– E aí, cara, sabe porque estou te ligando?
– Fiquei te devendo alguma coisa?
– Uma visita e uns dez abraços.
– Como assim?!
– É que você, na última vez que nos vimos, falou que ia me fazer uma visita e…
– Pois é, cara, mas sabe como é a vida…
– É por isso que estou te ligando. Pra gente se ver, em vez de ficar trocando abraço por email. Vamos abraçar ao vivo, em vez de só em velório de amigos.
– É verdade, vamos nos encontrar sem falta esta semana. Você ainda vai ao Bar do Tomio?
– Não, pra você não me encontrar no meu velório. O médico falou que, se eu continuasse com fritura e cerveja, podia encomendar jazigo.
– E eu só estou bebendo vinho tinto, uma taça no almoço, outra na janta.
– Eu deixo de tomar a do almoço pra tomar duas no jantar.
– Puxa, como não pensei nisso? A do almoço me dá um soninho bobo de tarde…
– E tomando duas na janta, cara, dá pra engolir melhor o noticiário. Só falta roubarem asilo, né?
– Por falar nisso, e tuas ações da Petrobrás?
– Não fala nisso, o médico falou que pode me dar úlcera. Mas lembro toda vez que abasteço o carro. Se arrependimento matasse…
– Nem mata nem faz bem. Toda vez que penso em quem votei me faz mal, e de que adianta?
– E o pior, cara, é que não adiantaria ter votado em outro. Desconfio que esse sistema que está aí é como carro tão sucateado que não aceita mais reforma.
– Vamos fazer o que? Vender o Brasil pro ferro-velho?
– Ou refundir, né. Assembleia nacional reconstituinte!
– Mas já tivemos quantas?
– Só que agora, formada apenas por gente que nunca tenha participado desses partidos que estão aí. Senão vai ser de novo confiar nas raposas pra reformar o galinheiro.
– Ih, o nenê acordou, é um netinho que está dormindo aqui. Então…
– A gente se vê!
– É, até!
A mulher chega quando ele está trocando fralda do nenê.
– Oi, meu bem, você estava falando com quem?
– Com um amigo sonhador.
– E ele sonha com que?
– Com refundir o Brasil. Já é tão difícil limpar um nenê, imagina limpar o Brasil!
– Mas, meu bem, já pensou se a gente não limpasse o nenê?