sábado, 7 de novembro de 2020

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Marian Kamensky (Áustria)

Um chamado às pessoas civilizadas

O presidente norte-americano, Donald Trump, não decepcionou seus mais fanáticos seguidores e fez o que prometeu há meses: contestou, nos mais rasteiros termos, a contagem de votos que indicavam a eleição de seu rival, o democrata Joe Biden, à presidência dos Estados Unidos. Em pronunciamento na Casa Branca, Trump declarou, sem apresentar qualquer dado concreto, que, se apenas os votos válidos fossem contados, ele seria declarado vencedor. Ato contínuo, exigiu a interrupção da apuração em Estados onde havia avanço da votação em Joe Biden e acusou os opositores de tentarem “roubar a eleição”.

Se Donald Trump seguiu um roteiro que foi exaustivamente anunciado, algo absolutamente inusitado aconteceu: três das principais emissoras de TV dos Estados Unidos, que mostravam ao vivo o pronunciamento de Trump, interromperam a transmissão e informaram seu público que a fala do presidente estava repleta de falsidades e imprecisões.

As redes sociais, por sua vez, haviam tomado providência semelhante ao longo do dia, classificando como “contestáveis” ou “incorretas” as mensagens de Trump que denunciavam fraude na eleição.

Isso mostra que há um limite concreto para a escalada do populismo niilista liderado por Trump e secundado por dedicados sabujos em várias partes do mundo, inclusive no Brasil: é o limite imposto pelo vigor dos sustentáculos da democracia – especialmente a imprensa livre, mas não só.

Ao mesmo tempo, o Judiciário norte-americano, demonstrando sua independência, rejeitou, por falta de provas, diversas demandas da campanha de Trump para interromper a contagem de votos ou para contestar a lisura do pleito, enquanto muitos parlamentares republicanos, correligionários do presidente, manifestaram seu inequívoco repúdio à tentativa de Donald Trump de colocar em dúvida o processo eleitoral.

A reação generalizada à farsa de Trump mostra a saúde da democracia norte-americana, apesar de tudo. Para funcionar, uma democracia depende da manutenção de uma base comum, sustentada na verdade dos fatos e nas leis aceitas por todos. É sobre essa base comum que a sociedade debate, no espaço público, as soluções para seus problemas, seja qual for a preferência ideológica ou partidária. Quando um presidente da República incita seus compatriotas a duvidar dos fatos e a desrespeitar a lei, destrói esse entendimento mínimo e ergue, em seu lugar, um mundo de absoluta desconfiança – nas instituições democráticas e entre os próprios cidadãos. Nesse mundo em que a verdade é hostilizada e a lei é para os fracos, só os delinquentes triunfam.

Por isso, é fundamental que as pessoas civilizadas, seja qual for sua preferência política, impeçam os vândalos da democracia de prevalecer, como está acontecendo nos Estados Unidos. O exemplo norte-americano nos é particularmente importante, pois neste momento o presidente Jair Bolsonaro, imitando seu mestre Donald Trump, reiterou suas dúvidas sobre o processo eleitoral brasileiro. Sem nenhuma evidência, Bolsonaro afirma que o sistema de votação nacional é suscetível a fraudes.

Em meio ao vergonhoso escarcéu causado por Trump e suas denúncias infundadas de manipulação de votos, Bolsonaro informou que vai patrocinar uma proposta de emenda constitucional destinada a acabar com o sistema eletrônico de votos e substituí-lo pelo voto em papel, que ele diz ser “confiável”.

Pode-se argumentar que o sistema que Bolsonaro considera mais “confiável”, o voto em papel, é justamente aquele que está sendo colocado em dúvida por Trump, mas é ocioso esperar qualquer discussão racional com quem deliberadamente estimula a irracionalidade. O fato a se tomar nota, e que deve alarmar todos, é a clara estratégia de Bolsonaro de estimular a farsa segundo a qual o sistema de votação não é confiável, alimentando um clima de suspeita permanente no País e preparando o terreno para, como Trump, desrespeitar o resultado da eleição presidencial de 2022, caso lhe seja desfavorável, alegando “fraude”.

O nome disso, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, é tentativa de golpe.

Trump, o perdedor que odiava os perdedores

Em meados de 2015, a indicação do histriônico empreendedor imobiliário Donald Trump como candidato republicano à presidência dos Estados Unidos soava tão absurda que uma teoria conspiratória garantia que o magnata havia feito um conchavo com o casal Clinton para torpedear internamente a campanha dos conservadores e favorecer a vitória da ex-secretária de Estado. Mas Trump — que também carrega as qualificações de apresentador de reality show, filho de outro empreendedor bilionário e ilustre morador da Quinta Avenida de Nova York— chegou à Casa Branca apelando nada menos que à insatisfação da classe trabalhadora, a bordo de um discurso anti-imigração e antiglobalização. Quatro anos depois, não se saiu mal, recebeu mais votos dos cidadãos do que em 2016, mas a Casa Branca diz adeus ao vociferante inquilino. A vantagem do democrata Joe Biden nos votos pelo correio, ao invés de fazê-lo dar o braço a torcer, o mantém empenhado em bagunçar uma eleição a golpes de tuíte e recorrendo aos tribunais, apesar de até agora estes terem fechado suas portas às queixas dos republicanos.



Quando iniciou sua primeira campanha eleitoral, Trump mostrava-se exultante, ganhador antes de ganhar qualquer coisa, a mesma atitude que adotou inclusive quando os votos de 2020 já haviam sido depositados. “Parem a apuração”; “Fraude”, gritou nas redes sociais. Sua atitude fanfarrona não é uma surpresa: “Tenho as pessoas mais leais, poderia parar no meio da Quinta Avenida e atirar em alguém e mesmo assim não perderia votos”, chegou a dizer naquele mês de janeiro de 2016, quando ninguém acreditava seriamente que algum dia dormiria na Casa Branca. Não saiu atirando em ninguém, ao menos no sentido literal, mas insultava os imigrantes mexicanos, prometia suspender a entrada de muçulmanos no país, fazia do slogan “Para a cadeia”, contra Hillary Clinton, o lema preferido dos seus comícios e agredia a torto e a direito pela sua conta no Twitter. 

O historiador britânico James Bryce empreendeu, em meados de 1880, uma longa viagem para estudar aquele jovem país, os Estados Unidos. No livro resultante, The American Commonwealth, advertiu para o perigo de que a democracia norte-americana caísse vítima de “um tirano”, mas não “um tirano contra as massas”, observou, “e sim um tirano com as massas”. Hoje, editoriais de todo o mundo questionam o desfavor que Trump está fazendo à democracia do seu país.

Donald John Trump (Nova York, 1946) afinal ganhou as eleições de 8 de novembro de 2016. Muitos esperavam que, ao chegar à Casa Branca, adotasse uma atitude mais presidencial. O que aconteceu depois surpreenderia a esse grupo. Só que, quatro anos depois, os norte-americanos não quiseram mais do mesmo.

No dia da posse, 20 de janeiro de 2017, chovia. É fácil de lembrar. No meio do discurso do novo presidente, perante o imponente Capitólio de Washington, as gotas começaram a cair sobre as cadernetas dos jornalistas que acompanhavam o ato e rabiscavam anotações. À noite, no baile de gala, Trump comemorou com a imprensa: “A quantidade de gente foi incrível hoje. Nem sequer choveu. Quando acabamos o discurso, entramos, e aí sim caiu”. E assim, junto com sua presidência, teve início também a era dos “fatos alternativos” —conforme os batizou uma assessora de Trump—, ou seja, fatos diferentes dos reais.

Trump mente com frequência. O The Washington Post, que mantém uma contagem de todas as falsidades ou tergiversações do republicano, calculou que, até 27 de agosto, o presidente disse 22.247 coisas inverídicas. De todo tipo, desde atribuir declarações inexistentes a outras pessoas —como que o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, estava impressionado com sua capacidade de ação e disse que ninguém tinha feito tanto como ele—, até acusar Barack Obama de espioná-lo e declarar que, em comparação com a Europa, os Estados Unidos não estão indo tão mal com a pandemia. Na realidade, o país sofre mais contágios e mortes per capita que todos as grandes nações europeias, exceto a Espanha e a Bélgica. As mentiras não pararam. Nem as confusões. Nas últimas horas, ele não para de questionar um sistema eleitoral que em outro momento lhe deu a vitória.

O Twitter é sua via de comunicação mais imediata. Tuita sem cessar, de manhã cedo, de madrugada, a qualquer hora do dia, às vezes de forma frenética. Em 5 de junho, em plena onda de protestos contra o racismo depois da morte de George Floyd, bateu seu recorde de publicações em uma só jornada: 200. O pico anterior, no fragor do impeachment, em 22 de janeiro, era de 142. Pelo Twitter soubemos do seu contágio pelo coronavírus; no Twitter comunicou a demissão de altos funcionários, ameaçou a Coreia do Norte com “uma fúria e fogo que o mundo jamais viu” e rompeu um acordo no último momento, tachando o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, de “fraco” e “desonesto”. E o Twitter continua sendo o alto-falante da realidade paralela em que parece ter se instalado. Mas, desta vez, a rede social alerta junto às mensagens dele que suas palavras podem conter falsidades, para que ninguém se deixe enganar.

Porque insultar, e de forma feroz, tornou-se a nova normalidade da presidência mais poderosa do mundo. Uma assessora que o criticou após ser demitida, Omarosa Manigault, foi chamada de “louca”, “ralé” e “cachorro”. Embora o insulto mais recorrente do seu vocabulário, independentemente da falha que queira denunciar, seja o de loser (perdedor). Ainda nesta quinta ele disse: “Ganhar é fácil, perder não —não para mim”. Assim está demonstrando agora. Quando os resultados lhe dão as costas, se debate como um javali ferido, contra um sistema eleitoral talvez antiquado, mas em vigor.

No começo do seu mandato, e durante meses, analistas e cidadãos aguardavam o momento em que Trump deixaria o personagem valentão que o tinha levado a ganhar as eleições e assumiria finalmente o porte presidencial que se esperava, mas esse dia nunca chegou. Trump continuava sendo o juiz ogro do concurso de talentos O Aprendiz, o magnata que se lançou no mundo dos negócios cobrando de porta em porta os aluguéis atrasados em imóveis do seu pai, o sujeito capaz de se congraçar com os supremacistas brancos e de elogiar a credibilidade do presidente russo, Vladimir Putin, frente à dos seus serviços de inteligência.

Mas se Donald Trump é tão ruim como dizem, por que tanta gente vota nele? Por que foi premiado com mais de 69 milhões de votos? Se é tão tóxico, por que seus índices de popularidade entre os republicanos superam sua marca anterior? Além do pragmático voto conservador, que engole suas extravagâncias, por que, contra tudo e todos, há uma massa de trumpistas irredutíveis que o apoia em cada incêndio?

Quando se pergunta aos seus seguidos nos comícios por que gostam do republicano ou votam nele, a primeira coisa que respondem é que “não é um político”. Ser “um político”, no ecossistema trumpista, equivale a ocultar a realidade, viver do contribuinte e se render aos princípios do politicamente correto. E os ataques do presidente, suas estridências, lhes sugerem uma autenticidade da qual sentem falta na classe dirigente. Em suas críticas públicas a países aliados, apesar de tão grosseiras como as dirigidas daquela vez a Trudeau, veem uma porta raramente entreaberta para a cozinha das negociações diplomáticas.

Um dia, Emmanuel Macron foi perguntado sobre uma discussão que teria tido com Trump. O presidente francês se negou a responder, usando uma frase do chanceler Otto von Bismarck. “Nunca conto os bastidores. Porque, como dizia Bismack, se explicássemos às pessoas como as salsichas são feitas, não é certeza que continuaríamos a comê-las”. Trump, para seguir nessa analogia, faz seu público achar que, pela primeira vez, conhecerá a crua realidade de como essas salsichas são feitas. Se há algo que Trump consegue transmitir é espontaneidade. “Diz as coisas como são”, “com ele, o que você vê é o que existe”, costumam declarar seus eleitores. Mas milhões acreditam em falsos boatos que ele espalha nas redes sociais.

Como escreveu recentemente Lauren Collins na The New Yorker, “se a promessa de Obama é que ele era você, [na campanha de 2016] a promessa de Trump é que você é ele”.

Tudo, na verdade, vira show. Trump é obcecado pela atenção midiática, acompanha e divulga os índices de audiência de suas aparições televisivas como se fossem feitos políticos. Ataca com sanha a imprensa crítica, mas é viciado nos holofotes. Vê as entrevistas coletivas como shows de rock que às vezes se prolongam por mais de uma hora. Certa vez, na ONU, pediu aos jornalistas uma pergunta boa, como apoteose final. “Vocês se lembram daquilo que disse o Elton John? Quando você toca a última e é boa, não volte.” E houve situações insólitas, como quando, no Salão Oval, numa saudação protocolar ao presidente sul-coreano, Moon Jae-in, pressionou-o a responder a uma pergunta sobre a Coreia do Norte.

Não é que seja transparente, porque mente com frequência, mas não há lembrança de presidentes tão acessíveis e expostos. Muitas vezes, o que havia sido anunciado à imprensa como uma simples pose para as câmeras, ao início de uma reunião, se tornava uma coletiva improvisada, em que lavava toda a roupa suja.

Seus comícios foram longos monólogos, cheios de humor. Em junho, em Tulsa (Oklahoma), falou durante quase duas horas. Parodiou conversas com Angela Merkel, com a primeira-dama, Melania, e, naturalmente, espalhou o medo: “Se os democratas ganharem em novembro, os arruaceiros terão o poder, ninguém voltará a ficar seguro”, disse.

Na véspera das eleições de 2016, este jornal esteve no comício de encerramento da campanha de Trump no Estado de New Hampshire. Em seu apelo final para chegar à Casa Branca, prometeu: “Meu contrato com os norte-americanos começa com um plano para acabar com a corrupção, quero que todo o establishment corrupto de Washington saiba: vamos drenar o pântano”.

Àquela altura, na verdade, já se tinha negado a divulgar suas declarações fiscais, tinha problemas nos tribunais por desvio de recursos de sua fundação beneficente e enfrentava uma série de denúncias por negligência contra a Universidade Trump, um projeto educativo que acabou fechando após pagar uma indenização milionária aos prejudicados. Mas o volume do que seria toda uma trama de irregularidades com o fisco, delitos de campanha, conflitos de interesses, interferência na Justiça e amizades perigosas nestes últimos quatro anos ainda estava por ser revelado. Em 2019, o procurador especial Robert S. Mueller estava concluindo a investigação sobre a trama russa, ou seja, a ingerência do Kremlin na eleição de 2016 e os possíveis conchavos com o entorno de Trump. O presidente dos Estados Unidos já estava salpicado na época por até 17 investigações judiciais abrangendo os mais diversos âmbitos.

Um possível crime de financiamento ilegal de campanha para pagar duas mulheres, a atriz pornô Stormy Daniels (nome artístico) e a modelo da Playboy Karen McDougal, para evitar que revelassem seus supostos relacionamentos extraconjugais com o hoje presidente; outro inquérito, iniciado em Nova York, centrado na suspeita de evasão fiscal; uma série de suspeitas decorrentes da trama russa, tudo somado a investigações sobre o financiamento da cerimônia de posse em 2017. Além disso, havia as ações envolvendo seu hotel de luxo em Washington, cenário habitual da hospedagem de líderes estrangeiros, recepções diplomáticas e eventos republicanos, que levaram a denúncias de enriquecimento ilícito. Algumas foram arquivadas, outras prosperaram.

Porque o homem que prometeu tirar a Casa Branca da “classe política corrupta” e devolvê-la “ao povo” nunca se desvinculou da propriedade de suas empresas, apenas deixou a gestão nas mãos de seus filhos. E a presidência acabou sendo um bom negócio: segundo os cálculos do The Washington Post, entre atos oficiais e partidários, as propriedades de Trump receberam até 8,1 milhões de dólares (44,8 milhões de reais, pelo câmbio atual) de dinheiro público proveniente de doadores políticos desde 2017. Enquanto isso, conforme revelou uma investigação jornalística do The New York Times, ele quase não pagou impostos nos últimos anos, alegando ter tido prejuízos econômicos. Em 2016, ano em que foi eleito, só precisou desembolsar 750 dólares (4.143 reais pelo câmbio atual), mesma quantia que em 2017, seu primeiro ano de mandato.

Trump criou, como cunhou Martin Wolf no Financial Times, o “plutopopulismo”, um casamento perfeito entre a plutocracia e o populismo de direita.

A investigação da trama russa terminou sem consequências legais para Trump. Em 2019, o procurador Mueller deu por provada a ingerência de Moscou para prejudicar Hillary Clinton, mas não achou evidências suficientes de conluio com o entorno do presidente. Em relação à obstrução da Justiça, outro crime pelo qual foi investigado, Mueller alegou que um mandatário não pode ser processado, salvo pela via do impeachment (julgamento político).

De fato, o terceiro processo de impeachment na história dos Estados Unidos chegaria, meses depois, pelas mãos de um escândalo diferente, o da Ucrânia. O caso diz respeito às pressões de Trump sobre o Governo de Kiev para que a Justiça do país europeu anunciasse investigações que prejudicariam a seus rivais democratas, recorrendo inclusive ao congelamento de 391 milhões de dólares em ajudas militares já comprometidas. Uma das investigações tinha como alvo justamente Joe Biden e seu filho Hunter, por seus negócios na Ucrânia.

Os republicanos, maioria no Senado, absolveram o seu presidente, mas o processo deixou declarações para a história, como quando um embaixador norte-americano, Gordon Sondland, admitiu que tinha pressionado Kiev sob ordens do presidente. Ou quando outra diplomata, Marie Yovanovitch, relatou que chegou a ser advertida a “se proteger bem” e a ir embora de Kiev “no próximo avião”.
Normalização do caos

Aquele período do impeachment, entre o final de 2019 e começo deste turbulento 2020, transcorreu em meio a uma sensação de estranha calma. Escândalos presidenciais anteriores, como o julgamento de Bill Clinton em 1998 e o Watergate de Nixon, que renunciou antes de enfrentar a fase final do processo, eram lembrados como capítulos transcendentais na história do país, mas a Washington de Trump vivia instalada no desassossego. Com um líder tão insólito, que parecia sempre montado num touro mecânico, um impeachment se assemelhava a apenas mais um dia de trabalho.

Sua Administração se transformou, desde muito cedo, em um constante fluxo de demissões, afastamentos e exonerações, algumas delas ruidosas. Em dezembro de 2018, quando não tinha chegado nem sequer ao equador de seu mandato, já somava mais de 30 baixas em dois anos, um volume de despedidas que não se recorda em nenhum outro Governo.

O afastamento de John Bolton, seu segundo chefe de Segurança Nacional, foi comunicado pelo Twitter, com direito a bate-boca e sem avisar outros membros do Gabinete. O chefe do Pentágono, Jim Mattis, pediu demissão numa ácida e pública polêmica pela política de Trump na Síria. O assessor econômico Gary Cohn fez o mesmo por discordar da guerra comercial e, também, por estar aflito com a compreensão demonstrada pelo mandatário em relação aos supremacistas brancos. O secretário de Justiça, Jeff Sessions, foi posto na rua porque se recusou a ajudar Trump na investigação da trama russa e favoreceu a investigação independente do Ministério Público. A lista é longa.

Altos funcionários começaram a relatar de forma anônima como, no seu entender, a Casa Branca havia se tornado insana. Um deles, cuja identidade acaba de ser revelada (Miles Taylor, ex-chefe de pessoal do Departamento de Segurança Doméstica), publicou em setembro de 2018 um artigo no The New York Times intitulado “Sou parte da resistência interna da Administração Trump”, onde contava que vários membros do Executivo confabulavam para controlar os “impulsos” do republicano. “Trabalho para o presidente, mas, como outros colegas, prometi boicotar partes de sua agenda e suas piores inclinações”, afirmava, salientando a “amoralidade” de Trump. “Qualquer um que já tiver trabalhado com ele sabe que não está ancorado em nenhum princípio discernível que guie suas decisões”, acrescentava.

Pouco depois, o prestigioso jornalista Bob Woodward publicou Medo, um livro em que descrevia a vida na Casa Branca como um vaudeville de Halloween. Mediante fontes anônimas, relatava, por exemplo, que Gary Cohn roubou da mesa do presidente um documento que este pretendia assinar, rompendo um acordo comercial com a Coreia do Sul, e que o mandatário republicano nunca percebeu o sumiço. Também que o general John Kelly, ex-chefe de Gabinete, chegou a qualificar Trump como “desenquadrado”, e “um idiota”. “Isto aqui é um hospício”, afirmava.

Revelar as entranhas do Governo virou um subgênero literário. Bolton pôs seu grão de areia com um explosivo volume de memórias. Afirmava, por exemplo, que Trump pediu ajuda a Pequim para ganhar as eleições, detalhava situações incriminadoras sobre o escândalo da Ucrânia e expunha a falta de cultura geral do presidente, que certa vez teria lhe perguntado se a Finlândia pertencia à Rússia, e se surpreendeu ao saber que o Reino Unido é uma potência nuclear.

Trump muitas vezes ostentou essas lacunas intelectuais como virtudes, acostumado que está a identificar as elites acadêmicas ou burocráticas como símbolos de um sistema viciado. “Gosto de gente pouco formada”, disse em sua primeira campanha. A Woodward, poucos meses atrás, assim descreveu sua primeira cúpula com o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, em 2018: “Você conhece uma mulher. Em um segundo sabe se vai acontecer ou não. Não leva 10 minutos, não leva seis semanas. É como: ‘Uau’. Ok. Sabe? Leva menos de um segundo”.

Na era Trump, o flerte com líderes autoritários e velhos rivais dos Estados Unidos, como Vladimir Putin, se tornou um hábito, mesmo que o Kremlin tenha sido acusado de atacar o sistema eleitoral norte-americano. Uma das figuras com maior influência sobre o presidente é Jared Kushner, marido de Ivanka Trump, a primogênita do presidente, e também nomeada assessora. O empresário, de 39 anos, disse a Woodward que para entender Trump é preciso pensar, entre outras coisas, no gato Cheshire de Alice no País das Maravilhas. “Se você não sabe para onde quer ir, qualquer caminho leva para lá”. Kushner tentava explicar que, mais do que o rumo, o importante é a perseverança. “A polêmica eleva a mensagem”, afirmou também.

Falava, afinal de contas, do mesmo presidente que não tinha problemas em ameaçar uma guerra termonuclear pelo Twitter. Era, em resumo, o mesmo sujeito que se apresentou às eleições convencido de que poderia dar um tiro em alguém na Quinta Avenida e as pessoas continuariam votando nele. Assim como naquela época, durante os primeiros anos do seu Governo muita gente se perguntava: como Donald Trump responderia à chegada de uma grande crise nacional?

Quando o coronavírus começou a se espalhar pelo mundo, Trump se instalou na negação. “Praticamente o paramos”, afirmava em 2 de fevereiro; “Um dia desaparecerá, como um milagre”, chegou a dizer em 27 daquele mês; “Nada vai fechar por causa da gripe”, insistia ainda em 9 de março.

Depois, quando a ferocidade do vírus se tornou evidente e uma pandemia foi declarada, impôs-se o instinto do animal televisivo e, durante semanas, ofereceu coletivas diárias, cada uma mais errática que a outra. A menos de um ano das eleições, e com uma crise insólita que jogava por terra seu principal argumento de campanha —a economia ia furiosamente bem—, decidiu vestir o traje de comandante-em-chefe perante uma nação em perigo, mas o fez tão embebido de si mesmo que deu lugar a alguns dos episódios mais estrambóticos de sua presidência.

Dia após dia, contradizia os próprios especialistas da Casa Branca, ao vivo e em cores, dava informação errônea sobre os tratamentos e rejeitava as recomendações de seu próprio Governo, como quando estimulou o país a reabrir no domingo de Páscoa, insuflou os protestos contra o confinamento e se empenhou em não usar máscara. Esse caminho atingiu o paroxismo em 23 de abril, quando propôs aos norte-americanos que se injetassem desinfetante. “Vejo o desinfetante, que leva [o vírus] a nocaute em um minuto, há alguma maneira de que possamos fazer algo assim mediante uma injeção? Porque a gente vê que ele entra nos pulmões e causa um dano tremendo nos pulmões, então seria interessante tentar”, disse. Dois dias depois, afirmou que estava brincando, mas suspendeu as entrevistas coletivas.

Logo retomou, isso sim, os grandes atos públicos com seus seguidores, em que não usar máscara era uma declaração de princípios, e redobrou sua agenda de atos oficiais. Enquanto isso, zombava do seu rival democrata, Joe Biden, por passar a campanha praticamente trancado em casa.

Na madrugada de 2 de outubro, comunicou que tanto ele como sua esposa estavam com covid-19. Aos 74 anos, o presidente era parte do grupo vulnerável ao vírus, por isso foi hospitalizado e tratado com fortes medicações. Quem, àquela altura de sua história na Casa Branca, achava que o episódio seria um ponto de inflexão em sua relação com a crise sanitária é porque ainda não havia entendido bem o personagem.

Quando deixou o hospital, gravou um vídeo fazendo da necessidade uma virtude: “Aprendi muito com a covid-19, aprendi indo de verdade à escola, esta é a verdadeira escola, e capto, entendo, é uma coisa muito interessante”, dizia. “Esta é a verdadeira escola”, insistia, fazendo-se de especialista. Em poucas semanas, retomou os grandes comícios sem máscaras.

Trump é natural ou interpreta um papel? Suas extravagâncias são espontâneas ou obedecem a uma estratégia pensada? Perguntado sobre isso, John Bolton respondeu em uma entrevista a este jornal: “Acho que é o seu jeito de ser, mas não sou psiquiatra, não vou explicar por que é assim, o que aconteceu com ele na infância, nem nada disso. Não me importa; o que importa é sua forma de se comportar, e sempre foi assim, segundo quem o conhece há décadas”.

O show chegou ao fim, mas os Estados Unidos descobriram com Trump uma nova normalidade que custarão a esquecer. Na convenção republicana deste ano, quando foi coroado candidato presidencial, sua filha Ivanka comemorou diante do público: “Washington não mudou Donald Trump, Donald Trump mudou Washington”. E não tinha como resumir melhor.

Pensamento do Dia

 


Hora de cair na real

Vinte e quatro horas passaram-se, e as eleições para a Presidência dos Estados Unidos continuam no rumo de uma crise institucional, porque Donald Trump não quer sair da Casa Branca como derrotado e, por isso, constrói uma narrativa de que a votação de Joe Biden foi fraudada. Desde ontem, a contagem dos votos estava 264 a 214, faltando apenas seis delegados para o desfecho já previsível — a vitória de Biden —, mas a chicana republicana, além de atrasar o resultado final e acirrar a tensão social, pode resultar na sobrevivência do trumpismo como robusta força de oposição, negacionista, ainda mais antidemocrática e reacionária. Não devemos subestimar esse fato aqui no Brasil, porque isso se reproduzirá como discurso da ala ideológica do governo Bolsonaro.

Amplos setores da sociedade e uma parte significativa do governo torcem por Biden, na esperança de que isso signifique uma mudança de rota na nossa diplomacia e na política ambiental. “O homem é o homem e a sua circunstância”, dizia o filósofo espanhol José Ortega e Gasset, 100 anos atrás. Bolsonaro precisa cair na real de que a situação na economia é perigosa e tanto a política externa quanto a ambiental complicam desnecessariamente a vida de nossos agentes econômicos. O Brasil está em apuros financeiros, a conta da pandemia do novo coronavírus está chegando a passos de ganso. O governo está desorientado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, parece enveredar pelo “quanto pior, melhor”, para prorrogar a “economia de guerra” e fugir à responsabilidade do ajuste nas contas públicas.



Ontem, o Tesouro teve dificuldades para rolar a dívida pública, nos relata Vicente Nunes, no Correio Braziliense. Da oferta de até 750 mil títulos indexados à taxa Selic, as chamadas LFTs, com vencimento em 2022 e em 2027, foram comprados 433,5 mil, ou seja, 49%. O Tesouro arrecadou R$ 4,7 bilhões, menos do que na semana passada, quando vendeu R$ 5,19 milhões em títulos. A taxa Selic (2% ao ano) está abaixo da inflação, que já passa dos 3%.

Para rolar a dívida pública, outra alternativa está sendo vender títulos pré-fixados, as chamadas LTNs, com taxas bem acima da Selic. Esses títulos são de curtíssimos prazo, com vencimentos em 2021, 2022 e 2024. Ontem, 8 milhões de títulos expirando em 2024 foram vendidos, com taxa de juros 6,39% ao ano, para o governo arrecadar R$ 6,6 bilhões. Mais R$ 1,8 bilhão foram arrecadados com a venda desses títulos com vencimento em 2022. Um terceiro lote, com vencimento no próximo ano, de 5 milhões de unidades, foi vendido que integralmente, arrecadando R$ 4,9 bilhões para os cofres do Tesouro.

O problema é que o governo está pagando uma taxa de 7,39% ao ano para títulos pré-fixados com vencimento em 2021. É um excelente negócio para quem tem dinheiro para investir, mas péssimo para um governo que não tem como pagar suas contas sem se endividar ainda mais, e terá de resgatar esses títulos no próximo ano. É onde mora o perigo, porque os sinais de afrouxamento fiscal vêm de todo lugar. Na quarta-feira, por exemplo, o Congresso derrubou o veto de Bolsonaro às desonerações trabalhistas, que foram prorrogadas por mais um ano, com uma impacto na queda de arrecadação de R$ 4,9 bilhões.

No lusco-fusco das eleições norte-americanas, foi aprovada pela Câmara uma garfada de R$ 1,4 bilhão dos recursos da Educação básica para obras de infraestrutura, uma reivindicação dos políticos do Centrão. Farinha pouca, meu pirão primeiro: tiraram do futuro das crianças para as obras indicadas pelas legendas que apoiam o governo, a cargo dos ministérios do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura. Não é à toa que Bolsonaro mantém seu périplo pelo Nordeste. Em vez de avançar nas reformas administrativa e tributária, caminha-se para romper o teto de gastos e implantar, a qualquer preço, o projeto Renda Cidadã. A discussão sobre o Orçamento da União, em que o pacto populista pode ser consolidado, é empurrada com a barriga, na surdina, para o recesso parlamentar.

Há sinais de recuperação da indústria, muito positivos, que poderiam apontar noutra direção, se fossem acompanhados de uma proposta efetiva de retomada da economia. Entretanto, o governo não tem prioridades, improvisa. A política de Bolsonaro é feita sem estratégia, na base da transa com objetivos eleitorais imediatos. Nesse aspecto, as eleições municipais estão mostrando um cenário em que os eleitores estão sendo bem mais pragmáticos e objetivos, estão refratários a aventuras e apostam nos políticos com propostas e bons serviços prestados.

Dica de caráter


Desafio da nação não é alimentar as chamas do conflito, mas resolver problemas.

(...)Temos problemas sérios, não temos mais tempo a perder em guerras ideológicas
Joe Biden

Bolsonaro ignora o que aconteceu no Brasil nos últimos anos

O bom governante é o que aprende com a história. Essa é uma máxima que deveria estar na porta de entrada de todos os palácios e sedes governamentais. Tal ensinamento se tornou ainda mais relevante com a eleição de 2018, quando venceu a ideia de que viria algo completamente novo que substituiria a velha política. Só que a mudança só se torna factível se a liderança política sabe o quê e como mudar, e apenas quem tem efetivo conhecimento histórico pode realizar essa transformação. O problema atual é que, a cada dia que passa, o presidente Bolsonaro mostra que não entendeu nada do que aconteceu no Brasil nos últimos anos, tanto no campo político como nas políticas públicas.

A própria definição de Bolsonaro como novidade, tal qual apareceu na última eleição presidencial, foi um engodo. É preciso desmistificar essa ideia, uma vez que ele foi deputado federal por quase 30 anos e não esteve na linha de frente de nenhuma proposta séria de transformação do país. No máximo, dizia que o regime militar errou por não ter fuzilado mais umas 30.000 pessoas.



Quando o país entrou numa enorme crise política e econômica, iniciada em 2013, 
a sociedade começou a rejeitar o sistema partidário que fora hegemônico por pouco mais de 20 anos, desde o impeachment de Collor. Foi aí que surgiu o espaço para uma liderança que defendesse a mudança completa do país. O eleitorado majoritário não olhou para o passado de Bolsonaro e acreditou que ele seria uma ruptura positiva. O fato é que essa massa enorme de eleitores, muitos com ódio do petismo e outros sentindo-se descontentes com as alternativas de centro-esquerda e centro-direita, comprou gato por lebre, como se diz popularmente. Na verdade, a melhor expressão para definir essa escolha eleitoral é outra: quem votou em Bolsonaro comprou o velho por novo.

O início do governo Bolsonaro foi marcado por duas tendências. De um lado, procurou se distinguir do passado trazendo nomes que não ocuparam cargos nos últimos governos, aparentemente abraçou o lavajatismo com a vinda de Sergio Moro para o Ministério da Justiça, não criou uma aliança explícita com o Congresso Nacional e os partidos tradicionais, e, como pretensa forma mais inovadora, buscou imprimir um ritmo alucinante de discussão pelas redes sociais, dando a impressão que governaria por meio delas.

Havia outro lado deste modelo, entretanto. Junto com uma agenda fortemente conservadora nos costumes, defendida com muita agressividade pelos bolsonaristas, o presidente da República pouco a pouco foi instalando uma agenda claramente autoritária. Uma das principais ações neste sentido foi enfraquecer os controles democráticos impulsionados pela Constituição de 1988, como os Conselhos de Participação Social, a Polícia Federal e o Ministério Público, escolhendo um procurador-geral que fosse completamente vinculado às ordens presidenciais. Este namoro de Bolsonaro com o autoritarismo teve seu auge em meio à pandemia, com ameaças aos outros Poderes e manifestações antidemocráticas comandadas por seus apoiadores.

A história não se repetiu nem como uma farsa nem como tragédia. Bolsonaro não percebeu que o país - e o mundo - estavam num ano diferente de 1964. A prisão de Fabrício Queiroz ligou o despertador para o presidente e ele, ainda bem, mudou de rumo. Os grupos de extrema-direita perderam força no governo, mas não foram desalojados por completo da aliança governista. De tempos em tempos, Bolsonaro abraça causas malucas e radicais, como no debate sobre a vacina, piscando para os autoritários de plantão.

A ambiguidade entre a democracia e o autoritarismo não acabou por completo, mas Bolsonaro optou por fazer um compromisso com a classe política, o que foi um alento para a governabilidade do país. O presidente finalmente descobriu que os parlamentares tinham tanta legitimidade quanto ele. Podia se abrir um novo capítulo, que garantisse estabilidade democrática e gerasse a aprovação de medidas importantes para a economia e a sociedade.

O problema é que o condomínio político montado junto ao Centrão se orienta apenas por uma perspectiva defensiva de governabilidade. Trocando em miúdos, esse casamento tem como objetivo básico salvar todos os sócios de qualquer pendência judicial - inclusive (ou principalmente) as relacionadas aos filhos do presidente. Vez ou outra surge uma afinidade ideológica ou o interesse em algum tema estrutural nessa aliança do Executivo federal com esse grupo parlamentar, mas, no geral, esse novo casal tem sido incapaz de gerar uma agenda sólida de propostas legislativas.

Se quiser dar maior efetividade a essa aliança, Bolsonaro tem de estudar mais a história recente. Claro que é preciso montar uma coalizão parlamentar para governar um sistema político marcado pelo multipartidarismo. Mas o presidencialismo de coalizão vai além disso. Para obter sucesso neste modelo, faltou ao bolsonarismo aprender três lições derivadas de outros governos: é necessário ter agenda clara, coordenação política e construir políticas públicas consistentes, capazes de gerar mais do que uma popularidade momentânea.

Uma aliança parlamentar só resulta em governabilidade efetiva caso tenha uma agenda que a oriente. Os bolsonaristas podem dizer que mandaram vários projetos ao Congresso Nacional, alguns de reconhecida relevância. Mas está claro que não há prioridades bem definidas nesta inflação de PECs e leis enviadas ao Legislativo. Na verdade, o próprio presidente da República não saberia dizer o que é mais importante, a reforma tributária ou a administrativa, alterar o pacto federativo ou a legislação penal. Bolsonaro, no fundo, não quer comprar briga com ninguém, não deseja apoiar nada que o indisponha com parcelas do eleitorado. Prefere comemorar a aprovação do Código Nacional de Trânsito e falar de medidas vinculadas à pauta dos valores, embora tais temáticas não tirem os cidadãos brasileiros do atual buraco econômico e social.

Falta ao Executivo federal, ademais, maior coordenação interna e externa. A briga entre os vários lados do governo é constante, com um grau de publicidade inédito. O presidente não tem sido capaz de acabar com essa balbúrdia. Quando arbitra, é para tomar decisões movidas pelo fígado e pelo desejo de eliminar os concorrentes eleitorais. As relações com o Congresso também são caóticas. A pauta das duas Casas mexe-se lentamente e muitas vezes contra os interesses do governo. Bolsonaro provavelmente não aprovará nenhum sucessor do auxílio emergencial e, o pior de tudo, as eleições de fevereiro para Câmara e o Senado continuam em aberto, gerando enorme incerteza para os dois anos finais do mandato.

O presidencialismo de coalizão, por fim, precisa se ancorar num caminho claro de políticas públicas. A popularidade inesperada cegou Bolsonaro, que botou o carro na frente dos bois: ele já está em campanha para a reeleição sem construir o que vai mostrar. E é exatamente no campo das políticas públicas que o presidente da República menos aprendeu com a história recente.

Primeiro, Bolsonaro não entendeu que cortes muito abruptos não dão certo. Fez mudanças em políticas públicas sem saber o que estava dando certo e o que estava no rumo errado, e jogou o governo no escuro. Como consequência, a maioria dos setores não entregará bons resultados até 2022 - a principal exceção, a área de infraestrutura, é a de maior continuidade em relação ao passado recente.

Também faltou colocar gente competente nos postos-chave, profissionais que entendam dos assuntos pelos quais são responsáveis. Este é um dos governos com mais gente amadora na história brasileira. Soma-se a isso o fato de que é necessário dialogar com os atores vinculados às políticas públicas, porque a interdição da conversa ou, pior, uma agenda completamente contrária a quem historicamente está ligado a uma área não produz uma mudança bem-sucedida. Se alguém tiver dúvida disso, acompanhe o que está acontecendo na Cultura, na Educação e na Saúde. É uma coleção de desastres.

A lógica do conflito, quando não da briga de rua, alimenta boa parte da dinâmica das políticas públicas bolsonaristas. A desarticulação federativa tem atrapalhado muito as políticas sociais. Menos Brasília não é, necessariamente, melhor Brasil, muito menos governo federal bem avaliado - vide as eleições nas capitais, majoritariamente antibolosonaristas. Bolsonaro não percebeu que é preciso fazer compromissos institucionais e políticos inclusive com adversários para apresentar resultados. Em vez disso, a maneira bélica de agir tem se espalhado até na Esplanada, gerando falsas dicotomias em seu governo, como a volta da luta entre ministros gastadores e fiscalistas. Nesta disputa, quem perde é o país e o presidente da República.

Ao repetir erros do passado e não aprender com os acertos, o governo Bolsonaro fica velho antes do tempo. Esse fracasso bolsonarista não quer dizer que o país não precise de lideranças e ideias novas. Renovação é fundamental para combater os problemas estruturais e colocar o Brasil novamente nos trilhos. Mas os que portarem a mudança em 2022 só terão sucesso se conhecerem bem a história e souberem utilizá-la a seu favor.

Manual de trampolinagem

Em 1983, o colunista Zózimo Barrozo do Amaral noticiou que o empresário americano Donald Trump e o libanês-brasileiro Naji Nahas estavam se associando numa empreitada. A firma ainda não tinha nome. Zózimo, conhecedor das vísceras da dupla e pela eufonia de seus nomes, sugeriu: "Trampolinagem". Você sabe: golpe, mentira, trapaça.

Era 1983, lembre-se. Seis anos depois, em 1989, os negócios de Naji Nahas quebraram a Bolsa de Valores do Rio. Ela nunca mais voltou a existir. E, agora, ao tentar ganhar uma eleição no grito, Donald Trump pode estar quebrando a espinha dos EUA.



Em Brasília, do banquinho onde se senta sobre as traseiras e saliva ao ouvir a voz do dono, Jair Bolsonaro acompanha, temeroso e extasiado, a eleição americana. Por um lado, o resultado das urnas o assusta --é uma amostra do que também pode esperá-lo por aqui, embora ele, precavido, esteja dedicando todo o seu primeiro mandato a fazer campanha com dinheiro público para assegurar um segundo mandato. Por outro, está recebendo uma aula de trampolinagem eleitoral, à base de coices na democracia.

Não é que Trump e Bolsonaro sejam contra a alternância do poder. Eles gostaram muito quando chegaram a ele pela via eleitoral e tiveram suas posses asseguradas pelos antecessores, com votos de boa sorte dos adversários que derrotaram. Só que, por seus atos no exercício do poder, não podem mais se dar ao luxo de largá-lo —para não serem processados por crimes contra as instituições, a inteligência e a vida.

Alguém ainda se lembra do papel carbono? Servia para se copiar um texto escrito à mão ou à máquina e, como só existia em função de um original, era usado uma vez e logo descartado, embolado e atirado à cesta. Bolsonaro é um reles carbono de Trump e, com o original em grave perigo, precisará copiar também as apostilas do pós-doc em trampolinagem que Trump está oferecendo.