quinta-feira, 8 de julho de 2021

Por que os militares apoiam e apoiarão Bolsonaro até o fim

O que diz sobre a capacidade de avaliação dos comandantes militares brasileiros o apoio que deram a Jair Bolsonaro para que se elegesse presidente, e que dão para que governe?

Eles conheciam o candidato melhor do que ninguém. Como soldado, ele se distinguiu nas atividades atléticas, especialmente em corridas de curta distância. Ganhou o apelido de “Cavalão”.

Uma vez salvou um colega de morrer afogado. Foi garimpeiro enquanto vestia a farda, o que era proibido. Planejou atentado à bomba em quartéis para reclamar por melhores salários.

Processado no Superior Tribunal Militar, negociou seu afastamento do Exército em troca da patente de capitão. Não pôde mais frequentar ambientes militares, e nem seus filhos podiam.

Em depoimento ao núcleo de pesquisas da Fundação Getulio Vargas, o general Ernesto Geisel, o terceiro presidente da ditadura de 64, classificou Bolsonaro de “um mal militar”. Foi o que ele foi.


Limitado intelectualmente, sem nunca ter lido um livro como admitiu e disso se orgulha, entrou para a política como um lobista informal das Forças Armadas que não o reconheciam como tal.

Elegeu-se e se reelegeu sete vezes como deputado federal do baixo clero. Na Câmara, jamais ocupou posição de destaque, ou presidiu alguma comissão ou aprovou um único projeto.

Treze candidatos disputaram a eleição presidencial de 2018 – entre eles, três que haviam governado Estados, três ex-ministros, um ainda senador e outro empresário.

Por que os comandantes militares, liderados à época pelo general Eduardo Villas Bôas, preferiram apoiar Bolsonaro a qualquer outro nome? Logo Bolsonaro, que conheciam tão bem?

Simples. Porque ele tinha mais chances de impedir a volta da esquerda (Lula-Haddad) ao poder, e também da centro-esquerda (Ciro Gomes). Porque com Bolsonaro, eles voltariam ao poder.

Era um despreparado? Sempre souberam que sim. Jamais imaginaram outra coisa. Mas ele seguiria suas ordens, supunham; abriria espaço para eles no governo; privilegiaria suas pautas.

Generais veem soldados e oficiais como pessoas que lhes devem obediência. Missão dada, missão cumprida. A missão dada a Bolsonaro resumia-se a isto: esquerda, nunca mais!

Não há militares de esquerda em nenhuma das três armas. Houve até 64 quando os poucos acabaram expurgados. A formação dos militares é pela direita, sempre foi, não é de hoje.

De resto, sentem-se superiores aos civis e julgam-se donos da última palavra quando enxergam ameaças à República que proclamaram por meio de um golpe. São patriotas, os civis menos.

Alguns entre eles começam a reconhecer que fizeram uma má escolha ao apoiarem o capitão anarco-sindicalista – mas são poucos os que batem no peito em sinal de sincero arrependimento.

Se no ano que vem, Bolsonaro despontar como nome capaz de vencer outra vez, esquecerão seus clamorosos crimes e o seguirão em massa como boas e pacíficas ovelhas com porte de arma.

É o poder, o poder que move os homens. Poder de mandar e de ser atendido. Poder de vir a ter seus desejos satisfeitos.

De militares a milicos


Os militares devem estar na caserna, nos quartéis. Eles são militares do Estado e não do governo. Onde vamos parar? 
Marco Aurélio Mello, ministro do STF 

A superação dos generais

O Exército não puniu Pazuello. Qual a surpresa? O governo é militar. Surpreendente seria se punisse o que lhe dá dentes para intimidar inimigos. O governo é militar, e é Bolsonaro, indistinta e personalissimamente, o que ladra. Surpreendente seria punir-se com a banguelice.

O governo é militar e é daquele que ergueu bem-sucedida empresa familiar nas bordas do Estado. O governo é militar e é de patriotas como general Braga Netto, ministro da Defesa, cujo salário — sob regra editada pelo mito — aumentou 58% e para mui além do teto remuneratório constitucional. O governo é militar e é do capitão, o velho líder corporativista fã de Hugo Chávez. Não cortará na própria carne — e isso não se aplica somente a privilégios de contracheque.


O governo é militar. E o Exército está pazuellizado: submetido à dissolução de sua essência impessoal, degradada a natureza de instituição de Estado, a serviço incondicional do governante de turno e independentemente do que limita a Constituição. Um manda, o outro obedece — qualquer que seja a ordem, depauperado também, confundido com falta de vergonha, o senso de hierarquia. O governo é militar, e o Exército vai bem alimentado.

O governo é militar e a pazuellização do Exército, fato consumado. Pazuello fez a aposta correta. Acreditou na acomodação, em que nem sequer seria advertido, e saiu premiado, com cargo no governo. Saiu mais que premiado, encarnando uma espécie de habeas corpus preventivo, extensivo a todos os militares: pode tudo, rapaziada.

Pôde tudo, anos atrás, o vice Mourão: general punido de mentirinha por discursos agitadores, deslocado — sob os holofotes que lhe dariam existência pública — a uma função burocrática desde a qual encontrou as condições ideais para sua escalada à política.

Não há mais fronteira entre Planalto e Exército. No Ministério da Saúde ou sobre o palanque, Pazuello servia — obedecia — a Bolsonaro, um chefe supremo das Forças Armadas cuja ascendência sobre as tropas já não deriva da Carta, mas da lógica personalista que fundamenta as relações entre o cabeça miliciano e seus homens.

O governo é militar. Militar e golpista. E não chegou a 2021 sem que a estrada fosse pavimentada por badaladíssimos quatro estrelas da moderação. Em 2018, o então comandante do Exército, dito moderado, foi a uma rede social para emboscar o Supremo. Era o general Villas Bôas, padrinho do Bolsonaro presidente e patrono da multiplicação dos generais Ramos — aquele para quem Pazuello, general da ativa, subiu ao carro de som como civil, aquele mesmo Ramos que, diante da série de atos antidemocráticos com a presença do presidente, compareceu “só no da rampa”. (Ramos, outro fura-teto: 69% de aumento salarial.)

Foi de rampeiro em rampeiro que chegamos até aqui. E não sem covardes. Os códigos militares são diretos: a participação do ex-ministro general na manifestação bolsonarista infringiu as regras. O Exército tinha a mais fácil desculpa para repreendê-lo: a clareza dos estatutos. Optou, porém, pela submissão. Ou melhor: teria optado, se não estivesse submisso havia muito. No último 27 de maio, o comandante da Força, Paulo Sérgio Nogueira, aceitou viajar com Bolsonaro ao Amazonas para inaugurar uma ponte erguida pela engenharia militar — isso à véspera de ter de decidir sobre Pazuello. Lá, previsivelmente, ouviu o presidente declarar que “somos todos seres políticos”, generais inclusive, e que caberia aos fardados decidir “como o povo viverá”.

Fala-se que teria recebido diretamente de Bolsonaro uma carga para que não penalizasse Pazuello. Não penalizou.

Na semana passada, circulou a versão de que o comandante do Exército assim agira sob cálculo. Temeria que a punição causasse um conflito entre a cúpula do Exército e o presidente; caso em que haveria o risco de Bolsonaro lhe sustar a decisão, o que o obrigaria a renunciar, abrindo terreno para que um bolsonarista chegasse ao comando. Uma conta que não fecha, senão para fantasiar a existência de algum brio militar no episódio. Ora! Desde quando Bolsonaro precisa de um bolsonarista — um explícito — na liderança da Força para ter o Exército a seu absoluto dispor?

Está muito bom com Nogueira mesmo, cujo caminho tomado — ainda que tivesse a intenção de evitar uma crise institucional — resultaria, como resultou, em algo muito mais grave: na mensagem de vale-tudo transmitida ao guarda da esquina.

Em português castiço: para o inferno o eventual choque entre cúpula do Exército e Bolsonaro. Ao comandante, só caberia aplicar o regulamento e disciplinar a tropa. Seu papel. Esse universo corrompido em que o comando da Força tem de fazer ponderação política só existe porque os generais escolheram se misturar, até a indistinção, ao governo de turno.

Aí está. Para que os sócios — parceiros fiéis neste projeto autoritário de poder — não se estranhassem pontualmente por cima, difundiu-se um salvo-conduto imprevisível para baixo, um convite ao estado de amotinamento; o que representaria a superação desta etapa de pazuellização para o estabelecimento de um Exército afinal bolsonarizado, em que todo militar, de qualquer grau, estaria autorizado, estimulado, a se comportar como Bolsonaro quando na Força: malandro, desagregador, conspirador, com planos atentatórios. É o que ele quer. O Exército como milícia. Status em que — fica a dica — não seriam necessários generais.

A estreita visão do governo

O presidente Jair Bolsonaro editou medida provisória no início desta semana prorrogando o pagamento do auxílio emergencial por três meses. Cerca de 39 milhões de brasileiros receberão entre R$ 150 e R$ 375 até outubro. A nova rodada de pagamentos, portanto, segue os moldes da anterior, tanto em valores como em público-alvo.

Com o País ainda devastado pelos efeitos da pandemia de covid-19, prorrogar o auxílio emergencial era o mínimo a fazer, até mesmo por imposição humanitária. A taxa de desemprego beira os 15%, a inflação acima do teto da meta corrói a renda dos que ainda a têm e o espectro da fome ronda os lares de milhões de brasileiros. O grande problema é que Bolsonaro é um presidente do tipo que se contenta com o mínimo a fazer, especialmente quando este mínimo é o que ele precisa para tentar estancar a vertiginosa queda de sua popularidade.


A esta altura, já está claro para a maioria dos brasileiros – como pesquisas de opinião sobre o governo podem atestar – que o bem-estar da população passa ao largo do rol de preocupações do presidente da República. Bolsonaro só tem olhos para a eleição de 2022. Neste sentido, prorrogar o auxílio emergencial não se pauta por outra coisa que não o mero cálculo eleitoral. Caso estivesse genuinamente preocupado com a situação periclitante de milhões de brasileiros, Bolsonaro teria dedicado tempo e energia para melhor formular e implementar seu plano de transferência de renda, uma reformulação do programa Bolsa Família que o governo pretende chamar de Renda Brasil.

“Estamos prorrogando o auxílio emergencial por mais três meses enquanto acertamos o valor do novo Bolsa Família para o ano que vem”, disse o presidente durante breve cerimônia em seu gabinete. Por sua vez, o ministro da Economia, Paulo Guedes, voltou a prometer o lançamento do Renda Brasil ainda neste ano. Já o ministro da Cidadania, João Roma, afirmou que o programa será lançado em novembro próximo. Bolsonaro fala em 2022, Guedes é impreciso e Roma promete o Renda Brasil para daqui a cinco meses. Uma conversa entre os três poderia resolver ao menos o problema de comunicação.

A prorrogação do auxílio emergencial, repita-se, era o certo a fazer. Mais certo, porém, teria sido o governo compreender, ainda em 2020, o sentido da palavra “emergencial” e ter planejado a transição para o novo Bolsa Família, reformulado. Não o fez porque só planeja quem tem um plano a executar. A ausência de um programa de governo claro e exequível é um vício fundamental deste governo. Igualmente, a visão estreita. Basta lembrar que o ministro da Economia, não faz muito tempo, falou em “surpresa” pela irrupção da segunda onda de covid-19 no País, ainda mais mortal do que a primeira. Não foram poucos os epidemiologistas que alertaram para este risco.

Um programa de transferência de renda, seja como for chamado, é imperativo em um país tão desigual como o Brasil. Mas não deve ser um fim em si mesmo. É dever do governo planejar uma política econômica que propicie as condições para o crescimento da atividade, este, sim, capaz de mudar a vida das pessoas de forma consistente. A política econômica há de vir acompanhada por uma política de educação igualmente bem elaborada e implementada. No Brasil sob Jair Bolsonaro, não há uma coisa nem outra.

Ao presidente, ao que parece, interessa mais lançar mão de políticas pontuais de claro viés eleiçoeiro do que atacar os problemas que pairam sobre sua mesa de trabalho com mais responsabilidade. Bolsonaro não mobilizou seu governo para mudar profundamente a realidade que submete milhões de seus concidadãos à pobreza, ao desemprego e à fome. Agora, acossado que está por graves denúncias de corrupção na aquisição de vacinas, pela acusação da prática de “rachadinhas” e, como se não bastasse, pelos achados de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tem lançado luz sobre o descalabro que é a resposta federal à crise sanitária, tenta de qualquer forma se manter de pé do ponto de vista eleitoral, dado que a atual conjuntura política lhe é flagrantemente desfavorável.

Pensamento do Dia

 


Não é negacionismo, é só picaretagem

Em 22 de junho, Júlia Affonso relatou no Estadão o negócio suspeitíssimo de R$ 1,6 bilhão na compra da vacina indiana Covaxin, enquanto ficavam sem resposta propostas sem intermediário algum de empresas com compliance. Jair Bolsonaro atribuiu a demora à falta de autorização pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de uso dos imunizantes vendidos por Pfizer, Johnson e Moderna. E à exigência dele de assumirem despesas de tratamento médico de eventuais efeitos colaterais na imunização. Na série Nêumanne Entrevista no Blog do Nêumanne, no portal do Estadão, o ex-encarregado de negócios no exterior do Banco do Brasil por 31 anos Luiz Geraldo Dolino disse que é ingênuo atribuir isso a negacionismo, terraplanismo ou obscurantismo da direita estúpida, que apoia incondicionalmente o presidente.

Conforme os fatos, listados no que ele batizou de “cronologia macabra”, a “ideologia” é cortina de fumaça para negociatas escusas no Ministério da Saúde (MS) por burocratas indicados para cargos de confiança pela gentalha política do Centrão. Em conluio com militares, que ocupam cargos de comando na pasta. Segundo Brenno Pires, que revelou neste jornal o escândalo do “tratoraço” ou “bolsolão”, documento oficial do MS confirma que “o valor da dose era US$ 10 por unidade, de acordo com reunião realizada em 20 de novembro entre representantes do governo e das empresas. Porém o preço fechado no contrato foi de US$ 15, um porcentual 50% maior. O valor global do contrato, de R$ 1,614 bilhão (já convertida a moeda), saiu R$ 534 milhões mais caro do que o preço original”. O próprio Brenno Pires e Lorenna Rodrigues informaram que o orçamento secreto destinou R$ 2,1 bilhões para fundos municipais de saúde.


Na sexta 25, o deputado federal Luís Miranda e seu irmão Luís Ricardo de Miranda revelaram à comissão parlamentar de inquérito (CPI) do Senado para apurar crimes e omissões da União no combate à pandemia que narraram a Bolsonaro a pressão sobre o segundo para liberar R$ 225 milhões para pagar pela Covaxin comprada. O adiantamento não era previsto em contrato e a vacina fabricada pela Barhat Biotech fora autorizada pela Anvisa, mas com muitas restrições. Ao receber os irmãos em casa, o que não negou, Bolsonaro prometeu tomar providências. Mas nada fez.

Ao contrário, fiel ao estilo “Mateus, primeiro os meus”, o chefe do desgoverno operante mandou seu anspeçada Onyx Lorenzoni, secretário-geral da Presidência, denunciar os denunciantes à Polícia Federal, à Controladoria-Geral da União, à Advocacia-Geral da União e ao Ministério Público Federal por “denunciação caluniosa”. E pela “falsificação” do “invoice”. Mas a tal fatura é autêntica e consta do acervo disponível no sistema do próprio MS. Ninguém pediu desculpas pela infâmia. Ao contrário, com base em informações da Precisa, de Francisco Emerson Maximiano, o papel foi “corrigido”. Sempre disposto a trocar velha vergonha por outra mais recente, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, apresentou na CPI a terceira versão: Bolsonaro teria pedido informações ao então ministro Eduardo Pazuello no domingo 21 de março. Este teria mobilizado o secretário executivo, Elcio Franco, exonerado em seguida e, depois, abrigado no valhacouto do Planalto. Na segunda 22, este teria dito que nada havia. Na terça 23, Pazzuello caiu. Um primor de presteza: investigação administrativa feita por um dos acusados e arquivada em 24 horas. Digna de figurar no Guinness Book of Records.

Na sexta 2 de julho, a CPI foi criticada por ter ouvido o cabo PM de Minas Luiz Paulo Dominguetti, que acusara o diretor de Logística (!) do MS, Roberto Ferreira Dias, de ter cobrado propina de US$ 1 (R$ 5,07) por cada uma de 400 milhões de doses de Astrazenica (sic). A AstraZeneca é parceira na vacina envasada pela Fiocruz. Chamado de “cavalo de Troia” pelos senadores da CPI, ele teve o celular apreendido e nele apareceu que cobrava US$ 0,25 (R$ 1,25) de comissão. Octávio Guedes, da GloboNews, reduziu-o a pangaré. Mas seu depoimento é peça importante no quebra-cabeças de atravessadores, propinas e comissões que emporcalham o combate federal à pandemia por um armada Brancaleone com cabo PM da ativa, coronéis do Exército, burocratas, chefões partidários e um pastor capelão. O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, segundo os interlocutores de 20 de março, foi dado como autor do “rolo”, o que não foi desmentido, e recorreu ao Supremo Tribunal Federal exigindo depor na CPI. Não se sabe se escolherá o relator ou se exigirá o direito de se calar, dado por Roberto Barroso ao milionário Carlos Wizard, flagrado rindo dos 524 mil mortos pela covid.

Na guerra dos picaretas pés de chinelo que a direita estúpida forneceu ao desgoverno Bolsonaro, só morrem inocentes. Os criminosos contam com o aval dos chefões da politicagem. O presidente da Câmara, Arthur Lira, debocha. O do Senado, Rodrigo Pacheco, fala em banalização do impeachment do nosso Napoleão de hospício. No mínimo, são cúmplices do genocídio doloso.

Politizadas, Forças Armadas mordem a CPI e assopram as fardas sob suspeição

Na CPI da Covid, quando alguém menciona numa rodinha de conversa o envolvimento de militares no escândalo das vacinas é impossível mudar de assunto. Pode-se, no máximo, mudar de suspeito. Entre oficiais da ativa e da reserva, frequentam o rol dos encrencados meia dúzia de patentes: um general, três coronéis e dois tenentes-coronéis.

Incomodado com o surgimento de fardas ineptas ou com fins lucrativos, o presidente da CPI, Omar Aziz, lastimou: "Os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia, porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo."

Abespinhados, o Ministério da Defesa e os comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica disseram que Aziz atacou as Forças Armadas de forma "vil", "leviana", "infundada" e, sobretudo, "irresponsável". Em nota oficial, a cúpula militar escreveu: "As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano..." A resposta é tardia, desonesta e presunçosa.

A reação chega tarde porque o silêncio das Forças Armadas diante da perversão já havia consolidado a sensação de cumplicidade com oficiais que grudaram na farda um código de barras. É desonesta porque desconsidera o apreço de Aziz pelo pedaço limpo das forças militares. "Quando a gente fala de alguns oficiais do Exército, é lógico, nós não estamos generalizando", declarou o senador. "De forma nenhuma, nós estamos entrando aqui no mérito que as Forças Armadas têm", acrescentou.

A nota da cúpula militar é presunçosa porque ameaça o Legislativo —"As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano..."— no pressuposto de que a democracia brasileira aceitaria desaforos. O presidente da CPI foi a tréplica: "Pode fazer 50 notas contra mim, não me intimida." O que farão agora os comandantes militares?

Não podendo estacionar seus tanques na entrada do Congresso, fariam um bem a si mesmos e às corporações que representam se utilizassem sua ira para condenar quem enlameia a farda. A alternativa seria aderir à retórica do capitão, que chama os rivais da CPI de "pilantras", "patifes", "picaretas".

Depois, bastaria pendurar uma placa na entrada dos quarteis: "Diretório do PMB, Partido dos Militares do Bolsonaro". Não resolveria o problema. Mas diminuiria a taxa de cinismo.

Dia de conflito da CPI com militares

As Forças Armadas e o ministro da Defesa reagiram de forma exagerada e fora do tom a uma declaração do presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM). E assim deram mais um passo na sua politização. Na sessão que terminou com a prisão de Roberto Dias houve tanta referência a militares que o senador disse que “os bons das Forças Armadas” deviam estar com vergonha dos “membros do lado podre”. Mais tarde, ele fez elogios às Forças Armadas, atenuando o que dissera. Os três comandantes e o general Braga Netto fizeram uma ameaça implícita. Disseram que “não aceitarão qualquer ataque leviano”. Omar, diante de um plenário em silêncio, deu sua resposta. “Podem fazer 50 notas contra mim, só não me intimidem."


Foi um dia de muitas revelações, apesar das mentiras, lacunas, inverossimilhanças de Roberto Dias. Seu depoimento deixou elementos para se concluir que há uma divisão no Ministério, de grupos com esquemas diferentes, querendo tirar vantagens na compra de imunizantes. O ex-secretário-executivo coronel Élcio Franco — aquele que usa o broche de uma caveira esfaqueada — estava no lado oposto ao de Ricardo Dias. Enquanto brasileiros morriam, vacina passara a ser uma moeda de troca numa disputa de poder.

O que o ex-diretor do Departamento de Logística falava não ficava de pé porque ele mesmo tratava de derrubar o que acabara de dizer. Segundo Dias, ele não negociou a compra de vacinas, mas aceitou marcar uma reunião no Ministério no dia seguinte ao do encontro no restaurante com o cabo Luiz Paulo Dominguetti. E nessa reunião tratou de vacinas. Ou seja, negociou.

Roberto Dias afirmou inúmeras vezes que toda a negociação de vacinas estava centralizada no secretário-executivo Élcio Franco. Se era assim, por que ele aceitou marcar uma reunião com Dominguetti e o coronel Marcelo Blanco para tratar da oferta de 400 milhões de doses? Se o assunto era vacina da Astrazeneca, porque ele nunca pensou — nem Franco — em chamar para essa conversa a Fiocruz, que tinha acordo com a própria Astrazeneca?

Na versão do ex-sargento Roberto Dias, o encontro com Dominguetti foi casual. Ele marcou um chopp com seu amigo às cinco da tarde. E apareceram por lá o coronel Marcelo Blanco, com quem havia trabalhado no Ministério, e o cabo Dominguetti. Numa hora daquelas, numa quinta-feira, no meio de uma pandemia que só naquele dia matou mais de 1.500 brasileiros, o diretor de logística do Ministério da Saúde de um país sem vacinas vai beber com um amigo. Encontra casualmente um ex-assessor que abriu uma empresa de medicamentos e um cabo da PM de Minas Gerais que diz representar uma empresa que teria 400 milhões de doses. O Ministério que foi tão fechado para a Pfizer, tão hostil ao Butantan, tão lerdo, fica de repente ágil e na tarde do dia seguinte estava recebendo em sua sala o cabo que agora ele define como picareta, aventureiro e mentiroso.

O senador Eduardo Braga (MDB-AM) deu chance para Dias se explicar. Lembrou que ele havia sofrido várias retaliações. Fora indicado para a Anvisa, mas a indicação fora retirada. Fora exonerado pelo general Eduardo Pazuello, mas sua demissão fora revista na Casa Civil. E após ser acusado, por Dominguetti, de cobrar a propina de um dólar por dose, ele foi exonerado. Além disso, assessores seus foram demitidos contra a sua vontade, e nomeados dois militares, um deles o tenente-coronel Alex Lial Marinho, já citado na CPI. Diante de todos esses sinais da luta interna no Ministério, Dias dizia não se lembrar dos eventos ou não ter ideia dos motivos. “Desconheço”, repetia.

Omar Aziz tentou dissuadi-lo. Pediu que ele falasse a verdade. Lembrou que ninguém ali era tolo. Na confusão que se formou após o presidente da CPI dar a ordem de prisão em flagrante por falso testemunho, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) foi ao ponto:

— O senhor tentou infantilizar esta comissão. Todo mundo sabe que o seu encontro não foi casual. Pelo amor de Deus, o senhor está sendo preso, contribua com esta comissão. O senhor não está vendo que os integrantes do governo lhe jogaram para as cobras?

A CPI ontem deixou claro que o Ministério da Saúde do país que já perdeu 528 mil pessoas para a Covid dedica-se à guerra interna entre esquemas de poder. Militares da ativa ou da reserva, políticos do centrão se misturam nesse cenário de horror que é o governo Jair Bolsonaro.