quarta-feira, 10 de março de 2021

Pra frente, Brasil

 


Quem pariu Mateus que o embale

Atribui-se inúmeras origens ao ditado popular “quem pariu Mateus que o embale”. Há quem diga que se refere à má escolha, por parte de Jesus, do cobrador de impostos Mateus para seu time de apóstolos. Fala-se também que decorre do costume machista de que a mãe seja a única responsável pelo trabalho de cuidar dos filhos.

Outra versão defende que se trata de uma corruptela do dito “quem pariu, mantém e balança”.

No final das contas, todas as explicações levam a um mesmo significado. Quem criou determinado problema que administre suas consequências e se responsabilize pela sua solução.

É bem verdade que o ato de parir, por si só, já é uma tarefa das mais dolorosas e, algumas vezes, arriscada. Triste, por exemplo, era a vida da galinha dos ovos de ouro, das Fábulas de Esopo, que repetidamente paria fortunas das quais nunca teria a chance de usufruir.

Naturalmente, somos testemunhas de que isso não é o que ocorre quando alguém resolve dar à luz uma candidatura eleitoral, seja ao Executivo, seja ao Parlamento, nos níveis federal, estadual ou municipal. Nesse caso, quem concebe o filhote não pretende perdê-lo de vista.

Nenhum outro campo da experiência humana é tão apropriado para a aplicação do ditado de Mateus como o ambiente da política. Quando a coisa dá errado, ninguém se apresenta como mãe da ideia.

Contudo, é imprescindível que os diversos segmentos da sociedade, assim como suas instituições, mantenham vivas sua memória e sua lucidez acerca dos processos políticos que se desenvolvem em seu ventre.

Todo partido, todo candidato e toda ideologia nascem com o envolvimento de algum segmento social ou econômico, que em alguns casos atua como mãe, em outros como pai, e até mesmo como parteira ou anestesista.

Afinal, conforme comprovado pelo cientista Louis Pasteur ainda no século XIX, não existe abiogênese, ou geração espontânea. Se alguém foi eleito, alguém o fecundou e o gestou.

É compreensível e até desejável que a população reveja suas escolhas e suas opiniões sempre que se decepcionar com os resultados apresentados pelos seus escolhidos para cargos públicos, assim como acontece normalmente entre patrões e seus funcionários nas empresas.

Esquisito é quando um presidente da república é eleito com dezenas de milhões de votos e, ao colocar os pés pelas mãos em todos os assuntos sob sua responsabilidade, não aparece ninguém além da sua claque que assuma a paternidade ou maternidade política.

Seria vergonha de ter participado de uma gravidez tão enganosa? Ou de ter caído em um conto do messias? Ou seria um tipo de desfaçatez equivalente à que se utilizou ao se proceder a fertilização in vitro de uma vitória de momento, que nunca teve perspectiva real de dar crias sadias?

Todas as parcelas da cidadania brasileira que ofereceram seus fluídos e barrigas para a inseminação da realidade de que reclamam hoje precisam revisitar aquele momento mágico em 2018 no qual se deu a sedução e o enlace.

Desejava-se, mais que tudo, e cegamente, o sepultamento do adversário? Almejava-se privatizações a torto e a direito? Acreditava-se na infalibilidade da gestão militar? Que Deus tudo proveria? Que a Terra é plana? Que não haveria corrupção e clientelismo? Não haveria velha política nem centrão? Mais armas e menos florestas? Mais baladas e menos solidariedade?

A Lei de Murphy ataca

Você conhece o enunciado: "Se alguma coisa tem chance de dar errado, dará". É a Lei de Murphy, um sistema de pensamento sugerido sem querer, em 1948, pelo engenheiro Edward Murphy (1918-1990), num laboratório espacial quando testava um sistema de frenagem de foguetes. A frase foi ouvida pelo coronel J.P. Stapp, que a transformou em lei e criou um de seus primeiros corolários: "Se alguma coisa tem chance de dar errado, dará —e na pior hora". Em 1974, o escritor Arthur Bloch expandiu-a em dezenas de variações que, por sua vez, também ganharam adaptações em toda parte. Para sua reflexão nesses dias de tiroteio de decisões entre os ministros do STF, eis algumas.

"Nada é tão ruim que não possa piorar." "Toda solução cria novos problemas." "Se há possibilidade de várias coisas darem errado, dará errado a que causar mais problemas." "Problemas complexos têm soluções simples, de fácil compreensão e erradas." "O homem que consegue sorrir quando alguma coisa dá errada é porque pensou em alguém em quem botar a culpa." "Quem ri por último é porque não entendeu a piada."


"Se determinada medida não vale a pena, não vale a pena ser bem executada." "Na prática, funciona. Mas funcionará na teoria?" "Nenhuma experiência é um erro completo. Sempre pode servir de exemplo negativo." "Quando um erro é descoberto e corrigido, descobre-se depois que não estava errado." "Nunca discuta com um idiota. Os outros podem não saber quem é quem."

"Nunca atribua à esperteza o que é facilmente explicável pela burrice." "Se a situação parece ter melhorado, é porque você não está percebendo alguma coisa." "A situação ainda vai piorar antes de melhorar." "Quem disse que a situação vai melhorar?"

Um Murphy brasileiro diria: "O Brasil já tinha Bolsonaro e uma pandemia capaz de dizimar a população. Era preciso tomar uma providência. Tomou. Agora tem a pandemia, Bolsonaro e Lula".

Alimentando monstros e ressuscitando deuses

A barbearia fora fechada, por decreto, pelo governador. Cabisbaixos, os dois profissionais autônomos estavam sentados no passeio, do lado de fora, rodeados por alguns clientes. O fiscal passara por ali e cerrara as portas dos seus “ganha pão”. Cada um era pai de três crianças menores. Não podiam parar de trabalhar, um dia sequer. “Só dia 14!”, advertiu com ar superior o preposto do Estado.

O governador assinara um ato suspendendo as atividades econômicas, impondo, com ameaça de multa, o confinamento dos cidadãos por dez dias. Expunha-se a outra face do drama da pandemia. No dia seguinte, diante a repercussão negativa, o governador encenou sensibilidade, editando novos decretos, agora, contraditoriamente, permitindo a reabertura das portas das academias, dos bares e restaurantes.

Passado um dia mais, viria um terceiro ato, suspendendo novas atividades produtivas. Permitia, entretanto, reabrir coisas como bancas de jornal. Os ginásios estavam fechados para o vôlei; mas os estádios abertos, com ressalvas, para o futebol. Uma descoordenação total. Um vai e vem de ordens, uma desordem. Os atos oficiais pareciam surfar pelas madrugadas num copo de whisky.

Atemorizada pelo aumento do número de mortos, a população assistia boquiaberta aquele solitário jogo de damas do governador. Seria o lockdown uma necessidade, de fato, diante das ameaças pandêmicas, ou uma mera expressão do seu auto empoderamento? Uma brincadeira de mal gosto ou uma corajosa tomada de decisão? Impressionava perceber como o governante podia tudo – era o tal poder que emanava do povo - , estando bêbado ou não.

O Presidente da República não fazia por menos: atropelava e desatropelava; agredia e contemporizava. Em um momento, anunciava a compra de uma vacina contra a pandemia, gerando esperanças; em seguida, o cancelamento. Já era outra a que interessava. Ministros e secretários de saúde se sucediam. Todos eram a favor do confinamento hoje. Mas, instantes depois, já se sentiam incomodados.


Enfim, a incoerência tornava-se uma peça chave no xadrez que conduzia o poder de vida ou de morte do governante sobre os cidadãos. Espalhava-se pelos governos e governadores, alguns ameaçando ainda pular a cerca das próprias jurisdições regionais, com acusações aos pares: uma guerra santa. O barbeiro estava lá estirado sem saber como ia levar comida para casa no final do dia. O fiscal desaparecera: safara-se da responsabilidade, dizendo que cumprira seu dever.

A partir da instabilidade emocional dos governantes, a pandemia ganhava a volubilidade das ruas. Os índices de mortalidade vulgarizavam-se, e começavam a configurar uma anomia geral. Passou a servir de mote para exercícios nas artes, e até de motivos de chistes nas ruas. Tinha gente vendendo atestado de óbito. Ninguém parecia ter mais qualquer compromisso com a vida. Havia os que, mesmo amedrontados, estavam perdendo o pudor diante da morte.

O Presidente (e a família) iam-se tornando vagarosamente também incômodos. Ao invés de acalmar a população, ele gerava sistematicamente insegurança. Mentia, dizendo ou desdizendo. E não iria mudar. Ele era assim mesmo, diferente de 220 milhões de brasileiros.

Os governadores, quando cobrados pelos cidadãos, transferiam a irresponsabilidade no combate à pandemia para a União, de quem esperavam sempre ajuda financeira. “Se é para transformar o Brasil em uma Venezuela, eu saio”. Mas em assuntos de governo, não se perde por esperar. Em meio a esse cipoal de medidas e desmedidas, o próprio ministro da Fazenda anunciaria, logo depois, mais R$ 44 bilhões para a saúde, para ser dividido, em convescote, com os governadores; e uma retomada da ajuda emergencial, em dinheiro, para 40 milhões de pessoas. Até tu, Guedes!

Sem ninguém saber exatamente como gerir o coronavirus, a pandemia, como um tsunami, atravessa o espaço da saúde e sacraliza, no campo, a religiosidade da política. Os espertos a usam para passar “panos quentes” nos mal feitos. Ela empodera as vaidades e ressuscita deuses mortos, velhas práticas - jurídicas inclusive - e façanhas, criando e recriando monstrinhos.

É a herança dessa bela democracia, temperada com ficções ideológicas e vulgaridades populistas. A pandemia estimula governantes a tornar a verdade irrelevante.

Ao tirar Lula da fogueira, Supremo se carboniza

Um tribunal chamado Supremo tem o mesmo problema de uma mulher chamada Vitória. A qualquer momento, seu comportamento pode desmentir o seu nome. A supremacia do Supremo convive com a ameaça constante de uma notícia inusitada —como o despacho do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato, que anulou as condenações impostas a Lula, reabilitando eleitoralmente o personagem. Depois dessa decisão, a supremacia do Supremo, já tão diminuta, passou a caber numa caixa de fósforos. Resta-lhe o papel de Ministério substituto da Saúde.

O brasileiro não gosta do que não entende. E a decisão de Fachin é 100% feita de contradição. O resgate de Lula grudou no Supremo a aparência de uma Corte autossuficiente. Ela mesma deu mão forte a Curitiba para julgar Lula, ela mesma autorizou a prisão de Lula, ela mesma revogou a regra que mantivera Lula em cana por um ano e sete meses... Agora, a mesma Suprema Corte retira o aval que concedera a Curitiba para virar Lula do avesso. Anula as sentenças. Entre elas a do tríplex do Guarujá, reafirmada em três instâncias do Judiciário.

Todo esse vaivém pode ser resumido em duas palavras: insegurança jurídica. Anuladas as sentenças, os processos contra Lula voltam à primeira instância, dessa vez na Justiça Federal de Brasília. Alega-se que as condenações de Curitiba podem ser reafirmadas. Lorota. Serão sepultadas. Se não morrerem a golpes de caneta de um juiz de primeiro grau, fenecerão pela prescrição dos crimes atribuídos a Lula: corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

O mais inusitado é que coube justamente a Fachin, principal defensor da Lava Jato na Suprema Corte, jogar terra em cima do buraco em que operação se meteu. Alega-se nos subterrâneos que o ministro quis evitar o mal maior: a reabilitação eleitoral de Lula por meio de um veredicto em que a Segunda Turma do Supremo grudaria na testa de Sergio Moro a pecha de juiz parcial. Algo que, na visão de Fachin, empurraria para cima do telhado uma penca de sentenças da Lava Jato.


A manobra pode ter vida curta. Fachin anotou em seu despacho que a anulação da sentença sobre o tríplex do Guarujá torna desnecessário o julgamento do pedido de suspeição de Moro, escorado nas mensagens tóxicas que o ex-juiz trocou com procuradores. O problema é que Gilmar Mendes, responsável por levar a encrenca à pauta da Segunda Turma do Supremo, não parece disposto a abrir mão de esfolar a reputação do ex-juiz da Lava Jato.

Gilmar conta com os votos do lulista Ricardo Lewandowski e do bolsonarista Nunes Marques para formar uma maioria de 3 a 2 contra Moro. Além de reacender a polarização que deve resultar num embate de Lula com Bolsonaro em 2022, a decisão enfraqueceria a articulação para colocar a candidatura de Moro entre os dois.

Nessa hipótese, Fachin terá poupado o trabalho dos advogados de Lula. A defesa nem precisará pedir que a anulação referente ao tríplex seja estendida ao caso do sítio de Atibaia. A menos que o plenário do Supremo reveja a decisão de Fachin, o que parece improvável, Lula vai a 2022 com pose de inocente. Trata-se de uma inocência de fancaria, pois a anulação das sentenças não cancelou as provas.

Fachin rememorou os dados que demonstram que as empreiteiras OAS e Odebrecht financiaram os confortos de Lula em troca de contratos fraudulentos firmados com o Estado. Deve-se a anulação das sentenças à alegação de que tais contratos não foram firmados apenas com a Petrobras, o que retiraria de Curitiba a primazia para julgar os processos.

No alvorecer da Lava Jato, Sergio Moro arrastou para Curitiba a apuração de crimes praticados nos mais variados escaninhos do Estado, desde que tivessem um liame qualquer com a Petrobras. O Supremo avalizou esse entendimento, empurrando para o colo de Moro gente graúda como o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e o próprio Lula. Os réus reclamavam da vala comum de Curitiba há pelo menos cinco anos.

Aos pouquinhos, o Supremo foi fatiando os processos, distribuindo-os por diferentes praças. Fachin acabou se transformando na Segunda Turma numa espécie voto vencido perpétuo.

Ironicamente, Fachin lembrou no despacho sobre Lula que Gilmar Mendes já esteve do seu lado. Reproduziu manifestação em que Gilmar votou contra o esvaziamento da Vara que Moro comandava. "No fundo, o que se espera é que processos saiam de Curitiba e não tenham a devida sequência em outros lugares. É essa a expectativa", escreveu esse Gilmar de outrora.

No processo autodestrutivo a que se dedica o Supremo, a reabilitação política de Lula é o penúltimo prego num caixão que vem sendo confeccionado há tempos. A decisão de Fachin chega nas pegadas do sepultamento das denúncias contra os quadrilhões do MDB de Renan Calheiros e Cia. e do PP de Arthur Lira e Cia.

"A Justiça, além de imparcial, precisa ser apartidária", escreveu Edson Fachin, como se desejasse realçar que já não fazia sentido manter apenas Lula na fogueira. Engano. Ao retirar das labaredas símbolo mais vistoso do esforço anticorrupção, Fachin apressou a conversão da manobra de reabilitação de Lula num processo de carbonização do Supremo Tribunal Federal.