segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Querido Papai Noel
Em um país tão perverso, no qual o imprescindível equilíbrio das contas públicas esbarra em um Parlamento que limita o reajuste real do salário mínimo e ao mesmo tempo libera o fura-teto nos ganhos dos privilegiados de sempre, é difícil se imbuir do espírito do Natal. Nem os mais otimistas, entre os quais me encaixo, encontram ânimo diante da sucessão de escárnios perpetrados em todas as esferas e níveis de poder. Mas é Natal, então, escoro-me na ficção do bom velhinho, a quem se remetem desejos – mesmo os impossíveis.
Os pedidos na cartinha não são muitos e se concentram na nossa terra natal, ainda que a utopia maior seja tempos de paz, com o fim de guerras e de governos autocráticos, repressores e criminosos. E antecipo as desculpas por beirar a pieguice, talvez perdoável em um texto natalino. Vamos lá:
Queria que divergências não se tornassem brigas de foice e morte; que diferentes respeitassem as diferenças dos outros, fossem elas políticas, intelectuais, sociais, de crença, cor ou gênero; que os argumentos e não a imbecilidade prevalecesse no debate entre opostos.
Que tentativas de golpe como a gestada antes do Natal de 2022 fossem punidas e enterradas de vez.
Peço que os governantes governem sem sugar o pagador de impostos e quase nada devolver a ele em serviços; que as polícias prendam bandidos sem matar inocentes com balas perdidas ou em falsos confrontos; que a corrupção deixe de ser a principal cartilha de regência do país.
Que não se privilegiem alguns fidalgos acima da lei e todos possam ser iguais perante ela, seguindo a óbvia e não cumprida determinação constitucional.
Mesmo sabendo que não há qualquer chance, queria que deputados e senadores olhassem para além dos milhões que buscam (e secretamente conseguem) abocanhar para os seus quintais, para os próprios bolsos e para uns e outros que os financiam; que a chantagem com emendas pudesse ser estancada – e até as tais emendas, limitadas.
Que os eleitos não agissem no sentido inverso da expectativa de quem os elegeu; que pelo menos tentassem representar o voto a eles empenhado; que não aprovassem absurdos como a proibição de aborto para crianças estupradas, facilidades para compra de armas de fogo e munições, perdão para desmatadores e garimpeiros ilegais.
No particular, rogo que os vereadores paulistanos se arrependam da autorização para o corte de 10 mil árvores, boa parte nativas, em uma cidade que clama por verde; que a Amazônia sobreviva e com ela todos nós; que a COP 30, que acontecerá em Belém, vá além da festa e dos fogos de artifícios.
Quero ainda que o Judiciário baixe a bola, limitando-se às suas atribuições originárias. Ou seja, que o STF volte a ser Supremo, acima das peraltices da política, sem a arrogância e a persona de salvador da pátria que se auto-atribuiu.
Faço figa para que o governo consiga equilibrar as contas; que a entidade mercado compreenda que há risco, mas há ganhos (alta do PIB, quase pleno emprego); que bolsonaristas e parcela do PT que torcem contra deixem o ministro Fernando Haddad trabalhar; que o crescimento da economia ultrapasse a linha do esquentamento do consumo sustentada por programas sociais e incentivos fiscais; que a inflação não volte a nos empobrecer ainda mais.
Importantíssimo (grafado com asterisco): que Lula se renda aos textos pré-escritos, abandonando de vez o improviso alimentador do caos.
Na verdade, não se trata deste ou de outro governo. O Brasil é um país disfuncional há muitos natais. Finge tentar, cisca daqui e dali, mas até o seu repetitivo voo de galinha acaba sempre pesando sobre os mais pobres.
Por aqui, Noel, é de chorar. Enquanto alguns poucos se deliciam com mimos e regalias, milhares de crianças pobres pedem cestas básicas nas cartinhas que escrevem para você.
Frustradas em anos anteriores, desta vez elas estão sendo atendidas em um trabalho louvável da ONG Ação Cidadania. Ufa! Pelo menos existem aqueles que nos fazem crer – e emocionar – com o espírito do Natal. É na toada deste último parágrafo que desejo boas festas a todos.
O que escorre sob a ponte da civilidade
Para Antoine de Rivarol, polemista do século 18, a Revolução Francesa terminou quando acabaram as execuções em praça pública, e o povo já não mais cantava "ça ira, ça ira /les aristocrates on les pendra" ("vai dar certo, vai dar certo / vamos enforcar os aristocratas"). Ou seja, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade seriam coisa de intelectuais iluministas, enquanto à massa interessava o espetáculo da vingança pela guilhotina. Essa impulsão parece intemporal, próxima ao que os alemães conhecem como "Schadenfreude", o prazer de infligir sofrimento a outros.
As noções de sociopatia e psicopatia, pertencentes ao campo cognitivo desse fenômeno, têm valência política. Mas não são exclusivas de época nem de classe social. Ajudam a explicar o comportamento da Polícia Militar de São Paulo. Uma sociopatia fardada é matriz da violência de psicopatas contra marginais pés de chinelos, exibindo estatísticas ineficazes, recuando apenas da boca para fora ante o alarme da mídia. À boca pequena, há o consenso de que isso rende votos, de que extermínio teria grande aprovação popular. O "tô nem aí" do governador é a frase mais obscena do ano.
As noções de sociopatia e psicopatia, pertencentes ao campo cognitivo desse fenômeno, têm valência política. Mas não são exclusivas de época nem de classe social. Ajudam a explicar o comportamento da Polícia Militar de São Paulo. Uma sociopatia fardada é matriz da violência de psicopatas contra marginais pés de chinelos, exibindo estatísticas ineficazes, recuando apenas da boca para fora ante o alarme da mídia. À boca pequena, há o consenso de que isso rende votos, de que extermínio teria grande aprovação popular. O "tô nem aí" do governador é a frase mais obscena do ano.
Os alvos críticos da agenda progressista costumam ser os aparatos de Estado, a economia e as elites. É difícil sondar a alma popular, as pesquisas surfam na superfície plebiscitária dos números. Daí a surpresa quando ressoam vozes aprobatórias nos EUA para o assassinato de alto executivo da indústria da saúde. O ato frio do acusado, filho da elite americana, fica em segundo plano pela aparência e educação do jovem.
Pode-se especular que o sentimento seria outro se o assassino fosse negro. Ainda assim, o que está mesmo presente é a violência latente, em intensidade variável, numa sociedade que favorece impulsões de vingança. É possível lançar um olhar crítico para as estruturas, as diferenças de classe em termos de renda e cultura. Mas há outro lado, despercebido pelo racionalismo analítico, presente na grande literatura: "Só se pode viver perto do outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura" (Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa).
Entretanto amor e ódio são modos fundamentais de existência, permeáveis à passagem de um para o outro, o que se exacerba quando a incivilidade é alimentada pelo debilitamento das instituições e dos processos civilizatórios. Por isso, na percepção de desamparo ou de medo, em plena modernidade civil, o odioso sentimento de vingança ainda se acende como brasa do passado. Intemporal, ele irrompe na insegurança cidadã diante da criminalidade ou de impiedades industriais. E, claro, preside à popularidade eleitoral de sociopatas.
Sob a ponte da civilidade, escorre, surdo, o ódio, fonte do inaceitável. É o que sempre acontece nos picos de barbárie. Dirigentes que hoje o estimulam transbordam da lata de lixo da história como baratas refratárias ao espírito do tempo, que é avesso ao patológico "espírito de corpo" de tropas fardadas. O tempo vivido é de repúdio ao horror em estado puro do passado.
Pode-se especular que o sentimento seria outro se o assassino fosse negro. Ainda assim, o que está mesmo presente é a violência latente, em intensidade variável, numa sociedade que favorece impulsões de vingança. É possível lançar um olhar crítico para as estruturas, as diferenças de classe em termos de renda e cultura. Mas há outro lado, despercebido pelo racionalismo analítico, presente na grande literatura: "Só se pode viver perto do outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura" (Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa).
Entretanto amor e ódio são modos fundamentais de existência, permeáveis à passagem de um para o outro, o que se exacerba quando a incivilidade é alimentada pelo debilitamento das instituições e dos processos civilizatórios. Por isso, na percepção de desamparo ou de medo, em plena modernidade civil, o odioso sentimento de vingança ainda se acende como brasa do passado. Intemporal, ele irrompe na insegurança cidadã diante da criminalidade ou de impiedades industriais. E, claro, preside à popularidade eleitoral de sociopatas.
Sob a ponte da civilidade, escorre, surdo, o ódio, fonte do inaceitável. É o que sempre acontece nos picos de barbárie. Dirigentes que hoje o estimulam transbordam da lata de lixo da história como baratas refratárias ao espírito do tempo, que é avesso ao patológico "espírito de corpo" de tropas fardadas. O tempo vivido é de repúdio ao horror em estado puro do passado.
Na ilha por vezes habitada
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
José Saramago
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
José Saramago
A busca pela ignorância
Aristóteles escreveu que o ser humano busca o conhecimento. Acho até que dá para avançar um pouco mais e afirmar que quase tudo de bom que a civilização nos proporciona se deve ao fato de termos esse impulso natural pelo conhecimento e sermos capazes de acumulá-lo coletivamente e transmiti-lo às próximas gerações.
Se cada pessoa que chega ao mundo tivesse de reinventar a roda e recriar a escrita por conta própria, a história de nossa espécie seria muito diferente. Talvez nem houvesse História.
Mark Lilla mostra em "Ignorance and Bliss" (ignorância e contentamento) que Aristóteles capturou apenas parte do quadro. Existem situações em que humanos fazemos uma opção preferencial pela ignorância. E existem períodos históricos em que essa tendência assume proporções epidêmicas. Vivemos numa dessas épocas.
A ignorância voluntária se manifesta das mais variadas formas. Ela pode vir como crença em falsos profetas, em rumores infundados, em pensamento mágico e outras formas de fanatismo. Em muitas dessas situações, optamos por não saber porque a busca pela verdade nos obrigaria a questionar coisas que julgamos já saber e que nos dão conforto e senso de propósito.
Lilla destrincha esse e outros mecanismos psicológicos pró-ignorância e o faz recorrendo a não apenas a situações do mundo real como também da literatura. Sófocles, Dostoiévski e Freud são grandes contribuidores do livro, o que torna sua leitura um smorgasbord intelectual.
O autor reserva palavras especialmente duras para Paulo de Tarso. Segundo Lilla, foi este santo católico que criou e deu lustro a uma ideologia anti-intelectualista que se fixou no pensamento cristão e depois vazou para sociedades seculares.
O curioso é que o próprio Paulo não era um ignorante, muito pelo contrário. Ele conhecia bem a filosofia grega e era versado na lei judaica. Mas, imbuído do espírito prosélito dos fanáticos, pensava que uma verdadeira conversão ao cristianismo passava pela destruição de crenças anteriores. Foi Paulo de Tarso que deu respeitabilidade à ignorância.
Se cada pessoa que chega ao mundo tivesse de reinventar a roda e recriar a escrita por conta própria, a história de nossa espécie seria muito diferente. Talvez nem houvesse História.
Mark Lilla mostra em "Ignorance and Bliss" (ignorância e contentamento) que Aristóteles capturou apenas parte do quadro. Existem situações em que humanos fazemos uma opção preferencial pela ignorância. E existem períodos históricos em que essa tendência assume proporções epidêmicas. Vivemos numa dessas épocas.
A ignorância voluntária se manifesta das mais variadas formas. Ela pode vir como crença em falsos profetas, em rumores infundados, em pensamento mágico e outras formas de fanatismo. Em muitas dessas situações, optamos por não saber porque a busca pela verdade nos obrigaria a questionar coisas que julgamos já saber e que nos dão conforto e senso de propósito.
Lilla destrincha esse e outros mecanismos psicológicos pró-ignorância e o faz recorrendo a não apenas a situações do mundo real como também da literatura. Sófocles, Dostoiévski e Freud são grandes contribuidores do livro, o que torna sua leitura um smorgasbord intelectual.
O autor reserva palavras especialmente duras para Paulo de Tarso. Segundo Lilla, foi este santo católico que criou e deu lustro a uma ideologia anti-intelectualista que se fixou no pensamento cristão e depois vazou para sociedades seculares.
O curioso é que o próprio Paulo não era um ignorante, muito pelo contrário. Ele conhecia bem a filosofia grega e era versado na lei judaica. Mas, imbuído do espírito prosélito dos fanáticos, pensava que uma verdadeira conversão ao cristianismo passava pela destruição de crenças anteriores. Foi Paulo de Tarso que deu respeitabilidade à ignorância.
Pequeno dicionário do Brasil
Aventuro-me a apresentar o dicionário do Brasil que chega ao final de 2024, desejando a todos os meus leitores Votos de um Feliz Natal e Próspero 2025.
Autoridade – Essencial para o exercício do Poder e o governo do Estado. No Brasil, tornou-se sinônimo de caciquismo, coronelismo, mandonismo, familismo, filhotismo, assistencialismo, patrimonialismo.
Bala – É o que não falta aos grupos armados, cujo estoque de armamentos é dos mais modernos e poderosos. Balas perdidas no RJ matam crianças. Conceito de “munição” de campanha política. Exemplos de locuções: “faltou bala; o candidato tem ainda muita bala”.
Bíblia – Manual mais lido nos cárceres brasileiros, que funciona como uma espécie de “ponte” entre pastores de credos e seitas religiosas e detentos. Disponível em mesinhas de criados-mudos de hotéis do Interior do país.
Corrupção – Desvio amoral e aético que está impregnado na alma brasileira, decorrente de heranças coloniais.
Crise – Um dos mais recorrentes termos do vocabulário nacional. De tão constante na vida das pessoas, deixou de causar medo.
Deus – Uma das expressões mais usadas para designar perplexidade, espanto, indignação, admiração, incredibilidade, descrença. Vem geralmente acompanhada do termo “do céu”. Lula seria Deus.
Diabo – Imprecação comum no cotidiano dos brasileiros, geralmente destinada a mandar outra pessoa para o reino dos infernos. O mercado é diabo, Lula é Deus.
Dólar – Referência diária para interpretar a fragilidade nacional. Um dólar vale R$ 6,30.
Empurrar com a barriga – Adiar, protelar decisões, levar devagarzinho, dando a ideia de que a coisa está andando sem avançar, do tipo patinando numa esteira
Executivo – Expressão mais conhecida para designar profissionais bem-sucedidos e com boa remuneração no mercado. Na esfera política, o Executivo é o mais visível dos Poderes.
FDP – (Filho/a da…) – Imprecação mais comum contra adversários, inimigos, opositores ou pessoas que fizeram alguma maldade ao interlocutor. Expressa raiva, ódio, indignação, condenação, desprezo etc.
Futebol – Paixão nacional, motivo de alegrias e tristezas. Ao lado do carnaval, é uma das grandes alavancas de mobilização de massas.
Gosto – O brasileiro tem gosto para tudo. Não há homogeneidade na escala dos gostos nacionais. As diferenças não se apresentam apenas no plano estético, mas na esfera dos alimentos, da música, dos perfis admirados, das belezas naturais.
Hilário – O brasileiro gosta de rir. Tira motivos para rir até em velório. Entre uma coisa séria e uma hilária, esta é a preferida pela alma nacional.
Hino (Nacional) – Mais conhecido e recitado nas primeiras estrofes. Como é longo, costuma-se, ao final, balbuciá-lo, numa espécie de mentirinha para se dizer que a pessoa sabe cantar o hino todo.
Igreja – Historicamente, conceito associado à Igreja Católica. Ultimamente, termo mais associado às seitas religiosas ou à Igreja Universal do Reino de Deus e outros credos.
Jeitinho – Capacidade de driblar situações para conseguir atingir metas e objetivos.
Judiciário – Fonte de poder e mando, espaço de tradição e credibilidade. Nos últimos tempos, a identidade incólume de instituição sagrada passou a frequentar a agenda de desconfiança dos brasileiros.
Ladrão – Palavra muito usada do vocabulário nacional. Termo aplicado aos juízes de futebol e, com mais força, aos políticos
Mãe – Tronco familiar dos mais respeitados no país, servindo, paradoxalmente, ao maior conjunto de imprecações da linguagem cotidiana das ruas. “Filho de uma mãe”, intenção de dizer que o interlocutor não é bem filho de uma mãe.
Massas – Contingentes amorfos, que agregam letrados ingênuos a iletrados sofridos, bafejados pelos candidatos de quatro em quatro anos.
Nação – Está longe de ser implantada, quando se considera a identificação com Pátria e valores.
Natureza – O tema dos próximos tempos. Expressão que começa a tomar vulto nas consciências de grupos de classe média e entidades de defesa do meio ambiente.
Obrigação – O brasileiro cultiva a obrigação quase na marra.
Ordem – É uma coisa que pouco se vê nos espaços nacionais.
Paixão – Sentimento muito peculiar ao caráter brasileiro. Cada coração abre espaços enormes para abrigar ciúmes, casos conflituosos, pequenas raivas do cotidiano ou discursos eloquentes em defesa do time predileto.
Progresso – Ao lado da Ordem, trata-se de pedaço do ideário que povoa o imaginário nacional. Como o Progresso está demorando, a sensação é a de que o termo denota a falta de seriedade.
Quase – Assim como o “mais ou menos”, o quase traduz a mania do brasileiro de querer permanecer na esfera intermediária. “Quase acertei”, “fulano quase se elegeu”, “o time quase ganhou”.
Razão – Fator em crescimento na ordem dos valores sociais. A taxa de racionalidade cresce.
Renda – Fator de grande disparidade social. Quase 40% da população brasileira vivem abaixo da linha de pobreza.
Segurança – Preocupação permanente dos brasileiros, forte determinante do PNBinf (Produto Nacional Bruto da Infelicidade). Tema central da campanha de 2026. Valor em queda no mercado de valores.
Terra – É o que não falta ao país. E é das coisas mais reclamadas por imensos contingentes. Um país de muita terra com muita gente sem-terra.
União – A união é um dos mais fortes ícones da brasilidade. No capítulo da sociedade, o abismo entre as classes sociais denuncia a intensidade da desunião e da desigualdade.
Urna – Lugar sagrado onde o eleitor guarda sua arma, o voto. Urna eletrônica, lugar considerado seguro. Mas há quem questione.
Valeu – Tempo verbal que funciona mais como interjeição de aprovação, quando um dos interlocutores, em agradecimento ou reconhecimento, abre a palavra para anunciar o célebre: valeu
Vício – É coisa muito comum na vida do brasileiro, a partir do vício de fumar, de andar com o braço na janela do carro, de desobedecer a leis e códigos.
Xingar – Mania frequente dos cidadãos. Xingar a mãe é a coisa mais comum.
Zorra – Bagunça, tem muito a ver com algumas situações nas administrações públicas (esferas federal, estadual e municipal).
A
Autoridade – Essencial para o exercício do Poder e o governo do Estado. No Brasil, tornou-se sinônimo de caciquismo, coronelismo, mandonismo, familismo, filhotismo, assistencialismo, patrimonialismo.
B
Bala – É o que não falta aos grupos armados, cujo estoque de armamentos é dos mais modernos e poderosos. Balas perdidas no RJ matam crianças. Conceito de “munição” de campanha política. Exemplos de locuções: “faltou bala; o candidato tem ainda muita bala”.
Bíblia – Manual mais lido nos cárceres brasileiros, que funciona como uma espécie de “ponte” entre pastores de credos e seitas religiosas e detentos. Disponível em mesinhas de criados-mudos de hotéis do Interior do país.
C
Corrupção – Desvio amoral e aético que está impregnado na alma brasileira, decorrente de heranças coloniais.
Crise – Um dos mais recorrentes termos do vocabulário nacional. De tão constante na vida das pessoas, deixou de causar medo.
D
Deus – Uma das expressões mais usadas para designar perplexidade, espanto, indignação, admiração, incredibilidade, descrença. Vem geralmente acompanhada do termo “do céu”. Lula seria Deus.
Diabo – Imprecação comum no cotidiano dos brasileiros, geralmente destinada a mandar outra pessoa para o reino dos infernos. O mercado é diabo, Lula é Deus.
Dólar – Referência diária para interpretar a fragilidade nacional. Um dólar vale R$ 6,30.
E
Empurrar com a barriga – Adiar, protelar decisões, levar devagarzinho, dando a ideia de que a coisa está andando sem avançar, do tipo patinando numa esteira
Executivo – Expressão mais conhecida para designar profissionais bem-sucedidos e com boa remuneração no mercado. Na esfera política, o Executivo é o mais visível dos Poderes.
F
FDP – (Filho/a da…) – Imprecação mais comum contra adversários, inimigos, opositores ou pessoas que fizeram alguma maldade ao interlocutor. Expressa raiva, ódio, indignação, condenação, desprezo etc.
Futebol – Paixão nacional, motivo de alegrias e tristezas. Ao lado do carnaval, é uma das grandes alavancas de mobilização de massas.
G
Gosto – O brasileiro tem gosto para tudo. Não há homogeneidade na escala dos gostos nacionais. As diferenças não se apresentam apenas no plano estético, mas na esfera dos alimentos, da música, dos perfis admirados, das belezas naturais.
H
Hilário – O brasileiro gosta de rir. Tira motivos para rir até em velório. Entre uma coisa séria e uma hilária, esta é a preferida pela alma nacional.
Hino (Nacional) – Mais conhecido e recitado nas primeiras estrofes. Como é longo, costuma-se, ao final, balbuciá-lo, numa espécie de mentirinha para se dizer que a pessoa sabe cantar o hino todo.
I
Igreja – Historicamente, conceito associado à Igreja Católica. Ultimamente, termo mais associado às seitas religiosas ou à Igreja Universal do Reino de Deus e outros credos.
J
Jeitinho – Capacidade de driblar situações para conseguir atingir metas e objetivos.
Judiciário – Fonte de poder e mando, espaço de tradição e credibilidade. Nos últimos tempos, a identidade incólume de instituição sagrada passou a frequentar a agenda de desconfiança dos brasileiros.
L
M
Mãe – Tronco familiar dos mais respeitados no país, servindo, paradoxalmente, ao maior conjunto de imprecações da linguagem cotidiana das ruas. “Filho de uma mãe”, intenção de dizer que o interlocutor não é bem filho de uma mãe.
Massas – Contingentes amorfos, que agregam letrados ingênuos a iletrados sofridos, bafejados pelos candidatos de quatro em quatro anos.
N
Nação – Está longe de ser implantada, quando se considera a identificação com Pátria e valores.
Natureza – O tema dos próximos tempos. Expressão que começa a tomar vulto nas consciências de grupos de classe média e entidades de defesa do meio ambiente.
O
Obrigação – O brasileiro cultiva a obrigação quase na marra.
Ordem – É uma coisa que pouco se vê nos espaços nacionais.
P
Paixão – Sentimento muito peculiar ao caráter brasileiro. Cada coração abre espaços enormes para abrigar ciúmes, casos conflituosos, pequenas raivas do cotidiano ou discursos eloquentes em defesa do time predileto.
Progresso – Ao lado da Ordem, trata-se de pedaço do ideário que povoa o imaginário nacional. Como o Progresso está demorando, a sensação é a de que o termo denota a falta de seriedade.
Q
R
Razão – Fator em crescimento na ordem dos valores sociais. A taxa de racionalidade cresce.
Renda – Fator de grande disparidade social. Quase 40% da população brasileira vivem abaixo da linha de pobreza.
S
Segurança – Preocupação permanente dos brasileiros, forte determinante do PNBinf (Produto Nacional Bruto da Infelicidade). Tema central da campanha de 2026. Valor em queda no mercado de valores.
T
Terra – É o que não falta ao país. E é das coisas mais reclamadas por imensos contingentes. Um país de muita terra com muita gente sem-terra.
U
União – A união é um dos mais fortes ícones da brasilidade. No capítulo da sociedade, o abismo entre as classes sociais denuncia a intensidade da desunião e da desigualdade.
Urna – Lugar sagrado onde o eleitor guarda sua arma, o voto. Urna eletrônica, lugar considerado seguro. Mas há quem questione.
V
Valeu – Tempo verbal que funciona mais como interjeição de aprovação, quando um dos interlocutores, em agradecimento ou reconhecimento, abre a palavra para anunciar o célebre: valeu
Vício – É coisa muito comum na vida do brasileiro, a partir do vício de fumar, de andar com o braço na janela do carro, de desobedecer a leis e códigos.
X
Xingar – Mania frequente dos cidadãos. Xingar a mãe é a coisa mais comum.
Z
Zorra – Bagunça, tem muito a ver com algumas situações nas administrações públicas (esferas federal, estadual e municipal).
Os militares não estão sozinhos
Os militares estão na berlinda, sendo avaliados pela opinião pública diante das denúncias de tentativa de dar um golpe de Estado, derrubar o governo Lula, matar o presidente, seu vice, o Ministro do STF Alexandre de Moraes e rasgar a Constituição.
No governo Bolsonaro, esses militares tinham carta branca para praticar o butim do dinheiro público, ocupando ministérios e milhares de postos da administração pública para os quais não tinham nenhuma qualificação, interferindo em licitações, pressionando por propinas, contratando firmas de seus apaniguados, desviando dinheiro público, aparelhando e destruindo os órgãos de Estado, perseguindo seus opositores.
O general Eduardo Pazuello, que ocupou o cargo de ministro da Saúde, é um bom exemplo. Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras, em 1984, formou-se como oficial de Intendência. Fez o curso de Comando e Estado-Maior no Exército e o curso de política e estratégia aeroespaciais, na Força Aérea Brasileira (FAB). Bolsonaro justificou sua escolha para ministro da Saúde atribuindo-lhe a formação de “especialista em logística”. Em sua gestão, a presença de militares saltou de 2,7% para 7,3% na área da saúde, e foram denunciadas várias negociatas, entre elas com a compra de vacinas.
Segundo a BBC News Brasil, Pazuello foi nomeado ministro depois que dois ex-ministros civis se recusaram a recomendar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina. A mortandade provocada pela epidemia de Covid-19 recai também em suas mãos. Esse “especialista em logística” deixou de comprar tanto vacinas e até seringas para aplicá-las quanto respiradores.1
Cinco generais do Exército foram nomeados ministros de Estado – Braga Netto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Eduardo Pazuello (Saúde). A Marinha também foi contemplada, com a nomeação do almirante Bento Albuquerque para o Ministério de Minas e Energia, onde ele elevou a participação dos militares para 10,8% dos funcionários. Sem mencionar os oficiais em segundo escalão nos ministérios e demais órgãos públicos.
Pode-se dizer que, em aliança com empresários e com o apoio norte-americano, as Forças Armadas estiveram profundamente envolvidas no governo anterior, que privatizou, favoreceu as empresas, isentou impostos para corporações, baixou a regulação e permitiu a devastação ambiental, mas também operou abrindo espaço para a espoliação do dinheiro público em larga escala por parte dos governantes de plantão, em especial o clã Bolsonaro, notoriamente vinculado às milícias do Rio de Janeiro.
A tentativa de golpe denunciada pela Polícia Federal foi promovida pelo núcleo duro do governo anterior, mas é preciso deixar claro que não são apenas – grupos de militares que estão à frente dessa tentativa. Vários grupos econômicos do agronegócio, do setor financeiro, da mídia, dos transportes e do comércio estiveram envolvidos, muitos dos quais já identificados em inquéritos da Polícia Federal.
Essa situação, porém, não é de hoje. Em 2005, o então senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, já dizia: “Estou encantado com a crise política. Ela vai livrar a gente dessa raça por pelo menos trinta anos”. Banqueiro, Bornhausen se referia aos trabalhadores, sem-terra, pobres, excluídos, ou seja, todos que não pertenciam à elite. Desde então é possível reconhecer as ofensivas das forças conservadoras, que se propõem a alijar Lula e o PT do governo.
Essa defesa dos interesses da elite brasileira é uma constante. Na fase atual, ela se expressa no golpe parlamentar que depôs a presidenta Dilma Rousseff em 2016; na prisão ilegal de Lula em 2018, para impedi-lo de participar das eleições desse ano; na invasão dos prédios do governo, com o fim de impedir a posse de Lula eleito, em janeiro de 2023. Merece destaque a Lava Jato, processo de law fare, ou seja, o ataque político por meio da manipulação dos instrumentos legais, que foi de 2014 a 2021.
Não se trata de uma quartelada de iniciativa de meia dúzia de aloprados. É um amplo movimento com bases na sociedade que expressa uma aliança política que trabalha há anos pelo desgaste da imagem de Lula e do PT e de setores progressistas, pelo fim das políticas redistributivas, pelo fim da regulação democrática que limita a espoliação das maiorias e defende a “livre” atuação das empresas.
Com sólidos e majoritários blocos parlamentares de direita na Câmara dos Deputados e no Senado, temos de considerar também a participação efetiva de parlamentares na tentativa de golpe. Muitos deles são identificáveis por demandarem nas redes sociais e em outros espaços públicos o golpe e a intervenção militar. Muitos representam também os setores econômicos que se envolveram com o golpe e a tentativa de desestabilização política do governo eleito.
Pesquisas e análises sociológicas identificam vários setores profissionais, das classes média e alta, ligados a esse movimento. Advogados, juízes, promotores, médicos, engenheiros, dentistas e administradores são exemplos de categorias profissionais que se opõem ao PT e à “esquerda”, seja lá o que se entenda por ser de esquerda. Sentem-se ameaçados em seus privilégios pelas políticas redistributivas, pelo acesso dos pobres à universidade, pela presença de negros em seu ambiente profissional e pela afirmação dos direitos das empregadas domésticas, por exemplo. Segundo eles, o aeroporto não pode virar uma rodoviária…
O “Teto dos Gastos”, imposto pelo governo Temer em 2026, ou o “Arcabouço Fiscal” são demandas das classes dominantes que só cortam os gastos sociais. Querem o equilíbrio das contas nacionais sem mexer em seus privilégios, onerando apenas os pobres. Como diziam parlamentares quando da imposição do Teto, “os gastos sociais não cabem no Orçamento Público”.
Como aponta Eduardo Fagnani, “as elites financeiras nacionais e internacionais jamais aceitaram que o movimento social capturasse uma parcela do orçamento do Governo Federal (cerca de 10% do PIB), a maior parte concentrada na Previdência Social (8% do PIB)”.2 E continuam não aceitando o governo que se propõe enfrentar a fome e a pobreza.
Que fique claro: a tentativa de golpe não foi um raio em céu azul; ela vem sendo gestada há décadas. É a democracia que foi e continua sendo atacada. Como interpretar essa iniciativa, presente no Congresso, que pretende mudar a Constituição para subordinar o Supremo Tribunal Federal aos seus desígnios? Como interpretar a apropriação da receita pública por parlamentares para a doação de emendas se a atribuição da execução orçamentária é do Executivo?
Se as punições aos golpistas forem efetivas e envolverem financiadores, a mídia e parlamentares, o Brasil terá dado um passo importante para consolidar a democracia e afirmar que os benefícios do desenvolvimento não serão uma exclusividade das elites, das classes dominantes, mas favorecerão também as maiorias.
Silvio Caccia Bava
1 André Shalders, “Quem é Eduardo Pazuello, o general que assume interinamente o Ministério da Saúde”, BBC News Brasil, 16 maio 2020.
2 Eduardo Fagnani, “As demandas sociais da democracia não cabem no orçamento?”, Plataforma Política Social, 2020.
No governo Bolsonaro, esses militares tinham carta branca para praticar o butim do dinheiro público, ocupando ministérios e milhares de postos da administração pública para os quais não tinham nenhuma qualificação, interferindo em licitações, pressionando por propinas, contratando firmas de seus apaniguados, desviando dinheiro público, aparelhando e destruindo os órgãos de Estado, perseguindo seus opositores.
O general Eduardo Pazuello, que ocupou o cargo de ministro da Saúde, é um bom exemplo. Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras, em 1984, formou-se como oficial de Intendência. Fez o curso de Comando e Estado-Maior no Exército e o curso de política e estratégia aeroespaciais, na Força Aérea Brasileira (FAB). Bolsonaro justificou sua escolha para ministro da Saúde atribuindo-lhe a formação de “especialista em logística”. Em sua gestão, a presença de militares saltou de 2,7% para 7,3% na área da saúde, e foram denunciadas várias negociatas, entre elas com a compra de vacinas.
Segundo a BBC News Brasil, Pazuello foi nomeado ministro depois que dois ex-ministros civis se recusaram a recomendar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina. A mortandade provocada pela epidemia de Covid-19 recai também em suas mãos. Esse “especialista em logística” deixou de comprar tanto vacinas e até seringas para aplicá-las quanto respiradores.1
Cinco generais do Exército foram nomeados ministros de Estado – Braga Netto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Eduardo Pazuello (Saúde). A Marinha também foi contemplada, com a nomeação do almirante Bento Albuquerque para o Ministério de Minas e Energia, onde ele elevou a participação dos militares para 10,8% dos funcionários. Sem mencionar os oficiais em segundo escalão nos ministérios e demais órgãos públicos.
Pode-se dizer que, em aliança com empresários e com o apoio norte-americano, as Forças Armadas estiveram profundamente envolvidas no governo anterior, que privatizou, favoreceu as empresas, isentou impostos para corporações, baixou a regulação e permitiu a devastação ambiental, mas também operou abrindo espaço para a espoliação do dinheiro público em larga escala por parte dos governantes de plantão, em especial o clã Bolsonaro, notoriamente vinculado às milícias do Rio de Janeiro.
A tentativa de golpe denunciada pela Polícia Federal foi promovida pelo núcleo duro do governo anterior, mas é preciso deixar claro que não são apenas – grupos de militares que estão à frente dessa tentativa. Vários grupos econômicos do agronegócio, do setor financeiro, da mídia, dos transportes e do comércio estiveram envolvidos, muitos dos quais já identificados em inquéritos da Polícia Federal.
Essa situação, porém, não é de hoje. Em 2005, o então senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, já dizia: “Estou encantado com a crise política. Ela vai livrar a gente dessa raça por pelo menos trinta anos”. Banqueiro, Bornhausen se referia aos trabalhadores, sem-terra, pobres, excluídos, ou seja, todos que não pertenciam à elite. Desde então é possível reconhecer as ofensivas das forças conservadoras, que se propõem a alijar Lula e o PT do governo.
Essa defesa dos interesses da elite brasileira é uma constante. Na fase atual, ela se expressa no golpe parlamentar que depôs a presidenta Dilma Rousseff em 2016; na prisão ilegal de Lula em 2018, para impedi-lo de participar das eleições desse ano; na invasão dos prédios do governo, com o fim de impedir a posse de Lula eleito, em janeiro de 2023. Merece destaque a Lava Jato, processo de law fare, ou seja, o ataque político por meio da manipulação dos instrumentos legais, que foi de 2014 a 2021.
Não se trata de uma quartelada de iniciativa de meia dúzia de aloprados. É um amplo movimento com bases na sociedade que expressa uma aliança política que trabalha há anos pelo desgaste da imagem de Lula e do PT e de setores progressistas, pelo fim das políticas redistributivas, pelo fim da regulação democrática que limita a espoliação das maiorias e defende a “livre” atuação das empresas.
Com sólidos e majoritários blocos parlamentares de direita na Câmara dos Deputados e no Senado, temos de considerar também a participação efetiva de parlamentares na tentativa de golpe. Muitos deles são identificáveis por demandarem nas redes sociais e em outros espaços públicos o golpe e a intervenção militar. Muitos representam também os setores econômicos que se envolveram com o golpe e a tentativa de desestabilização política do governo eleito.
Pesquisas e análises sociológicas identificam vários setores profissionais, das classes média e alta, ligados a esse movimento. Advogados, juízes, promotores, médicos, engenheiros, dentistas e administradores são exemplos de categorias profissionais que se opõem ao PT e à “esquerda”, seja lá o que se entenda por ser de esquerda. Sentem-se ameaçados em seus privilégios pelas políticas redistributivas, pelo acesso dos pobres à universidade, pela presença de negros em seu ambiente profissional e pela afirmação dos direitos das empregadas domésticas, por exemplo. Segundo eles, o aeroporto não pode virar uma rodoviária…
O “Teto dos Gastos”, imposto pelo governo Temer em 2026, ou o “Arcabouço Fiscal” são demandas das classes dominantes que só cortam os gastos sociais. Querem o equilíbrio das contas nacionais sem mexer em seus privilégios, onerando apenas os pobres. Como diziam parlamentares quando da imposição do Teto, “os gastos sociais não cabem no Orçamento Público”.
Como aponta Eduardo Fagnani, “as elites financeiras nacionais e internacionais jamais aceitaram que o movimento social capturasse uma parcela do orçamento do Governo Federal (cerca de 10% do PIB), a maior parte concentrada na Previdência Social (8% do PIB)”.2 E continuam não aceitando o governo que se propõe enfrentar a fome e a pobreza.
Que fique claro: a tentativa de golpe não foi um raio em céu azul; ela vem sendo gestada há décadas. É a democracia que foi e continua sendo atacada. Como interpretar essa iniciativa, presente no Congresso, que pretende mudar a Constituição para subordinar o Supremo Tribunal Federal aos seus desígnios? Como interpretar a apropriação da receita pública por parlamentares para a doação de emendas se a atribuição da execução orçamentária é do Executivo?
Se as punições aos golpistas forem efetivas e envolverem financiadores, a mídia e parlamentares, o Brasil terá dado um passo importante para consolidar a democracia e afirmar que os benefícios do desenvolvimento não serão uma exclusividade das elites, das classes dominantes, mas favorecerão também as maiorias.
Silvio Caccia Bava
1 André Shalders, “Quem é Eduardo Pazuello, o general que assume interinamente o Ministério da Saúde”, BBC News Brasil, 16 maio 2020.
2 Eduardo Fagnani, “As demandas sociais da democracia não cabem no orçamento?”, Plataforma Política Social, 2020.
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