quinta-feira, 23 de maio de 2019

Seis por meia dúzia

Dá a sensação de que nós trocamos uma quadrilha vermelha por uma seita direitista, interessada em atacar o globalismo e em fazer uma Revolução Cultural ao contrário, para combater o que havia antes
Xico Graziano

Maluquice lógica

Jair Bolsonaro é um personagem político dos mais transparentes. Não deixa dúvidas sobre a maneira como percebe o mundo à sua volta – e as percepções mantidas pelos próprios personagens políticos (malucas ou não) são ferramentas úteis para entender as decisões que eles tomam. Bolsonaro se entende como escolhido por Deus para governar o Brasil. Missão que não está conseguindo cumprir, segundo admite, pois é vítima de um “sistema” que não se deixa moralizar, especialmente a esfera política.

Esse tipo de percepção explica a descrição que o presidente faz de compromissos políticos necessários em qualquer regime representativo democrático (como o brasileiro) como sendo “acertos” espúrios, sobretudo em relação ao Legislativo. E o faz colocar o “povo”, que Deus o encarregou de governar, como seu principal instrumento para quebrar de fora para dentro o “sistema” que tornou o País “ingovernável”. Maluca ou não, é uma sequência perfeitamente lógica.


Erros políticos ocorrem quando o personagem (no caso, Bolsonaro), conduzido por suas percepções, substitui estratégia por aspirações e acredita dispor de meios (pressão popular por meio de redes sociais, por exemplo) para atingir seus fins (controlar os poderes Legislativo e Judiciário). O chamado às ruas que o presidente implicitamente endossou é um desses erros políticos tão crassos a ponto de suscitar uma pergunta: será que não existiria por detrás uma forte jogada política?

Aparentemente, não. Esse chamado dividiu seus apoiadores e mesmo uma estrondosa manifestação popular no dia 26 não diminui – ao contrário, até amplia – as dificuldades de relacionamento do Executivo com o Legislativo. Menos que estrondosa, e ele sai enfraquecido diretamente. A não ser que Bolsonaro tenha no recôndito das reuniões de família pensado no impensável, qual seria o próximo passo para tentar “emparedar” um Legislativo que, de fato, avança – ajudado principalmente pela incompetência do governo – na direção de um “parlamentarismo branco”?

Visões messiânicas da própria atuação em geral impedem personagens políticos de amenizar relações conflituosas (como a atual entre Executivo e Legislativo), pois isso demandaria formação de consensos, e messiânicos tratam preferencialmente de impor a própria vontade, entendida ou não como divina. Enxergam uma “revolução conservadora” numa onda disruptiva de transformação composta por múltiplos elementos antagônicos, que se dedicam agora a disputar o poder entre si (alguém acha que desapareceu a luta entre “ideólogos” e a ala militar, por exemplo?).

Se é que alguma vez a teve, o governo Jair Bolsonaro está perdendo o sentido de urgência para o que realmente importa e, no final das contas, vai de fato definir seu sucesso ou fracasso. O rombo fiscal está se agravando, a economia está estagnada, o crescimento não veio ainda, a arrecadação ficou aquém, piorando dificuldades políticas, fechando opções de acomodação de interesses – tudo isso diante do grande quadro de sempre, caracterizado por infraestrutura precária (investimentos?), formação insuficiente de capital humano (produtividade?) e excessivo fechamento do País.

Percepções equivocadas ou fortemente distorcidas da realidade e do próprio papel conduzem personagem políticos a avaliações equivocadas das relações de força e de poder e, por consequência, ao erro. O problema é que não só o personagem em questão acaba sendo punido pelos fatos ou pagando um preço alto em termos de perda de capacidade de conduzir, liderar, governar. O País também.

A loucura não é normal

A canção Paciência, de Lenine, explica bem o momento em que vivemos. O Brasil não tem tempo a perder, mas Bolsonaro finge que é normal um presidente atentar contra a harmonia entre os três poderes ao divulgar em seu twitter mensagem com ataques ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal. Não satisfeito, repetiu a dose três dias depois, culpando a classe política pelos males do Brasil.


Nero tocava harpa enquanto Roma pegava fogo. Jair Bolsonaro usa o twitter para agredir as instituições da República, enquanto a economia vai ladeira abaixo e o otimismo se esvai. Em menos de cinco meses ofendeu as Forças Armadas, o Congresso, as universidades, a Suprema Corte e os milhares e milhares de brasileiros a quem chamou de “idiotas úteis”.

Por trás da aparente loucura, há lógica no ataque das centúrias bolsonaristas à sociedade organizada. A guerra contra o establishment, da qual o presidente é o maior cruzado, tem por objetivo substituir a democracia representativa por um modelo cesarista. Nele, o sistema centrado na autoridade de um chefe canonizado tem a missão de “regenerar a sociedade”.

O “Ave César” é estimulado pelo próprio presidente. Seu ministro de Relações Exteriores; o comparou a Deus. Nessa segunda, nosso César divulgou em seu facebook um vídeo de um obscuro pastor congolês, no qual o religioso diz que Bolsonaro, assim como Ciro, rei da Pérsia, foi estabelecido por Deus. Como só o demônio se opõe a Deus, o pastor aconselha os brasileiros a não se oporem ao ungido.

A insuspeita Janaina Pascoal, deputada eleita com dois milhões de votos, chegou a suspeitar da sanidade mental do mito, por ter divulgado ovídeo do pastor. A musa do impeachment acena sair do PSL por não achar normal quem estar no governo convocar manifestações, em vez de governar.

De fato, não vivemos tempos normais. O bolsonarismo já inventou o “governo ingovernável” e o protesto a favor. Nesse clima de radicalização, convocou manifestações para o próximo dia 26, com o objetivo de emparedar o Congresso e o Poder Judiciário. Provocou rachaduras na sua base social. Sua ala mais moderada se recusa participar da manifestação chapa branca, por considerá-la um tiro no pé, ou, quem sabe, na cabeça.

Até os quartéis estão rachados. De coronel para cima, os oficiais são contrários à convocação de atos. E de major para baixo são favoráveis. Era o que nos faltava, o Clube Militar ser um dos autores da convocação dos atos pró Bolsonaro. Voltamos aos tempos do tenentismo ou à década de 50, quando o Clube Militar era centro de agitação política?

Diante das fissuras, os bolsonaristas mudaram de alvo. Agora dizem que as manifestações serão contra os partidos do “Centrão”. É mais uma estultice. Esses partidos têm quase a metade dos deputados federais. Estigmatizá-los é o caminho mais rápido para a inviabilização da Reforma da Previdência.

Esse é o ponto. Historicamente, toda vez que houve um estado beligerante entre o Executivo e o Congresso, o próprio presidente se deu mal e o país foi arrastado para grave crise institucional. Isto esteve presente nas crises de 1961, de 1964 e nos impeachments de Collor e Dilma.

Na queda de braço estabelecida, a resposta do Poder Legislativo à tentativa de emparedamento tende a ser a de subtrair o papel do Poder Executivo, estabelecendo uma espécie de “parlamentarismo branco”. Isto pode até ser positivo por destravar as reformas Previdenciária e Tributária, mas amplia a desarmonia entre os poderes constituídos, o que não é bom para a democracia.

Voltando à música de Lenine. Já passou da hora de Bolsonaro parar de fingir que a loucura é normal e começar a governar. Antes que a paciência dos brasileiros acabe.

Pensamento do Dia


Bolsonaro e o 'povo'

O presidente Jair Bolsonaro tem feito frequentes referências ao “povo” como guia de seu governo. “Quem tem que ser forte, dar o norte, é o povo”, disse Bolsonaro na segunda-feira passada, declarando-se “fiel” ao que vem do “povo”. Em outra ocasião, foi ainda mais enfático: escreveu que “quem deve ditar os rumos do País é o povo”, pois “assim são as democracias”. Cada vez mais questionado pelo modo caótico como governa e por seu comportamento hostil ao Congresso, ele vem atribuindo suas vicissitudes à ação de forças antipopulares que estariam sabotando seus esforços para modernizar o País. Segundo essa retórica, quem é contra Bolsonaro só pode ser contra o “povo”, pois o presidente nada mais faz que cumprir rigorosamente a vontade dos eleitores.

Em nome desse suposto desejo popular, Bolsonaro tem se dedicado com afinco a degradar a Presidência da República. E não é por ter vestido camisa falsificada de time de futebol e chinelos numa reunião de ministros nem por ter divulgado um vídeo pornográfico para criticar o carnaval – episódios grotescos que hoje, dado o conjunto da obra, soam apenas como anedotas. É, sim, por ter implodido todas as pontes com o Congresso por acreditar que os brasileiros odeiam os políticos; é por sabotar as reformas que seu próprio governo encaminhou; é por ter imposto ao País uma política externa ditada por um ex-astrólogo que mora nos Estados Unidos; é por ter arruinado o Ministério da Educação submetendo-o sistematicamente a baboseiras ideológicas; é por confundir segurança pública com bangue-bangue. A lista é longa – e, pasmem, estamos apenas no quinto mês de governo.


“Não nasci para ser presidente”, já chegou a dizer Bolsonaro, numa tentativa de igualar-se ao mais comum de seus eleitores. O presidente seria então o homem simples no exercício direto do poder – razão pela qual ele acredita que suas decisões seriam exatamente aquelas que qualquer um de seus eleitores tomaria se estivesse em seu lugar. Ocorre que isso só é verdade nos desvarios do presidente.

Bolsonaro foi eleito como razão direta do cansaço do eleitorado com o lulopetismo, que impôs mais de uma década de imposturas e inépcia administrativa ao País, atirando-o na sua mais longa e dolorosa crise econômica, política e moral. O eleitor esperava que o novo presidente pudesse recolocar o Brasil no rumo do desenvolvimento, recobrando a sanidade fiscal; esperava que o eleito restabelecesse com o Congresso relações genuinamente republicanas, tendo como norte a costura de consensos com vista ao bem comum; esperava que o Ministério fosse constituído pelos melhores quadros em cada área, e não mais por apadrinhados políticos; e esperava que o interesse nacional, e não mais a ideologia, pautasse a política externa. Ou seja, o contrário de tudo o que se viu ao longo do mandarinato lulopetista.

Bolsonaro venceu a eleição justamente porque soube capitalizar esse fastio com o PT, mas seu governo faz, com sinais trocados, exatamente o que o PT fazia e que foi rejeitado pelo povo – sem aspas – nas urnas. Eleito na onda da ojeriza à corrupção, Bolsonaro e seus filhos até agora não foram capazes de explicar as relações esquisitas entre a família e um modesto ex-funcionário de gabinete que movimentava quantias vultosas em sua conta, preferindo atacar as instituições encarregadas de investigar o caso; eleito para modernizar a administração, Bolsonaro escolheu um Ministério majoritariamente neófito e amador; eleito para reverter a crise econômica legada pelo lulopetismo, Bolsonaro só faz ampliá-la graças às incertezas geradas pela sua gestão destrambelhada; eleito para fazer as reformas de que o País tanto precisa, Bolsonaro parece empenhado em desmoralizá-las; eleito para retirar o viés ideológico da educação e da política externa, Bolsonaro impôs nessas áreas o mais retrógrado pensamento autoritário; eleito para governar para todos, Bolsonaro estimula o ódio contra quem não comunga de sua ideologia, ampliando a cisão entre “nós” e “eles” que tão mal vem fazendo ao País desde a era petista.

Em resumo, Bolsonaro faz o oposto do que o povo esperava que ele fizesse, e não à toa seu governo se escora cada vez mais nos devotos da seita bolsonarista. É preciso muita fé para acreditar que isso pode dar em boa coisa.
Editorial - O Estado de S. Paulo

Medo do asfalto amolece o governo e o centrão

Comparadas com as multidões que foram às ruas na célebre jornada de 2013, as passeatas de estudantes e professores contra o facão do Ministério da Educação foram pequenas. Não se sabe que tamanho terão os atos pró-Bolsonaro do próximo domingo. Mas o simples ressurgimento do nariz daquilo que Juscelino Kubitschek chamava de "o monstro" já foi suficiente para amedrontar parte do centrão e o pedaço do governo pertencente à cota de Olavo de Carvalho.

Alvo das manifestações estudantis, o governo liberou parte de sua reserva orçamentária para umedecer o orçamento da Educação. Coisa de R$ 1,587 bilhão. Não resolve os problemas do setor. Mas atenua a impressão de descaso.

Na alça de mira dos protestos que estão por vir, o centrão abriu a guarda para permitir a votação da medida provisória que reformou a estrutura dos ministérios. Ainda não se sabe se Sergio Moro levará o Coaf. Mas já não há o risco de ressurreição do organograma de Michel Temer, com 29 ministérios em vez de 22.

Na definição de Juscelino, o monstro é a opinião pública. Normalmente, manifesta-se por meio dos personagens que elege para representá-lo. De raro em raro, a imprensa consegue interpretar-lhe os desejos. Mas em situações de crise, o monstro dispensa intermediários. Faz o asfalto roncar.

O monstro mobilizou-se pelas diretas. Derrubou um regime. Pôs para correr dois presidentes da República. Avalizou o esforço anticorrupção, abrindo as portas das cadeias para a oligarquia política e empresarial. Agora, revela-se impaciente com a incapacidade do Poder de entregar responsabilidade, estabilidade, probidade e empregos. Por enquanto, a crise está nos gabinetes. Mas o monstro informa que ela pode voltar definitivamente para as ruas. Daí o medo.

Vergonhas humanas

Façam o que fizerem os opressores que sobraram desse passado negro, e louvem-nos os fanáticos que quiserem, o futuro não será deles. Nenhum terá na História uma cadeira confortável. Todos serão execrados como vergonhas humanas. Ou inteiramente esquecidos, o que é bem melhor para todos nós
Miguel Torga, Diário

A chance perdida dos progressistas

Este poderia ser o momento da esquerda. Não da esquerda que defende o opressor Nicolás Maduro. Nem da esquerda intelectual que se esqueceu de falar a língua das favelas (e por consequência perde as eleições pela prefeitura do Rio, por exemplo). Ou da esquerda que acredita que o Brasil não deveria se abrir economicamente e não precisa de uma reforma da Previdência – naturalmente não daquela proposta pelo ministro Paulo Guedes. Enfim: não da esquerda que prefere ficar nas trincheiras da política partidária e acha que não precisa mudar e que não tem parte da culpa pela situação atual.

O momento é grave. O governo é pior do que se imaginava. É um desastre anunciado. Parece o Titanic rumo ao iceberg. Todo o Brasil está a bordo – os ricos dançando no salão, os pobres presos nos andares inferiores. E o capitão não está olhando para o mar, mas fazendo piadas sobre o tamanho do pênis dos asiáticos. Bem que poderia ser uma paródia.




Cada dia fica mais evidente que Bolsonaro nunca soube por que queria comandar o país. No seu primeiro discurso dirigido ao povo, disse que queria acabar com a esquerda. Mas isso não é um programa de governo, e sim uma obsessão pessoal. Agora, Bolsonaro está se vingando contra tudo e contra todos que ele acredita serem de esquerda: os povos indígenas, a floresta, o agente do Ibama que o multou, o horário de verão e os radares de limite de velocidade. Em primeiro lugar, porém, está: a educação. Parece que o presidente se sente ameaçado por pessoas cultas e letradas. Daí o ataque neomedieval às universidades. Não é coincidência que Bolsonaro tenha nomeado como ministro Abraham Weintraub, um homem que confunde kafta com Kafka.

A estupidez, já disse alguém inteligente, não reconhece competência, experiência, conhecimento, história ou mesmo a verdade. Ela cria seu próprio mundo autorreferencial. Ela é como o motorista que está trafegando na contramão e repreende os "idiotas" que estão vindo em sua direção. Ou como o astrólogo que se considera um filósofo. O colunista Reinaldo Azevedo escreveu recentemente sobre o governo Bolsonaro: "A mistura de ignorância com poder é sempre perigosa porque torna as pessoas arrogantes e destrutivas".

Embora atualmente não pareça, tenho certeza de que a maioria dos brasileiros gosta mais de ideias construtivas do que bocas cínicas; prefere a proteção do meio ambiente à destruição ambiental, a educação à ignorância, a modéstia à prepotência. Prefere também tratar o próximo com solidariedade em vez de hostilidade. Seria o momento para a esquerda fazer uma oferta nova e progressista; o momento de buscar uma nova linguagem que vá mais além de #lulalivre.

Os protestos estudantis recentes mostraram que uma boa parte da população está acordando. Rejeita a campanha patológica de vingança e destruição adotada por Bolsonaro. Há uma necessidade de algo novo.

Os últimos grandes protestos de jovens brasileiros ocorreram em 2013. Eles não estavam vinculados a nenhum partido ou sindicato. Naquela época, as manifestações foram alvo de ataques da polícia e de uma campanha de difamação da mídia. O espírito de despertar foi sistematicamente destruído. E ficou pior: o que tinha começado de forma progressista e positiva se transformou em reacionário e negativo em 2015, tendo como desfecho o impeachment de Dilma Rousseff, cujo resultado final é Bolsonaro.

O fracasso de 2013 se deveu também ao fato de que não houve um movimento coerente nem surgiram personalidades carismáticas capazes de dar direção e voz ao protesto. Pois essa é a única maneira de cativar as pessoas com novas ideias: elas precisam ser convencidas por outras pessoas em quem confiam. Pessoas com paixão, credibilidade, coragem e vontade de mudar o mundo para melhor.

Faz parte da tragédia do Brasil que essas personalidades atualmente pareçam não existir no espectro progressista. Rejeita-se apaixonadamente Bolsonaro. Mas não se formulam as próprias exigências e ideias. E, assim, o Titanic continua navegando em direção ao iceberg, com o capitão gritando: "a todo vapor!"
Philipp Lichterbeck

Luz no Brasil


Militares e divisões seguram o flerte autogolpista de Bolsonaro

O candidato Jair Bolsonaro elegeu-se investido de uma aura de inflexibilidade em relação à sua agenda, e conquistou uma gorda fatia do eleitorado de centro e centro-direita que não topava encarar mais quatro anos de PT com tal imagem.

Já o presidente Jair Bolsonaro tem reiterado uma saudável frouxidão ao ser confrontado com obstáculos, após cada um de seus arroubos. Toda aquela coragem indômita das redes sociais e pronunciamentos espontâneos não funciona muito bem no mundo real.

O exemplo do ainda inconcluso episódio do flerte autogolpista não poderia ser mais didático, e deve estar dando um nó na cabeça de seus fiéis mais fanáticos.

Há meses o núcleo duro do bolsonarismo, ao qual o presidente deve boa parte do que tem de aprovação, repete os mantras jacobinos de sua campanha. Resumindo, pressionar o Congresso e o Judiciário com massas nas ruas, quebrar o sistema e tal.

O elemento mais radical, que pede fechamento de instituições, está lá também —Bolsonaro não defendeu nada disso, mas nem tampouco condenou tais apoiadores.

Como em tudo nessa tragicomédia, o Twitter está aí por testemunha. O enredo olavista que desembocou na postagem de Bolsonaro na sexta teve uma de suas primeiras páginas públicas escritas pelo assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, em 22 de março. Disse ele na rede social que era preciso “mostrar que o povo manda no país”.

“Mostrar” àqueles que classificou de adversários da “ala antiestablishment” do governo, ou seja, todo mundo. Aliás, de tanto acreditar numa conspiração marxista cultural mundial, a turma mimetiza delírios esquerdistas: troque o termo por “vanguarda do proletariado”, por exemplo.

Em 9 de maio, foi a vez do maior megafone virtual do bolsonarismo, o filho presidencial Carlos, reclamar das derrotas do pai no Congresso e dizer: “População, respeitosamente, acordemos!”. Noves fora sua gramática peculiar e o delírio de grandeza, fermentava ali o autogolpismo em estágio inicial abraçado enfim pelo presidente.

Abraçado e perigosamente amplificado com o apoio aos protestos pró-Bolsonaro do dia 26. O filho deputado, Eduardo, questionou por que criticavam o bolsonarismo se estudantes e a esquerda tinham ido à rua semana passada. Essa falta de noção acerca da instituição presidencial é um traço típico da primeira-família.

Uma concessão ao centrão ali, uma retribuição deles aqui, e o presidente parece ter jogado água no próprio chope ao anunciar que não participará do ato. Sempre pela onisciente voz do general Rêgo Barros, claro. Menos mal para o país que Bolsonaro exerça tal descompromisso com as próprias convicções, dado que até a um padre visionário andou recorrendo em suas postagens.

Novamente, foram os militares que operaram para segurar o chefe. Após perderem força relativa no embate recente com os olavistas, parecem ter recuperado capacidade de influenciar. O inédito sorriso do general Santos Cruz ao lado do inefável pastor Marco Feliciano sugere até algum tipo de acomodação.

Mas não foi só isso. A condenação por empresários, inclusive na nova classe que emergiu apoiando o candidato Bolsonaro, a perda de apoio da parte que se acha liberal de sua base e o racha explícito do grupo de WhatsApp que atende pelo nome de PSL ajudaram a modular a valentia presidencial. Até a próxima crise —se é que a atual realmente está em vias de acabar.</p>

A facilidade com que a situação escalou foi um lembrete sóbrio do novo normal em Brasília. Muita gente desassombrada, com farda ou não, já tomou nota do padrão.

'Pastora' dos bem-vivos

Não dá para viver de cadáveres
Damares Alves (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) questionou o trabalho de identificação de corpos pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos com ossadas da vala comum do cemitério de Perus (São Paulo)

Deixem Bolsonaro governar

É muito oportuna a manifestação convocada em favor do governo Bolsonaro. A palavra de ordem é ainda mais premente. Deixem o presidente governar. É evidente que há pessoas fazendo o que podem para impedir Bolsonaro de governar. E quem são essas pessoas? Em primeiro lugar, os três filhos do presidente, os que mais atrapalham e deveriam ser os primeiros a obedecer ao comando das ruas. Flávio, Eduardo e Carlos são os maiores estorvos, que imobilizam o governo desde o seu primeiro dia.


Flávio se viu envolvido em escândalo antes mesmo da posse. Por ser o mais diplomático dos três, era nele que estavam depositadas as poucas esperanças de entendimento do pai com o Congresso. A partir do episódio de desvio de dinheiro de funcionários de seu gabinete na Assembleia Legislativa e depois de conhecidas suas extraordinárias negociações imobiliárias, Flávio virou um problema, sumiu do plenário, e sua capacidade de interlocução desapareceu.

Carlos, o encrenqueiro da família, já no começo do governo implicou com um ministro e o demitiu. Era Gustavo Bebianno, o ministro de melhor trânsito com deputados e senadores, aliado do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Não poderia ter atrapalhado mais. Bolsonaro, que já tinha perdido a interlocução do filho Flávio, sem Bebianno ficou a pé no Congresso. E Carlos continua implicando com gente do governo. Basta fazer alguma sombra sobre o pai para atrair sua ira explícita.

Eduardo, o evangelista da turma, é o principal seguidor na família do eremita Olavo de Carvalho. Ambos também deveriam prestar atenção no brado dos manifestantes de domingo. Olavo é um elemento tão desagregador que conseguiu causar mal-estar até mesmo entre os primeiros aliados de Bolsonaro, os militares. É sua também a obra dupla no Ministério da Educação. Nomeou um colombiano, que chamou os brasileiros de ladrões canibais, e o seu sucessor, que em duas semanas de gestão já comprou briga com os principais agentes da área.

Olavo não deixa Bolsonaro governar. Os filhos do presidente não deixam o pai governar. Infernizam a vida do presidente, tiram seu foco, subtraem sua atenção, impedem que ele se movimente. E há outros. Parlamentares que deveriam ajudar a construir pontes para o Planalto se comportam como homens-bomba. O líder do governo, deputado Major Vitor Hugo, conseguiu ser excluído do grupo de interlocutores do presidente da Câmara ao sugerir que diálogo com Congresso se compra com sacos de dinheiro.

O pior é que eles não estão sozinhos. Quem mais atrapalha Bolsonaro é Jair Bolsonaro. No fundo, ele não governa porque não sabe governar. O resto é bobagem, discurso pobre que alimenta a militância radical. O Congresso quer afastar o presidente para continuar mamando nas tetas do governo; o Supremo não liga para o Brasil, e seus ministros só querem comer lagosta e beber champanhe; a imprensa trabalha contra porque é de esquerda. Nada mais do que retórica insana e esquizofrênica.

Ao contrário do enunciado, o Congresso vem convocando o presidente ao trabalho desde que as reformas foram enviadas para a apreciação dos parlamentares, no início do ano. Bolsonaro preferiu atacar. Acabou a velha política, sentenciou. Não disse como seria a nova, mas se negou a negociar. O resultado é uma magnífica desarticulação. A reforma da Previdência sairá, talvez menor, mas por obra e força do Congresso.

No caso do Supremo, pode-se eventualmente discordar de algumas decisões de ministros que, mesmo atendendo à lei, atropelam o senso comum. Mas não se pode negar sua essencialidade. Atacar o STF por causa de uma licitação de bebidas e comidas para serem servidas a convidados oficiais é ridículo e apequena o debate. Ou alguém acha que o cardápio é diferente no Palácio do Planalto ou no Itamaraty?

A imprensa, acusada de atrapalhar o governo por ter uma agenda de esquerda, é a mesma que foi chamada de golpista e fascista ao longo dos anos petistas. O papel da imprensa é informar. Diferentemente das redes sociais, informar sem viés. Por isso, aqueles que só querem notícias boas não se conformam com a avalanche de más notícias do governo Bolsonaro. A culpa não é de quem divulga, mas de quem produz as más notícias. A estes deve ser dirigido o grito de domingo.

Ascânio Seleme

O golpe de Bolsonaro é pela família, contra a nação

Entre os tantos momentos graves vividos pelo Brasil desde que Jair Bolsonaro(PSL) foi eleito presidente e passou a governar como antipresidente, este em que ele e sua família pregam abertamente um autogolpe é possivelmente o pior. E, a depender de como for enfrentado pela sociedade, outros piores virão. Se aqueles que ocupam as instituições brasileiras ainda têm respeito pelos seus deveres constitucionais, é hora de resgatar o que resta de democracia e usar a Constituição para responsabilizar o ato golpista antes que seja tarde. Não há democracia possível se aquele que foi eleito para governar estimula o autogolpe, incitando seguidores que falam abertamente em fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Não há democracia possível se aquele que foi colocado no Planalto pelo voto está disseminando panfletos pelo seu próprio WhatsApp, em que a população é convocada para ocupar Brasília e as cidades do país no próximo domingo, 26 de maio. Se as instituições brasileiras, todas elas, assim como a sociedade, apenas assistirem passivamente ao antipresidente rasgar abertamente a Constituição, acordaremos na próxima segunda-feira em outro país. E, posso garantir: não será um lugar bom.


Mesmo que as manifestações pelo autogolpe fracassem no domingo, o fato de um presidente incitá-las já é um passo largo demais na escalada autoritária. É um pode tudo que numa democracia não pode. Se puder, e parece que está podendo, porque Bolsonaro está fazendo abertamente diante dos olhos de todos, é porque no Brasil o que resta de democracia já não segura mais nada. É este o autogolpe – e já está agindo como golpe, ao escancarar que pode tudo mesmo antes de poder tudo.

Depois de incitar e panfletear aquela que está sendo chamada de “marcha da loucura”, Bolsonaro tentou fazer o que sempre faz. Recuou, saiu da oposição ao próprio Governo e temporariamente voltou a ser situação. Anunciou ter desistido de ir pessoalmente à marcha e avisou aos ministros que também não deveriam ir. Tarde demais. A marcha tem o DNA de Bolsonaro em todas as partes do seu corpo monstruoso. Cada ato do próximo domingo será feito em seu nome.

É preciso compreender muito bem o que Bolsonaro e o bolsonarismo são e fazem. Apesar de se venderem como “nacionalistas” e falarem em defesa da “nação”, seus atos mostram que estão contra a nação. E não estou aqui esgrimando com retórica. É contra a nação porque seu golpe é feito em nome da família, do clã. E é feito pela família, pelo clã. Ainda que nação seja um conceito em disputa, com uma história longa, a ideia de nação se opõe radicalmente à ideia de clã. Bolsonaro tem governado abertamente contra a nação, pelo clã. Ele e seu clã querem expulsar do país todos aqueles que não fazem parte do clã. Seja porque defendem propostas diferentes no campo da política, seja porque representam ideias diferentes no campo dos costumes.

O que é o clã Bolsonaro? É primeiro sua família, depois seus seguidores. E nisso aqueles que se sentem parte do clã, os que hoje são chamados de “bolsominions” e eu prefiro chamar de “bolsocrentes”, deveriam prestar bem atenção. O núcleo duro, em qualquer clã, é a família, é o sangue. São zerodois (Carlos, vereador que controla as redes sociais do pai), zerotrês (Eduardo, deputado federal) e zeroum (Flávio, senador). Nessa ordem. Não por coincidência, os garotos zerodois e zerotrês receberão mais uma medalha do pai, a da Ordem do Mérito Naval. A informação foi publicada no Diário Oficial desta terça-feira, 21. Menos de um mês atrás, o antipresidente já tinha mimoseado os filhos com a Ordem Nacional de Rio Branco, a mais alta condecoração do Itamaraty. Tudo (o que é público) em família.

O que aconteceu com o ex-ministro Gustavo Bebianno, que se achava parte do núcleo duro do clã até bater de frente com o segundo garoto, o mais influente junto ao pai, deveria ter deixado os bolsocrentes mais espertos. Ainda que os laços de sangue não signifiquem total garantia neste tipo de organização, eles são muito mais difíceis de romper num clã do que qualquer outro laço. Bebianno compreendeu isso tarde demais e possivelmente vários outros ainda o seguirão na desgraça.

De forma alguma é coincidência que Bolsonaro tente um autogolpe no momento em que o filho zeroum é investigado por desvio de dinheiro público, lavagem de dinheiro e organização criminosa. E no momento em que essa investigação pode alcançar outros familiares e também o chefe do clã. No momento em que essa investigação, que apenas começou, pode revelar um envolvimento criminoso com as milícias que dominam o Rio de Janeiro.

Atenção, policiais honestos, o clã Bolsonaro não é a favor de vocês. Os Bolsonaros já demonstraram publicamente que apoiam não as polícias, mas sim as milícias. Na lógica do clã, tornar-se policial parece ser apenas rito de passagem para a conquista de poder e território. Em 2005, vale a pena lembrar, o então deputado Jair Bolsonaro fez uma defesa enfática de Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão da Polícia Militar, suspeito de chefiar a milícia de Rio das Pedras e ser articulador do Escritório do Crime, o maior grupo de matadores de aluguel do Rio. Bolsonaro defendeu Adriano, hoje suspeito de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e foragido, no plenário da Câmara. Quatro dias antes do pronunciamento, Adriano tinha sido condenado por homicídio. Meses antes, havia sido condecorado pelo filho zeroum com a medalha Tiradentes, a mais alta honraria do estado do Rio. Bolsonaro defendeu o miliciano e chamou-o de “brilhante oficial”.

É fundamental fazer a distinção. O autogolpe está em andamento não porque o projeto de Bolsonaro para o país está ameaçado. E sim porque o projeto de Bolsonaro para o seu próprio clã está ameaçado. Primeiro pelas investigações que, se não forem barradas, possivelmente alcançarão outros membros do clã. Como impedir então que as investigações continuem? Pelo golpe. Botando os crentes na rua para, como eles próprios gritam nas redes sociais, fechar o Congresso e fechar o STF, a instância máxima do judiciário.

Não há ninguém impedindo Bolsonaro de governar para o país, além dele mesmo e de seu clã. A questão é que eles nunca quiseram governar para o país, porque a nação não lhes interessa. O que eles sempre quiseram foi governar para o clã e, assim, transformar o território da nação no território do clã. Agora o clã está ameaçado porque as instituições democráticas funcionam mal, mas ainda funcionam. Funcionam o suficiente para investigar se o filho zeroum cometeu os crimes dos quais é suspeito e apurar quem mais está envolvido.

Esta é a principal razão para Bolsonaro ter divulgado pelo WhatsApp um texto em que o autor afirma que o Brasil é “ingovernável” fora dos “conchavos” e que teme que o governo possa “ser desidratado até a inanição”. Num trecho, Paulo Portinho, funcionário público e candidato derrotado a vereador pelo partido Novo, afirma: “Que poder, de fato, tem o presidente do Brasil? Até o momento, como todas as suas ações foram ou serão questionadas no Congresso e na justiça, apostaria que o presidente não serve para NADA, exceto para organizar o governo no interesse das corporações. Fora isso, não governa”. Bolsonaro divulgou o texto classificando-o como de “leitura obrigatória”. Fez isso após as manifestações contra os cortes na educação terem levado centenas de milhares de pessoas para as ruas de mais de 200 cidades do Brasil, tornando-se o maior protesto feito contra um presidente no início de mandato.

O clã Bolsonaro vai para o tudo ou nada, o que neste caso significa arregimentar seus fiéis para uma demonstração de força no próximo domingo, porque quer impedir uma investigação que só eles sabem até onde pode chegar e o que vai aparecer. Como só eles sabem, agora nós também podemos saber, pelo menos, que é muito fundo e muito grave o que os investigadores poderão encontrar, caso não forem impedidos. Fundo e grave o suficiente para merecer a convocação de um autogolpe com menos de cinco meses de governo eleito.

É isso que Bolsonaro está nos dizendo sem dizer. Este é o único ocultamento. Todo o resto é explícito, como sempre foi. Estamos testemunhando um autogolpe bem diante dos nossos olhos e timelines. Só um ditador pode impedir uma investigação contra si mesmo e sua família. Contra o seu clã.

Quando escolho chamar Bolsonaro de antipresidente, como já expliquei em artigo anterior, é conceito. Bolsonaro é um presidente contra a presidência, algo totalmente novo na história do país. Para governar, ele ocupa o espaço da situação e da oposição, como apontei. Está fora e dentro, ao mesmo tempo. Isso é método, não incompetência. A incompetência está em outro lugar. É importante compreender que Bolsonaro não é um presidente, mas sim um chefe de clã na presidência.

Quem comparecer à convocação do antipresidente no domingo estará fazendo aquele tipo de escolha que pode definir uma vida. Estará escolhendo o clã – e não a nação. E aí pode começar a rezar para saber quanto tempo durará dentro da paliçada, sem nenhuma lei que não seja a do chefe, antes de se indispor com a família de sangue e ser jogado para fora numa piscada.

Setores da extrema direita e da direita que apoiaram Bolsonaro já entenderam a dinâmica. É o caso de articuladores dos movimentos de rua que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff , como o MBL. O deputado federal Kim Kataguiri explicou claramente – em live, tuítes, posts e entrevistas – por que o Movimento Brasil Livre não apoiaria nem estaria na manifestação: “Fechar o Congresso e o STF é coisa de revolucionário. Quem é liberal e conservador defende a separação dos Poderes, e não o fechamento dos Poderes”. Outro protagonista das manifestações pelo impeachment, o Vem Para a Rua, também se posicionou: "Sendo um ato pró-governo, não vamos aderir, porque vai contra um dos nossos pilares, que é ser um movimento suprapartidário".

Personagens centrais do impeachment, como a deputada estadual pelo PSL, Janaina Paschoal, têm feito oposição enfática à convocação do próximo domingo. “Estão causando um terrorismo onde não há! As pessoas estão apavoradas, escrevendo que nosso presidente está correndo risco. Ele não é amado pela esquerda, pelos formadores de opinião? É verdade. Mas quem o está colocando em risco é ele, os filhos dele e alguns assessores que o cercam. Acordem! Dia 26, se as ruas estiverem vazias, Bolsonaro perceberá que terá que parar de fazer drama para TRABALHAR!”, defendeu Paschoal numa série de tuítes. "Essas manifestações não têm racionalidade. O presidente foi eleito para governar nas regras democráticas. (...) Pelo amor de Deus, parem as convocações! Essas pessoas precisam de um choque de realidade. Não tem sentido quem está com o poder convocar manifestações! Raciocinem!".

Muitos dos que apoiaram a candidatura de Bolsonaro por serem contra o PT ou por quererem emplacar seu próprio projeto de extrema direita ou direita no poder já perceberam a dinâmica da família Bolsonaro, apelidada nas redes sociais de “familícia”. O que o domingo mostrará é quantos crentes o clã Bolsonaro conseguirá mover na tentativa de barrar as investigações do filho zeroum.

A tentativa de autogolpe de Bolsonaro tem sido comparada a do então presidente Jânio Quadros, em 1961. Que deu bem errado, como sabemos. Para ele, não necessariamente para o projeto de outros golpistas, como os anos seguintes mostraram. Mas, se há algumas semelhanças com a tentativa de Jânio Quadros, há um número muito maior de diferenças. Entre elas, a forma de operação da política do Brasil contemporâneo.

Quando me refiro a bolsocrentes, não estou tentando fazer graça. Também é conceito. Em 2016, escrevi um artigo intitulado: “Na política, mesmo os crentes precisam ser ateus”. Meu principal argumento nesse texto é o de que a antipolítica demanda uma adesão pela crença, e não pela razão. Essa operação beneficia o bolsonarismo, mas o precede. E poderá ser mais longeva do que ele, a depender dos próximos capítulos.

Quando me refiro a crentes, não estou me referindo apenas a fiéis religiosos evangélicos, que majoritariamente deram seu voto a Bolsonaro. Mas a algo mais amplo, que é a adesão a um projeto político pela fé. Basta acompanhar as discussões nas redes sociais para perceber que há muitos ateus que se comportam como crentes na política.

Pela razão, Bolsonaro não consegue incitar uma manifestação para promover seu autogolpe. Por isso ele demanda fé. Pela razão é fácil perceber que quem mais causa problemas ao Governo é o seu clã. Pela razão é fácil conferir que Bolsonaro, que tanto critica os partidos e a política tradicional, acabou de anistiar 70 milhões de reais da dívida dos partidos, num momento crítico para o país. Pela razão é evidente que as dificuldades dos primeiros meses decorrem da incompetência de Bolsonaro. Pela razão, portanto, não dá.

Por isso Janaina Paschoal, insuspeita de ser de “esquerda”, tem clamado nas redes sociais: “Raciocinem! Reflitam!”. Mas como, se ela mesma exigiu tanta fé dos eleitores para votar num homem que se manifestava claramente contra os valores humanitários mais básicos e contra a própria democracia? Ela também invoca a fé de seus eleitores para que acreditem que só agora ela percebeu o que Bolsonaro queria ser – e dizia que seria.

A adesão à política pela crença é uma marca deste momento histórico no Brasil, e também no mundo. E, como não custa repetir, ela atinge fiéis de todas as religiões e também de religião nenhuma. E, como também não custa repetir, precede e pode ser mais persistente do que o próprio bolsonarismo. A adesão à política pela fé é um modo de operação que marca a antipolítica.
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