quinta-feira, 27 de julho de 2023

Algo que a IA deve saber sobre jornalismo

O jornalismo vive de factos e vive para publicar aqueles que são relevantes. Mas o jornalismo não é um conjunto seleccionado de factos. Um conjunto seleccionado de factos, se ordenados de uma certa forma, pode ser uma enciclopédia. O jornalismo não é uma enciclopédia.

O jornalismo também não é um produto ou uma plataforma.

Qualquer pessoa pode escrever textos, publicar fotografias e vídeos, e lançar sites, newsletters, podcasts ou aplicações. Mas, para que isso seja jornalismo, é preciso que sejam seguidas práticas específicas e que os objectivos sejam, genericamente, os de informar o público, escrutinar os poderes, ajudar a compreender o mundo. Não vale a pena alongarmo-nos no assunto – para os interessados, a minha colega Bárbara Reis, numa newsletter aqui ao lado, escreve sobre o tema.

O que interessa para esta newsletter é a forma como a tecnologia de inteligência artificial generativa (os famosos chatbots) pode vir a afectar o jornalismo; e, por consequência, afectar o espaço público, o que implica as escolhas que fazemos, do consumo ao voto.


A ideia de que o jornalismo não é o acto de filtrar um repositório de factos, e de combinar os resultados obtidos para criar um produto, é uma ideia útil para esta discussão.

Na semana passada, a Google fez um tour pelos jornais americanos para apresentar ferramentas de inteligência artificial que acredita serem úteis nas redacções. A empresa tem estado a promover o Bard, a sua plataforma de inteligência artificial conversacional, concorrente do ChatGPT. Por seu lado, os media (escaldados com o impacto que as tecnologias de informação tiveram no último quarto de século, em particular no que diz respeito ao negócio) estão em estado de alerta, entre o medo de perderem a próxima grande inovação e o receio de se voltarem a queimar.

Não é claro em que consistem as ferramentas apresentadas pela Google aos jornais. Mas, pelo que apurou um artigo do New York Times, são uma espécie de assistente digital que poderá ser usado por jornalistas; não são ferramentas para escrever e publicar artigos automaticamente. “Muito simplesmente, estas ferramentas não pretendem, e não podem substituir o papel essencial que os jornalistas têm a fazer reportagem, criar e verificar os seus artigos”, disse uma porta-voz da Google.

É uma afirmação factual e politicamente correcta. Mas há uma passagem do artigo que me despertou a atenção e me deu uma sensação de déjà-vu: “Alguns executivos que viram a apresentação da Google descreveram-na como perturbadora (…) Duas pessoas afirmaram que parecia que [a empresa] dava por garantido o esforço que é posto a produzir artigos rigorosos e bem-feitos”.

É um equívoco frequente.

Ao longo dos anos em que escrevi sobre empresas de tecnologia e startups, uma pergunta que ouvi várias vezes vinda de pessoas do sector foi: “Onde é que vocês vão buscar a informação?”

A resposta não cabia nos poucos minutos de conversa de circunstância em que estava a preparar o telemóvel para gravar a entrevista. É impossível explicar de passagem o papel das agências noticiosas, da comunicação institucional, das conversas, das fontes que se cultivam pessoalmente, das reportagens no terreno, dos documentos obtidos a custo, às vezes nos tribunais. Também é difícil explicar de passagem que, em muitos casos, obter a informação é a parte mais trabalhosa e demorada – o conceito de informação escassa não é imediato para quem vive em hiperabundância de informação e de dados.

Quem fazia a pergunta eram pessoas afastadas da bolha que sabe como as redacções funcionam; alguns eram empreendedores pós-universitários que estavam a falar com um jornalista pela primeira vez. A impressão com que fiquei daquelas curtas conversas era que os meus interlocutores achavam que a informação relatada num trabalho jornalístico estava (na maioria dos casos, pelo menos) pronta a ser obtida num documento ou base de dados.

Também por essa altura, uma mão-cheia de startups teve conversas comigo sobre uma qualquer ideia que tinham para o jornalismo. As ideias não eram boas e julgo que nenhuma das startups vingou, excepto talvez uma, que acabou por pegar no que tinha desenvolvido e virar-se para outros sectores.

Aquelas perguntas sobre a origem da informação e as ideias bem intencionadas das startups tinham um ponto em comum: a concepção do jornalismo como um produto que resulta da agregação de factos disponíveis e obtidos sem grande esforço. Este processo de transformação de factos em produto final (que para estas pessoas parecia constituir a essência do trabalho jornalístico) poderia ser melhorada, ou parcialmente automatizada, com recurso a uma qualquer tecnologia. Era uma mistura de ignorância e de tecno-solucionismo.

A inteligência artificial, em particular aquela que produz textos indistinguíveis dos produzidos por humanos, vai fazer o seu caminho nas redacções. A publicação de textos escritos por máquinas nem sequer é algo novo: algumas agências noticiosas e jornais, por exemplo, fazem-no há anos para temas como os mercados financeiros e os resultados de empresas, embora de forma mais rudimentar.

É difícil antever o quanto se poderão embrenhar estas tecnologias nos media. É possível que o entusiasmo recente se esvazie. Mas o contrário não é uma hipótese a descartar, se os resultados das primeiras experiências forem promissores, em particular no que diz respeito à espinhosa questão de ajudar o jornalismo a fazer dinheiro.

Em todo o caso, quem desenvolve tecnologias de inteligência artificial e se propõe aplicá-las ao funcionamento das redacções tem a obrigação mínima de saber o que é e como funciona o jornalismo. Caso contrário, vamos andar todos a perder tempo e a desperdiçar esforços.

Por que Neruda é comunista

Em fins de 1943 chegava de novo a Santiago. Instalei-me em minha própria casa, adquirida a longo prazo pelo sistema de financiamento. Neste lar de grandes árvores juntei meus livros e comecei outra vez a difícil vida.

Procurei de novo a formosura de minha pátria, a forte beleza da natureza, o encanto das mulheres, o trabalho de meus companheiros e a inteligência de meus compatriotas.

O país não tinha mudado. Campos, aldeias adormecidas, pobreza terrível das regiões mineiras e a gente elegante ocupando seu Country Club. O jeito era escolher.

Minha decisão causou-me perseguições e minutos estelares. Que poeta podia arrepender-se?

Curzio Malaparte, que me entrevistou anos depois do que vou relatar, disse-o bem em seu artigo: “Não sou comunista, mas se fosse poeta chileno, o seria, como Pablo Neruda é. Há que tomar partido aqui, por causa dos Cadillacs ou por causa da gente sem escola e sem sapatos.”


Esta gente sem escola e sem sapatos elegeu-me senador da república a 4 de março de 1945. Ficarei sempre orgulhoso por terem votado em mim milhares de chilenos da região mais dura do Chile, região da grande mineração, de cobre e salitre.

Era difícil e áspero caminhar pelo pampa. Há meio século não chove nessas regiões e o deserto marcou a fisionomia dos mineiros. São homens de rostos queimados; toda sua expressão de solidão e de abandono concentra-se nos olhos de escura intensidade. Subir do deserto até a cordilheira, entrar em cada casa pobre, conhecer as tarefas desumanas, e sentir-se depositário das esperanças do homem ilhado e submergido não é uma responsabilidade qualquer. No entanto minha poesia abriu o caminho de comunicação e pude andar e circular e ser recebido como um irmão imorredouro por meus compatriotas de vida dura.
Não me lembro se foi em Paris ou em Praga que me sobreveio uma pequena dúvida sobre o enciclopedismo de meus amigos aí presentes. Quase todos eles eram escritores ou, no mínimo, estudantes.

– Estamos falando muito no Chile – disse-lhes – seguramente porque eu sou chileno. Mas vocês sabem alguma coisa de meu longínquo país? Por exemplo: em que veículos nos transportamos? De elefante, de automóvel, de trem, de avião, de bicicleta, de camelo, de trenó?

A resposta muito a sério da maioria foi: de elefante.

No Chile não há elefantes nem camelos. Mas compreendo que pareça enigmático um país que nasce no gelado Polo Sul e que chega até as depressões salgadas e desertas onde não chove há um século. Tive que percorrer esses desertos durante anos como senador eleito pelos habitantes daqueles ermos, como representante de inumeráveis trabalhadores do salitre e do cobre que nunca usaram colarinho nem gravata.

Entrar naquelas planícies, enfrentar aqueles areais, é entrar na Lua. Essa espécie de planeta vazio guarda a grande riqueza de meu país, mas é preciso tirar da terra seca e dos montes de pedra o adubo branco e o mineral vermelho. Em poucos lugares do mundo a vida é tão dura e ao mesmo tempo tão desprovida de qualquer indulgência para vivê-la. Custa sacrifícios indizíveis transportar a água, conservar uma planta que dê a flor mais humilde, criar um cachorro, um coelho, um porco.

Venho do outro extremo da república. Nasci em terras verdes, de grandes arvoredos selváticos. Tive uma infância de chuva e neve. Só o fato de enfrentar aquele deserto lunar significava um sobressalto em minha existência. Representar no parlamento aqueles homens, o seu isolamento, suas terras titânicas, era também uma empresa difícil. A terra nua, sem uma só erva, sem uma gota de água, é um segredo imenso e esquivo. Sob os bosques, junto aos rios, tudo fala ao ser humano. O deserto, ao contrário, é incomunicativo. Eu não entendia seu idioma, quer dizer, seu silêncio.

Pablo Neruda, "Confesso que vivi"

Virtudes de morte


Triste um país que pune um político não pelos seus erros ou defeitos, mas por suas virtudes
Jair Bolsonaro

Afinal, Bolsonaro reconhece a derrota, mas chama Lula de jumento

No ato de filiação ao PL do vereador negro e que se diz “meio viado” Fernando Holiday, Bolsonaro chamou Lula de “jumento” e “analfabeto”, e acusou Fernando Haddad, ministro da Fazenda, de nunca ter trabalhado na vida. Foi aplaudido pelos bolsonaristas que lotaram a Câmara Municipal de São Paulo.

Haddad é advogado, professor, foi ministro da Educação duas vezes e prefeito de São Paulo. É razoável que em algum momento de sua vida tenha trabalhado. Se por “jumento”, Bolsonaro quis dizer que Lula é burro, além de analfabeto, pegou muito mal para ele, derrotado na eleição passada por um burro e analfabeto.

Como isso pode ter acontecido? A não ser que o burro e analfabeto seja Bolsonaro, que sempre se gabou de nunca ter lido um livro inteiro, nem mesmo as memórias do coronel torturador Brilhante Ulstra. Bolsonaro mal sabe articular as palavras. Lula leu antes de ser preso, e bastante nos 580 dias em que ficou preso.


Lula disputou seis eleições presidenciais e é o único brasileiro que se elegeu três vezes presidente pelo voto popular. Bolsonaro é o único presidente que não conseguiu se reeleger. Sem ofensa ao jumento e aos seus parentes próximos, o burro e o asno: quem mais poderia se parecer com eles? Lula ou Bolsonaro?

Em seu discurso, Bolsonaro, finalmente, reconheceu que perdeu a eleição para Lula:

“Eu não esperava perder as eleições”.

Não falou em fraude. Mas seus fãs responderam de imediato:

“Mas o senhor não perdeu”.

Bolsonaro completou para vitimar-se:

“Triste um país que pune um político não pelos seus defeitos ou erros, mas por suas virtudes. Eu fui punido no TSE [Tribunal Superior Eleitoral] por virtude. Vontade de ser presidente novamente, não é verdade? Eu queria ir para a praia, mas entendo que é uma missão.”

Como presidente, foi à praia muitas vezes e trabalhou pouco. Não foi punido por suas virtudes, por sinal escassas, mas porque abusou do poder político, tentou desacreditar o processo eleitoral e enfraqueceu a democracia. Deu gás aos golpistas, e só não deu um golpe porque lhe faltou apoio militar.

Virou um assalariado do PL de Valdemar Costa Neto a zanzar por aí para justificar o que lhe pagam.