quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

É 'isso' um presidente?

Uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce. Traduz gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático.(Bolsonaro) desconhece o valor da ordem constitucional e ignora o sentido fundamental da separação de poderes
Celso de Mello (Supremo Tribunal Federal)

O golpe de Bolsonaro está em curso

Só não vê quem não quer. E o problema, ou pelo menos um deles, é que muita gente não quer ver. O amotinamento de uma parcela da Polícia Militar do Ceará e os dois tiros disparados contra o senador licenciado Cid Gomes (PDT), em 19 de fevereiro, é a cena explícita de um golpe que já está sendo gestado dentro da anormalidade. Há dois movimentos articulados. Num deles, Jair Bolsonaro se cerca de generais e outros oficiais das Forças Armadas nos ministérios, substituindo progressivamente os políticos e técnicos civis no Governo por fardados – ou subordinando os civis aos homens de farda nas estruturas governamentais. Entre eles, o influente general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, segue na ativa, e não dá sinais de desejar antecipar seu desembarque na reserva. O brutal general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chamou o Congresso de “chantagista” dias atrás. Nas redes, vídeos com a imagem de Bolsonaro conclamam os brasileiros a protestar contra o Congresso em 15 de março. “Por que esperar pelo futuro se não tomamos de volta o nosso Brasil?”, diz um deles. Bolsonaro, o antipresidente em pessoa, está divulgando pelas suas redes de WhatsApp os chamados para protestar contra o Congresso. Este é o primeiro movimento. No outro, uma parcela significativa das PMs dos estados proclama sua autonomia, transformando governadores e população em reféns de uma força armada que passa a aterrorizar as comunidades usando a estrutura do Estado. Como os fatos já deixaram claro, essas parcelas das PMs não respondem aos Governos estaduais nem obedecem a Constituição. Tudo indica que veem Bolsonaro como seu único líder. Os generais são a vitrine lustrada por holofotes, as PMs são as forças populares que, ao mesmo tempo, sustentam o bolsonarismo e são parte essencial dele. Para as baixas patentes do Exército e dos quartéis da PM, Bolsonaro é o homem.

É verdade que as instituições estão tentando reagir. Também é verdade que há dúvidas robustas se as instituições, que já mostraram várias e abissais fragilidades, ainda são capazes de reagir às forças que já perdem os últimos resquícios de pudor de se mostrarem. E perdem o pudor justamente porque todos os abusos cometidos por Bolsonaro, sua família e sua corte ficaram impunes. De nada adianta autoridades encherem a boca para “lamentar os excessos”. Neste momento, apenas lamentar é sinal de fraqueza, é conversinha de sala de jantar ilustrada enquanto o barulho da preparação das armas já atravessa a porta. Bolsonaro nunca foi barrado: nem pela Justiça Militar nem pela Justiça Civil. É também por isso que estamos neste ponto da história.


Essas forças perdem os últimos resquícios de pudor também porque parte do empresariado nacional não se importa com a democracia e a proteção dos direitos básicos desde que seus negócios, que chamam de “economia”, sigam dando lucro. Esta mesma parcela do empresariado nacional é diretamente responsável pela eleição de um homem como Bolsonaro, cujas declarações brutais no Congresso já expunham os sinais de perversão patológica. Estes empresários são os herdeiros morais daqueles empresários que apoiaram e se beneficiaram da ditadura militar (1964-1985), quando não os mesmos.

Uma das tragédias do Brasil é a falta de um mínimo de espírito público por parte de suas elites financeiras. Elas não estão nem aí com os cartazes de papelão onde está escrita a palavra “Fome”, que se multiplicam pelas ruas de cidades como São Paulo. Como jamais se importaram com o genocídio dos jovens negros nas periferias urbanas do Brasil, parte deles mortos pelas PMs e suas “tropas de elite”. Adriano da Nóbrega – aquele que, caso não tivesse sido morto, poderia dizer qual era a profundidade da relação da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro e também quem mandou assassinar Marielle Franco – pertencia ao BOPE, um destes grupos de elite.

Não há nada comparável à situação vivida hoje pelo Brasil sob o Governo de Bolsonaro. Mas ela só é possível porque, desde o início, se tolerou o envolvimento de parte das PMs com esquadrões da morte, na ditadura e além dela. Desde a redemocratização do país, na segunda metade dos anos 1980, nenhum dos governos combateu diretamente a banda podre das forças de segurança. Parte das PMs se converteu em milícias, aterrorizando as comunidades pobres, especialmente no Rio de Janeiro, e isso foi tolerado em nome da “governabilidade” e de projetos eleitorais com interesses comuns. Nos últimos anos as milícias deixaram de ser um Estado paralelo para se confundir com o próprio Estado.

A política perversa da “guerra às drogas”, um massacre em que só morrem pobres enquanto os negócios dos ricos aumentam e se diversificam, foi mantida mesmo por governos de esquerda e contra todas as conclusões dos pesquisadores e pesquisas sérias que não faltam no Brasil. E seguiu sustentando a violência de uma polícia que chega nos morros atirando para matar, inclusive em crianças, com a habitual desculpa de “confronto” com traficantes. Se atingem um estudante na escola ou uma criança brincando, é “efeito colateral”.

Desde os massivos protestos de 2013, governadores de diferentes estados acharam bastante conveniente que as PMs batessem em manifestantes. E como ela bateu. Era totalmente inconstitucional, mas em todas as esferas, poucos se importaram com esse comportamento: uma força pública agindo contra o cidadão. Os números de mortes cometidas por policiais, a maior parte delas vitimando pretos e pobres, segue aumentando e isso também segue sendo tolerado por uns e estimulado por outros. É quase patológica, para não dizer estúpida, a forma como parte das elites acredita que vai controlar descontrolados. Parecem nem desconfiar de que, em algum momento, eles vão trabalhar apenas para si mesmos e fazer os ex-chefes também de reféns.

Bolsonaro compreende essa lógica muito bem. Ele é um deles. Foi eleito defendendo explicitamente a violência policial durante os 30 anos como político profissional. Ele nunca escondeu o que defendia e sempre soube a quem agradecer pelos votos. Sergio Moro, o ministro que interditou a possibilidade de justiça, fez um projeto que permitia que os policiais fossem absolvidos em caso de assassinarem “sob violenta emoção”. Na prática é o que acontece, mas seria oficializado, e oficializar faz diferença. Essa parte do projeto foi vetada pelo Congresso, mas os policiais seguem pressionando com cada vez mais força. Neste momento, Bolsonaro acena com uma antiga reivindicação dos policiais: a unificação nacional da PM. Isso também interessa – e muito – a Bolsonaro.

Se uma parcela das polícias já não obedece aos governadores, a quem ela obedecerá? Se já não obedece a Constituição, a qual lei seguirá obedecendo? Bolsonaro é o seu líder moral. O que as polícias militares têm feito nos últimos anos, ao se amotinarem e tocarem o terror na população é o que Bolsonaro tentou fazer quando capitão do Exército e foi descoberto antes: tocar o terror, colocando bombas nos quartéis, para pressionar por melhores salários. É ele o precursor, o homem da vanguarda.

O que aconteceu com Bolsonaro então? Virou um pária? Uma pessoa em que ninguém poderia confiar porque totalmente fora de controle? Um homem visto como perigoso porque é capaz de qualquer loucura em nome de interesses corporativos? Não. Ao contrário. Foi eleito e reeleito deputado por quase três décadas. E, em 2018, virou presidente da República. Este é o exemplo. E aqui estamos nós. Vale a pergunta: se os policiais amotinados são apoiados pelo presidente da República e por seus filhos no Congresso, continua sendo motim?

Não se vira refém de uma hora para outra. É um processo. Não dá para enfrentar o horror do presente sem enfrentar o horror do passado porque o que o Brasil vive hoje não aconteceu de repente e não aconteceu sem silenciamentos de diferentes parcelas da sociedade e dos partidos políticos que ocuparam o poder. Para seguir em frente é preciso carregar os pecados junto e ser capaz de fazer melhor. Quando a classe média se calou diante do cotidiano de horror nas favelas e periferias é porque pensou que estaria a salvo. Quando políticos de esquerda tergiversaram, recuaram e não enfrentaram as milícias é porque pensaram que seria possível contornar. E aqui estamos nós. Ninguém está a salvo quando se aposta na violência e no caos. Ninguém controla os violentos.

Há ainda o capítulo especial da degradação moral das cúpulas fardadas. Os estrelados das Forças Armadas absolveram Bolsonaro lá atrás e hoje fazem ainda pior: compõem sua entourage no Governo. Até o general Ernesto Geisel, um dos presidentes militares da ditadura, dizia que não dava para confiar em Bolsonaro. Mas aí está ele, cercado por peitos medalhados. Os generais descobriram uma forma de voltar ao Planalto e parecem não se importar com o custo. Exatamente porque quem vai pagar são os outros.

As polícias são a base eleitoral mais fiel de Bolsonaro. Quando essas polícias se tornam autônomas, o que acontece? Convém jamais esquecer que Eduardo Bolsonaro disse antes da eleição que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal”. Um senador é atingido por balas disparadas a partir de um grupo de policiais amotinados e o mesmo filho zerotrês, um deputado federal, um homem público, vai às redes sociais defender os policiais. Não adianta gritar que é um absurdo, é totalmente lógico. Os Bolsonaros têm projeto de poder e sabem o que estão fazendo. Para quem vive da insegurança e do medo promovidos pelo caos, o que pode gerar mais caos e medo do que policiais amotinados?

É possível fazer muitas críticas justas a Cid Gomes. É possível enxergar a dose de cálculo em qualquer ação num ano eleitoral. Mas é preciso reconhecer que ele compreendeu o que está em curso e foi para a rua enfrentar com o peito aberto um grupo de funcionários públicos que usavam a estrutura do Estado para aterrorizar a população, multiplicando o número de mortes diárias no Ceará.

A ação que envergonha, ao contrário, é a do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que, num estado em dificuldades, se submete à chantagem dos policiais e dá um aumento de quase 42% à categoria, enquanto outras estão em situação pior. É inaceitável que um homem público, responsável por tantos milhões de vidas de cidadãos, acredite que a chantagem vai parar depois que se aceita a primeira. Quem já foi ameaçado por policiais sabe que não há maior terror do que este, porque além de terem o Estado na mão, não há para quem pedir socorro.

Quando Bolsonaro tenta responsabilizar o governador Rui Costa (PT), da Bahia, pela morte do miliciano Adriano da Nóbrega, ele sabe muito bem a quem a polícia baiana obedece. Possivelmente não ao governador. A pergunta a se fazer é sempre quem são os maiores beneficiados pelo silenciamento do chefe do Escritório do Crime, um grupo de matadores profissionais a quem o filho do presidente, senador Flavio Bolsonaro, homenageou duas vezes e teria ido visitar na cadeia outras duas. Além, claro, de ter empregado parte da sua família no gabinete parlamentar.

Não sei se pegar uma retroescavadeira como fez o senador Cid Gomes é o melhor método, mas era necessário que alguém acordasse as pessoas lúcidas deste país para enfrentar o que está acontecendo antes que seja demasiado tarde. Longe de mim ser uma fã de Ciro Gomes, mas ele falou bem ao dizer: “Se você não tem a coragem de lutar, ao menos tenha a decência de respeitar quem luta”.

A hora de lutar está passando. O homem que planejava colocar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários é hoje o presidente do Brasil, está cercado de generais, alguns deles da ativa, e é o ídolo dos policiais que se amotinam para impor seus interesses pela força. Estes policiais estão acostumados a matar em nome do Estado, mesmo na democracia, e a raramente responder pelos seus crimes. Eles estão por toda a parte, são armados e há muito já não obedecem ninguém.

Bolsonaro têm sua imagem estampada nos vídeos que conclamam a população a protestar contra o Congresso em 15 de março e que ele mesmo passou a divulgar por WhatsApp. Se você não acha que pegar uma retroescavadeira é a solução, melhor pensar logo em outra estratégia, porque já está acontecendo. E, não se iluda, nem você estará a salvo.
Eliane Brum

Brasil reciclado


A seguir: a 'guerra urbana'

Está na história. Em fins dos anos 70, era mais fácil encontrar um pinguim do que um militar fardado nas ruas do Brasil. Era como se, encerrado o expediente em seus então milhares de empregos oficiais, os militares pendurassem o uniforme no armário e só saíssem à paisana, para evitar constrangimentos. E com razão: sob uma ditadura já velha de 15 anos, que não metia mais medo em ninguém, um oficial fardado numa fila de cinema arriscava-se a que populares lhe mostrassem a língua. O povo estava farto deles. Mas só em 1985, vitorioso Tancredo Neves, eles marcharam de volta para o quartel e se dedicaram a tentar limpar sua imagem horrível perante a nação.

O que custou décadas, porque havia muito a limpar: a violência das cassações, prisões, torturas e mortes, as cínicas trapaças eleitorais, as sucessivas crises da economia e, como sempre, os acordos corruptos de seus tecnocratas com os piores empresários e políticos nacionais. Mas, milagrosamente, os militares conseguiram. Nos mais de 30 anos desde então, em que eles se conservaram à margem da política e do poder —e das tramoias dos vários governos do período—, o povo voltou a vê-los com simpatia e respeito.

Pois, graças ao governo Bolsonaro, essa imagem respeitável volta a correr perigo. Ao entupir seu gabinete de generais fanzocas e induzir seus subordinados a se cercar de oficiais menores, Bolsonaro está promovendo uma contaminação. Em breve, para o povo, o Exército será cúmplice do descalabro presidencial.

Por enquanto, os generais que Bolsonaro arrebanhou, e a quem impõe seu estilo desqualificado de governar, são dos que comandam mesas. Não se sabe o que pensam os que comandam tropas —e que, para começar, serão chamados a enfrentar as polícias militares dos Estados, no que o próprio Bolsonaro já chamou de “guerra urbana”.

Guerra esta que, por algum motivo, ele parece felicíssimo em insuflar.
Ruy Castro

Tem que cumprir

Vou entrar com o impeachment, vou assinar. Bolsonaro prometeu que sempre lutaria pela democracia. Mentiroso. Ele está abrindo uma crise institucional.


Não tem direita, esquerda ou centro. Temos que nos juntar e mostrar que é inaceitável isso que ele está fazendo. Tomara que ele não coloque a culpa em um filho ou em um assessor dizendo que não foi ele quem disparou o vídeo
Alexandre Frota (PSDB)

Golden shower, ano 2

Pensei que a coluna mais grave que escreveria para jogar água no chope do carnaval do leitor seria a do último domingo, quando apontei as muitas semelhanças entre os últimos passos do bolsonarismo e o chavismo venezuelano.

A militarização do Palácio do Planalto e o incentivo declarado do presidente Jair Bolsonaro e de sua família a levantes inconstitucionais, com características de motim, das polícias militares eram as evidências mais recentes.

Mas o presidente da República resolveu fornecer mais lenha para a fogueira em que ele e seu governo queimam a institucionalidade um pouco a cada dia.

Usando o WhatsApp de seu celular pessoal, com o brasão da República como avatar, o presidente aproveitou a folga carnavalesca deste ano não para compartilhar vídeo de golden shower, mas para algo mais grave: compartilhar um vídeo em que é apresentado como candidato a mártir, que teria arriscado a vida e quase morrido para salvar o povo, e ao qual o mesmo povo deveria uma recompensa: ir às ruas no próximo dia 15 de março se manifestar contra o Congresso.


Obtive a postagem presidencial e publiquei o print e a íntegra do vídeo de inspiração golpista, que usa o Hino Nacional como trilha sonora, no BR Político nesta terça-feira.

No texto que envia juntamente com o vídeo, o presidente escreve:

“- 15 de março.
Gen Heleno/Cap Bolsonaro.
O Brasil é nosso,
Não dos políticos de sempre.”

Nas legendas intercaladas a imagens entre vitimizadoras e triunfalistas de Bolsonaro, aparecem frases como “Ele foi chamado a lutar por nós. Ele comprou a briga por nós. Ele desafiou os poderosos por nós. Ele quase morreu por nós. Ele está enfrentando a esquerda corrupta e sanguinária por nós”.

Bolsonaro seria a “única esperança” de dias melhores e, por isso, as pessoas precisariam ir às ruas mostrar que o apoiam e rejeitam os “inimigos” do Brasil.

O ato do dia 15 foi convocado imediatamente após o vazamento, no sistema de som do próprio Planalto, de uma conversa em que o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chama os congressistas de “chantagistas”, manda um palavrão e sugere que as pessoas deveriam ir às ruas se manifestar contra o Congresso.

Nas convocações que circulam pelas redes sociais, Heleno, o vice-presidente Hamilton Mourão e outros generais aparecem fardados e textos dizem que eles aguardam “ordens do povo”. E exortam: “Fora Maia e Alcolumbre”.

Responsável pela área de inteligência do governo, é no mínimo irônico que Heleno tenha se “descuidado” sabendo que o evento do qual participava estava sendo transmitido ao vivo.

A rapidez e coordenação da convocação para o ato, bem como a produção bastante cuidadosa do vídeo, mostram uma correia de transmissão que chega ao presidente da República.

Ele faz a convocação em seu nome e de Heleno, mas faz questão de usar suas patentes militares, e não seus cargos civis. O presidente da República se apresenta como “capitão” e estende o convite ao seu ministro mais próximo, chamado de “general”.

É de uma gravidade inaudita até para os padrões bolsolavistas o que aconteceu nesse carnaval. Trata-se de o presidente, sem intermediários das milícias virtuais a soldo, conclamando as pessoas a participarem de um ato contra o Congresso Nacional.

Bolsonaro instiga a rua contra os demais Poderes, algo inadmissível numa democracia e em plena vigência da Constituição.

Não é a primeira vez que escrevo isso, mas insisto: já passou da hora de as instituições colocarem freios não só na língua e no zap do presidente, mas em suas ações. Sob pena de que, quando decidirem fazê-lo, tenham perdido essas condições legais e políticas.

Pênalti contra os idosos

Recaiu sobre o Tribunal Superior de Justiça (STJ) a responsabilidade de julgar reajustes de preços de planos de saúde para idosos. A legislação fixa a variação máxima das mensalidades entre as faixas etárias. O preço dos planos para pessoas com 99 anos pode ser seis vezes maior do que os para bebês. Esse critério respeita a lógica da solidariedade intergeracional dos seguros de saúde e o Estatuto do Idoso.

No papel e para os contratos individuais, a regra vale. O problema são os planos coletivos ou a troca de planos ao longo da vida. Dependendo da situação, o valor da mensalidade pode mais que dobrar quando se completa 60 anos. Ao invés de presente de aniversário, o sexagenário recebe um castigo que fica mais penoso após cada aumento anual. Reajustes muito elevados e cumulativos foram, frequentemente, considerados por tribunais estaduais como abusivos e geradores de discriminação aos mais velhos.

Em contrapartida, as operadoras procuram evitar apelações ao Judiciário, sob a alegação de que os idosos prejudicam o equilíbrio econômico de seus negócios; recorrem à ideia de que velhice é sinônimo de doença grave. Os idosos teriam declínio implacável de funções físicas e mentais e aumento da prevalência de doenças.


Aumentos contínuos na expectativa de vida, combinados com baixas taxas de natalidade, tenderiam a estabelecer um fluxo prioritário de recursos coletivos para velhos doentes e nada sobraria para os jovens. Como a proporção de idosos cresce em todas as populações modernas, esse cenário sombrio não pode ser descartado. Mas o apocalipse demográfico na saúde não tem comprovação empírica. Desde o início do século, estudos evidenciaram que os efeitos do envelhecimento sobre custos e projeções de gastos com saúde são relativamente pequenos. O nó das dúvidas sobre a causa da elevação dos custos na saúde foi desatado pela separação dos gastos com a velhice e com o atendimento que precede à morte.

Despesas com saúde aumentam em todas as faixas etárias e são especialmente elevadas em processos de assistência a pacientes cujas mortes poderiam ter um curso natural, mas passam por sofridos combates em serviços de terapias intensivas e procedimentos muito caros. Constatou-se, portanto, que o incremento geral dos recursos alocados para a saúde é principalmente consequência do maior uso de procedimentos e elevação dos preços pagos a hospitais, profissionais de saúde e medicamentos. As informações da Agência Nacional de Saúde (ANS), ainda que misturem atendimento a idosos com pacientes terminais, fornecem pistas para questionar reajustes desarrazoados. Em 2018, o aumento médio da mensalidade para pessoas acima de 59 anos foi o dobro do que o indicado para crianças e jovens. Porém, as despesas com os mais velhos não representaram metade dos gastos totais com saúde suplementar.

A “idosofobia” está configurando um mercado que expulsa aqueles que pagaram plano desde sempre e barra a entrada de quem não consegue manter o pagamento de planos com reajustes aleatórios. As operadoras evitam velhos, embora o aumento da expectativa de vida seja um indicador positivo para o país. Políticas sensíveis a mudanças demográficas requerem boa administração de fundos públicos ou privados. Existe a necessidade objetiva de encontrar fontes de recursos suficientes e estáveis para assegurar cuidados à saúde para uma população que aumenta e envelhece. Cortar subsídios de atividades e produtos que causam agravos, doenças e acentuam desigualdades é uma política coetânea ao envelhecimento; retardar a ocorrência de doenças viabiliza o envelhecimento saudável. Por outro lado, as estratégias de operadoras para “limpar” carteiras, excluir potenciais doentes, são incompatíveis com a pretensão de atuar como instituição de saúde.

Espera-se que o jogo das operadoras de atração de jovens e rejeição aos velhos tenha sido explicitado na audiência pública convocada pelo STJ para debater o reajuste. Grandes empresas do setor querem derrubar restrições normativas relativas a preços e coberturas para ampliar a comercialização de contratos de “apenas” 10% a 25% do salário mínimo, que, com o passar do tempo, ficam mais dispendiosos do que o valor integral da aposentadoria.

De volta ao futuro abortado pelo regime que se esgotou em 1985

Nada demais que conservadores, patriotas e demais ramificações da direita extremada convoquem manifestações de rua para aclamar seu ídolo, um ex-capitão que o Exército afastou dos seus quadros por indisciplina e conduta antiética. O dito capitão até atentados terroristas planejou contra quartéis, além de ter complementado seu soldo bamburrando umas pedrinhas em garimpo no Mato Grosso.

Nada demais também que pretendam pedir o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. A seu juízo, uma ditadura seria melhor para o país do que a democracia que ainda temos. É uma questão de ponto de vista. E por mais absurdo que pareça, em uma democracia é, sim, possível pedir a sua extinção. Se o presidente da República, sem que nada lhe aconteça, defende a tortura… Tudo o mais pode.


Intolerável e criminoso é o comportamento de um presidente, que jurou respeitar a Constituição sob a qual foi eleito, unir-se aos que pregam o golpe repassando a seus seguidores uma mensagem golpista. Porque é disso que se trata o vídeo disseminado por Bolsonaro e, ao seu pé, assinado pelo “general Augusto Heleno e o capitão Bolsonaro”. Como se os dois o apoiassem na condição de militares que foram um dia.

Em mensagem postada na sua conta no Twitter, o general Santos Cruz, ministro de Bolsonaro até trombar com os filhos dele, já havia alertado para o desatino de se chamar uma manifestação de rua utilizando-se de uma foto de quatro generais – um deles, o vice-presidente da República. Como se o Exército chancelasse a iniciativa. E sem que os quatro generais retratados tivessem se pronunciado até então.

Exército é instituição do Estado, de governo não é. Governos passam, as Forças Armadas são permanentes. Misturar a farda com os ternos do governo, de qualquer governo, poderá fazer bem ao governo, mas só fará mal à farda. Um presidente acidental como Bolsonaro, que no passado destacou-se como um malsucedido sindicalista militar, apelou à caserna para governar sabe-se lá com qual propósito. Ou sabe-se.

Nem por isso, sob o risco de degradar-se, a caserna deveria permitir-se docilmente ser usada. No passado, eram as vivandeiras de quartéis que seguiam as tropas em marcha levando ou vendendo mantimentos. Por mais que os chefes militares rejeitem a ideia, a equação foi invertida. As tropas passaram a seguir as vivandeiras, aquelas que hoje lhes oferecem emprego, casa, roupa lavada e outros privilégios.

Os militares nunca se conformaram com o fato de terem largado o poder depois da ditadura que se esgotou e da maneira como se esgotou em 1985 – aos gritos de fora, de eleições diretas para presidente, de democracia já. E sem que tivessem devolvido aos civis o país que haviam prometido – em franco crescimento, sem inflação e menos corrupto. A eleição de Bolsonaro foi a hora da revanche tão esperada.

Eles estão de volta, por mais que neguem. E jamais desejarão que a volta se esgote no curto prazo de quatro anos. Ou de oito. Visceralmente de direita dada à sua formação, tudo farão para que Bolsonaro suceda a ele mesmo, e para que em seguida ao Bolsonaro reprise suceda o Bolsonaro vale a pena ver de novo – se necessário, apenas menos brucutu. Mas igualmente confiável e farda dependente.

Isso não quer dizer que estejam dispostos a romper com a legalidade. A Guerra Fria já acabou. Quer dizer que dentro dela, contribuindo ou não para enfraquecer seus contrapesos, não renunciaram e não renunciarão ao projeto de construir o país dos seus sonhos escolares. Se antes se valeram de armas, agora talvez possam empregá-las apenas como instrumentos de ostentação para meter medo e convencer.

Os constituintes de 1988 não revolveram o que fazer com as Forças Armadas. Não souberam ou não quiseram deixar claro quais seriam suas atribuições. A anistia de 1979 beneficiou mais os militares que foram à guerra contra a esquerda do que à esquerda que pegou em armas para derrubar o regime. Aos que discordam dessa volta ao futuro anunciada desde a ascensão ao poder de um ex-capitão tosco, só resta resistir.

Pensamento do Dia


Manifestação pró-Bolsonaro explicita incômodo nas Forças Armadas

A modorra momesca acaba nesta quarta, tecnicamente, mas o feriado foi rico em maquinações para manter o caldeirão de sortilégios da política brasileira em um animado banho-maria.

Vários ingredientes estão à mesa, a começar pelo cerco da epidemia do novo coronavírus e a acabar pelo falatório do bolsonarismo, mas um deles se destaca: o clima de indigestão que se abate sobre as Forças Armadas brasileiras.

A minuta é conhecida: elas desprezavam Bolsonaro, se aproximaram do candidato, selaram um pacto com o vitorioso, estrearam com pompas no governo, foram achatados pelo chefe e pelo olavismo, ressurgiram e agora voltaram ao centro do palco.

Só que nem todo o alto oficialato está de acordo com o roteiro apresentado.

Há queixas aqui e ali sobre o sinal dado ao mundo político quando o Planalto foi ocupado de vez por generais de quatro estrelas, dois deles da ativa, isso para não falar em dois almirantes do mesmo escalão em outros postos.

A pressão foi assimilada pelo novo chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, que resolveu antecipar sua ida à reserva do Exército, marcada para o meio deste ano.

Mas esse movimento expôs um ponto central do mecanismo que liga o poder civil ao militar hoje, o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).


Ele segue na ativa, agregado ao cargo civil, como se diz no jargão. Ele já foi recomendado por colegas para ir para a reserva, mas sua data de baixa da ativo é junho de 2021 —um milênio na escala temporal de Brasília, então pelo sim, pelo não, ele prefere ter a possibilidade de voltar à Força.

Ramos ganhou o posto de general mais influente junto ao presidente Jair Bolsonaro e é parte da correia de transmissão que começa em Braga Netto e vai até o general Fernando Azevedo, ministro da Defesa e ex-chefe de ambos os oficiais no Comando Militar do Leste, e dali para a ativa.

Essa relação aberta tem causado incômodo. Dois generais, um almirante e um brigadeiro de topo de carreira, além de dois políticos muito próximos da área de defesa, comentaram que há riscos institucionais colocados.

Dois deles verbalizaram o raciocínio. Se hoje há militares na ativa do governo, eles trabalham para sustentar politicamente Bolsonaro. Isso é um sinal à tropa. Como ficaria se, por exemplo, o PT voltasse ao poder encarnado em algum poste de Lula em 2022? Eles dariam continência e voltariam para o quartel sem chiar?

É uma composição do Tinhoso. Não há nada de errado em gente fardada assumir postos civis, mas os limites parecem ultrapassados.

O Alto Comando do Exército tem tentado passar todo tipo de sinalização de que se mantém fora da política, como a ida de Braga Netto à reserva mostra, mas é insuficiente.

A porteira foi aberta, como a discreta inserção da Marinha no combinado prova. Não por acaso, não se ouve um pio da Força Aérea, a entidade mais sub-representada no primeiro escalão —a rigor, o astronauta Marcos Pontes (Ciência e um amontoado de coisas) não deve ser considerado cota dos brigadeiros.

O risco de contaminação reversa é decantado: quem conhece a caserna vê ampla simpatia entre os mais jovens ao bolsonarismo militante. Isso para não falar na sindicalização do sentimento, por assim dizer, nos motins ilegais de policiais Brasil afora.

Dadas as circunstâncias, talvez essa volta da ala militar fosse boa notícia se resultasse na retirada de protagonismo dos apopléticos olavistas do poder. O problema é que o velho coronavírus do bolsonarismo infectou o antigo decano da turma verde-oliva no Planalto, o general Augusto Heleno.

Em declínio de influência, ele resolveu jogar a institucionalidade inerente ao seu gabinete para o espaço e convocou o povo para ir às ruas contra o Congresso.

A coisa fermentou ao longo do feriado, na forma de tuítes dos filhos do presidente e a consequente replicação por um exército de robôs, fiéis e desalmados como aqueles soldados de terracota de Xian.

Isso levou a um impasse desagradável, dado que além de participar do governo, a ala militar viu seu antigo líder descambar para o conflito com outro Poder. Bolsonaro colocou panos quentes, mas o demônio está fora da garrafa e, como dito acima, ele encontra eco entre vários estratos militares.

Assim, a manifestação marcada para o dia 15 de março, em favor de Bolsonaro e inspirada pelo palavrão bradado por Heleno contra o Parlamento, se tornará outro ponto de inflexão da tortuosa crônica do papel dos militares no governo.

Não foi apenas um alto oficial que sugeriu a substituição de Heleno por outro general, o linha-dura Antônio Miotto, que irá para a reserva no meio do ano.

Atual comandante militar do Sul, ele é visto como um líder combatente nato, mas com zero tato político. Não se sabe, contudo, o grau de seu bolsonarismo —assume-se que menor do que o de Heleno, mentor da candidatura de um insubordinado capitão reformado desde quando ela era piada de salão em Brasília.

Seja como for, o ar está saturado nos meios militares. Não estamos em nenhum ponto de ruptura à la 1964, mas obviamente esta é uma situação longe de normal. Acomodação é necessária, mas no horizonte não se veem atores com tal perfil nesta hora aguda.

Sensatez faz o mundo

"Maus, para a esquerda! " mandará um dia o Juiz,
"E vós, Cordeirinhos, ficareis aqui à direita!"


Muito bem! Mas há uma coisa a esperar ainda dele; então dirá:
"A vós, Sensatos, quero-vos mesmo em frente!
Johann W, Goethe - Epigrama (Veneza, 1790)

Bolsonaro expõe apoio a manifestações a seu favor e contra o Congresso

O presidente Jair Bolsonaro injetou tensão na reta final do Carnaval ao partilhar um vídeo por Whatsapp, nesta terça, que convoca o público para uma manifestação no dia 15 de março de apoio ao Governo. A informação foi revelada pela jornalista Vera Magalhães, do jornal O Estado de S. Paulo, que teve acesso à mensagem e checou que partiu do celular utilizado pelo presidente. O protesto, segundo o jornal O Globo havia sido sugerido, inicialmente, pelo general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, que aventou a ideia de protestos contra o Congresso Nacional depois da queda de braço sobre controle de execução de emendas parlamentárias no orçamento da União. Na última terça, 19, Heleno se reuniu com o presidente e teria proposto “convocar o povo às ruas”.

No screenshot da tela de celular publicado por Vera Magalhães, é possível ler: “– 15 de março. – General Heleno/Cap Bolsonaro. – o Brasil é nosso. – Não dos políticos de sempre”. O texto era a introdução para apresentar o vídeo, que apela para a emoção com imagens de Bolsonaro sendo esfaqueado durante a campanha de 2018, imagens dele no hospital, entremeadas de legendas como “Ele quase morreu por nós”, “Ele está enfrentando a esquerda corrupta e sanguinária por nós”. Vem ainda com adjetivos como “patriota”, “cristão” e chamando para mostrar “a força da família brasileira” e para rejeitar “os inimigos do Brasil”.


A manobra, que repete o estilo adotado por Bolsonaro desde a sua campanha eleitoral, pode, no limite, configurar crime de responsabilidade pela legislação brasileira, que proíbe a um presidente cometer atos que atentem contra a Constituição e contra o “livre exercício do Poder Legislativo”. A manifestação, porém, já estava sendo incentivada por bolsonaristas desde antes da refrega do General Heleno na semana passada.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se manifestou no Twitter alegando uma possível crise institucional pelo fato de o próprio presidente convocar uma manifestação. FHC, porém, escreveu que Bolsonaro tuitou, mas na verdade ele partilhou o vídeo do seu celular. “A ser verdade, como parece, que o próprio Pr tuitou convocando uma manifestação contra o Congresso ( a democracia) estamos com uma crise institucional de consequências gravíssimas. Calar seria concordar. Melhor gritar enquanto de tem voz, mesmo no Carnaval, com poucos ouvindo.”

De folga no Guarujá, litoral paulista, Bolsonaro buscou interação popular passeando de moto pela cidade, e cumprimentando apoiadores na cidade e também na vizinha Praia Grande. Partilhou também imagens de homenagens de apoiadores durante o Carnaval. A festa, porém, teve mais registros de protestos contra ele, inclusive com uma escola de samba do Rio de Janeiro, São Clemente, fazendo uma crítica direta a sua figura, protagonizada pelo humorista Marcelo Adnet.

Até as 22h23 o presidente não havia se manifestado sobre o vídeo, nem os seus filhos. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e David Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado, também preferiram os silêncio nas redes sociais. O assunto deve pautar a quarta-feira, num momento em que o Brasil encara a possibilidade de ter um primeiro caso concreto de coronavírus, algo que afeta o humor nacional, bem como o ambiente econômico.

A crise aberta na semana passada pelas falas do general Heleno contra o Congresso, assim como a convocação do ato do dia 15, também abriram outra frente de tensão dentro do Exército. O ex-ministro da Secretaria do Governo, General Santos Cruz, mostrou-se irritado com a divulgação de um banner sobre a manifestação que sugere o apoio do Exército ao ato. Nele, se lê “Vamos as (sic) ruas em massa. Os generais aguardam as ordens do povo. Fora Maia e Alcolumbre”. Santos Cruz partilhou a imagem nesta segunda, 24, e escreveu em seu twitter: “IRRESPONSABILIDADE Exército Brasileiro - instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Confundir o Exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má fé, mentir, enganar a população.”

Economia de enxurrada

As enchentes e inundações na região metropolitana de São Paulo, na segunda semana de fevereiro, foram explicadas por governantes e periodistas, ainda que com pontos de vista opostos, pela mesma lógica e com base nas mesmas premissas. Insuficiência de piscinões, falta de drenagem dos rios, povo descuidado que joga lixo nos bueiros, gente que invade terras de risco. Enfim, o supérfluo e não o essencial.

Há causas históricas do problema, perfeitamente conhecidas dos pesquisadores de nossas universidades. Nenhuma das medidas praticadas ou reclamadas o resolverá. As calamidades desse gênero persistirão porque erros estruturais e constitutivos, de verdadeira usurpação e predação contra a natureza, não têm conserto sem medidas radicais de subversão corretiva das concepções anticapitalistas de economia e de direito fundiário que nos regem.


A água despejada pela natureza pelos lados das serras e na cabeceira dos rios que circundam boa parte da cidade enxurra os vales que eram seus. E que foram possuídos e violentados pela falsa suposição de que a natureza é presa dócil em face da prepotência da engenharia, da economia e da política. Irresponsáveis porque sem o norte das consequências e do preço social a pagar por elas.

Sobre a mesma região metropolitana da São Paulo das enxurradas, inundações e escorregamentos de dias passados, pesquisadores das instituições públicas de pesquisa, como a Universidade de São Paulo e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas, há anos realizam estudos de alta qualidade sobre causas e consequências. Destaco dois estudos notáveis, que os governantes não leram e nem mesmo a mídia conhece para que possa fazer os questionamentos adequados e as responsabilizações apropriadas. Para formar uma opinião pública não alienada.

No caso da USP, há o fundamental estudo, de 1987, da professora Odette Carvalho de Lima Seabra, do Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, sobre “Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder”. O título já diz tudo. Ela analisou cuidadosamente a radical mudança da paisagem com a concessão pelo governo, em 1927, à Light and Power, companhia canadense de eletricidade, do poder sobre as águas do rio Tietê e do rio Pinheiros e respectivos territórios. A companhia poderia retificar os rios, redesenhar a paisagem da cidade, receber a recompensa da propriedade das terras bonificadas e comercializá-las.

Em fevereiro de 1929, São Paulo teve uma de suas maiores enchentes. Depois das chuvas, já na estiagem, comportas de represas foram abertas para elevar o nível da inundação, quando imediatamente o mais alto nível da água foi demarcado e tomado como referência para definir a área da várzea. Portanto, o das terras que ficariam sob sua tutela para a retificação do rio e delimitação da área que receberia como recompensa pela obra.

A área demarcada foi de 20,7 milhões de metros quadrados, dos quais apenas 20% foram necessários nas obras de canalização do rio e de obras correlatas. Os 80% restantes, quase 2 milhões de metros quadrados, foram disponibilizados para a empresa negociar no mercado imobiliário.

A arquiteta e urbanista Angela Kayo, em 2013, em sua dissertação de mestrado no Instituto de Pesquisas Tecnológicas, assinala que as ruas inundadas nas enchentes da cidade são principalmente aquelas abertas nos lugares liberados para reuso imobiliário com o aterramento do leito fluvial em decorrência da canalização dos cursos originais.

O Brasil é um dos países em que existe uma lucrativa economia resultante de uma política fundiária irresponsável, cujas consequências inevitáveis têm sido a decadência ambiental e, em especial, escorregamentos e inundações de consequências trágicas, como em Brumadinho, ou dramáticas como, agora, em Belo Horizonte e São Paulo. Com a característica peculiar de que uns planejadamente ganham e outros inocentemente perdem.

São traços muito singulares do capitalismo que se desenvolveu no país, um capitalismo de imitação, superficial, apenas para ganhar, e não para construir uma nova, moderna, transformadora e duradoura economia. Aqui, o tempo do capitalismo não é o tempo da história, como na Inglaterra, na França, na Alemanha, no Japão. Aqui, o tempo do capitalismo é o tempo breve do lucro imediato e do desdém pelas consequências de abusos previsíveis e calculáveis

Não é casual que a história de empresas pioneiras da indústria paulista tenha como capítulo decisivo da formação de seu capital a especulação fundiária como fonte de acumulação primária de capital. A São Paulo moderna é o resultado desse capitalismo rentista e individualista, que entre seus subprodutos antissociais nos legou as enchentes.
José de Souza Martins