quinta-feira, 9 de maio de 2019

Brasil, enfim, se confessa


Armado de decreto, Bolsonaro atirou para matar

Como deputado federal, Jair Bolsonaro apresentou um projeto de lei polêmico. Propunha alterar o artigo 6º do Estatuto do Desarmamento. Esse artigo restringe o porte de armas. Bolsonaro queria flexibilizar, para que mais pessoas pudessem andar armadas. Submetida a debate, a ideia não prosperou no Congresso. Como presidente da República, Bolsonaro resolveu agir por conta própria, como se não existisse um Poder Legislativo.


O capitão impôs sua vontade armamentista por decreto. "Fomos no limite da lei!, disse o presidente. Não é bem assim. O ex-deputado Bolsonaro é uma evidência de que o presidente Bolsonaro ultrapassou as fronteiras da lei. Ora, se ontem era necessário submeter ao Congresso a mudança no Estatuto do Desarmamento, por que agora seria facultado ao presidente atirar ideias a esmo sem consultar o Legislativo? Alterar lei por meio de decreto é coisa que não faz nexo. 

Na prática, Bolsonaro editou o seu estatuto pessoal do armamento. Fez isso de forma sorrateira. Na cerimônia de assinatura do decreto, informou-se que o porte seria liberado para caçadores, alunos de escolas de tiro e colecionadores. Publicado o decreto, verificou-se que o rol de categorias autorizadas a carregar armas é muito maior. Inclui de advogados a jornalistas da editoria de polícia, passando por caminhoneiros, moradores de zonas rurais e um interminável "et cetera". 

Alega-se que Bolsonaro está apenas cumprindo promessa de campanha. Não é verdade. O candidato prometia não o porte, mas a posse de armas dentro de casa. Pesquisa do Datafolha revelou no mês passado que 64% dos brasileiros acham que mesmo a posse de armas deveria ser proibida. Há um consenso entre os especialistas —dentro e fora do país: quanto mais armas em circulação, maior a tendência de que ocorram mortes. Ou seja: o decreto de Bolsonaro não é inofensivo. Com seu decreto, o presidente atirou para matar.

À espera da virada. Que ninguém vê

Nestes quatro meses de governo Bolsonaro, a quantidade de intrigas, de distribuição de sopapos verbais, até mesmo de baixo calão, e de puro desgoverno não tem precedentes e, decididamente, não ajuda a recuperação do País.

A política econômica é declaradamente neoliberal, mas enfrenta o jogo protecionista e anti-globalizante da chancelaria. Os filhos do presidente, também conhecidos, respectivamente, por agentes 01, 02 e 03, mais o suposto guru filosófico trocam insultos com os generais que fazem parte do governo. O Executivo ignora o Legislativo, não sabe se adere a alguma forma de presidencialismo de coalizão – o que implica alguma forma de partilha de poder e de benesses – ou se parte para uma forma descolada de governo, seja lá o que isso signifique.

A principal iniciativa é o projeto de reforma da Previdência e, no entanto, o presidente não parece engajado na empreitada, o que sugere que ele pode não acreditar no que está propondo. Há quatro meses, ainda havia a expectativa de que as reformas mudariam o jogo. Agora, espraia-se a noção de que também aí não há milagre.

A pergunta à espera de resposta é se a economia real se move como nos Estados Unidos, apesar de Donald Trump e de suas trumpadas. A percepção geral é a de que se move sim, mas para trás. O desemprego atinge 13,4 milhões de pessoas, as novas projeções do PIB não são mais de avanço perto de 3,0% ao ano, mas de, no máximo, 1,49%, como se viu na última pesquisa Focus, do Banco Central. Com a demanda muito perto da estagnação e a indústria asfixiada, seria de esperar que a inflação resvalasse para a altura dos 3,5% em 12 meses, mas voltou a subir, para acima dos 4,0%. A economia argentina, terceiro maior parceiro comercial do Brasil, está mergulhada na crise. E, agora, a ameaça de guerra comercial entre Estados Unidos e China ficou ainda mais forte, situação que multiplica as incertezas.

Um olhar atento ainda enxerga sinais de vitalidade. O agronegócio, por exemplo, embora tenha perdido alguma renda com a queda dos preços internacionais das commodities, segue com forte dinamismo. As contas externas, área que, no passado, foi a mais vulnerável, seguem robustas. Também se esperam bons resultados do setor do petróleo, sob pressão dos governadores, que não tiram os olhos das promessas com royalties: a produção nacional de óleo e gás aproxima-se dos 3 milhões de barris diários, mais que a dos Emirados Árabes, sétimo maior fornecedor do mundo. Os leilões de serviços públicos não caminham na velocidade desejada, mas caminham.

Não se sabe ainda o quanto esse lado encorajador está sendo contaminado pela onda de desalento. Qualquer pessoa sabe que um doente se recupera mais facilmente se estiver animado e engajado na cura da sua enfermidade. Com a economia também é assim, porque o desânimo tende a arrastar os investidores para a retranca, adia o consumo e segura o crédito.

A sociedade espera com ansiedade um clarão no horizonte que ilumine tudo e vire o jogo modorrento e perdedor de agora. Mas, para isso, é necessário que o presidente Jair Bolsonaro comece a governar.

Sem resolver crises, Bolsonaro compra elogios na TV

Jair Bolsonaro está em campanha. Sem resolver as crises do governo, ele encontrou tempo para investir na própria imagem. Para isso, começou uma ofensiva de autopromoção em programas populares de TV.
No domingo, o presidente foi ao picadeiro de Sílvio Santos. O animador quis saber se ele é confundido com o avô da filha caçula, que tem oito anos. Bolsonaro aproveitou a deixa para comentar a própria vida sexual. “Estou na ativa, sem aditivo”, disse. “Mudou de nome! Agora é aditivo!”, gracejou o dono do SBT.


Na segunda-feira, o presidente recebeu Luciana Gimenez. Foi um encontro de velhos amigos. “Me falaram que eu tenho que te chamar de senhor, mas eu não vou conseguir”, confidenciou a apresentadora. “Fica à vontade”, tranquilizou o anfitrião.

O papo continuou no registro da intimidade. “Eu ia falar que você era jovem, bonitão. Desculpa aí, Michelle”, empolgou-se a ex-modelo. “Bolsonaro, você é uma pessoa muito, assim, do povo. Assim, simples”, prosseguiu. Os dois recordaram as idas do presidente ao “SuperPop”. “A gente se divertia, vai!”, disse ela.

Depois da sessão nostalgia, Luciana ensaiou tratar de assuntos de Estado. “Vamos falar de coisas boas que você fez e ninguém fala”, propôs. “Estamos governando pelo exemplo”, respondeu o entrevistado. “É verdade”, concordou a entrevistadora.

“As pessoas pegam no seu pé com esse negócio de gay. Eu sempre te defendi”, disse Luciana. “No Brasil, é coisa rara o racismo”, emendou Bolsonaro. “É, isso não cola muito”, assentiu a ex-modelo. O presidente nomeou 24 ministros, e nenhum deles é negro.

A conversa se estendeu por 52 minutos, sem entrar em temas como milícias, laranjas do PSL e cortes na educação. No fim, a apresentadora voltou a elogiar a família de Bolsonaro: “Bonitos os seus filhos, hein?”

Não é só por estética que brilham os olhos de Luciana. Como revelou a colunista Bela Megale, a apresentadora acaba de ser contratada como garota-propaganda do governo. Vai receber dinheiro público para elogiar a reforma da Previdência. O animador Ratinho também entrou no pacote. Não vai faltar café no bule.

Imagem do Dia


Energia limpa, reciclagem e multas: a diferença contra o aquecimento global

Os últimos relatórios sobre clima não são positivos: uma pesquisa recente publicada no periódico científico Science indica que os oceanos estão sendo aquecidos 40% mais rápido do que se pensava e cientistas do painel da ONU sobre mudanças climáticas disseram em 2018 que o aumento das temperaturas pode causar enormes inundações, secas, falta de alimentos e incêndios até 2040.

Enquanto a comunidade global não adota ações drásticas, alguns países fazem suas contribuições globais ao planeta, segundo o Good Country Index (Índice dos Bons Países, em tradução livre), que mede o impacto de cada país no mundo, como uma marca ecológica em relação à economia e às porcentagens de energia reutilizável utilizada.

"Na nossa época de globalização avançada e interdependência massiva, tudo tem um impacto no sistema inteiro, cedo ou tarde", diz Simon Anholt, consultor independente que criou o índice.

Países europeus dominam o top 10 da sessão Planeta & Clima do Índice dos Bons Países, mas há nações no mundo inteiro tomando atitudes para reduzir seu impacto negativo no meio ambiente. A BBC conversou com moradores em cinco países de ótima performance e perguntou como é viver em um lugar que está fazendo algo para salvar o planeta.

Carros elétricos nas ruas de Lisboa
No topo da lista está a Noruega, líder mundial em uma série de iniciativas ambientais, incluindo a maior taxa de adoção de carros elétricos do mundo e um compromisso governamental de ser neutro em influências climáticas até 2030. Mas a relação aqui vai além da política. Os noruegueses abraçam o conceito de friluftsliv, que pode ser traduzido como "vida a céu aberto" e se refere à importância dada a passar tempo na natureza para ser saudável e feliz.

"Isso realmente está profundamente enraizado na nossa cultura e às vezes é quase uma religião para muitas pessoas", disse o norueguês Axel Bentsen, fundador e CEO da Urban Sharing, a empresa por trás do popular programa de compartilhamento de bicicleta Oslo City Bike. "Nós passamos tempo na natureza em qualquer temperatura e nossos bebês até dormem do lado de fora. Nossa capital, Oslo, é única no sentido de que você pode usar o transporte público e ir parar numa floresta, então é algo popular de se fazer antes ou depois do trabalho".

Oslo foi nomeada a Capital Verde da Europa em 2019 pela Comissão Europeia por restaurar seus canais, investir em bicicletas e transporte público e por sua estratégia financeira climática inovadora (tornando as emissões de dióxido de carbono rastreáveis assim como fundos financeiros). A cidade também tem trabalhado para barrar carros no centro. "No último ano, tem sido ótimo ver a cidade tirando estacionamentos para tornar as áreas mais amigáveis para pedestres e ciclistas, enquanto a infraestrutura para bicicletas também melhorou com mais ciclovias", diz Bentsen.

Apesar de 99% das fontes de energia doméstica da Noruega serem sustentáveis por meio de hidrelétricas em seu litoral, nos fiordes e nas cachoeiras, a Noruega ainda é uma grande extrativista e exportadora de petróleo, o que se tornou uma questão política controversa.

"Vale a pena manter a contínua extração e exportação de petróleo e gás porque ela gera enormes quantidades de dinheiro que são usadas para infraestrutura ambiental que não seria possível de outra maneira?", questiona David Nikel, um expatriado britânico que vive na Noruega desde 2011 e tem um blog sobre a vida no país. "Muitos acham que o dinheiro gasto nessa infraestrutura vai inspirar outras cidades e outros países e isso levará a um mundo mais verde. Outros pensam que são dois pesos e duas medidas. Depende de que lado você está."

Portugal foi pioneiro no investimento em uma rede inteira de abastecimento de carros elétricos (que era grátis até recentemente), no incentivo aos seus cidadãos a instalarem painéis solares e energia renovável com preços mais baixos, além de oferecer a oportunidade de vender a energia de volta ao sistema.

"A maioria dos meus vizinhos têm painéis solares ou bomba de água. Na minha casa, meus pais instalaram essa bomba que transforma água da chuva em água potável, que usamos para aguar as plantas, lavar roupas e dar água aos nossos animais de estimação", diz a portuguesa Mariana Magalhães, gerente de marca na agência britânica Forty8Creates.

Reciclar e compostar é um modo de vida normal aqui, com lixeiras específicas em cada bairro, incluindo uma para baterias. A educação tem um enorme papel nessa transformação. "No colégio, tínhamos várias aulas de educação ambiental e frequentemente tínhamos aulas em um parque local para criar esse amor ao meio ambiente", diz Magalhães.


Ao longo de sua história, Portugal foi uma sociedade agrária que fez uso de suas abundantes fontes naturais. "Na fronteira entre Portugal e Espanha, no Norte, você consegue ver as montanhas cheias de equipamentos de captação de energia eólica. Você também consegue ver hidrelétricas nos lagos para coletar energia da água", diz Magalhães.

"Nós temos condições naturais que favorecem o uso de energias renováveis", acrescentou Joana Mendes, gerente da pousada Molinum no sul de Portugal. "Já que são mais baratas, gradualmente mudamos para elas."

Na capital portuguesa, cheia de subidas e descidas, a adoção da bicicleta não é tão forte como em outras capitais europeias, mas outros modos sustentáveis de transporte estão começando a decolar. "Alugueis de patinetes elétricas foram introduzidos em Lisboa e se tornaram muito populares", diz a americana Wendy Werneth, que viveu em Portugal por dois anos e escreve no blog O Vegano Nômade. "Os lisboetas realmente a abraçaram como uma maneira ecológica de se transportar".

Incompetência empossada

Bolsonaro não tem a mínima legitimidade necessária, não é preparado pessoalmente, não controla sequer o seu mundinho, nem a casa dele. Então ele está se perdendo. A quantidade de generais neste governo não é por acaso. Não é por acaso que o vice-presidente é um general. Ele está tentando se credenciar como alternativa pela fragilidade e desacertos do presidente, pela incompetência
Luiza Erundina de Sousa (Psol-SP)

A realidade pede passagem

O governo de apenas quatro meses de Jair Bolsonaro é um poço de intrigas. Há as brigas entre os olavetes e os não olavetes. Há as brigas entre os filhos que controlam e descontrolam os meios de comunicação do pai e os militares. Há as brigas entre o filósofo presidencial e os generais. Há as brigas entre o presidente da República e o prefeito de Nova York, essa quiçá a mais surreal. Tão surreal que dia desses acabei cantarolando o refrão de música antiga de Lulu Santos, “não vá para Nova York amor, não vá”. Em meio à balbúrdia do governo Bolsonaro – afinal, cada governo tem a sua palavra, seu mot juste – a realidade vem se impondo de forma dramática.

Desde dezembro do ano passado, a inflação subiu quase um ponto porcentual – passando de 3,8% para 4,6% agora. O número em si não chega a assustar, sobretudo porque está dentro da meta do Banco Central. Contudo, a alta súbita da inflação em uma economia que ainda não dá sinais de ter saído do lugar e que pode até ter encolhido um pouco no primeiro trimestre do ano, é preocupante . No entanto, sabemos que a produção industrial encolheu nos primeiros três meses do ano e que outros indicadores econômicos deram claros os sinais de fragilidade. A taxa de desemprego continuou a subir nesse início de 2019, alcançando 12,7 %, o que significa 13,5 milhões de desempregados.


Para complicar a situação para lá de vulnerável do Brasil, a economia mundial não está ajudando muito, como alertara o FMI. Os mais recentes indícios de que a guerra comercial entre a China e os Estados Unidos não deve acabar tão cedo está tirando fôlego dos cenários de crescimento global ainda que a economia norte-americana continue a apresentar bons números para o crescimento e para o mercado de trabalho. Curiosidade que poucos sabem é que os economistas têm muitas dificuldades para traduzir a guerra comercial em números concretos que mostrem o impacto sobre o crescimento global. Isso porque os modelos matemáticos e estatísticos de projeção para medir o impacto de tarifas e retaliações sobre o comércio internacional, sobre os empregos, e o impacto em setores específicos de diferentes países não são compatíveis com os modelos matemáticos e estatísticos usados por macroeconomistas para produzir projeções para o crescimento global. O que isso significa é que sabemos que a guerra comercial não é boa para ninguém. Porém, não sabemos quantificar a magnitude do quão perversa ela pode ser para o mundo e para países específicos.

No caso brasileiro, alguns setores se beneficiaram da conflagração – a China andou comprando mais grãos, mais soja de nós nos últimos meses, e isso nos ajuda. Não nos ajuda de forma permanente, mas qualquer mãozinha é bem-vinda nesse momento tão complicado. O problema é que o Brasil, embora seja um exportador de peso de soja e outros grãos, não é parrudo o suficiente no mercado internacional para determinar o preço dessas exportações. Ultimamente, como resultado de uma série de fatores, os preços dos grãos e da soja têm caído nos mercados internacionais. Isso significa que podemos até exportar mais em volume, mas o valor do que exportamos não tem aumentado tanto assim. Portanto, nem temporariamente se pode afirmar que a guerra comercial tenha sido um maná de Trump e Xi.

Tenho escrito nesse espaço que a reforma da Previdência tampouco será a bala de prata para destravar o investimento no Brasil. Embora haja investidores estrangeiros que estejam à espera da reforma para voltar a destinar recursos para o País, a verdade é que a guerra comercial e a possibilidade de que continue já que, antes de tudo, trata-se de um tema importante para a campanha de Trump nas eleições de 2020, aumenta as incertezas e deixa todos ressabiados. Além, é claro, da reforma em si não ser suficiente para resolver de uma tacada só todos os problemas que hoje impedem o Brasil de crescer, muitos dos quais são estruturais e levam anos para serem adequadamente solucionados. A baixa produtividade da mão de obra, por exemplo, resulta de vários problemas, dentre eles a má qualidade da educação no País. Claramente, não estamos encaminhando as questões relativas à educação de forma adequada.

Dizia no início desse artigo que cada governo tem a sua palavra. A palavra do governo Dilma foi “estarrecida” ou “estarrecido”. Pelo visto o governo Bolsonaro acabará nos trazendo combinação de palavras. Ficaremos todos estarrecidos com a balbúrdia enquanto a economia padece no vácuo.

A metamorfose de W.

O livro do "Kafta" que o ministro da Educação citou terça-feira em audiência no Senado apresenta um desafio interpretativo considerável. No entanto, à primeira vista o caso parece bastante simples.

Uma autoridade comete uma gafe. Os críticos riem e saem espalhando a notícia nas redes com sádico deleite: "Viram que formidável?" Os apoiadores rebatem: "Seus oportunistas esnobes, foi só uma gafe"

No caso, o deslize de Weintraub foi puro pastelão, uma troca de letras infantil e boba de tão óbvia. Quem nunca se deu conta da semelhança entre o nome do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) e o do acepipe árabe? Quantos de nós, logo após pensar nisso, descartamos o trocadilho como tolo demais para merecer um enunciado?

Até este ponto o caso conserva sua aparente simplicidade binária. Dizem os governistas: tropeço banal, o cara estava nervoso, pode acontecer com qualquer um. Não é bem assim, insistem os gozadores. Convém lembrar que Weintraub é —pois é— ministro da Educação.

Aí a trama começa a se adensar. Se há inegável malícia e talvez até maus modos no riso fácil com um escorregão desse tipo, o ministro não pode fugir às responsabilidades do cargo. Não poderia em lugar nenhum do mundo, que dirá num país que vai definhando à míngua de educação, como no sertão nordestino definham lavoura e criação por falta de chuva.

A cadeira ocupada por Weintraub exige um estofo mínimo. Seria ridículo sugerir que os titulares da pasta, sobretudo nos últimos tempos, foram todos pessoas de excelente formação. Contudo, é fato que nenhum deles "insitou" o público a ler cafta ou comer Kafka, nem passou as verbas do ensino pelo moedor de carne. Entre o imenso Paulo Freire e o mais despreparado dos professores, estende-se um rico leque de possibilidades.

Não se trata de esnobismo intelectual. Kafka é um dos raros escritores que fazem parte do repertório cultural médio da sociedade. Nesse quesito, é o mais bem-sucedido do século 20, léguas à frente de Marcel Proust e James Joyce.

Ou seja, para citar Kafka ninguém precisa tê-lo lido nem sequer saber por alto quando ou em que região do mundo ele viveu. "Kafkiano", adjetivo da linguagem comum, quer dizer o que "evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade" (Houaiss).

Na mosca. Weintraub se referia ao processo administrativo que sofreu na universidade, comparando-o à burocracia insondável do genial romance "O Processo". Para isso não precisaria —ninguém precisa— ter lido o livro. Kafka é figurinha tão fácil quanto o árabe da esquina.

E ainda não falamos da barata, que nem barata era. O "monstruoso inseto repulsivo" em que Gregor Samsa acorda transformado, na também genial novela "A Metamorfose", nunca é nomeado direito. Pela descrição, parece estar mais para um besourão, talvez um rola-bosta. Em todo caso, foi a barata que ficou na cabeça de todo mundo. Figurinhas fáceis são assim.

Eis por que apontar o erro do ministro é o oposto de esnobismo intelectual. Digamos que, sendo formado em economia, uma das poucas ciências humanas que sua turma não teme e execra, ele nem precisasse ter lido Kafka para estar no cargo. Por que, então, tentar passar pelo que não é?

Ao acordar certa manhã de sonhos intranquilos, Abraham Weintraub se viu transformado em sua cama em ministro da Educação. Kafkiano, bicho.
Sérgio Rodrigues

Pensamento do Dia

Angel Boligan

Xixi na cama, etc

Há uma regra não escrita segundo a qual não se imaginam pessoas de certa representatividade —monges budistas, papas, missionários, almirantes, juízes, diplomatas— rebaixando-se a funções tão íntimas, como usar fio dental, aplicar desodorante, coçar-se, soltar pum ou mesmo fazer xixi. Eu não disse que não fazem isto —disse apenas que não nos compete imaginá-las fazendo. Aliás, o grau de santidade ou de autoridade de que têm de se despir para executar essas funções é de tal ordem que nem elas devem acreditar que, às vezes, precisam desempenhá-las. Para não falar na quantidade de roupas que têm de tirar —vide os repolhudos ministros do STF.

Em tese, os presidentes da República também deveriam fazer parte dessa linhagem de entes quase incorpóreos. E alguns devem ter feito. Quero crer, por exemplo, que Rodrigues Alves (1902-1906) e Affonso Penna (1906-1909) nunca tiraram ouro do nariz e o grudaram debaixo da cadeira. Quanto aos demais, não juro por ninguém —os caricaturistas, inclusive, não perdoavam suas idiossincrasias.

Mas nenhum se expôs tão brutal, repetida e espontaneamente quanto Jair Bolsonaro. Seu mandato mal começou e já sabemos, por ele próprio, que fez xixi na cama até os cinco anos, que se preocupa com a lavagem do pênis com água e sabão e que, como declarou a Silvio Santos, continua “na ativa e sem aditivos”. Sem falar na sua descoberta do “golden shower”, a partir do vídeo escatológico que disseminou pelas redes sociais no Carnaval. É uma permanente preocupação fálica e urinária, a merecer, talvez, a atenção dos especialistas.

Já a fixação de seu líder e inspirador, o astrólogo Olavo “Bocage” de Carvalho, é mais embaixo. Suas postagens e entrevistas são um festival de referências ao cu, com conotações tanto eróticas quanto fecais. Quando ele superará a fase anal?

É fatal. Com tantos mijando fora do penico, só pode dar merda.
Ruy Castro

Violência obstétrica: realidade que governo quer ocultar

Ana Paula Lacerda, de 39 anos, estava na maca hospitalar com dez centímetros de dilatação quando ouviu da médica que conduzia seu parto que faria a episiotomia. Trata-se de uma incisão na região do períneo para ampliar o canal de saída do bebê, recomendada em casos específicos. Amarrada, a jovem só pôde gritar. Ao dar os pontos na região cortada, a obstetra não utilizou anestesia e finalizou a sutura com o "ponto do marido", um ponto extra que estreita a entrada da vagina para supostamente proporcionar maior prazer ao homem na relação sexual.

O trauma vivido por Ana Paula é uma das várias formas de violência obstétrica, cruel realidade que afeta um quarto das mães brasileiras, de acordo com pesquisa nacional realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2010. O tema tem movimentado intensamente o debate público desde que o Ministério da Saúde publicou, na última sexta-feira (03/05), um despacho interno que orienta a abolição da expressão violência obstétrica de suas normativas. O texto afirma que "o termo tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado".

O texto alega que a expressão se refere ao uso intencional da força e, dessa forma, não seria aplicável a todos os incidentes que ocorrem durante a gestação, parto ou puerpério – também conhecido como resguardo. O ministério justifica, ainda, que considera a terminologia imprópria, por acreditar que "tanto o profissional de saúde quando os de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano" à mulher durante o atendimento materno.

Procurado pela DW Brasil, o Ministério da Saúde enviou nota em que atribui o despacho a um parecer publicado no ano passado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que regulamenta a atividade médica no país.

"Os médicos entendem que a autonomia da mulher deve ter limites, principalmente quando existem fatores que possam colocar tanto a mãe quanto a criança em risco, se o parto vaginal for escolhido, e em local que não seja o hospital", diz o parecer do CFM.

A discussão coloca em lados opostos corporações médicas, que veem uma ameaça à independência dos obstetras em sua atuação profissional, e movimentos em defesa da humanização do parto, os quais ressaltam a tentativa de transformar um processo natural da mulher numa patologia.

O Brasil é o segundo país que mais realiza cesáreas no mundo, com 55,5% do total, atrás apenas da República Dominicana, de acordo com um estudo baseado em dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) e Unicef. Na rede particular, a ocorrência chega a 82%. A cirurgia deveria ser utilizada somente em casos específicos, mas se disseminou pela rapidez do procedimento, adequado à demanda mercadológica da rede privada.

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Prefeito de NY bota capitão pra correr

Imagine um presidente reacionário, fã de torturadores, homofóbico, racista e machista. Imaginou? Pois bem, agora imagine uma primeira dama negra, bissexual, mãe de dois filhos, poetisa e engajada nas causas das minorias e dos direitos humanos. Imaginou? Pois bem, foi esse encontro que o prefeito de Nova Iorque quis evitar ao recusar o convite para o jantar que iria homenagear o capitão Bolsonaro na sua cidade.

Bill de Blasio, o prefeito, preferiu desestimular a visita do capitão a NY a ter que apresentar Chirlane McCraysua, sua mulher, negra, ao capitão no jantar. Antes da preparação da viagem, Bolsonaro suspendeu uma publicidade do Banco do Brasil porque não lhe agradava os jovens negros, os trans e os descolados que apareciam descontraídos no anúncio.

Certamente se fosse brasileira, Chirlane também estaria espantada com a decisão do seu presidente de suspender a propaganda, pois a peça contrariava as suas ideias e, segundo ele, feria os bons costumes.

Atitudes como essas – autoritárias e preconceituosa – é que certamente levaram centenas de intelectuais, políticos e defensores dos direitos humanos de Nova Iorque, liderados pelo senador democrata Brad Hoylman, a se movimentarem nos EUA para impedir a presença do capitão na cidade mais cosmopolita e descolada do mundo, que defende e respeita os direitos individuais independente de cor, raça e credo como nenhuma outra no mundo.

No Twitter, o senador comemorou:

“Vitória. Nós enfrentamos o presidente homofóbico do Brasil Jair Bolsonaro e vencemos”.

Ser recebido por Trump, não deu ao capitão salvo conduto para outros estados norte-americanos. E os brasileiros assistem, sobressaltados, uma cena que jamais imaginariam: um presidente brasileiro desistir de receber uma homenagem com medo de ser hostilizado pelo povo de uma cidade, cujo prefeito o declarou persona non grata.

Ao saber que Bolsonaro seria homenageado pela Câmara do Comércio Brasil-Estados Unidos, apoiado por bancos como Itaú, Santander, HSBC e o próprio Banco do Brasil, o prefeito de NY acendeu o sinal de alerta, certamente orientado por sua mulher. Ao chamar Bolsonaro de “perigoso” para futuras gerações, ele, como chefe do município, desestimulou outros apoios. Assim, a direção do Museu de História Natural desistiu de ceder suas instalações para o convescote que custaria 30 mil dólares por pessoa.

Ao saber da rebeldia de Blasio e da má vontade em recebê-lo, o capitão bradou:

“Receberei a homenagem até na praia”.

A valentia durou pouco. Aconselhado por auxiliares mais ponderados, Bolsonaro preferiu acautelar-se a realizar uma viagem que só traria dissabores. Os arroubos de Bolsonaro mereceram outros comentários humilhante do prefeito:

“Jair Bolsonaro aprendeu da maneira mais difícil que os nova-iorquinos não fecham os olhos para a opressão. Nós chamamos atenção para sua intolerância. Ele fugiu. Nenhuma surpresa —valentões não aguentam um soco. Já vai tarde, Jair Bolsonaro. Seu ódio não é bem-vindo aqui”.

Ao cancelar o evento o capitão evita assim um confronto entre as suas posições retrógradas e o que o mundo pensa sobre as garantias individuais, o livre pensamento, a liberdade de expressão, de imprensa, LGBT e direitos humanos. Bolsonaro sai de cena e o nova-iorquino celebra a liberdade contra o preconceito.

Blasio não usa a cor da sua mulher como objeto de propaganda. Não precisa dela como “papagaio de pirata” em solenidades públicas para disfarçar o racismo. Casou-se com McCraysua, com quem tem dois filhos, e hoje administra uma das cidades mais importantes do planeta, dividindo com ela as tarefas que colocam NY hoje como a mais plural de todas as metrópoles.

O capitão fez bem em não desembarcar em Nora Iorque. Não iria gostar do que o senador Brad Hoylman e o ativista James Green, brasilianista, escritor, um professor universitário, preparavam para recepcioná-lo. Fica a lição de que a sociedade reage às truculências ideológicas e não querem se contaminar com ideias reacionárias. E recrimina governantes fascistas e autoritários.

O capitão, agora, corre o risco de ficar isolado do mundo, pois governantes de outros países terão receio de chamá-lo para qualquer evento depois da rebeldia em Nova Iorque. Aliás, até a própria direita não simpatiza muito com as suas ideias, como observou o presidente do Chile Sebastián Piñera ao recebê-lo no seu país: “São declarações tremendamente infelizes. Não compartilho muito com que Bolsonaro diz sobre o tema (o apoio do Bolsonaro às ditaduras da América Latina) “.

Na verdade, ser de direita, conservador, é uma opção política que deve ser respeitada quando se vive numa democracia. Não necessariamente, um governo de direita precisa defender a tortura, estimular a violência, ser homofóbico e racista. Este, tem outro nome: nazifascista.

Os 45 milhões de brasileiros com deficiência física são os novos párias

Devem nos parecer poucos porque tentamos não vê-los. Na realidade, segundo o último censo demográfico do IBGE, 45 milhões de brasileiros sofrem de algum tipo de deficiência física. Entre eles, pessoas que saem às ruas em cadeiras de rodas para enfrentar, nas grandes cidades, criadas para os “normais”, o calvário de espaços que não os levam em conta. São os novos párias de uma sociedade que privilegia os saudáveis.


O mundo está cada vez mais agrupado nas grandes cidades de asfalto. O mundo rural está desaparecendo e essas grandes megalópoles parecem pensadas, projetadas e criadas para os carros e os atletas. Aqueles que sofrem de deficiência para se deslocar estão sendo empurrados para um retiro forçado. São os novos excluídos de uma sociedade que prioriza aqueles que produzem, enquanto cria calçadas que são na verdade muros intransponíveis para aqueles que perderam a mobilidade das pernas.

Quando o poder público fecha os olhos a esses chatos incapazes de usar as modernas cidades de asfalto e prefere pensar que não existem, surgem, como uma centelha de humanidade para esses pobres de mobilidade, movimentos de resistência de jovens ligados à arte que se organizam para desmascarar publicamente a cegueira frente aos novos excluídos que acabam marginalizados.

Um desses movimentos que desmascaram os insensíveis à dor de carregar o fardo de não se sentirem autossuficientes nasceu em São Paulo, a maior cidade da América Latina, com dez milhões de habitantes. Em todo o Brasil, apenas 4,7%, segundo o IBGE, das calçadas são acessíveis para pessoas com deficiência física. Em São Paulo, uma cidade que sempre foi sensível aos problemas de mobilidade urbana, apenas 9% das calçadas são acessíveis a essas pessoas, o que significa que 91% não o são.

Na capital paulista, coração do mundo das finanças, um grupo de jovens grafiteiros, estimulado pela ONG Movimento SuperAção, lançou o projeto “Sem Rampa, Calçada é Muro”, idealizado pela agência Z. A ideia é levar os grafites dos muros da cidade às calçadas, que para os deficientes físicos são os verdadeiros muros intransponíveis. Trata-se, na ideia desses jovens artistas que já realizaram 14 dessas provocações com as suas obras de arte em outras tantas regiões da cidade, de mostrar que para essas pessoas as calçadas das ruas são muros intransponíveis.

Segundo Billy Saga, presidente da ONG Movimento SuperAção, trata-se de “estimular a emoção dos cidadãos, porque a razão não foi suficiente”. De acordo com os animadores dessa resistência dos jovens grafiteiros “a arte é uma das mais belas fontes de contato entre o ser humano e ele próprio. Estamos fomentando a inclusão de uma forma que só a arte é capaz”.

Será por isso que, para o novo Governo de Jair Bolsonaro, a simples palavra “arte” provoca calafrios? Que a arte e o pensamento, a reflexão e a defesa dos direitos humanos seriam válidos apenas para quem não precisa deles? O presidente brasileiro chegou a cunhar com sarcasmo que o que lhe interessa não são os direitos humanos, mas os “humanos direitos”. Os rotos, os esquecidos, os frágeis, aqueles que se gostaria de esconder ou eliminar, esses não interessam.

Um presidente e um Governo que tanto alardeiam Deus e a Bíblia, se esquecem que Jesus, um nome que de tanto manuseá-lo se tornou descartável, viveu para defender não os “humanos direitos”, aqueles os que não precisam de ajuda, os que se orgulhavam de “não serem pecadores como os outros”, mas aqueles aos quais não existia nem compaixão nem lugar na sociedade. Para eles, os incapazes de se deslocar e de viver direitos, aos improdutivos, dirigia não apenas sua compaixão, mas a força de fazê-los andar, liberando-os da dor de não poderem ser autossuficientes.

Exemplos como o dos jovens artistas de São Paulo já estão contagiando o Rio de Janeiro e o Recife. Espero que a iniciativa acabe incendiando o país inteiro. É emblemático que sejam hoje os mais jovens do mundo aqueles que desenvolvam com maior criatividade e sensibilidade os movimentos a favor, por exemplo, da defesa da Terra ameaçada. A adolescente sueca de 16 anos, Greta Thunberg, está mobilizando milhões nos cinco continentes em defesa do meio ambiente. E no Brasil, onde se tenta decapitar o orçamento da educação sem o menor pudor, os jovens foram os primeiros a sair às ruas contra essa infâmia, porque se algo é urgente no Brasil é vitalizar e modernizar o ensino, que figura no fim dos rankings mundiais de eficiência. E isso quando é evidente que sem essa revolução educacional o Brasil continuará, com Governos da direita ou de esquerda, perpetuando sua pobreza intelectual, moral e espiritual.