segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Triste fim de Jair Messias Bolsonaro

Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos. Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: – Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.

Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada. Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: – Alvorada é coisa de comunista! — esbracejara: – Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.

O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.

Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trémulas procurou a Glock 19 que sempre deixava sob o travesseiro.

– Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a Glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:

– Quem está aí?

Susa Monteiro

Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos. Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:

– Porra! Quem é você?

– Tenho muitos nomes – disse o velho. – Mas pode me chamar Anhangá.

– Você não é real!

– Não?

– Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele, mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:

– Em todo o caso, sou o seu sonho mau. Vim para levar você.

– Levar para onde, ó paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.

– Vou levar você para a floresta.

– Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso do que o ouro...

O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado – era uma onça enfurecida, lançando-se contra o Presidente:

– Acabou!

Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:

– Você não pode me deixar aqui. Sou o Presidente do Brasil!

– Era – rugiu Anhangá, e foi-se embora.

Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o Presidente. Não havia sinais dele.

– Cheira a onça – assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério. Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.

Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio. Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio. Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio. As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio. As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio. O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio – e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

Pensamento do Dia

Parlamento dos macacos, Banks

Desdém com miséria alheia

Endinheirados de Brasília, ociosos, resolveram desdenhar da pobreza, vestindo-se de favelados e portando réplicas de armas usadas pelos traficantes nos morros cariocas, durante festa que fizeram para se divertir semana passada, no Lago Sul.

De periguete a chefe da boca, a mansão do evento ficou lotada de seres nunca dantes vistos no bairro mais rico da Capital da República. Uns bombados, outros buchudos, mulheres com os beiços inchados de fios de ouro e botox, bundas compradas a peso de ouro, peitos postiços de quilo e meio, vestidos com a moda da periferia lançada pela TV Globo nas novelas mas que já existia, desde anos 90, na Feira da Sulanca, em Caruaru.


Embora alguns vivam só de aparências, comprando carros de luxo em 96 prestações mensais, com os carnês fazendo os carros andarem tortos para um lado, a maioria leva vida confortável. Como crianças, ficam procurando ocupar o tempo com brincadeiras novas, vestindo-se de bruxas, de travesti, de Jeca Tatu, de super-heróis e agora de favelados.

Alguns encomendaram dentes de ouro, ostentaram braceletes e correntões e esvaziaram as lojas de armas air soft, para disparar tiros de tinta durante a festa.

Dizem as más línguas que uma das mesas da festa estava repleta de sarapatel e buchada de bode, costurada com fios de ouro. Quando já estava amanhecendo o dia, os ricaços foram para o quintal e tomaram banheiro de mangueira. Alguns soltaram pipocos, porém com som mais fraco e diferente daqueles que se ouvem cotidianamente no morro, onde se amontoa o Brasil real.

 Miguel Lucena

Acordar é preciso

Esse povo sofrido, que sonha com um lugar melhor para viver. Sonha, mas é preciso acordar, minha gente! Lutar! Gritar, ir para as ruas, aprender a votar! Nós não sabemos. Vamos para as ruas, vamos buscar os nossos direitos
Elza Soares, no Rock in Rio

Witzel encontra paz e amor na matança

Para que policiais do Rio de Janeiro ganhassem bônus semestrais, um dos fatores levados em conta era a redução do número de mortes causadas pelas forças de segurança. Não é assim desde a terça 24. Como informou naquele dia o colunista de ÉPOCA Guilherme Amado, o governador Wilson Witzel retirou o indicador do cálculo.

Na prática, ele criou novo incentivo para que se mate mais. De janeiro a agosto deste ano, 1.249 pessoas perderam a vida em confrontos com a polícia, aumento de 16,2% em relação ao mesmo período de 2018.

E não entram na soma as “balas perdidas” que fazem vítimas fatais durante operações. Cinco crianças morreram de fevereiro para cá. A quinta foi Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, no Complexo do Alemão.

Parentes e testemunhas sustentam que saiu da arma de um policial a bala que a atingiu. Apenas três dias após a morte da menina, Witzel mandou publicar no Diário Oficial a mudança no cálculo dos bônus. Acaso ou sadismo?


O governador já levara mais de 48 horas para comentar o que ocorrera com Ágatha. Quando o fez, na segunda 23, foi para dizer que sua “política de segurança é exitosa”, que está reduzindo o número de homicídios no Estado a “patamares civilizatórios” (2.717 de janeiro a agosto) e que “é indecente usar um caixão como palanque” – exatamente o que ele fez ao comemorar na Ponte Rio-Niterói a morte do sequestrador de um ônibus, em 20 de agosto.

No Brasil de 2019, está difícil se espantar com gente que saliva ao falar em morte. Banalizou. Mas é preciso perseverar.

No sábado 28, o Globo publicou em seu site uma entrevista com Witzel, dada na Área VIP do Rock in Rio. Vale comentar cinco trechos.

“Os grandes eventos trazem visibilidade para o Rio e trazem turistas que passam a ver os efeitos de nossa política pública de segurança. Eles começam a enxergar como o Rio de Janeiro está sendo pacificado, com a polícia na rua, as pessoas mais felizes, o clima mudando no Rio de Janeiro. E, como a gente diz, virando o jogo.”

Pacificado? Ao menos dez pessoas são assassinadas diariamente no Estado, e a polícia mata mais cinco. Se alguém está mais feliz, talvez sejam ele e sua mulher, que aparecem sorridentes na foto de divulgação.

“Eu sou uma pessoa que não fica intimidada diante de desafios. Quero um Rio de Janeiro pujante o ano todo.”

Pujança é igual a matança?

“Estou em contato com o prefeito de Miami para me aproximar da Disney. O Rio pode ter uma visibilidade maior lá para trazer o turista para cá. Tem a conversa para trazer um parque da Disney aqui. Em Guaratiba há uma área que pertence à Igreja. São cinco milhões de metros quadrados.”

O governador sabe bastante bem que Guaratiba é dominada por uma milícia. Ele vai oferecer esse modelo de segurança à Disney? O parque da Disney movimentará ainda mais os negócios da milícia? Assim como na Copa e na Olimpíada, o cidadão fluminense vai pagar o pato e ficar com cara de pateta?

“O sambódromo pode ter um carnaval fora de época, que pode ser outubro, para aproveitar a criançada. Podemos fazer um carnaval junino, com as quadrilhas. O Rio de Janeiro já teve 800 quadrilhas e hoje tem 80.”

Ágatha e outras crianças que estão morrendo por causa da política de segurança “exitosa” de Witzel não vão poder brincar o carnaval fora de época. Já quadrilhas nunca faltarão no Rio. Se o número caiu é porque a riqueza nesse ramo está mais concentrada.

“Também penso em fazer um grande evento das polícias, uma demonstração das forças operacionais da polícia, com aeronaves, com o corpo de bombeiros. A população gosta de participar.”

Esses eventos têm sido diários, com policiais disparando de helicópteros sobre favelas. A população, inclusive crianças, participa tentando se proteger das balas. Já não é suficiente?

Como reportagem publicada pelo Globo neste domingo explica, o que Witzel está conseguindo, com seu governo anticivilizatório, é ganhar projeção nacional. Sonha ser presidente para, quem sabe, federalizar as Ágathas.

Meu discurso na ONU

Se a mim coubesse discursar na abertura da 74ª Assembleia Geral da ONU, se eu tivesse essa honra por causa de nossos antepassados políticos que a mereceram por suas ideias, elegância e dignidade, evitaria levar comigo uma pobre moça com cara de indígena que serviria apenas para me filmar encantada, com seu celular progressista de homem branco. Eu não teria coragem de dizer que a menina representa os índios do meu país. Apenas uns poucos, já que o resto a gente massacrou devidamente no passado.

Começaria meu discurso mandando meus confrades do mundo inteiro aprenderem logo o português para lerem “Escravidão”, o livro do professor Laurentino Gomes. Ele nos conta como subjugamos com eficiência, desde o primeiro leilão dos cativos em 1444, uma outra etnia que trouxemos para cá, atravessando com eles um oceano, para que nos servissem e inventassem o país que agora os despreza e discrimina.

Eu também citaria a Bíblia, mas um outro versículo mais apropriado. Podia ser, por exemplo, o que está no Livro Sagrado em Lucas 12, 1-3, que aprendi com Frei Betto: “Tomem cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”.


Em meu discurso, talvez fosse o caso de lembrar o que muita gente tenta esquecer ou negar: a ditadura no Brasil, de 1964 a 85. Ela está nas primeiras páginas dos jornais da época, mesmo dos que a apoiavam. Como na manchete de 26 de março de 1969, onde o presidente-general afirma: “O governo já cuida da volta à democracia”. (Ora, o que volta é porque já foi). Ou, em 19 de agosto do mesmo ano, a declaração de membro do triunvirato militar no poder: “Nosso objetivo é restaurar a democracia”. (Ora, só se restaura o que não é mais). O mesmo jornal dizia, três dias depois, que “o Exército está decidindo a sucessão”. Pode ser mais claro?

E, para quem não acredita na crise do clima, sugiro outras manchetes de exatos 50 anos atrás, reproduzidas em colunas de jornais de hoje: “Veneno no ar, a maior densidade mundial de poluição está no Rio”. Ou, num outro dia: “Envenenamento do ar ameaça de extermínio a vida sobre a terra”.

Diria, na tribuna da ONU, que é burrice reduzir a vida hoje a uma disputa polarizada e besta entre direita e esquerda. Ou até mesmo entre socialismo e capitalismo. Citaria o Piketty ou qualquer um dos anarco-capitalistas contemporâneos, para explicar que nada é mais tão separado assim. Como, aliás, John Maynard Keynes já tinha sacado um pouco, desde 1936. Essa luta mortal (ou imortal?) entre direita e esquerda é coisa de quando a assembleia da Revolução Francesa se reunia, com os conservadores no lado direito do plenário e os radicais no esquerdo. Que diferença libertária havia, no século passado, entre a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin? De que lado se encontra a China no nosso século, o de seu liberalismo econômico ou o de seu autoritarismo político? A democracia só é um estorvo, Carlos, quando perdemos a paciência com ela, por razões vagas, tolas ou inconfessáveis.

Uma pessoa se suicida no mundo a cada 40 segundos, sendo o suicídio a segunda maior causa da morte de adolescentes e jovens no Brasil. Foi sempre assim? E o tiro que o procurador-geral ia dar no Gilmar Mendes, hein? E o homem do governo que falou mal de nossa maior atriz, uma glória do país, e nenhum superior chamou sua atenção? O que está hoje em discussão, senhores representantes de todas as nações do mundo, não é o assanhamento entre a direita e a esquerda tão parecidas. E sim uma opção entre barbárie e civilização.

O passado já passou. Mas qual dessas duas alternativas, a barbárie ou a civilização, cada um de nossos países deve escolher para o presente e o futuro de seu povo? Quem sabe ele será mais feliz e vai se descontrair para viver em paz a vida como quiser levá-la.

E vejam só, senhores, o exemplo de nosso cinema sem carinho e sem apreço dos que mandam. Apesar da disposição adversa do presidente e de alguns de seus ministros, como os da Cidadania (?) e da Educação (aquele que escreve “suspenção”, assim com cedilha), que não querem saber de nós, estamos sobrevivendo com muita honra. Este ano, com nove filmes no Festival de Berlim e prêmios por aí. Como em Cannes (dois) e em Veneza (mais dois).

Porque decidimos combater o “macartismo cultural”, vamos deixar que todos se manifestem, em nome da diversidade natural do país. Porque nós escolhemos a civilização.
Cacá Diegues

Imagem do Dia

Steve  McCurry 

Ambiguidade torna-se principal marca da administração Bolsonaro aos 9 meses

A Presidência de Jair Bolsonaro faz aniversário de nove meses nesta terça-feira. Nesse curto período, o retrato que o capitão pintava de si mesmo mudou. Tomando-se como parâmetro sua autoimagem, o Bolsonaro que está no Planalto é indigno de Bolsonaro. Trata-se de um Bolsonaro que se debate no pântano das ambiguidades, perdendo-se na manobra de ser e não ser ao mesmo tempo. Onde está o Bolsonaro de 2018 que não socorre este outro?, eis a pergunta que até os bolsonaristas começam a se fazer.

Em política, o "novo" às vezes é algo muito antigo. Tome-se o exemplo do relacionamento do capitão Bolsonaro com o coronel da política pernambucana Fernando Bezerra. Um, após permanecer na Câmara como um obscuro deputado por 28 anos, chegou ao Planalto cavalgando a fome de limpeza da sociedade. Outro, depois de apoiar Lula, ser ministro de Dilma e virar freguês da Lava Jato, era parte do entulho. Súbito, o detergente transforma a sujeira em representante do governo no Senado.

Havia na Esplanada dois ministros portadores de cartas brancas: Sergio Moro e Paulo Guedes. O ex-juiz da Lava Jato descobre da pior maneira que pedestal não tem elevador. Convive com a suspeição ao redor (do Zero Um aos ministros investigados, denunciados e condenados). Assiste à inércia do capitão diante do naufrágio do pacote anticrime, que sonhava aprovar no Congresso em seis meses. Começa a ver pus no fim do túnel.

O Posto Ipiranga, neófito em serviço público, constata que o inferno existe, mas não funciona. Nele, o lero-lero é o caminho mais longo entre um projeto econômico e sua realização. Uma previsão de crescimento anual de 2,5% pode virar uma decepção de 0,8%. Antes de ser silenciado, o tambor da CPMF mostrou que o governo tem poucas ideias. Algumas são ruins. E, aliás, nem são dele. E o diabo, já meio impaciente, começa a questionar o teto orçamentário, imaginando que todos os gastos são pardos.

A conjuntura parece conspirar contra o otimismo. Na política, o governo Bolsonaro começa a ficar parecido com o cadáver dos anteriores. Vê-se pelos microorganismos. Na economia, muitos brasileiros, depois de ouvir os discursos do presidente sobre os novos tempos, podem pedir para ir viver no país que ele descreve, seja ele onde for.

A coisa talvez fosse mais simples para os bolsonaristas se os nove meses de Presidência tivessem transformado Bolsonaro num político igual a todos os outros. Mas foi pior do que isso. A movimentação errática faz de Bolsonaro um personagem muito diferente de si mesmo — ou da grande novidade que ele dizia ser.

Governo de bijuteria

O país está derretendo, com desemprego, e eles estão preocupados com bijuteria. O Ministério da Economia não tem projeto para acabar com desemprego, para abrir o mercado, nada
José Nelto, líder do Podemos na Câmara

As várias faces da mesma crise

Os dois indicadores de emprego divulgados esta semana reafirmam que a recuperação do mercado de trabalho é muito lenta. Os sinais são mistos, há criação de vagas, mas a desestruturação do mercado de trabalho atinge, em maior ou menor grau, cerca de 58 milhões de brasileiros. A recuperação é demorada porque o crescimento da economia nos últimos trimestres foi baixo e as projeções para o PIB do ano que vem estão encolhendo. O Banco Central já espera apenas 1,8% de alta em 2020. No acumulado do ano, o país criou menos emprego formal do que no auge da crise em 2009. A boa notícia é a oferta de vagas na construção civil, especialmente no mês de agosto.

O governo, a cada notícia boa, comemora, achando que assim consegue estimular o otimismo. Essa técnica é velha e nunca resolveu coisa alguma. Os fatos são os fatos. A crise foi herdada, mas ainda não foi enfrentada adequadamente. Quando o tema é emprego, não diz muita coisa afirmar que os números são os maiores dos últimos anos porque a base de comparação é muito baixa.


Os desempregados são 12,5 milhões, e os desalentados, 4,7 milhões. Entre quem trabalha, há quase 12 milhões sem carteira no setor privado, e outros 4,4 milhões de domésticos também sem formalização. Mais de dois milhões têm emprego familiar, muitas vezes sem remuneração, e os empregados por conta própria sem CNPJ são quase 20 milhões. No setor público, ainda há 2 milhões sem carteira e quase 1 milhão é empregador não formalizado. Somando tudo, apesar das diferenças de situação, são 58 milhões de brasileiros, mais de metade da população economicamente ativa.

A melhora este ano é tímida. O país gerou 593 mil empregos formais, de janeiro a agosto. No mesmo período do ano passado, com toda a incerteza eleitoral, foram 568 mil. Em 2009, quando o reflexo da crise internacional estava no auge, foram criados 680 mil empregos com carteira. Na comparação entre 2018 e 2019, a abertura de vagas foi praticamente a mesma na indústria. No setor de serviços, houve queda, e a surpresa positiva ficou na construção civil, que aumentou de 65 mil para 96 mil os empregos criados. Quando a análise é apenas para o mês de agosto, que seria um dado melhor “na margem”, como dizem os economistas, pegando o número na ponta, os resultados são semelhantes. Em 2018, 110 mil empregos criados, no mesmo mês deste ano, 121 mil. Cresceu, mas não muito.

O economista Bruno Ottoni, pesquisador do Idados e especialista em mercado de trabalho pelo Ibre/FGV, explica que a geração de vagas é gradual e está sendo puxada pela informalidade, que, como disse o IBGE, bateu recorde em agosto. Ottoni explica que nem sempre informal é sinônimo de precarização. Em alguns casos, pode-se ganhar mais trabalhando sem a carteira assinada. Mas não é isso que tem acontecido na maioria dos casos no país.

— O que vemos é que há recorde da informalidade, e o rendimento médio do informal está abaixo do formal. O mercado de trabalho responde sempre por último, e o fato é que a economia como um todo ainda está em um processo muito lento de recuperação — explicou.

De todos os empregados do país, 41% estão na informalidade, o maior percentual desde 2016. No mês de agosto, nove em cada 10 vagas criadas foram informais (87%). Nesse grupo estão pessoas que trabalham sem carteira, sem CNPJ ou até mesmo sem remuneração, em trabalhos para a família.

O país tem 2 milhões de empregos formais a menos do que em relação ao melhor momento de 2014. Pelas projeções de Bruno Ottoni, se a economia crescer 2% no ano que vem, como estima o mercado financeiro, haverá geração entre 700 mil e 800 mil. Ou seja, nem em 2020 haverá plena recuperação do emprego.

Para quem está desempregado, o tempo de espera para voltar ao mercado pesa muito. As contas não param de chegar, os sonhos de famílias inteiras são adiados. Investimentos em capacitação e educação são suspensos, e as despesas com saúde, tratamentos e remédios ficam mais pesadas em relação ao orçamento. O drama é vivenciado dia após dia. E quanto maior o tempo fora do mercado de trabalho mais difícil é a recolocação. O tempo corre contra o desempregado. O país está gerando vagas, mas o ritmo é lento e não é hora para comemorações, principalmente dentro do governo.

Um banho de decência

O brasileiro está insatisfeito com os serviços públicos. Segurança? Um desastre  tanta morte por bala perdida, como no Rio. Educação? Piada. Weintraub, aliás, gosta de chiste. Mobilidade urbana? Um atraso as massas se comprimem nos transportes públicos. Saúde? Um caos nos corredores de hospitais superlotados.

Difícil apontar algo de boa qualidade. O país precisa de um gigantesco choque de gestão. Governadores, prefeitos, a hora é essa: ponham sua administração na UTI. Convoquem secretários, cobrem mudanças, deem carta branca para novos métodos, exijam resultados. O eleitor está de olho: ou reelege ou bota para fora.


Sigam o exemplo de Zaratustra, o protagonista que Nietzsche criou para dar unidade moral ao cosmo. O profeta vivia angustiado à procura de novos caminhos e recitava em seus solilóquios: “Não quer mais, o meu espírito, caminhar com solas gastas.” Decifrador de enigmas, arrumou a receita para as grandes aflições: “Juntar e compor em uni­dade o que é fragmento, redimir os passados e transformar o que foi naquilo que poderá vir a ser”.

A imagem do filósofo alemão, na fábula em que apresenta o conceito do eterno retorno, cai bem na atual administração pública.

A orquestra institucional pede novos arranjos para preparar o amanhã, resgatar a esperança perdida. É a bandeira a ser desfraldada, pois a sociedade recusa a velha política.

A tarefa requer arrojo para enfrentar dissabores e pressões políticas. Muitos não queimam gorduras, preferem remendar cacos de vaso quebrado. O velho Brasil não consegue enxergar novos horizontes.

O que pode mudar, ser desobstruído ou melhorado? Se Vossas Excelências fecharem os olhos, a descrença só aumentará.

O fato é que os Poderes da República têm um apreciável PIB de compadrio político sob o cobertor público e resvalando no Custo-Brasil. As políticas, inclusive as sa­lariais, são disformes e ineficientes.  

A gestão de resultados é um resquício quase imperceptível nas plani­lhas de um Estado caro e paquidérmico. Junte-se à pasmaceira o colchão social do distributivismo para se flagrar a cara de um País atrasado. A administração pública parece uma árvore sem frutos.

A sociedade exige uma virada de mesa. O cardápio está pronto: viagens de servidores, participação de empresas estatais em eventos, gastos publicitários, cartões corporativos, nepotismo. Todo centavo gasto em grandes avenidas e pequenas veredas merece uma varre­dura.

A palavra de ordem do momento: transparência total.

Parafraseando Luiz Inácio, “nunca antes na história desse País” se percebeu tanta irritação com políticos e governantes. Se é falácia dizer que a Amazônia é o pulmão do mundo, como denunciou Jair Bolsonaro na ONU, é também falácia dizer que as instituições estão sólidas. Ora, as tensões entre os Poderes subiram ao pico da montanha.

Senhores governantes, tenham coragem para ousar. Cirurgia profun­da na gestão pública. Sob pena de a esfera privada (oikos, em grego) continuar a invadir a esfera pública (koinon). Não permitam que a fome particular conti­nue a devorar o cardápio do povo.

Gaudêncio Torquato