcunha de “mito” que os papalvos insistem em lhe pespegar, não será surpresa se, nos próximos dias, Bolsonaro for visto removendo ramela do olho, chupando o dedo, roendo as unhas, tirando meleca do nariz, arrancando um fiapo de manga do dente ou dando palmadinhas nas bochechas de alguma apoiadora —fazendo, de propósito, tudo que não se deve fazer. Como passou dias ao lado de auxiliares já diagnosticados com o vírus, Bolsonaro tornou-se uma ameaça ambulante de contágio. Mas nem isso o impede de arriscar-se a empestear seus veneradores.

Em seu raciocínio patafísico, ele parece não ver por que tantas instituições, em escala mundial, estão se dispondo a perder bilhões ao paralisar suas atividades. Mas, se e quando a calamidade se instalar aqui por causa do coronavírus, talvez esses veneradores se lembrem de que ela poderia ter sido evitada se o chefe da nação fosse um estadista, que visasse o bem da população.

E não alguém que, no fundo, dá uma banana para essa população.
Ruy Castro