domingo, 31 de janeiro de 2021

Bolsonaro paga o preço do estelionato eleitoral para blindar o governo

Duas versões de Jair Bolsonaro circulam em Brasília. Num dia, o presidente diz a apoiadores na portaria do Palácio da Alvorada que não pretende trocar ministros para acomodar aliados políticos. Depois, a portas fechadas, negocia com os caciques do centrão indicações para o primeiro escalão do governo.

A aliança de Bolsonaro com esses partidos é um caso típico de estelionato eleitoral. Durante a campanha e por mais de um ano de mandato, o presidente sustentou a promessa de que não faria um loteamento político do governo. Aos poucos, ele cedeu espaço aos parlamentares, sem se preocupar com os custos da violação desse princípio.

O cálculo do Planalto é simples. A entrada do centrão em postos-chave frustra eleitores do presidente, mas o governo vê benefícios políticos que superam os riscos da operação. Bolsonaro topa pagar o preço de desmontar um item central de sua plataforma porque sabe que os apoiadores são mais leais do que os políticos que mantêm o governo de pé.



O presidente já provocou ranger de dentes entre seguidores um punhado de vezes. Bolsonaro irritou sua base com a demissão de Sergio Moro, a nomeação de Kassio Nunes Marques para o Supremo e a aliança para eleger Arthur Lira (PP) na Câmara, mas conseguiu o perdão dos eleitores mais fiéis. Os partidos do centrão não seriam tão generosos.

Essas siglas oferecem apoio para blindar o presidente no Congresso e conter o desgaste político que poderia abreviar seu governo, mas esperam que os compromissos da negociação sejam honrados pelo Planalto. Nessa mesa, a velha retórica de campanha de Bolsonaro não tem valor, em nenhum dos dois lados.

O estelionato é mais um reflexo da inadequação do presidente para o cargo. Bolsonaro acreditou que poderia governar em conflito com o Congresso para abrilhantar seu figurino antissistema. As investigações que cercam seu grupo político o obrigam a decidir se prefere trair os eleitores ou a nova tropa de choque. A escolha parece estar feita.

Palavras e silêncios

‘Kintsugi’ (algo como reparação dourada) é a arte japonesa de devolver vida a objetos de cerâmica quebrados, remendando-os com pó de ouro. Essa centenária artesania nasce da ideia de que, ao aceitarmos imperfeições e falhas, ao mantermos visível a cicatriz, podemos criar algo ainda mais forte, ainda mais belo do que o original único agora despedaçado. Nada mais atual, eterno e multiuso do que essa arte, visto que ela pode ser aplicada tanto a um pote quebrado como a pessoas, à democracia estalante de hoje e à própria vida. Quando exigimos a perfeição em tudo e todos, inclusive em nós mesmos, acabamos criando um mundo cruel em que recursos e possibilidades são descartados.

Só que, para recorrer ao restauro, é necessário, antes, reconhecer que algo quebrou. Nos Estados Unidos e no Brasil, passou da hora de reconhecer que as normas democráticas racharam fundo sob Donald Trump e Jair Bolsonaro. Lá, o recém-empossado Joe Biden tenta iniciar o remendo sem estardalhaço, mas com gravidade, pois a hora é mesmo grave. Ao contrário do antecessor, Biden assina sua aguardada cota de decretos executivos como se fosse um burocrata apressado em carimbar formulários inúteis. É o oposto. Alguns desses decretos têm consequências planetárias, visam a corrigir cursos que apontavam para o abismo na questão climática. Outros abrem caminho para reparar desigualdades gritantes no próprio país.



Talvez algum dia venham a ser olhados como obra de kintsugi da democracia trincada, mas por enquanto são apenas decretos, sem a permanência de leis, e nenhuma garantia de que o remendo trabalhado não seja obstruído. Têm muito a conspirar contra. Continua intacta a dependência dos republicanos da máquina eleitoral fiel a Trump. O arrojo do extremismo branco aumentou desde o ataque do dia 6 contra o Legislativo. O Capitólio e seu entorno permanecem enjaulados por precaução. A deputada de primeiro mandato Lauren Boebert, conspiracionista fervorosa, já anunciou que não abre mão de circular pelo Capitólio com sua pistola Glock carregada, e Marjorie Greene, também eleita em 2020 por apoiadores da seita QAnon, já elogiou quem defende “enfiar uma bala na cabeça” da presidente da Casa, a democrata Nancy Pelosi. É da própria Pelosi, a frase da semana que melhor exprime a preocupação com as instituições do país: “O inimigo está dentro da Câmara de Representantes”. Terrível para a nação fundadora do sonho democrático moderno.

O labor pela democracia nunca acaba, ensinou Walt Whitman. O grande poeta da Guerra Civil Americana repetia que a palavra é grandiosa, mas sua história permanece em branco, porque ainda precisa ser encenada. Algo como o tempo passado e o tempo futuro lutando pelo controle do presente, definiu o maravilhoso Lewis H. Lapham, fundador e alma da “Lapham’s Quarterly”.

No Brasil, o pote está tão esmigalhado que é difícil ver algum remendo no horizonte. Faltam vacina e decência, sobram condenados à morte por asfixia. Pela peculiaridade da Covid-19, são perdas silenciadas atrás de portas de hospitais, de casas funerárias, de cemitérios, enterros em covas onde o distanciamento já não cabe mais. Um horror amplificado pelos pequenos horrores do cotidiano nacional, como um hospital federal que sofre queda de energia e compromete 720 doses da vacina da vida.

Por sistêmicas, as indignidades infligidas à vida brasileira já fazem parte do esperado. Só vez por outra o caldo ferve no cidadão obrigado a economizar energia para aguentar o amanhã. Na quarta-feira passada, a mais recente patifaria verbal de Jair Bolsonaro entornou um desses caldos de indignação. Ela merece registro neste espaço por dizer o essencial sobre a excrescência que habita no Palácio da Alvorada. No evento fechado de uma churrascaria de Brasília, o presidente estava de pé, microfone em mãos. Sentados em mesas abarrotadas, a ruidosa confraria de áulicos, que incluía o chanceler Ernesto Araújo. Explodiram de gáudio quando Bolsonaro respondeu assim a críticas recebidas por gastos alimentícios do governo: “E, quando eu vejo a imprensa me atacar dizendo que comprei 2 milhões e meio de latas de leite condensado, vai pra puta que o pariu. Imprensa de merda essa aí. É pra enfiar no rabo de vocês aí...”. O perigo à democracia brasileira já não é mais o Mito. São os adoradores decididos a perpetuar o mito.

Melhor procurar refúgio noutro marco da cultura japonesa: o caractere Ma, que representa a arte do silêncio, o espaço sagrado do silêncio em todas as atividades humanas. No Ocidente, sentimos desconforto quando se estabelece um vazio durante uma conversa a dois ou uma reunião em grupo. Nossa tendência é preencher esse vazio com qualquer abobrinha. Para japoneses, não se trata de um vazio, e sim de uma forma sublime de se conectar através desse espaço silencioso. O que seria da música sem os silêncios que conectam os sons? Não seria música, seriam apenas sons. Bonito, não?

Por aqui, estamos em outro diapasão.

Pilatos brasileiro

Maarten Wolterink (Holanda)
Não é competência nossa e nem atribuição levar o oxigênio para lá (Amazonas). Demos os meios
Jair Bolsonaro

Palácio e picadeiro, incontinências de Bolsonaro

Das cenas grotescas protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro, a que foi exibida no último dia 27 de janeiro é das mais repulsivas. Cercado por tietes, ele exibiu todo o ódio à imprensa. A causa do destempero encontra-se na denúncia sobre os estranhos gastos do Executivo federal com alimentos. Um estadista responderia com números e documentos. Mas, ao proferir, sorrindo, vocábulos pornográficos, o governante recebeu ovações de arruaceiros e chaleiras. Tal vitupério exige processo judicial por indecente uso do cargo. Frases que no pior bordel são evitadas, nos lábios de um presidente causam asco.

O “mito” não entenderá a citação abaixo, pois sua força cognitiva é pequena. Mas entre ministros, políticos que a ele se aliam e antigos apoiadores talvez exista algum saber. A eles me dirijo. Ao discutir a governabilidade, diz Spinoza: “A república não pode fazer com que os homens (...) respeitem o que gera riso ou náusea. (...) Para garantir o poder é preciso guardar as causas do medo e do respeito, caso oposto não há mais um Estado. É impossível para os que operam o mando político (...) bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por eles mesmos estabelecidas, pois assim eles perdem a majestade e mudam o medo em indignação e o estado civil em estado de guerra” (Tratado Político). Tais enunciados vêm de Maquiavel, pensador das práticas que permitem manter o poderio civil.



Repito: o presidente nada compreende de semelhantes teses. Mas quem negou sua utilidade perdeu cargos, para não mencionar a cabeça. Assim foi com Carlos I da Inglaterra e Luís XVI na França. Sempre chega a vez de quem imagina a si mesmo como impune e infenso às leis.

O decoro na fala e na postura corporal integra toda autoridade política, jurídica, religiosa, militar. Menciono outro escrito que certamente não será compreendido pelo sr. Jair Bolsonaro e seus marombeiros. Trata-se de Hannah Arendt: “Se for preciso verdadeiramente definir a autoridade, deve-se fazê-lo opondo-a ao mesmo tempo ao constrangimento pela força e à persuasão por argumentos”. No setor público ou privado cada um reconhece a superior hierarquia de quem ostenta autoridade. Não é pelo vezo de prender ou censurar, perseguir ou caluniar aos berros os oponentes que alguém consegue respeito público.

Dito de outro modo: se você precisa gritar para que lhe obedeçam, sua autoridade não existe. Inteligência, decoro, respeito à hierarquia, autoridade: um estadista pode receber da vida doses desiguais desses elementos. Ele compensa a fraqueza de um com a força de outro. Mas o dirigente que enxovalha o seu cargo não tem autoridade, só lhe cabe o título atribuído por Spinoza: palhaço.

Todo clown possui dupla face: a risível e a trágica. A primeira é exibida a cada novo dia pelo sr. Jair Bolsonaro. A trágica surge em decisões imprudentes e impudentes durante a pandemia. Tantas sandices comete o “mito” – e aí vai um alerta aos militares responsáveis pela força física estatal – que podemos temer: a indignação diante do descalabro pode “mudar o estado civil em estado de guerra”.

Aliás, são hábitos do líder a mão armada e o incentivo aos instrumentos da morte que impulsionam fraturas civis. Junto vem o boicote pérfido a vacinas como a Coronavac – esperanças de vida – por mesquinhos alvos políticos. A teoria infame de Carl Schmitt é praticada por ele: a política como forma de gerar o inimigo. E assim são corroídos os elos que garantem a união interna do Estado.

Recordo o dito usado por João de Salisbury (Policraticus) sobre governantes desprovidos de saber. Rex illiteratus quasi asinus coronatus est (um rei iletrado é quase um asno coroado). Para governar urge mover conceitos políticos, militares, filosóficos, jurídicos e outros. A edificação do Estado moderno se norteia pelo preparo do governante. Erasmo publicou um tratado sobre o tema, Institutio Principis Christiani. Ele cita Salisbury: “Liberdade real e virtude só podem ser obtidas onde existe a liberdade de palavra. O bom príncipe do bom Estado deve aceitar pacientemente as palavras livres, quaisquer que elas sejam”. Os turpilóquios de Bolsonaro contra a imprensa ameaçam o verbo independente. Erasmo adverte contra os aduladores. Na educação do príncipe o cavalo ensina a governar, pois não aceita violência e recusa imperícia ou lisonja. O sáfaro que ignora tais peculiaridades equinas vai ao chão. Aduladores, como os do espetáculo obsceno indicado no início deste artigo, lambem botas do poderoso ocasional. Se ele perde força, as línguas de aluguel procuram outra fonte de poder.

Gabriel Naudé, autor das Considerações Políticas Sobre os Golpes de Estado (1640), louva o saber do governante e recorda o dito de Luís XI: “Quem não sabe dissimular não sabe governar”. Se o líder pensa com os intestinos, em vez do cérebro, e não domina ódios pessoais, perde acatamento político.

Os destemperos de Jair Bolsonaro evidenciam carência de autoridade, decoro, saber. Ele quer os poderes do Legislativo e do Judiciário. O lugar que lhe cabe, no entanto, não é no palácio, mas na arena ou picadeiro.

Pensamento do Dia

 


Unidade e Transição

Na véspera de iniciar nosso terceiro centenário, precisamos mais que nunca de um presidente capaz de inspirar coesão no presente e rumo para o futuro. Estamos divididos em grupos que não se reconhecem como partes de um mesmo povo, seja pela desigualdade na renda ou pelo sectarismo nas ideias. Estamos ficando para trás na história, sem sintonia com o mundo, por falta de base científica e tecnológica, de capacidade de produzir e poupar, falta de infraestrutura econômica, de solidariedade social e nacional, sobretudo de educação de qualidade para todos. Mas, apesar destes desafios para o terceiro milênio, nossa tarefa imediata é impedir a continuação do atual quadro de divisão sectária, negação da realidade, incompetência gerencial e falta de visão de futuro.

Em 1985, consciente da responsabilidade de impedir a continuação do regime militar, os democratas se uniram, desde os mais progressistas aos mais conservadores, com exceção do PT, que preferiu não votar em Tancredo Neves. A união permitiu cinco anos de democracia, com sucessivas eleições para escolher rumos conforme a proposta de cada candidato. Por nossos erros, nossas divisões, por prioridades e comportamentos equivocados, deixamos que forças autoritárias e retrógradas voltassem ao poder com o voto dos eleitores. Corremos o risco desta interrupção de nossa marcha ao futuro continuar, reeleita pelo eleitor.

Para eleger um presidente que nos conduza ao futuro é preciso primeiro impedir um presidente que só vê o passado e destrói o presente construído nos últimos 35 anos de democracia. Nossa tarefa imediata é impedir a continuação do retrocesso. Elegermos um presidente que permita retomar o debate democrático com bom senso, respeito à verdade e ao contraditório, e então ganharmos impulso para os anos adiante.

Entre 1985 e 1919 fomos capazes de construir uma democracia sob Constituição duradoura; estamos no mais longo período de estabilidade monetária, com uma única moeda; implantamos programas de solidariedade com transferência de renda para os pobres; colocamos quase todas nossas crianças em escolas; mais que dobramos o número de estudantes universitários; conseguimos presença internacional respeitada; demos substanciais avanços nos direitos humanos; mas estamos ameaçados de perder tudo isto.

Temos a obrigação de voltarmos a nos unir em 2022, para elegermos um presidente comprometido em recuperar as conquistas dos últimos 35 anos. Para enfrentar o presidente atual, precisamos apresentar um candidato único, desde o primeiro turno, com baixa rejeição entre os eleitores. Os atuais candidatos precisam deixar seus projetos, metas e interesses nacionais e pessoais para a eleição seguinte; se unirem agora em torno àquele que assuma o compromisso de manter os acertos da democracia e que tenha as melhores condições para atrair os eleitores, graças à menor rejeição ao seu nome, e assuma o compromisso de apenas um mandato. Os demais candidatos adiam suas disputas para 2026 ou assumem o risco de verem 2022 repetir 2018. Os candidatos naturais em 1985, grandes líderes, entenderam o que a história precisava e adiaram suas candidaturas para 1989, dentro do marco democrático. Fizeram unidade e garantiram transição.

Cristovam Buarque

'Coveirão' do Brasil

Esse boicote sistemático (de Bolsonaro à imunização em massa) justifica mais de 220 mil óbitos? Ele é o único culpado? É claro que não, a culpa é de muitos, especialmente dos egoístas estúpidos que se aglomeram sem máscara nos bares e nas festas.

No entanto, pela natureza do cargo que ocupa, os absurdos que fala e a indignidade dos exemplos que dá, o presidente da República tem sido o grande responsável pela disseminação da epidemia. Não é por acaso que somos o segundo país com o maior número de mortes
Drauzio Varella 

A hipocrisia de fazer do ministro Pazuello o bode expiatório para tentar salvar Bolsonaro

O fato de o Supremo Tribunal Federal ter acatado o pedido de inquérito apresentado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, contra o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, por seus possíveis crimes no combate à pandemia em Manaus, enquanto poupou o presidente Bolsonaro, é uma grande hipocrisia. É fazer de Pazuello o bode expiatório para salvar seu chefe.

Não que o ministro seja inocente e não mereça ser incriminado. O que é um escândalo para a sociedade é que ambos não sejam processados. Todas as falhas do ministério da Saúde que levaram a tantos mortos e a desacreditar a vacina foram perpetradas pelo presidente e pelo ministro juntos. Mas começou quando Pazuello ainda não era ministro.

Pesa sobre a responsabilidade do presidente que foi ele quem expulsou médicos competentes do ministério para colocar um militar sem nenhuma garantia científica e assim poder dominá-lo e fazer dele um simples fantoche.

O general Pazuello deve ser recriminado por ter aceitado de cabeça baixa todas as imposições de Bolsonaro sem ter se rebelado. Além disso, alardeava que, como militar, tinha de obedecer ao chefe, aliás, um simples capitão expulso do Exército.



A jogada de Aras de pedir para investigar Pazuello poupando Bolsonaro foi tão tosca que é impossível escondê-la da opinião pública. Todo o Brasil já sabe que a tragédia da pandemia foi fomentada por Bolsonaro, que levou o Brasil ao descrédito mundial.

O fato de Bolsonaro tentar agora ganhar o Congresso e o Senado impondo à presidência dois de seus defensores revela seu medo de acabar deposto por sua incapacidade de governar um país da importância do Brasil. Bolsonaro, que bancava o Napoleão, na verdade começa a ver que seu reino está desmoronando. É por isso que agora se refugia no Congresso, oferecendo-lhe o que este pede e muito mais.

Que o reino de Bolsonaro está começando a entrar em colapso é demonstrado pelo fato de que seus seguidores mais fanáticos e ideológicos estão começando a ficar em silêncio ou desiludidos com ele. Onde estão eles senão na fúria do ideólogo do bolsonarismo fanático e autoritário, o pseudofilósofo Olavo de Carvalho? Há silêncios mais eloquentes do que a gritaria.

No final, teremos o paradoxo de que Bolsonaro veja sua onipotência ser tolhida como o Sansão bíblico, e como ele acabe na prisão e esquecido. Na política são frequentes as noites dos longos punhais em que se tramam as grandes traições. Vimos isso com Dilma Rousseff e poderemos ver com Bolsonaro.

Quem chegou para acabar com a política, pensando que não precisava das outras instituições para governar, parece cada vez mais claro que será a velha política que o obrigará a baixar a crista de galo para se tornar uma simples galinha.

O caso do ministro Pazuello, que tentou transformar em bode expiatório que carregasse seus pecados poderia ser paradoxalmente o fim de suas arrogâncias que estão colocando o Brasil à beira de uma crise econômica que acabará caindo sobre seus ombros.

Os primeiros a detectar isso começam a ser os grandes empresários que um dia lhe deram sua confiança acreditando que o presidente apoiaria o ministro da Economia, Paulo Guedes, em sua política econômica liberal e hoje começam a se preocupar e a se afastar dele. Juntas, a desilusão do poder econômico e a pressão popular que começa a crescer podem acabar com o mito e seu pesadelo que colocou o Brasil entre os párias do mundo.

Pela primeira vez, aliás, até a Igreja começa a dar as costas ao mito. Assim o revela o fato de que um pedido de impeachment esteja sendo assinado por religiosos críticos do Governo. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a petição inclui católicos, luteranos, metodistas e até pastores evangélicos.

Bolsonaro tem apenas duas opções: ou ser presidente de um grupo menor, continuando com suas bravatas e sonhos golpistas, ou se inserir completamente no modelo clássico da política brasileira.

Será um teste interessante para saber se essas bravatas e destemperos do capitão-presidente são fruto, como pensam alguns psicanalistas, de distúrbios psíquicos ou de puro cálculo político.

No caso de que as loucuras de Bolsonaro sejam resultado de perturbações psíquicas que o levam a desafiar a ciência e a democracia, será impossível para ele abandonar sua estratégia para manter vivo seu grupo de extremistas e fanáticos, feras que precisam de que mais carne lhes seja atirada todos os dias.

E no caso de ser apenas uma questão de estratégia política e que esteja se convertendo na normalidade democrática para não perder o poder, não é difícil que, com um apoio cada vez menor da opinião pública, um político sem a força de um partido próprio importante acabe relegado e devorado por políticos especialistas em se manter no poder.

Uma vez que Bolsonaro acabe convertido à política clássica e deixe seus desatinos antidemocráticos e se converta à ortodoxia, poderia muito bem ser que nas eleições presidenciais acabe voltando ao caldeirão do baixo clero do Congresso, onde vegetou por quase 30 anos. Se os grupos parlamentares virem que foram capazes de domesticar o velho cavalo desbocado, Bolsonaro perderá todas as chances de se reeleger. A velha política está, com efeito, esperando para retomar o poder.

Resta saber se o Congresso que Bolsonaro adotou permitirá que ele continue, por exemplo, com sua perseguição aos meios de comunicação e com os insultos grosseiros aos jornalistas, que já estão sendo até investigados pela polícia como se não houvesse liberdade de imprensa e já estivéssemos em uma ditadura.

O último exemplo de suas grosserias indignas de um chefe de Estado aconteceu dias atrás, quando foram questionadas as despesas do Governo com leite condensado. Bolsonaro, perguntado sobre o assunto, respondeu com desfaçatez que o leite condensado era “para enfiar no rabo dos jornalistas”.

Enquanto isso, Bolsonaro continua com seu negacionismo da pandemia e acaba de colocar em dúvida os dados sobre o número de vítimas e infectados apresentados por seu próprio ministério.

Uma pergunta que se impõe ao longo desta história de querer fazer de Pazuello o bode expiatório de Bolsonaro leva a pensar se os militares não se sentirão humilhados ao ver um general da ativa ser investigado por crimes contra a vida.

Até quando os militares continuarão apoiando Bolsonaro no Governo? É uma pergunta que se torna cada dia mais urgente e alarmante. Sua perseverança em participar de um Governo que perdeu prestígio nacional e internacional pode acabar manchando toda a instituição do Exército, que sempre gozou de grande apoio popular.

Aqueles que tomam Bolsonaro por um simples palhaço deveriam estudar história. Muitos outros governantes no passado também considerados palhaços inócuos acabaram produzindo rios de sangue, empobrecendo e despojando as pessoas de suas liberdades.

Bolsonaro corrupto

Já se falou quase tudo do governo de Jair Bolsonaro. Da sua índole intolerante e antidemocrática, da sua beligerância permanente, das baixarias que produz em escala industrial, dos seus inúmeros crimes de responsabilidade, da sua fraqueza moral, dos atentados que comete contra a vida humana no tratamento que dispensa à pandemia do coronavírus. Agora, pode-se também afirmar que esse governo é corrupto. O capitão, que foi eleito prometendo varrer a corrupção de Brasília, montou ele próprio um esquema para se defender e proteger as falcatruas de seus filhos e aliados.

São várias as evidências desse esquema ao redor do presidente. Bolsonaro controla tanto a Procuradoria-Geral da República quanto a Polícia Federal com absoluto rigor. Apesar de manter a aparência de independência, Augusto Aras e Rolando Alexandre de Souza fazem o que for preciso para não desagradar ao presidente. Outras instituições do Estado, além da PF, são usadas sem constrangimento. Tanto o Ministério da Justiça quanto a Advocacia- Geral da União foram instrumentalizadas por Bolsonaro para defender ele mesmo, os seus três zeros e a sua turma.



Com o centrão no comando da pauta do governo, o que teremos até o desfecho deste lamentável mandato será apenas mais um governo corrupto. Sabe-se desde já que na Câmara Bolsonaro vai comer pelas mãos de Arthur Lira (corrupção ativa, lavagem de dinheiro, violência doméstica) e seus parceiros. Lira deve ganhar a presidência da Casa, mas mesmo que perca, será o guia do capitão naquele plenário. No Senado, com Rodrigo Pacheco ocorrerá o mesmo. Como noticiou o Estadão na quinta-feira, o deputado já anunciou que, sendo eleito, vai torpedear CPIs contra o Planalto. Duas já estão na sua mira, a das Fake News e a da Saúde. E o senador avisou que não gosta de CPIs. Oras.

O governo vai voar em céu de brigadeiro e só sentirá turbulência se não soltar lastro toda vez que for exigido pelos aliados gulosos. Vai precisar se livrar de muito peso, é bom que se diga. Já sinalizou inclusive que pode criar novos ministérios para abrigar a turminha. Bolsonaro vai fazer concessões, nenhuma dúvida, mas não terá sequer uma agenda que consiga pelo menos balancear possíveis estragos que vierem a ser feitos por larápios. Como se viu na demissão do presidente da Eletrobrás, nem a agenda liberal sobreviveu a dois anos de governo. Fora o escancaramento na liberação de armas e munições, a pauta conservadora também não anda, porque a turma não é tão besta assim. O que vai sobrar é o velho toma-lá-dá-cá.

A Transparência Internacional divulgou esta semana o ranking atualizado de percepção de corrupção em que avalia 180 países. ªO Brasil ficou na 94ª posição, a pior de toda a América Latina. No ano passado, bateu seu recorde histórico. Este ano, melhorou três pontos em cem, mas continua em patamar mais baixo do que todos os anos anteriores. A explicação é simples. Segundo a ONG, a principal causa é a interferência política de Bolsonaro nos instrumentos de combate à corrupção, como nas já citadas AGU, PGR e PF. Também por influência do capitão foram fritadas as operações Lava Jato e Greenfield.

Mas, e daí? Qual a surpresa? Antes mesmo de ser eleito presidente, Bolsonaro já se valia dos cofres públicos para enriquecer. Ao ser flagrado desviando verba do auxílio moradia da Câmara, disse ao jornal “Folha de S. Paulo” que usava o dinheiro público “para comer gente”. Um corrupto de largo espectro, inclusive moral.