sábado, 31 de dezembro de 2022

Regressando ao século XXI

Hoje, o mundo despede-se de 2022. O Brasil despede-se também de Jair Bolsonaro, algo que a maioria dos habitantes do planeta Terra aplaude forte e alegremente.

Consta que Jair buscará exílio na residência de Donald Trump em Mar-a-Lago. Não consigo imaginar pior castigo para Donald — nem pior castigo para Jair.



O melhor show a que assisti durante o ano que hoje termina, e um dos momentos mais emocionantes de toda a minha vida, aconteceu no passado dia 30 de outubro, em Lisboa, na Fábrica do Braço de Prata, espaço enorme, preparado para acolher todo o tipo de festivais. Naquele fim de tarde estava atulhado de imigrantes brasileiros, que acompanhavam, entre o medo e a esperança, o avanço dos resultados eleitorais, projetados numa enorme tela. No instante em que a contagem virou, Lisboa inteira estremeceu com o grito eufórico da multidão.

Já passava da meia-noite quando, ainda com o coração aos saltos e lágrimas nos olhos, saí da Fábrica do Braço de Prata, na companhia do escritor moçambicano Mia Couto. O taxista que nos foi buscar também era brasileiro, e não estava feliz com o resultado das eleições:

— Os comunistas ganharam. — comentou, mal-humorado. — Vai ser uma desgraça.

— Não discutas. — segredou-me Mia, que, como a maioria dos moçambicanos, abomina brigas. Tentei fazer a vontade ao meu amigo.

— Tem toda a razão. — disse ao taxista, com o tom de voz mais doce e amigável que consegui. — O lado bom é que você não terá de se exilar para fugir do comunismo. Afinal, você já vive num país governado pela esquerdalha, onde o aborto é legal, o consumo de drogas também, e as pessoas de bem nem sequer podem andar armadas pelas ruas, atrás dos negros e dos comunistas. Duvido que o Lula chegue tão longe…

Duvido mesmo. Já ficaria muito feliz se nos próximos quatro anos o novo governo brasileiro conseguisse controlar a venda de armas e a mortandade dos jovens negros às mãos das forças policiais.

O desafio imediato do presidente Lula passa por devolver o Brasil ao território da racionalidade e do mais elementar bom senso. Um ministro pode nem ser muito eficaz, mas convém que acredite na importância da pasta que assumiu. Por exemplo, o ministro responsável pelo meio ambiente deve acreditar na preservação da floresta amazônica, ao invés de estar empenhado na sua destruição; o ministro da Cultura deve gostar de música, literatura e artes em geral, e lutar pelo seu fortalecimento — e assim por diante.

O presidente Lula tem pela frente outro enorme desafio: o da reconciliação nacional. Não me parece tarefa fácil. Exige, primeiro, uma completa desbolsonarização dos espíritos — ou seja: um verdadeiro exorcismo.

Espero que na próxima ceia de Natal as famílias brasileiras já consigam reunir-se, e conversar sobre qualquer assunto, sem pavor de que uma palavra errada dê origem a uma tentativa de assassinato.

Quando visitei o Brasil pela primeira vez, há uns bons 30 anos, fiquei completamente encantado com a simpatia e a hospitalidade dos brasileiros. Durante anos acreditei na excepcionalidade do Brasil — um país vocacionado para a arte do encontro (“embora haja tanto desencontro pela vida”, como escreveu Vinicius). Essa arte do encontro precisa ser recuperada.

Um belíssimo Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
Cor de arco-íris, ou da cor da sua paz
Ano Novo sem comparação
Como todo o tempo já vivido
(Mal vivido ou talvez sem sentido)

Não precisa fazer lista
De boas intenções
Para arquivá-las na gaveta
Não precisa chorar de arrependimento
Pelas besteiras consumadas

Para ganhar um Ano-Novo
Que mereça esse nome
Você, meu caro, tem de merecê-lo
Tem de fazê-lo de novo
Eu sei que não é fácil
Mas tente, experimente, consciente
É dentro de você que o ano novo
Cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

Motociata cara

Alexandre de Moraes, presidente do TSE

Final melancólico

Depois de dois meses de silêncio, no último dia útil do seu governo, Bolsonaro falou. Foi elíptico e evasivo sobre os temas importantes e fugiu logo em seguida para os Estados Unidos. Foi um final melancólico para uma aventura perigosa. A democracia brasileira sobreviveu, mas saiu chamuscada. Ganhamos um respiro, mas o risco não foi de todo afastado.

A maior parte do pronunciamento de mais de 50 minutos foi dedicada a celebrar as realizações do governo. Mas, entre louvores ao preço baixo dos combustíveis e à criação do Auxílio Emergencial, surgiram alertas sobre a volta do PT e justificativas para ele não ter atendido aos radicais acampados nos quartéis. Tudo sob uma chuva de comentários de espectadores no YouTube pedindo intervenção militar.

Bolsonaro disse que, nestes dois meses de silêncio estratégico, não ficou parado: “Como foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas!”. As alternativas, sabemos pelas movimentações noticiadas pelos jornais, foram a busca do apoio das Forças Armadas e do Parlamento para uma ruptura autoritária.


Reunindo as menções elípticas, espalhadas pelos discurso, dá para ter uma ideia do que ele quis dizer: “Tem gente chateada comigo, [dizendo] que deveria ter feito alguma coisa, qualquer coisa. Mas, para você conseguir fazer alguma coisa, mesmo nas quatro linhas, você tem que ter apoio”. E se defendeu: “Entendo que fiz a minha parte, estou fazendo a minha parte. Agora, certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos e instituições”.

Bolsonaro quis atender aos golpistas acampados nos quartéis, mas simplesmente não conseguiu apoio. “Não posso fazer algo que não seja bem feito e que, assim, os efeitos colaterais sejam danosos demais”, concluiu. Bolsonaro não teve ou não conseguiu criar as condições para cumprir seus propósitos autoritários. Mas tentou. Enfrentou, porém, a resistência firme da sociedade civil e da imprensa séria.

Enfrentou também a resistência do Parlamento, principalmente quando esteve sob a liderança política de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Em nenhum momento o Parlamento sinalizou que daria apoio a um movimento de ruptura, por meio da decretação de Estado de Sítio. O Congresso conteve a ofensiva legislativa na arena dos costumes e moderou os ataques de Paulo Guedes contra os direitos dos trabalhadores. Foi o Parlamento, também, que elevou os programas de transferência de renda a um patamar mais digno, aumentando o valor e ampliando a cobertura. O Parlamento, por meio da CPI da Covid, também desvelou a irresponsabilidade criminosa de Bolsonaro com relação à compra das vacinas.

Bolsonaro enfrentou também a resistência da Justiça. O Supremo Tribunal Federal (STF) anulou alguns dos ataques mais danosos ao sistema de proteção ambiental e deu autonomia aos governadores para que pudessem proteger a população no momento mais crítico da pandemia. Quando as mobilizações golpistas se disseminaram, foi a ação firme do ministro Alexandre de Moraes que as conteve. Sem a mão dura dele, é bem possível que não tivéssemos chegado até aqui.

Servidores públicos no ICMBio, na Polícia Federal e no Ministério Público também desafiaram as orientações políticas dos chefes e batalharam para fazer as instituições cumprir suas funções legais.

Sem os limites impostos pela sociedade civil, pela imprensa, pelo Parlamento, pela Justiça e por corajosos servidores públicos, não teríamos atravessado o deserto. Devemos a cada um desses atores um caloroso “obrigado”.

Durante quatro anos, Bolsonaro repetiu que a “liberdade” deveria valer mais que a própria vida. Mas, agora, quando teria de colocar seus ideais à prova, preferiu fugir para os Estados Unidos, temeroso de que, com a volta do domínio da lei, seus crimes sejam investigados e ele termine devidamente preso. É inevitável comparar a ignomínia de Bolsonaro com a altivez de Lula, que, podendo fugir, se submeteu com dignidade a mais de dois anos de prisão. Bolsonaro não é pequeno, é minúsculo.

A fuga no avião presidencial, deixando seus apoiadores tomando chuva e passando vergonha na porta dos quartéis, é o desfecho patético de um governo medíocre, covarde e autoritário.

Com a fuga para não ser preso, a obra de Bolsonaro está completa

Bolsonaro abandonou o país sem completar seu mandato e deixou os custos de sua fuga para o Tesouro Nacional, alimentado pelo dinheiro de impostos que todos pagamos. Ou melhor: que a maior parte dos brasileiros paga, porque a outra, dos mais ricos e remediados, tem meios e modos de não pagar nada ou quase nada.

Se o preço a pagar para nos livrarmos dele fosse só esse, estaríamos no lucro, mas não. Ele deixa um país mais dividido do que o que recebeu, e com a maioria dos seus problemas agravados. Alguém será capaz de lembrar uma única obra que ele fez? Por não ter feito, passou a dizer que terminou obras inacabadas.

Educação, saúde, meio-ambiente, cultura, saneamento urbano, direitos humanos, assistência social, tudo piorou. Algo como 33 milhões de pessoas passam fome. Há mais de 10 milhões desempregadas. E quando Bolsonaro resolveu gastar dinheiro com os mais pobres foi só pensando em se reeleger.


Deixou um país mais armado, os militares politicamente mais ativos, e uma democracia que sofreu graves abalos, embora tenha triunfado. Ao Poder Judiciário, os méritos de não se acovardar diante de um presidente e de generais que o ameaçaram. Há muito ainda a ser contado sobre os bastidores da peleja farda contra toga.

O maior desafio que o presidente eleito tem pela frente não será governar melhor que o seu antecessor, tarefa fácil por comparação, mas o de pacificar o país como prometeu durante a campanha. Não é sobre esquerda e direita, é sobre os que prezam o Estado de Direito e têm ódio e nojo de ditaduras de qualquer cor.

O PT cometeu muitos pecados nos quase 14 anos em que governou o país, mas nunca pôs as liberdades em risco. Do fim da ditadura de 64 para cá, só se ouviu falar em golpe quando chegou ao poder o ex-capitão afastado do Exército que planejou detonar bombas em quartéis se não recebesse um salário, ao seu gosto, mais decente.

Agora que ele se foi porque sabe muito bem o que fez em todas as estações dos últimos quatro anos e tinha medo de ser preso se permanecesse aqui, o país terá que reconstruir com a celeridade necessária as bases para que nunca mais volte, e para que ninguém igual ou parecido com ele venha um dia a sucedê-lo.

Lula derrotou Bolsonaro na eleição mais comprada por um presidente que já tentou se reeleger, daí porque o resultado foi tão apertado. Alvíssaras pela proeza, mas não basta. O bolsonarismo precisa ser reduzido a pó. É trabalho de todos, não só dele.

A última live de Bolsonaro

Desde o início de seu governo, Jair Bolsonaro fez a opção de se dirigir apenas aos seus apoiadores. O final de sua passagem pelo Planalto não foi diferente.

Após dois meses de recolhimento, sua última live no poder foi dedicada a todas as pessoas que permanecem acampadas nos arredores de quartéis à espera de um golpe militar.

Durante a transmissão ficou claro que tal caminho não será trilhado: "não tem tudo ou nada". Para minimizar o clima de velório face à iminência do despejo, a frase "o Brasil não vai acabar no dia 1° de janeiro" foi repetida várias vezes pelo mandatário.

Tais esforços não são em vão. Afinal, o que importa ao bolsonarismo é manter sua base constantemente mobilizada. Sobretudo nos tempos difíceis que se avizinham, a julgar pelos recentes ataques terroristas e pelo que vem se passando acima da linha do Equador.

No último dia 23, a Comissão de Inquérito da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, responsável por investigar a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021, chegou a uma decisão final. Donald Trump foi acusado de conspiração. Por essa razão, a Comissão recomendou que o ex-presidente seja indiciado pelo Departamento de Justiça e impedido de se candidatar e ocupar cargos públicos.

Segundo o relatório produzido, Trump pretendia obstruir a vontade do povo e derrubar a democracia americana. Para tanto, teria contado com o apoio de seus advogados, o secretário-geral da Casa Branca e parlamentares, que, por meio de redes sociais, estimulavam uma insurreição para impedir que Joe Biden fosse diplomado como presidente dos Estados Unidos.

Qualquer semelhança com o Brasil não é coincidência. Para o futuro ministro da defesa, José Múcio Monteiro, Bolsonaro "colocou a digital" nos atos golpistas ao se dirigir a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada no dia 9 de dezembro. De acordo com Múcio, antes "a gente não podia dizer ‘está por trás’. Hoje, o presidente falou."
Camila Rocha