terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Verão no Brasil

 


Linchamento geral

Em 1958, o chefe da polícia no Rio de Janeiro, general Amaury Kruel, compôs uma equipe especial de combate ao crime com carta branca para agir, tendo à frente o detetive Milton Le Cocq, que havia integrado a guarda pessoal de Getúlio Vargas e cuja morte resultou na criação da Scuderie Le Cocq, nascida sob a marca da vingança e da caça ao assassino Cara de Cavalo —executado em 1964 com mais de cem disparos.

Cara de Cavalo foi um dos primeiros bandidos midiáticos. Também endeusada pela imprensa, a Scuderie Le Cocq —que se transformou em associação e teve mais de 7.000 seguidores espalhados pelo país— introduziu o extermínio de marginais como prática da polícia. Parte da população aplaudiu a nova ordem.


Em 1969, o general Luiz França, chefe da polícia na Guanabara durante a ditadura militar, criou o grupo de elite Doze Homens de Ouro, um para cada signo do zodíaco, que nos anos seguintes roubariam, extorquiriam e, lógico, matariam. O líder era Mariel Mariscot, tão exibicionista que fazia questão de buscar a namorada, a travesti Rogéria, à porta do teatro Rival. Antes de ser assassinado, puxou cadeia na ilha Grande.

Tanto a Scuderie Le Cocq como os Doze Homens de Ouro estão na origem dos escritórios do crime, dos esquadrões da morte e dos grupos paramilitares que hoje infestam o país —eis um privilégio que não é só do Rio. Em qualquer ranking de violência, o Brasil se destaca como campeão de homicídios no mundo.

Mais do que a vontade de fazer justiça com as próprias mãos, instalou-se o desejo de eliminar o outro. O tesão de matar virou estilo de vida. Como no famoso bloco de Carnaval, cada pessoa armada é uma scuderie, um esquadrão do eu sozinho. Ricos colecionam fuzis, dizem-se caçadores esportivos e fazem terapia em clubes de tiro. A classe média usa pistola. Pobres vão de faca, paus e pedras e são ao mesmo tempo algozes e vítimas do linchamento geral.

A pressa da fome

O efeito mais devastador da pandemia foi o aprofundamento da desigualdade social. No Brasil, ¼ da população vive na Escala da Insegurança Alimentar. Mesmo diante da humilhação da fome, o conluio entre os poderes Executivo e Legislativo sequestram o Orçamento para financiar a farra dos privilégios e o despudorado gastos em benefício de projetos eleitorais

Há grande convergência sobre os efeitos da pandemia na Humanidade. De forma distinta, afetou pessoas, nações e, mais gravemente, os pobres. Fez sentir uma dor universal e nos jogou nas profundezas do luto. São perdas que não se medem e serão sentidas para sempre.


A arrogância do poder global foi testada. A pandemia deixou valiosas lições. Milhões de vítimas não são meros dados estatísticos frente à tragédia da morte de uma pessoa, como pensam os tiranos, são eventos que ameaçam, traiçoeiramente, a existência humana. A tecnologia e os avanços do progresso científico mostraram-se insuficientes para vencer a dimensão do inesperado, sem a força da solidariedade humana e da cooperação internacional

Estes valores, permeados pela compaixão, serão capazes de enfrentar o maior dano da pandemia: o aprofundamento da desigualdade econômica acrescida pelo enorme contingente de miseráveis em contraste com os números assustadores da concentração de renda: 2.153 bilionários do mundo detêm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas, 60% da população mundial (Fonte: relatório da ONG Oxfram – Tempo de Cuidar, em 19/01/20).

Em 06/4/21, a lista da Forbes disparou com 2.755 bilionários, 660 a mais do que no ano anterior. No Brasil, segunda maior concentração de renda do Planeta, a Forbes registrou 42 novos bilionários.

Neste quadro de desequilíbrio estrutural, a novidade foi a carta de uma centena milionários autointitulados “Milionários Patriotas”, pedindo, no encontro virtual de Davos, que os países os forcem a pagar mais impostos (18/01/22).

Não julgo os propósitos do gesto inédito. No entanto, traz embutido o fracasso da Política, a ação pensada para transformar realidades.

No caso brasileiro, além de mais de 12,4 milhões de desempregados, ¼ dos brasileiros (Datafolha, 24/12/21) vivem a Escala de Insegurança Alimentar, conceito técnico para definir a humilhação da fome. Não nos faltam talentosos formuladores de políticas sociais. Sobram, porém, maus gestores dos gastos socais no combate aos diversos níveis de pobreza.

Vencer a pobreza, ensina a experiência histórica, é o primeiro passo da libertação para que os indivíduos possam fruir liberdades reais. Dois grandes obstáculos, no Brasil, dificultam a efetividade das políticas públicas e ações redistributivistas: não se sabe como vivem os “invisíveis” e o sequestro do Orçamento, especialmente este ano, para financiar a farra dos privilégios e o gasto despudorado em benefício de projetos eleitorais, graças ao conluio entre os Poderes Executivo e Legislativo.

No país de miseráveis, cabe lembrar aos candidatos, a advertência de Betinho: “Quem tem fome, tem pressa!”

A responsabilidade dos militares

Abre aspas: “Meu voto é pro Bolsonaro. O Bolsonaro representa a democracia, representa a liberdade. O Haddad representa a ditadura, representa o fascismo, representa nazismo, representa racismo, divisão do país em cores e regiões. Então é a hora da opção ‘o gigante acordou’, o Brasil vai votar Bolsonaro. Que é para reverter essa situação e tirar o atraso do tempo perdido com toda essa gente corrupta. Muito obrigado.”

A declaração de voto reproduzida acima, gravada em vídeo em algum momento entre o primeiro e o segundo turno da eleição de 2018 e colocada na internet, não é de um bolsonarista extremado de rede social. É do general do Exército Brasileiro, Carlos Alberto Santos Cruz.

Santos Cruz não teve a carreira militar bloqueada sob as gestões do partido do personagem que ele reputava representar a ditadura, o fascismo, o nazismo e o racismo. Também não consta que, mediante algum exame de consciência, tenha oferecido qualquer tipo de resistência às sucessivas promoções que, naquela época, lhe conduziram ao topo da carreira.

Entre o primeiro dia do governo Lula, em 2003, e a data do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, Santos Cruz foi comandante da 13ª Brigada de Infantaria Motorizada, depois subiu para comandante da 2ª Divisão do Exército e subcomandante de Operações Terrestres do Exército.

Sob os governos petistas, foi designado para comandar duas missões internacionais, algumas das posições de maior prestígio no meio militar. Chefiou milhares de homens de 19 países na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti e depois comandou a Força de Paz na Missão de Estabilização da República Democrática do Congo.

Concluída a eleição de 2018, o general Santos Cruz foi nomeado ministro-chefe da Secretaria de Governo do vitorioso Bolsonaro, aquele para quem ele pediu voto. Insultado no YouTube pelo escritor Olavo de Carvalho e bombardeado nos bastidores pelo vereador Carlos Bolsonaro, foi demitido antes que o novo governo completasse seis meses.

Na internet, tudo é eterno.

Outro vídeo gravado um pouco antes da eleição de 2018 tem o também general Ajax Pinheiro como protagonista.

“Essa eleição do dia 28 não é uma eleição como outra qualquer. Ela é diferenciada. O principal componente que nós vamos agora nos confrontar é a ideologia”, explica. “Eles [os petistas] voltam com sede de vingança. Se eleitos, nós do Exército seremos as principais vítimas”, prossegue. “Não tenham dúvida. Se voltarem ao poder, eles farão, tentarão fazer, o que a sua ideologia fez em países como a Venezuela.”

Logo após associar o PT ao comunismo, general Ajax sustenta que os institutos de pesquisa estavam manipulando os resultados para influenciar o eleitorado contra Bolsonaro.

Na parte final de sua pregação, sugere que Haddad também seja esfaqueado por Adélio Bispo de Oliveira. “O candidato fantoche, o boneco de ventríloquo, disse que gostaria de participar de um debate com Bolsonaro na enfermaria. Porque os médicos vetaram a participação do Bolsonaro em debates. Eu sugeriria ao fantoche Haddad que, antes de ir para a enfermaria, passasse na cela do Adélio, o estripador esquerdista, e pedisse que ele lhe desse o mesmo tratamento que deu ao Bolsonaro. E aí o Haddad, após perder alguns litros de sangue e recuperado, iria para a enfermaria e os dois debateriam em condições de igualdade.”

O próprio Ajax lista no vídeo suas credenciais militares. Foi comandante de Infantaria de Selva na Amazônia, das tropas na tríplice fronteira e da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Foi diretor de Educação Superior Militar do Exército e também comandante das no Haiti (“Eu fui o último force commander da missão”, diz).

Santos Cruz e Ajax eram recém-saídos da ativa quando fizeram essas declarações. Assim como da reserva era o também general Eduardo Villas-Bôas quando publicou o famoso tuíte-ameaça ao STF antes do julgamento do habeas corpus que poderia antecipar a saída de Lula da prisão. Mas os vídeos divulgados por eles em 2018 não se prendiam a isso. Ajax se apresenta no início da gravação dizendo ser “o general Ajax”.

Ainda que parte grande dos militares mantenha o apoio a Bolsonaro, o clima na comunidade de fardados mudou bastante após três anos de gestão. Hoje, Santos Cruz afirma que Bolsonaro é despreparado e dado à “sem-vergonhice”. Dias atrás, o comandante da Força Aérea Brasileira (FAB), Carlos de Almeida Baptista Junior, achou por bem deixar publicamente registrado que irá prestar continência a Lula caso o petista retorne à Presidência.

A mudança de tom em relação a Bolsonaro e ao PT ocorre ainda durante um governo que tem centenas de militares espalhados pela Esplanada dos Ministérios, na presidência de estatais, em conselhos de empresas públicas, em agências, autarquias e milhares de outros postos civis bem remunerados da administração pública.

Houve uma nota assinada pelo ministro da Defesa, o general Braga Netto, e pelos três comandantes das Forças Armadas atacando a CPI da covid. Houve uma outra nota de Braga Netto tentando legitimar a suspeitíssima campanha de Bolsonaro pelo voto impresso adotando como natural a expressão bolsonarista “voto eletrônico auditável”.

Houve o general Pazuello, na época da ativa, no comando do Ministério da Saúde. E também no palanque com Bolsonaro.

Dias atrás, o general de divisão da reserva Otávio do Rêgo Barros, ex-porta-voz de Bolsonaro, publicou um artigo no jornal “O Globo” tentado dissociar as Forças Armadas do que chama de “erros grosseiros” de Bolsonaro. “Por mais influência que o estamento militar detivesse junto à sociedade, não teria condições, nem pretensão, de orientar milhões de escolhas”, escreveu.

Se Lula realmente vencer, talvez não seja fácil para os militares estabelecerem uma relação fluida com o novo governo. Mas colossalmente mais difícil, quiçá impossível, será tentar apagar os rastros de entusiasmo, participação e responsabilidade no governo Bolsonaro.

Querem apagar a história do Brasil

Um país pode ser analisado pela maneira como lida com o seu passado. Se dependesse do governo atual, a memória da ditadura de 1964 já teria sido sumariamente apagada, em linha com o queixume do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV): "Foi uma facada nas costas".

O que assusta agora, em mais uma tentativa de eliminação do registro histórico, é sua origem em uma decisão judicial. O juiz federal Hélio Sílvio Ourém Campos, de Pernambuco, determinou que sejam cobertas por uma tarja todas as menções ao nome de Olinto de Souza Ferraz no relatório da CNV, sob a guarda do Arquivo Nacional, instituição quase bicentenária, tesouro da nossa memória.


Coronel da PM, Ferraz dirigia a Casa de Detenção do Recife quando o militante de oposição à ditadura Amaro Luiz de Carvalho foi morto, no cárcere, sob custódia do Estado brasileiro, conforme investigação da CNV. A sentença determinando o apagamento atendeu a um pedido dos filhos do militar.

A ordem judicial estabelece precedente de enorme gravidade. O relatório da CNV é um documento do Estado brasileiro, que trata da memória coletiva e, portanto, não pode ser mutilado de acordo com conveniências particulares. Nem pelo governo nem por decisão judicial, que, aliás, afronta leis vigentes. Importante lembrar que a CNV fez um trabalho de reconstituição histórica, sem o poder de punir qualquer criminoso que tenha agido em nome do Estado.

A Lei de Anistia, de 1979, aprovada ainda em regime de exceção, estendeu um manto de proteção que até hoje beneficia assassinos e torturadores bestiais, livrando-os do banco dos réus. É o contrário do que fizeram outros países, como Argentina e Chile. A esse respeito, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago, é uma aula dolorosa, mas necessária, de como se olhar no espelho por mais tenebroso que seja o reflexo. Para isso, contudo, é preciso coragem.

Pensamento do Dia

 


A 'liberdade de imprensa' de Bolsonaro

Na solenidade de reinício dos trabalhos do Congresso Nacional, o presidente Jair Bolsonaro fez um rápido resumo, nos 14 minutos de discurso, do que seu governo realizou neste ano. Jogou para sua plateia, forneceu argumentos positivos para seus seguidores e enumerou obras espalhadas por todo o país.

No entanto, a conclusão de sua fala teve outro objetivo, diferente do que havia dito antes: ‘os senhores nunca me verão pedir pela regulamentação da mídia e da internet. Eu espero que isso não seja regulamentado por qualquer outro Poder. A nossa liberdade acima de tudo’ disse, de improviso.

Alguma razão Bolsonaro tem para fazer apelo deste tamanho aos parlamentares. O primeiro é produzir contraponto ao discurso das lideranças do PT no sentido de que é necessário criar o que chamam de ‘controle social da mídia’. Trata-se de maneira disfarçada de controlar o noticiário sem criar um departamento de censura.


Em alguns países europeus, os sindicatos de jornalistas têm o poder de avaliar a pauta de reportagens de jornais, revistas e televisões. Esses comitês julgam se é ou não oportuna determinada reportagem. Os sindicatos de jornalistas, naturalmente controlados pelas centrais sindicais, exercem esse poder.

A segunda razão, tão ou mais importante que a primeira, é a existência da rede social chamada Telegram. Criada na Rússia, sediada em Dubai, a empresa não possui escritório ou funcionário responsável no Brasil. Não dá atenção para as autoridades brasileiras. Aliás, a direção da empresa se vangloria de não atender a pedidos de governos, nem admitir qualquer tipo de regulamentação.

As outras redes sociais largamente utilizadas no Brasil, como Google, Instagram, Facebook, Twitter, atendem às orientações do governo brasileiro. Mantêm no Brasil seus respectivos escritórios de representação e funcionários responsáveis para interagir com os poderes da República.

Há uma convivência bastante efetiva entre as partes. Por essa razão, volta e meia, Bolsonaro, filhos, admiradores e seguidores são suspensos das redes por decisão das próprias empresas. O ministro Alexandre de Moraes, em agosto do ano passado, ordenou que uma publicação de Bolsonaro sobre a vulnerabilidade da urna eletrônica brasileira fosse apagada nas redes sociais.

As redes, digamos, tradicionais derrubaram o conteúdo e cumpriram a decisão do ministro. O Telegram não deu resposta, não apagou o conteúdo até hoje e se mantem distante das solicitações do Judiciário brasileiro. Em bom português, não dá a menor bola para as autoridades brasileiras.

É uma questão difícil porque a instituição está sediada no exterior. Não há como submetê-la às leis brasileiras. E qualquer pessoa que disponha de computador, ou aparelho celular, conectado à internet poderá fazer a conexão com a rede russa. Impedir de continuar transmitindo em português é, portanto, muito difícil. A não ser que seja adotada no Brasil solução parecida com a chinesa.

Os chineses só têm acesso às redes sociais próprias. Há equivalente chinês para Instagram, Facebook e Twitter. O governo de Pequim mantém em funcionamento, 24 horas por dia, um gigantesco firewall, que impede qualquer transmissão vinda do exterior. Difícil pensar em algo semelhante instalado no Brasil.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, enviou ofício ao presidente do Telegram com objetivo de formalizar cooperação para combater a desinformação. Não recebeu nenhuma resposta. Neste momento a questão deixa de ter tinturas jurídicas, ou técnicas, para ganhar proporções eleitorais.

Quem entende do assunto garante que se o Telegram continuar a agir sem qualquer restrição para divulgar fake news, a candidatura de Bolsonaro a reeleição ganhará maior impulso. Segundo os especialistas, a participação da rede russa na eleição brasileira poderá colocar o atual presidente no segundo turno. Sem fakenews, Bolsonaro perde e abre espaço para Sergio Moro.

A questão é de cunho eleitoral. A estratégia de campanha do atual presidente, imaginada pelo filho apelidado de Carluxo, é baseada na farta distribuição de boatos e notícias falsas. O objetivo é destruir o adversário, demolir reputações, zombar de realizações, humilhar contendores e exaltar, com todo o tipo de inverdade, o candidato à reeleição.

E tudo isso de maneira repetida, multiplicada pela ação dos robôs, para que a mentira replicada mil vezes se transforme em verdade. Os ministros do TSE perceberam o perigo que ronda as próximas eleições. O presidente quer garantir seu espaço. Mesmo que se transforme na grande ironia: Bolsonaro, o defensor da liberdade de imprensa.

Filha do intestino coletivo

A paranoia é uma propriedade sem renda. Nenhuma alquimia, nenhum deus, nenhum homem, a poderá julgar. Fica indiferente aos juízos. É um produto. Saiu de um ventre. Um imenso ventre colectivo
João Palma-Ferreira, "Diário II"

Como o Brasil chegou ao atual cenário de fome?

É um problema mundial, agravado pelos impactos socioeconômicos da pandemia de covid-19: a fome aumentou no mundo. Mas, no Brasil, apontam números e especialistas, a situação é particularmente grave, com o aumento da pobreza e a diminuição da comida no prato sendo um fenômeno que começou bem antes da atual crise sanitária.

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), divulgado em 2021, indicou que 55,2% dos lares brasileiros vivenciavam um cenário de insegurança alimentar — um aumento de 54% em relação a 2018, quando esse percentual era de 36,7%.

Ou seja: 116,8 milhões de brasileiros não têm acesso pleno e permanente a comida.

A ideia de segurança alimentar foi cunhada logo após a Primeira Guerra Mundial. Atualmente, classifica-se como insegurança alimentar leve quando há indisponibilidade de algum alimento básico; moderada quando a pouca disponibilidade ou variedade afeta o indivíduo do ponto de vista nutricional; e grave quando não é possível fazer nenhuma refeição durante um dia ou mais.

De acordo com o levantamento da Penssan, 9% da população brasileira — 19,1 milhões de habitantes — vivenciam essa situação mais grave.


Para o economista Renato Maluf, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e coordenador da Rede Penssan, "a pandemia de covid-19 agravou esse quadro, mas não é sua causa primeira".

Ele pontua como início desse momento de retorno à fome e à insegurança alimentar a crise econômica iniciada sete anos atrás e a crise política com o processo de impeachment do governo Dilma Rousseff. "Deles [desses dois episódios] resultaram comprometimento do acesso aos alimentos em razão do desemprego crescente, precarização do trabalho, baixa remuneração, retirada de direitos sociais e o progressivo desmonte de políticas públicas", enumera.

Um levantamento da Penssan a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) corrobora essa situação. Em 2013, 77,1% dos lares brasileiros estavam em situação de segurança alimentar — um recorde da série histórica. Em 2018, o percentual já havia caído para 63,3% — um recuo para patamar semelhante ao de 2004. E a curva segue em movimento descendente.

A nutricionista Sandra Chaves, professora na Universidade Federal da Bahia e vice-coordenadora da Penssan, afirma que "a pandemia revelou a fome que já se apresentava para parcelas significativas da população brasileira".

Ela analisa que o fenômeno foi causado por "um conjunto de ações que anunciavam piora nas condições de vida dos brasileiros". "Reforma trabalhista, piorando a empregabilidade, reduzindo direitos sociais vinculados ao trabalho, gerando desemprego e precarização do trabalho com redução de renda; paralisia de políticas sociais relevantes para o país", cita a professora.

O economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social, concorda que "a extrema pobreza baseada em renda aumentou em todos os anos [mais recentes]" e diz que "isto se deveu à grande recessão brasileira, aumento de desigualdade de renda do trabalho e enxugamento de programas sociais, tipo Bolsa Familia". "A pandemia é uma etapa nesse processo", comenta.

Dados da FGV Social mostram que em 2019 11% dos brasileiros viviam em situação de pobreza — ou seja, com pouco mais de R$ 260 por mês. Este valor considera um salário mínimo dividido por 4,6 pessoas — o tamanho médio de famílias pobres brasileiras.

Em agosto de 2020, o chamado "auge do auxílio emergencial" por conta da pandemia, essa pobreza extrema havia caído para 4,8% da população. Dados mais recentes, de novembro de 2021, indicam um aumento para níveis superiores ao pré-pandemia: 13% dos brasileiros estão nesta situação de miséria.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), a insegurança alimentar grave chegou a patamares perigosamente altos depois da pandemia de covid-19. Dados do Programa Mundial de Alimentos divulgados em novembro apontam que 45 milhões de pessoas estão passando fome em 43 países do mundo — em 2019, eram 27 milhões.

A ONU pede para que governos e sociedades civis se unam a fim de mitigar esse cenário, insistindo em uma meta antiga de que a fome seja erradicada do planeta até 2030.

Para o economista Neri, está claro que o aumento da fome no Brasil ocorre em níveis mais intensos do que em outros países. Ele atenta para o fato de que, segundo pesquisa elaborada pela FGV Social a partir de dados da Gallup World Poll, se 17% dos brasileiros declaravam não ter dinheiro para comprar comida em 2014, quando o Brasil saiu do chamado Mapa da Fome da ONU, o número atual é de 28%. O retorno do país ao rol da insegurança alimentar da ONU se deu em 2018.

De acordo com o levantamento da FGV Social, em 2014, o Brasil ocupava a 36ª posição em um ranking de insegurança alimentar com 145 países, e agora está na 80ª. Para Neri, essa queda do país no ranking é "inaceitável na chamada 'fazenda do mundo'".

O fato de a produção de alimentos brasileira aumentar ao mesmo tempo que a comida falta no prato é um contrassenso que não escapa da análise do sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

"A fome que voltou a infelicitar os brasileiros, a ponto de se tornar um problema de saúde publica, não é resultado da pandemia, mas de políticas deliberadas que inviabilizam a agricultura familiar e subordinam a produção do campo aos interesses do agronegócio", explica ele.

"Enquanto o desemprego explodia e a fome atingia pouco mais de 19 milhões de pessoas [segundo a rede Penssa], o PIB do agronegócio conheceu uma expansão recorde de 24,31% em 2020 [conforme dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil e do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada]", compara o sociólogo.

Segundo Mendes, "não sofremos com falta de produção, mas com o abandono dos brasileiros". "Não houve interesse por parte do governo em proteger os vulneráveis e combater a fome", afirma.

Ele ressalta que o que ocorreu foi uma série de perdas de "proteções dos trabalhadores e dos humildes". "Desregulamentações, ausência de políticas e de planejamento, defasagem na cobertura do Bolsa Família. Isso, somado ao desemprego crescente e a diminuição da renda, trouxeram ao cenário atual", enumera.

Para os especialistas, a solução para esse problema passa por um conjunto de medidas — "políticas públicas que implicam em trabalho-renda-produção de alimentos-acesso aos alimentos", define a nutricionista Chaves.

O Auxílio Brasil, programa recém-criado pelo governo federal, nesse sentido ajuda como algo emergencial. "Qualquer programa emergencial de transferência de renda pode ser um paliativo emergencial em momentos de crise como este em que vivemos", ressalta Chaves "As famílias precisam ter alguma segurança de que poderão alimentar seus filhos neste momento difícil."

Neri define o programa como "simplista" porque "complexifica as condicionalidades do Bolsa Família", "anda para trás na focalização e estabilidade" e "tropeça nos efeitos de longo prazo".

"Tenta ser um novo auxílio emergencial e ao mesmo tempo mudar a estrutura de benefícios. Gera muita confusão", argumenta. "Pode funcionar eleitoralmente mas não leva em conta o tamanho nem o grau de pobreza da família. A política social perde foco e durabilidade e ‘ganha' oportunismo eleitoral."

Maluf compara os auxílios criados durante a pandemia. "Tanto o auxílio emergencial quanto o Auxílio Brasil foram importantes pela transferência de renda, que amenizou a grave situação de milhões de famílias, porém foram mal desenhados e não tiveram a amplitude necessária", contextualiza.

"O auxílio emergencial teve seu valor aumentado pelo Congresso, a contragosto do governo, teve curta duração e foi interrompido por não ter previsão orçamentária suficiente", prossegue ele.

"O Auxílio Brasil pretende ser um programa sem o improviso do anterior, mas é igualmente mal desenhado, não pode ser considerado propriamente uma política social e não consegue disfarçar o propósito eleitoreiro ao substituir o programa exitoso, o Bolsa Família, por uma marca própria."

Era da Mentira

Nos últimos dias temos escutado muitas mentiras. Tem de todo tipo: mentira deslavada, ambiguidade intencional, retirada de contexto, projeção, inversão. Como são muitas e concorrentes, disputam hegemonia. Um nome educado para isso é “disputa de narrativas”, no grande mercado simbólico que rege o mundo. Ganha quem souber mentir mais tempo para mais gente.

Roubar no jogo é o novo jogo. Alterar os dados, as imagens, os fatos? Pode. Ocultar informações? Pode. Invadir domínios públicos e privados? Pode. Roubar dados? Deve. Afinal, guerra é guerra e lucro é lucro. Lentamente naturalizamos o uso de tais estratégias.


Já adianto o final da coluna: precisamos criar um campo específico do saber chamado mentirologia. Temos que conhecer de forma objetiva as estratégias dessa velha arte, assim como as estruturas subjetivas aí atreladas. Vejamos alguns cases recentes.

O Intelectual. Ele queria nos mostrar que vítimas também são algozes, retomando o intrincado problema da dominação. Foi soltando um fio de exemplos justapostos para demonstrar sua tese, usando invariavelmente a metodologia metonímica de tomar a parte pelo todo (uma parte mínima, minúscula). Um dos seus argumentos: vejam Abdias, uma referência do movimento negro no Brasil e no mundo, na verdade fez parte de um movimento autoritário e, por que não dizer, fascista. Abdias viveu quase um século, fazendo de sua vida uma grande obra, com todos os elementos da clássica “trajetória do herói” (produtores do Brasil, #ficaadica). Participou durante poucos meses —entre os mais de 1.100 que viveu— de um movimento que se dizia “integrador” e que lhe interessou por pretender ser crítico do imperialismo e valorizar o Brasil e sua cultura. Abdias logo percebeu o embuste e saiu para fazer as outras e mais interessantes coisas que realizou em 99% do seu tempo de vida. Por que Antonio alterou a história, inclusive mensurável e documentada? Precisava desesperadamente preservar seu desenho de mundo para conseguir estar nele?

Será que a gente sempre sabe quando e quanto mente? Pintar um quadro tão falseado da realidade é mentir. E não precisa nenhum Platão expulsar artista da pólis e criticar a mimese para gente entender isso.

Tem o Juiz. Ele faz mágica e joga em todas as posições: acusa, defende, julga. Compra e vende. Compra e vende informação, ganha (muito) dinheiro. Trama trama e esconde-esconde. Uma parte da arquibancada tenta investigar, a outra tenta acreditar. Na boa-fé ou na loucura da autoilusão, o que normalmente dá na mesma e é sempre uma má ideia de fé. Aliás, fé não é uma boa ideia.

O case presidente ainda vai render trabalho final de curso e mil doutorados em mentirologia. Você frauda e vence o jogo dizendo que o outro frauda (rouba). Depois você começa a perder, então frauda (por ex., o TSE) e diz que o outro frauda (por ex., a urna). Espiral satânica.

O último case é o mais curioso: o personagem ficou famoso por denunciar fetos em refrigerantes e debochar de vírus, vacinas e cigarros. Morreu, coitado. E sim, investigar a gigantesca indústria química contemporânea é um trabalho necessário, de preferência chegando do lado certo da história (confesso: tive pena do idiota sabichão que escolheu ser contra a vacina e a favor do cigarro). Mas minha pergunta hoje é outra: como alguém que se diz astrólogo, e portanto estuda um pouco dos astros, pode afirmar que a gente não sabe porra nenhuma então por que caralho a Terra não pode ser plana? No século 3 a.C., Eratóstenes conseguiu calcular, com varetas fincadas em Siena e Alexandria, a circunferência da Terra. Sim, há 2.200 anos, um grego calculou essa medida, com um erro mínimo, a partir da premissa de um planeta redondo habitado por animais racionais.

O que me assusta, na verdade, é que entramos numa era em que fica cada vez mais tênue a borda entre a mentira, a pilantragem e a loucura.