domingo, 11 de agosto de 2024
A gaiola de Maduro
Tempo biográfico de infância, interior nordestino. Bastava Seo Zezinho, o barbeiro local, estender a mão para que um passarinho, qualquer um, na rua ou no quintal, nela pousasse. Coisa bizarra, mas ninguém falava em poderes, nem o confundia com São Francisco. Era só a natureza de Seo Zezinho.
Mas existe segunda natureza. Nas autocracias sul-americanas é a bizarrice enganosa, manipulada pelo marketing político. Na Argentina, o presidente aconselha-se com um cachorro morto. Na Venezuela, um protoditador diz falar com um passarinho, suposta reencarnação do predecessor. Maduro, claro, autor do prodígio de vencer eleições antes do total apurado, bizarramente referendado por uma gaiola ideológica brasileira. Ideologia de asas curtas.
Lula tem conselheiro político de excelso saber, consta. Mas a força maior do vexame os deixa inermes. Por mais que se pretenda racional qualquer avaliação do momento sul-americano, é impossível separar o convencional do extravagante. O realismo mágico que imanta de forma encantatória a narrativa de um Gabriel Garcia Marques ganha vida real como folhetim de segunda classe, não em busca de leitores, mas de eleitores. O rito de calendário democrático, objeto tentativo da literatura especializada, é praticado como bufonaria autocrática.
À esquerda e à direita, finge-se que não vê. A primeira é geopolítica, ciosa da unidade subcontinental, nostálgica do tempo em que a Venezuela se aproximou de Cuba. Foi quando trocou a antiga classe dirigente pela "burguesia bolivariana", um empresariado mais disperso e mais includente de generais, sob o engana-olho de "revolução bolivariana", na verdade um slogan de golpismos anteriores. O líder era Chávez, hoje aquela pessoinha que come alpiste mediúnico na mão de Maduro.
A direita sempre assestou canhões contra Chávez, "suspeito" de socialismo. Leia-se um popularismo antenado ao estado psíquico dos marginalizados que respaldou o autoritarismo do regime, de brutal repressão a opositores e à independência dos Poderes. A democracia dos anos 70 degringolou junto com uma corrupta economia de cleptocratas, o desemprego virou onda imigratória, e o chavismo tornou-se espiritismo popular. Uma extrema direita, carnavalizada como esquerda.
Agora, como antiamericanismo de gogó não mata fome nem inspira respeito, os EUA logo proclamaram a vitória da oposição. Mas internamente cabe a generais, e não a votos, dar a última palavra. De qualquer forma, com mortos na plateia e milhares de prisões, o teatro burlesco da política fechou a cortina, palmas deram lugar a pedradas. Não são novidade, mas aumentaram de tamanho. Podem ter feito Chávez alçar voo: afinal, passarinho que come pedra sabe o rabicho que tem.
Mas existe segunda natureza. Nas autocracias sul-americanas é a bizarrice enganosa, manipulada pelo marketing político. Na Argentina, o presidente aconselha-se com um cachorro morto. Na Venezuela, um protoditador diz falar com um passarinho, suposta reencarnação do predecessor. Maduro, claro, autor do prodígio de vencer eleições antes do total apurado, bizarramente referendado por uma gaiola ideológica brasileira. Ideologia de asas curtas.
Lula tem conselheiro político de excelso saber, consta. Mas a força maior do vexame os deixa inermes. Por mais que se pretenda racional qualquer avaliação do momento sul-americano, é impossível separar o convencional do extravagante. O realismo mágico que imanta de forma encantatória a narrativa de um Gabriel Garcia Marques ganha vida real como folhetim de segunda classe, não em busca de leitores, mas de eleitores. O rito de calendário democrático, objeto tentativo da literatura especializada, é praticado como bufonaria autocrática.
À esquerda e à direita, finge-se que não vê. A primeira é geopolítica, ciosa da unidade subcontinental, nostálgica do tempo em que a Venezuela se aproximou de Cuba. Foi quando trocou a antiga classe dirigente pela "burguesia bolivariana", um empresariado mais disperso e mais includente de generais, sob o engana-olho de "revolução bolivariana", na verdade um slogan de golpismos anteriores. O líder era Chávez, hoje aquela pessoinha que come alpiste mediúnico na mão de Maduro.
A direita sempre assestou canhões contra Chávez, "suspeito" de socialismo. Leia-se um popularismo antenado ao estado psíquico dos marginalizados que respaldou o autoritarismo do regime, de brutal repressão a opositores e à independência dos Poderes. A democracia dos anos 70 degringolou junto com uma corrupta economia de cleptocratas, o desemprego virou onda imigratória, e o chavismo tornou-se espiritismo popular. Uma extrema direita, carnavalizada como esquerda.
Agora, como antiamericanismo de gogó não mata fome nem inspira respeito, os EUA logo proclamaram a vitória da oposição. Mas internamente cabe a generais, e não a votos, dar a última palavra. De qualquer forma, com mortos na plateia e milhares de prisões, o teatro burlesco da política fechou a cortina, palmas deram lugar a pedradas. Não são novidade, mas aumentaram de tamanho. Podem ter feito Chávez alçar voo: afinal, passarinho que come pedra sabe o rabicho que tem.
Mesa, escola e bola
O presidente Lula demonstra indignação com a realidade das famílias sem comida farta à mesa nem diploma universitário na parede. Daí sua ênfase no ProUni, nas cotas, no Fies, na abertura de universidades públicas e no apoio às particulares. Graças a ações como essas, o Brasil mudou o perfil racial e social da população com acesso ao ensino superior. Porém, a desigualdade educacional conforme a renda e o endereço do aluno não diminuiu. Apesar dos avanços na democratização da educação, aumentou a distância entre pobres e ricos quando comparamos a qualidade do ensino.
A desigualdade não desaparecerá enquanto o acesso a escolas de base com qualidade continuar restrito. Universidade para todos é uma ilusão demagógica se o sistema educacional não superar a divisão entre “escolas senzala”, para a maioria pobre, e “escolas casa-grande”, para a minoria rica. O entorno do presidente precisa perceber que os produtos da mesa são comprados, mas a educação universitária é conquista de cada indivíduo, desde que tenha acesso à escola pública de qualidade. A mudança necessária não está em políticas que aumentem as vagas para ingresso no ensino superior. Está em garantir a universalização do egresso oriundo de escolas com a máxima qualidade para todos.
O Brasil já fez esse movimento com o futebol: a bola redonda e as regras do jogo permitem que a elite futebolística não decorra do elitismo social; os craques chegam pelo talento, não pela renda da família. Mais do que vagas no ensino superior, o Brasil precisa “redondear” suas escolas: todas com a mesma qualidade suficiente para cada brasileiro ter o mapa que lhe permita buscar sua felicidade e as ferramentas que o ajudem na construção de um país melhor.
Aqueles que, por vocação, desejarem continuar poderão usar a persistência e o talento para levar o Brasil a um Prêmio Nobel, tanto quanto a bola redonda leva nossos melhores jogadores à Copa do Mundo. Quando isso acontecer, teremos produtividade para criar renda nacional suficiente e estrutura distributiva eficiente que permitam a cada família comprar o que precisa para a mesa. Até lá, felizmente temos bolsas, cotas e financiamentos como forma provisória de reduzir a penúria e evitar a condenação permanente do Brasil.
Ocorre que a maioria pobre, que jamais aceitaria ver seus filhos condenados a jogar com bolas quadradas e os filhos dos ricos com bolas redondas, aceita que as escolas com qualidade sejam reservadas aos que podem pagar. Talvez por isso, apesar de sua indignação diante da desigualdade social, o presidente Lula nunca tenha se convencido a definir uma estratégia para “redondear” as escolas.
Além da persistência do analfabetismo pleno ou funcional entre as pessoas de baixa renda e os afrodescendentes, a educação de base com excelência continua restrita aos alunos que podem pagar boas escolas ou aos poucos que conseguem matrícula em raras escolas públicas de qualidade, quase todas federais. Apesar do substancial aumento nas matrículas do ensino fundamental, o mesmo não ocorreu com a frequência, a assistência, a permanência e o aprendizado em si. Poucos terminam o ensino médio com o conhecimento necessário para pleitear ingresso no superior. Raríssimos obtêm vaga nos disputados cursos de boas universidades. A exclusão continua ao longo dos estudos e até mesmo depois de formados.
A desigualdade não desaparecerá enquanto o acesso a escolas de base com qualidade continuar restrito. Universidade para todos é uma ilusão demagógica se o sistema educacional não superar a divisão entre “escolas senzala”, para a maioria pobre, e “escolas casa-grande”, para a minoria rica. O entorno do presidente precisa perceber que os produtos da mesa são comprados, mas a educação universitária é conquista de cada indivíduo, desde que tenha acesso à escola pública de qualidade. A mudança necessária não está em políticas que aumentem as vagas para ingresso no ensino superior. Está em garantir a universalização do egresso oriundo de escolas com a máxima qualidade para todos.
O Brasil já fez esse movimento com o futebol: a bola redonda e as regras do jogo permitem que a elite futebolística não decorra do elitismo social; os craques chegam pelo talento, não pela renda da família. Mais do que vagas no ensino superior, o Brasil precisa “redondear” suas escolas: todas com a mesma qualidade suficiente para cada brasileiro ter o mapa que lhe permita buscar sua felicidade e as ferramentas que o ajudem na construção de um país melhor.
Aqueles que, por vocação, desejarem continuar poderão usar a persistência e o talento para levar o Brasil a um Prêmio Nobel, tanto quanto a bola redonda leva nossos melhores jogadores à Copa do Mundo. Quando isso acontecer, teremos produtividade para criar renda nacional suficiente e estrutura distributiva eficiente que permitam a cada família comprar o que precisa para a mesa. Até lá, felizmente temos bolsas, cotas e financiamentos como forma provisória de reduzir a penúria e evitar a condenação permanente do Brasil.
Ocorre que a maioria pobre, que jamais aceitaria ver seus filhos condenados a jogar com bolas quadradas e os filhos dos ricos com bolas redondas, aceita que as escolas com qualidade sejam reservadas aos que podem pagar. Talvez por isso, apesar de sua indignação diante da desigualdade social, o presidente Lula nunca tenha se convencido a definir uma estratégia para “redondear” as escolas.
A vida sobre o arame da especulação
É alta, esguia, bonita. Uma madeixa de cabelo escuro pende-lhe sobre os olhos azuis. Traz ao peito, num pano, um bebé pequeno, que mal se vê. E num carrinho uma menina loira. Com o dedo apontado sobre a vitrine vai pedindo um croissant com queijo brie e um bagel com salmão fumado. Ocorre-lhe, então, que talvez a filha não tenha apetite para tanto e que é melhor pedir um saco de papel para levar o que sobrar. Discorre sobre isso, num Inglês fluente e imaculado, sem se aperceber do ar de espanto que a recebe do lado de lá do balcão, enquanto acaba de pousar o bagel sobre o pires.
O rapaz olha-a, tentando decifrar o que lhe soará por certo a uma algaraviada. Abre muito os olhos. A rapariga põe-se, então, a explicar, sempre em Inglês (claro), que o saco é para o caso de sobrar comida. Não lhe ocorre que, do lado de lá, possa estar alguém que, ganhando um salário mínimo português, não entenda a língua de Shakespeare. “Ela quer um saco de papel para levar os restos”, digo, por fim. O rapaz abre-me um sorriso. Ela atira-me um “thank you” displicente, enquanto revira os olhos. “O meu Inglês não dá para tanto”, justifica-se-me ele, encolhendo os ombros. “Que saiba sequer falar Inglês já é impressionante”, digo-lhe eu, devolvendo um sorriso de cumplicidade.
A cena passa-se numa pastelaria onde o café é “de especialidade” e onde os ovos mexidos biológicos convivem com os pastéis de nata e os bolos de arroz que ainda resistem. Desapareceram para sempre as torradas cortadas em três, uma fatia sobre a outra, pingando manteiga sobre uma fina folha de guardanapo. E talvez um dia as meias de leite se convertam para sempre em cappuccinos. Se há ameaça de uma grande substituição que nos devia afligir é essa.
Ao final do dia, os pais juntam-se ali, com as crianças saídas da escola e a conversa vai parar quase sempre ao mesmo. “Está impossível viver em Lisboa”. Discutem-se os preços impraticáveis dos T2 e T3. Comenta-se a escola que está a recusar vagas aos pais portugueses do programa de creches pagas pelo Estado e a dar prioridade aos estrangeiros prontos a pagar sem olhar a custos. Há uma amiga que garante que no colégio do bairro já não se fala Português e uma história de uma escola privada que pede o CV a crianças de três anos. “Se os pais são os dois portugueses e não é bilíngue, não vai conseguir entrar”. Há quem pense em ir para o interior viver e quem não imagine deixar Lisboa. Mas ficar é uma história de resistência. Somos os que resistem. Até ver.
“Não há ninguém com uma arma apontada à minha cabeça a dizer-me para sair. Mas, economicamente, não tenho escolha”. A frase é dita por um rapaz de 25 anos que não vive em Lisboa. Está em Tenerife e fala numa reportagem do The Guardian sobre a pressão que o turismo está a pôr sobre a ilha, onde alugar um quarto chegou a custar-lhe 70% do rendimento antes de decidir voltar a viver com os pais.
Em Ibiza, uma notícia do ElDiario.es mostra uma família, com dois filhos pequenos a ser despejada. A mãe e as crianças choram descontroladamente, enquanto são arrastados. Ao fundo, desfocadas, estão mais famílias, empurradas como se uma maré as levasse em direção à lente que lhes capta o desespero. O naufrágio, explica o texto, é provocado pela descoberta de que o proprietário do terreno em que viviam alugava ilegalmente pequenas parcelas de terra por 400 euros, onde viviam em tendas ou caravanas 200 pessoas, que agora terão de ir para a rua. “Somos os trabalhadores que levantam a ilha”, grita-nos o título.
Num mundo de especulação desenfreada, viver torna-se num exercício de equilibrismo. O pedaço de terra que temos debaixo dos pés pode ser difícil de manter se a cobiça dos muito ricos o tiver na mira. Não temos uma arma apontada à cabeça, como diz o rapaz de Tenerife, mas não é difícil sentir que nos expulsam.
Não temos uma arma apontada à cabeça? Há quem a tenha. São os que “levantam as ilhas” onde uns poucos se podem deitar à sombra das bananeiras. Dormem em tendas em terrenos ilegais em Ibiza ou nas camaratas do Martim Moniz. E a esses não os expulsam para longe, a esses mantêm-nos por perto, acorrentados à fome e à ilegalidade que os tornará dóceis à exploração e baratos, como se quer.
O rapaz olha-a, tentando decifrar o que lhe soará por certo a uma algaraviada. Abre muito os olhos. A rapariga põe-se, então, a explicar, sempre em Inglês (claro), que o saco é para o caso de sobrar comida. Não lhe ocorre que, do lado de lá, possa estar alguém que, ganhando um salário mínimo português, não entenda a língua de Shakespeare. “Ela quer um saco de papel para levar os restos”, digo, por fim. O rapaz abre-me um sorriso. Ela atira-me um “thank you” displicente, enquanto revira os olhos. “O meu Inglês não dá para tanto”, justifica-se-me ele, encolhendo os ombros. “Que saiba sequer falar Inglês já é impressionante”, digo-lhe eu, devolvendo um sorriso de cumplicidade.
A cena passa-se numa pastelaria onde o café é “de especialidade” e onde os ovos mexidos biológicos convivem com os pastéis de nata e os bolos de arroz que ainda resistem. Desapareceram para sempre as torradas cortadas em três, uma fatia sobre a outra, pingando manteiga sobre uma fina folha de guardanapo. E talvez um dia as meias de leite se convertam para sempre em cappuccinos. Se há ameaça de uma grande substituição que nos devia afligir é essa.
Ao final do dia, os pais juntam-se ali, com as crianças saídas da escola e a conversa vai parar quase sempre ao mesmo. “Está impossível viver em Lisboa”. Discutem-se os preços impraticáveis dos T2 e T3. Comenta-se a escola que está a recusar vagas aos pais portugueses do programa de creches pagas pelo Estado e a dar prioridade aos estrangeiros prontos a pagar sem olhar a custos. Há uma amiga que garante que no colégio do bairro já não se fala Português e uma história de uma escola privada que pede o CV a crianças de três anos. “Se os pais são os dois portugueses e não é bilíngue, não vai conseguir entrar”. Há quem pense em ir para o interior viver e quem não imagine deixar Lisboa. Mas ficar é uma história de resistência. Somos os que resistem. Até ver.
“Não há ninguém com uma arma apontada à minha cabeça a dizer-me para sair. Mas, economicamente, não tenho escolha”. A frase é dita por um rapaz de 25 anos que não vive em Lisboa. Está em Tenerife e fala numa reportagem do The Guardian sobre a pressão que o turismo está a pôr sobre a ilha, onde alugar um quarto chegou a custar-lhe 70% do rendimento antes de decidir voltar a viver com os pais.
Em Ibiza, uma notícia do ElDiario.es mostra uma família, com dois filhos pequenos a ser despejada. A mãe e as crianças choram descontroladamente, enquanto são arrastados. Ao fundo, desfocadas, estão mais famílias, empurradas como se uma maré as levasse em direção à lente que lhes capta o desespero. O naufrágio, explica o texto, é provocado pela descoberta de que o proprietário do terreno em que viviam alugava ilegalmente pequenas parcelas de terra por 400 euros, onde viviam em tendas ou caravanas 200 pessoas, que agora terão de ir para a rua. “Somos os trabalhadores que levantam a ilha”, grita-nos o título.
Num mundo de especulação desenfreada, viver torna-se num exercício de equilibrismo. O pedaço de terra que temos debaixo dos pés pode ser difícil de manter se a cobiça dos muito ricos o tiver na mira. Não temos uma arma apontada à cabeça, como diz o rapaz de Tenerife, mas não é difícil sentir que nos expulsam.
Não temos uma arma apontada à cabeça? Há quem a tenha. São os que “levantam as ilhas” onde uns poucos se podem deitar à sombra das bananeiras. Dormem em tendas em terrenos ilegais em Ibiza ou nas camaratas do Martim Moniz. E a esses não os expulsam para longe, a esses mantêm-nos por perto, acorrentados à fome e à ilegalidade que os tornará dóceis à exploração e baratos, como se quer.
Lições de sobrevivência
A julgar pela quantidade sempre renovada de filmes e livros sobre ETs de todos os tipos, fica óbvio que temos um fascínio inesgotável por essas criaturas imaginárias. Seres alienígenas habitam as profundezas do nosso inconsciente coletivo, espelhos do bem e do mal que somos capazes de fazer. Basta uma breve incursão na história do colonialismo, e, em particular, do embate entre os europeus e os nativos das Américas, da África e do Pacífico, para entender que, quando duas culturas colidem, a mais ingênua e desarmada perde feio. Somos nós os alienígenas. No decorrer da história, as representações ficcionais de seres extraterrestres refletem o que sabemos do mundo, o que sabemos de nós, os nossos medos e expectativas, as nossas esperanças e os nossos medos.
Existe, porém, algo que raramente consideramos em nossas reflexões sobre alienígenas. Não me refiro, aqui, aos tipos ficcionais que vivem nas páginas de nossos livros ou nas telas de cinema, mas aos que possivelmente existem em algum canto da nossa galáxia, ou de uma galáxia bem longe da nossa. Basta lembrar que nossa galáxia é uma dentre centenas de bilhões de outras espalhadas pela vastidão do espaço, cada qual contendo de dezenas de milhões a centenas de bilhões de estrelas. Portanto, a probabilidade de que inteligências extraterrestres existam é razoável, mesmo se nunca tivemos contato direto.
Se existem, e este é o ponto que nos interessa, como sobrevivem aos seus desafios sociais, políticos e econômicos? Mesmo especulando sobre a existência de civilizações extraterrestres, podemos aprender lições essenciais sobre alguns de nossos dilemas atuais mais desafiadores, incluindo a sobrevivência de nossa própria espécie. Ou seja, podemos aprender lições de sobrevivência planetária com os ETs, o que é cada vez mais essencial nos dias de hoje.
Antes disso, é bom rever algumas informações importantes, de modo a contextualizar nosso argumento. Como é o caso conosco aqui na Terra, os alienígenas vivem ou se originaram em algum planeta (ou lua) em órbita em torno de uma estrela. Para simplificar, vamos considerar apenas ETs com características gerais relativamente semelhantes às nossas: por exemplo, vida baseada em compostos de carbono e dependente de água. É possível que tenham evoluído muito além desses vínculos químicos, sendo mais máquinas do que carbono.
De qualquer forma, certamente tiveram uma origem bioquímica, mesmo que tenha ocorrido milhões de anos no passado. Sua sobrevivência, tal como a nossa aqui, depende crucialmente da quantidade de energia emitida pelo seu sol em forma de radiação, e de como essa radiação interage com a atmosfera do planeta (ou lua) onde habitam. No nosso caso, a Terra absorve cerca de 71% da energia total do Sol que chega aqui: em torno de 23% dessa energia é absorvida na atmosfera por vapor d'água, poeira e ozônio, e cerca de 48% na superfície.
São aproximadamente 160 watts por metro quadrado no solo. Imagine cobrir a superfície da Terra com lâmpadas de 160 watts a cada metro quadrado e tê-las iluminadas durante o Natal. Não seria um uso muito inteligente de energia, mas certamente uma imagem belíssima, se observada de altas altitudes. Para que um planeta possa acolher formas de vida por um tempo relativamente longo (no mínimo, milhões de anos), é essencial que seja relativamente estável: sua órbita em torno da estrela não pode ser errática; sua composição atmosférica não pode mudar radicalmente em períodos geológicos curtos (de milhões de anos); seu clima deve ser estável, com flutuações de temperatura dentro do que é permissível metabolicamente, ou seja, não muito mais do que 100 graus em torno de zero Celsius. (Ou seja, de -50ºC a 50ºC. Existem exceções, como os seres que vivem perto de ventas vulcânicas submarinas onde as temperaturas podem ser mais altas. Mesmo assim, existem limites para que a vida seja viável.)
O planeta precisa, também, receber enormes quantidades de energia, redistribuindo-a pela superfície através de processos climáticos e geológicos. Qualquer espécie alienígena que exista na nossa galáxia, principalmente se for inteligente, que é o que nos interessa aqui, precisará habitar um mundo que tenha propriedades gerais semelhantes a essas. Por que as formas de vida inteligente precisam de maior estabilidade? Porque, para que a vida possa evoluir a partir de formas rudimentares, os seres unicelulares, até seres multicelulares complexos e, destes, até seres inteligentes, são necessários muitos milhões de anos, se não bilhões. (Aqui na Terra, foram pelo menos 3,5 bilhões de anos.)
Nossa espécie existe há aproximadamente 200 mil anos, um tempo irrelevante quando comparado aos 4,5 bilhões de anos do nosso planeta. Num contexto cósmico, em que mesmo milhões de anos são um período efêmero, somos uma espécie ainda bebê, com muitos desafios a enfrentar pela frente, especialmente no que tange à nossa sobrevivência em longo prazo. É aqui que os ETs podem ser úteis. A primeira coisa que devemos notar, ao menos baseados na nossa história, é que duas ou mais espécies inteligentes não podem coexistir no mesmo planeta. (Note que existem vários modos de definir e quantificar inteligência. Estou interessado aqui em espécies com inteligência criativa capaz de desenvolver tecnologias avançadas.)
A coexistência pacífica entre duas espécies que podem competir em pé de igualdade por recursos necessários para a sobrevivência é implausível, a menos que ambas tenham atingido um patamar moral extremamente elevado. Porém, até que isso ocorra, a partir do desenvolvimento de uma estrutura social estável e democrática onde a vida é respeitada acima de tudo, seria provavelmente tarde demais. (Mesmo numa mesma espécie, especialmente uma espécie inteligente com padrão moral inferior, valores culturais distintos e diferenças étnicas podem levar a conflitos sérios, do racismo a perseguições ideológicas, como vemos aqui todos os dias. Mas esse é um assunto para outro ensaio.)
Dada a dificuldade de coexistência entre duas espécies inteligentes, vamos, portanto, considerar seres alienígenas de uma mesma espécie, que, de alguma forma, encontraram os meios físicos e morais para sobreviver por milhões de anos. Quais os seus segredos? Antes de tudo, entenderam que uma relação predatória com o seu planeta e com outras formas de vida levaria, mais cedo ou mais tarde, à sua própria destruição. Entenderam, também, que o seu planeta, mesmo que muito grande e fértil, tem recursos limitados, e que uma exploração irracional dele iria transformá-lo num deserto. O exemplo doloroso da Ilha de Páscoa ilustra perfeitamente o que poderia ocorrer numa escala global com uma espécie que tem uma relação parasítica com a terra da qual depende.
Os alienígenas teriam aprendido a viver com – e não contra – o seu planeta, respeitando seus recursos e planejando cuidadosamente como explorá-los de forma sustentável. Teriam aprendido a otimizar e maximizar o uso da energia vinda de sua estrela, como estamos começando a fazer aqui com a energia solar e eólica. Se a estrela não emitisse energia necessária para suas necessidades, os alienígenas teriam desenvolvido espelhos e outras tecnologias capazes de focar e aumentar a quantidade de energia atingindo a superfície do planeta.
Os alienígenas teriam entendido a interconectividade de todas as criaturas vivas; saberiam que ocupar o topo da cadeia alimentar significa ter a responsabilidade de preservar a biosfera, de modo a estender o uso de seus recursos por período ilimitado. Teriam aprendido que, para viver, precisariam encontrar meios de respeitar a diversidade da vida. Isso só poderia ocorrer se houvessem redefinido sua relação com outras criaturas vivas, indo de predadores a protetores.
Os alienígenas teriam entendido que a disparidade financeira (se tivessem uma economia) e a manipulação cultural levam à pobreza e à instabilidade social, ambas as causas dominantes da predação planetária; e que, para garantir sua sobrevivência em longo prazo, precisariam erradicar a desigualdade social. Teriam, portanto, criado valores morais que garantissem a igualdade social, dividindo recursos naturais e econômicos de forma justa e equilibrada.
Por outro lado, não teriam erradicado a competição, por entenderem ser essencial para a inovação e a felicidade individual e coletiva; teriam, sim, criado mecanismos para assegurar que todos tivessem as mesmas oportunidades de atingir o sucesso. Saberiam que uma sociedade justa não precisa, ou não deve, ser estéril. Teriam entendido que essas metas socioeconômicas pedem o sacrifício dos que detêm mais recursos, mas saberiam, também, que esses sacrifícios seriam temporários, garantindo a sobrevivência de todos. Teriam criado, em longo prazo, uma sociedade com certo nível de disparidade – pois seus intelectuais já teriam entendido que a igualdade total leva a uma distopia – baseada na dignidade, no respeito e na justiça.
O resultado desse projeto alienígena de proteção de recursos naturais e justiça social em escala planetária seria revolucionário. Podemos chamá-lo de “socialismo natural”. Uma vez iniciado, produziria uma transição nos valores morais da espécie, apagando os últimos vestígios da brutalidade intrínseca oriunda das disparidades e impulsos evolucionários. Levaria a uma nova era, baseada numa relação moral superior com o planeta, os animais, e entre todos os membros da sociedade. Essa nova era celebraria, ao mesmo tempo, a diferença individual e a unidade que conecta os habitantes de uma mesma espécie, todos dividindo o planeta e seus recursos naturais. Esses alienígenas teriam sobrevivido por milhões de anos, criando uma sociedade que mal podemos imaginar.
Temos, aqui na Terra, nesse conturbado século XXI, muito trabalho pela frente.
Marcelo Gleiser, "O caldeirão azul"
Existe, porém, algo que raramente consideramos em nossas reflexões sobre alienígenas. Não me refiro, aqui, aos tipos ficcionais que vivem nas páginas de nossos livros ou nas telas de cinema, mas aos que possivelmente existem em algum canto da nossa galáxia, ou de uma galáxia bem longe da nossa. Basta lembrar que nossa galáxia é uma dentre centenas de bilhões de outras espalhadas pela vastidão do espaço, cada qual contendo de dezenas de milhões a centenas de bilhões de estrelas. Portanto, a probabilidade de que inteligências extraterrestres existam é razoável, mesmo se nunca tivemos contato direto.
Se existem, e este é o ponto que nos interessa, como sobrevivem aos seus desafios sociais, políticos e econômicos? Mesmo especulando sobre a existência de civilizações extraterrestres, podemos aprender lições essenciais sobre alguns de nossos dilemas atuais mais desafiadores, incluindo a sobrevivência de nossa própria espécie. Ou seja, podemos aprender lições de sobrevivência planetária com os ETs, o que é cada vez mais essencial nos dias de hoje.
Antes disso, é bom rever algumas informações importantes, de modo a contextualizar nosso argumento. Como é o caso conosco aqui na Terra, os alienígenas vivem ou se originaram em algum planeta (ou lua) em órbita em torno de uma estrela. Para simplificar, vamos considerar apenas ETs com características gerais relativamente semelhantes às nossas: por exemplo, vida baseada em compostos de carbono e dependente de água. É possível que tenham evoluído muito além desses vínculos químicos, sendo mais máquinas do que carbono.
De qualquer forma, certamente tiveram uma origem bioquímica, mesmo que tenha ocorrido milhões de anos no passado. Sua sobrevivência, tal como a nossa aqui, depende crucialmente da quantidade de energia emitida pelo seu sol em forma de radiação, e de como essa radiação interage com a atmosfera do planeta (ou lua) onde habitam. No nosso caso, a Terra absorve cerca de 71% da energia total do Sol que chega aqui: em torno de 23% dessa energia é absorvida na atmosfera por vapor d'água, poeira e ozônio, e cerca de 48% na superfície.
São aproximadamente 160 watts por metro quadrado no solo. Imagine cobrir a superfície da Terra com lâmpadas de 160 watts a cada metro quadrado e tê-las iluminadas durante o Natal. Não seria um uso muito inteligente de energia, mas certamente uma imagem belíssima, se observada de altas altitudes. Para que um planeta possa acolher formas de vida por um tempo relativamente longo (no mínimo, milhões de anos), é essencial que seja relativamente estável: sua órbita em torno da estrela não pode ser errática; sua composição atmosférica não pode mudar radicalmente em períodos geológicos curtos (de milhões de anos); seu clima deve ser estável, com flutuações de temperatura dentro do que é permissível metabolicamente, ou seja, não muito mais do que 100 graus em torno de zero Celsius. (Ou seja, de -50ºC a 50ºC. Existem exceções, como os seres que vivem perto de ventas vulcânicas submarinas onde as temperaturas podem ser mais altas. Mesmo assim, existem limites para que a vida seja viável.)
Da mesma forma que não dá para assistir à última cena de uma peça teatral com três horas de duração num teatro que pega fogo após uma hora, o palco em que ocorre a transformação da química inanimada em vida complexa, o planeta, tem que permitir que esse drama bioquímico evolua a passos lentos. E não há a menor garantia de que haverá um final feliz. (Se entendermos por felicidade a emergência de criaturas inteligentes.)
Nossa espécie existe há aproximadamente 200 mil anos, um tempo irrelevante quando comparado aos 4,5 bilhões de anos do nosso planeta. Num contexto cósmico, em que mesmo milhões de anos são um período efêmero, somos uma espécie ainda bebê, com muitos desafios a enfrentar pela frente, especialmente no que tange à nossa sobrevivência em longo prazo. É aqui que os ETs podem ser úteis. A primeira coisa que devemos notar, ao menos baseados na nossa história, é que duas ou mais espécies inteligentes não podem coexistir no mesmo planeta. (Note que existem vários modos de definir e quantificar inteligência. Estou interessado aqui em espécies com inteligência criativa capaz de desenvolver tecnologias avançadas.)
Dada a natureza combativa dos seres vivos, centrados, acima de tudo, na sobrevivência, outra espécie inteligente seria vista como uma ameaça, ao menos no início da corrida evolucionária. Aqui na Terra, os neandertais, que mostraram sinais de inteligência superior a outras espécies que os antecederam, foram parcialmente assimilados e, na maioria, aniquilados pelos nossos ancestrais.
A coexistência pacífica entre duas espécies que podem competir em pé de igualdade por recursos necessários para a sobrevivência é implausível, a menos que ambas tenham atingido um patamar moral extremamente elevado. Porém, até que isso ocorra, a partir do desenvolvimento de uma estrutura social estável e democrática onde a vida é respeitada acima de tudo, seria provavelmente tarde demais. (Mesmo numa mesma espécie, especialmente uma espécie inteligente com padrão moral inferior, valores culturais distintos e diferenças étnicas podem levar a conflitos sérios, do racismo a perseguições ideológicas, como vemos aqui todos os dias. Mas esse é um assunto para outro ensaio.)
Dada a dificuldade de coexistência entre duas espécies inteligentes, vamos, portanto, considerar seres alienígenas de uma mesma espécie, que, de alguma forma, encontraram os meios físicos e morais para sobreviver por milhões de anos. Quais os seus segredos? Antes de tudo, entenderam que uma relação predatória com o seu planeta e com outras formas de vida levaria, mais cedo ou mais tarde, à sua própria destruição. Entenderam, também, que o seu planeta, mesmo que muito grande e fértil, tem recursos limitados, e que uma exploração irracional dele iria transformá-lo num deserto. O exemplo doloroso da Ilha de Páscoa ilustra perfeitamente o que poderia ocorrer numa escala global com uma espécie que tem uma relação parasítica com a terra da qual depende.
Os alienígenas teriam aprendido a viver com – e não contra – o seu planeta, respeitando seus recursos e planejando cuidadosamente como explorá-los de forma sustentável. Teriam aprendido a otimizar e maximizar o uso da energia vinda de sua estrela, como estamos começando a fazer aqui com a energia solar e eólica. Se a estrela não emitisse energia necessária para suas necessidades, os alienígenas teriam desenvolvido espelhos e outras tecnologias capazes de focar e aumentar a quantidade de energia atingindo a superfície do planeta.
Os alienígenas teriam entendido a interconectividade de todas as criaturas vivas; saberiam que ocupar o topo da cadeia alimentar significa ter a responsabilidade de preservar a biosfera, de modo a estender o uso de seus recursos por período ilimitado. Teriam aprendido que, para viver, precisariam encontrar meios de respeitar a diversidade da vida. Isso só poderia ocorrer se houvessem redefinido sua relação com outras criaturas vivas, indo de predadores a protetores.
Os alienígenas teriam entendido que a disparidade financeira (se tivessem uma economia) e a manipulação cultural levam à pobreza e à instabilidade social, ambas as causas dominantes da predação planetária; e que, para garantir sua sobrevivência em longo prazo, precisariam erradicar a desigualdade social. Teriam, portanto, criado valores morais que garantissem a igualdade social, dividindo recursos naturais e econômicos de forma justa e equilibrada.
Por outro lado, não teriam erradicado a competição, por entenderem ser essencial para a inovação e a felicidade individual e coletiva; teriam, sim, criado mecanismos para assegurar que todos tivessem as mesmas oportunidades de atingir o sucesso. Saberiam que uma sociedade justa não precisa, ou não deve, ser estéril. Teriam entendido que essas metas socioeconômicas pedem o sacrifício dos que detêm mais recursos, mas saberiam, também, que esses sacrifícios seriam temporários, garantindo a sobrevivência de todos. Teriam criado, em longo prazo, uma sociedade com certo nível de disparidade – pois seus intelectuais já teriam entendido que a igualdade total leva a uma distopia – baseada na dignidade, no respeito e na justiça.
O resultado desse projeto alienígena de proteção de recursos naturais e justiça social em escala planetária seria revolucionário. Podemos chamá-lo de “socialismo natural”. Uma vez iniciado, produziria uma transição nos valores morais da espécie, apagando os últimos vestígios da brutalidade intrínseca oriunda das disparidades e impulsos evolucionários. Levaria a uma nova era, baseada numa relação moral superior com o planeta, os animais, e entre todos os membros da sociedade. Essa nova era celebraria, ao mesmo tempo, a diferença individual e a unidade que conecta os habitantes de uma mesma espécie, todos dividindo o planeta e seus recursos naturais. Esses alienígenas teriam sobrevivido por milhões de anos, criando uma sociedade que mal podemos imaginar.
Temos, aqui na Terra, nesse conturbado século XXI, muito trabalho pela frente.
Marcelo Gleiser, "O caldeirão azul"
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