A outra diferença entre ontem e hoje é de sentimentos: antes havia, sim, uma esquerda romântica, como vi e vivi nos tempos de estudante na UNE. A esquerda não era corrupta. Hoje, a esquerda é só um pretexto para o petismo, o lulismo e o banditismo.
Naquela época, não. Nosso romantismo era meio babaca, mas era a única porta para entender o mundo.
Nós éramos mais “puros”, mais poéticos, mais heroicos que os meus colegas de PUC, todos já de gravatinhas adultas. Como era bom se sentir acima dos outros, não por competência ou cultura, mas por superioridade ética. Os operários eram nossa meta existencial. Para nós, eles eram o futuro da humanidade. Nas oficinas do jornal estudantil que eu fazia, crivavam-nos de perguntas e agrados, sendo que os ditos operários ficavam desconfiados e pensavam que nos éramos veados, e não fervorosos “revolucionários”.
Naquele tempo não era possível pensar de outro jeito. De Sartre a Brizola, não havia outra ideologia disponível. A Guerra Fria dividia o mundo em duas facções, e a tomada do poder de Fidel Castro inebriou nossos desejos. Mesmo delirando em utopias, queríamos verdadeiramente, romanticamente salvar o país, contra o “imperialismo norte-americano, o latifúndio e a direita espoliadora”. Não havia espaço para outras ideias, e quem ousasse pensar diferente era canalha, lacaio dos norte-americanos. Por exemplo, Raymond Aron era de “direita” porque discordou do Sartre, pois este incitava seus leitores para agir; Aron ensinava-os a pensar. Como acreditávamos nessa dualidade, ela virou uma verdade incontestável. E essas “verdades” criaram uma nova linguagem que praticávamos com fé e determinação. Em vez dos fatos, a linguagem bastava e nos movia. A linguagem ignorava o mundo real, chato e complexo demais para a mutação histórica que faríamos, pois, afinal, éramos os “sujeitos da história”. Só as palavras simplistas explicavam nossa visão de mundo: alienação, massa atrasada, massa avançada, conscientização, sectarismo, aventureirismo, reacionarismo, entreguismo, proletariado, democracia burguesa e a palavra sagrada que tudo justificava: o “povo”.
E é impressionante a manutenção das mesmas ideias de 50 anos atrás. Éramos implacáveis com as tentativas de conciliação; um dia, o próprio Costa e Silva aceitou receber uma delegação de estudantes. Nada aconteceu porque nós, na porta do Planalto, nos recusamos a vestir paletós. Nossas certezas eram tão sólidas que me lembro de dizer, no dia 31 de março de 1964: “Oba! Já derrotamos o imperialismo norte-americano; agora só falta a burguesia nacional!” No dia seguinte, a UNE pegava fogo, e surgia o anão verde-oliva Castelo Branco, o novo ditador.
Como era fácil ignorar a realidade quando se é da oposição, como era (e é) moleza tramar um programa político sem ter de administrar nada. Os românticos esquerdistas achavam que administrar era coisa de capitalistas (e ainda acham) pois, no desespero da zona geral, tiveram agora de contratar um “neoliberal” para tentar salvar um país quase em “perda total”.
Na época, tudo fazia sentido para nós, sentido calcado em palavras-chave que descreviam a vida, o país, as tragédias mundiais, a subestimação da resistência daquele mal chamado “capitalismo” que tudo descrevia. O capitalismo era tratado como uma pessoa: “capitalismo” hoje acordou de mau humor, o capitalismo tentou nos enganar outro dia, o capitalismo está mentindo etc. Nunca entenderam (como hoje) que o capitalismo não é um regime político, mas um modo de produção – mal ou bem, o único que ainda funciona nesse mercado devastado por crises.
O socialismo utópico ou não era a única ideologia que movia o mundo e que agora justifica a destruição do Estado e do país que os petistas estão perpetrando. De certa forma, esta cagada que aprontaram (perdoem a vulgaridade) foi uma vitória.
A palavra de ordem não era derrotar o capitalismo? Pois agora estão conseguindo cumprir sua utopia: derrotá-lo (e o Brasil junto) sem terem nada para botar no lugar. É espantosa a capacidade de errar dessa gente. Mas para eles, na pior tradição hegeliana, o “erro” é apenas um acidente de percurso. O erro é apenas uma contradição negativa e passageira. Nesse tempo, as reuniões eram incessantes e insuportavelmente longas. E era o mesmo papo de agora no PT: precisamos falar com o povo, com movimentos sociais, sindicatos e (uma palavra que me deprimia) “associações de bairro”. Eu pensava: “Que será isso? Será que querem conscientizar minhas tias?” Nas infinitas reuniões, todos falavam inflados de certezas e ao final se perguntavam: o que fazer? Ninguém sabia. Mas continuávamos firmes militantes do nada, sem saber para onde ir, porque ter dúvidas era “revisionismo”. É como hoje, ver o Rui Falcão falando até me emociona, pois é uma viagem no tempo. Não havia espaço para os males internos e seculares do Brasil; tudo era culpa dos inimigos externos (como hoje – não é, Dilma?).
Hoje já estão no “volume morto”, como definiu o Lula num raro acesso de autocrítica, mas continuarão persistindo na marcha da insensatez. Eles não mudam nunca.
Nunca me esqueço de um debate do grande intelectual “aroniano” José Guilherme Merquior com dois marxistas na TV. Os dois falavam sempre dos erros da esquerda, mas considerados apenas como “percalços” de uma marcha triunfal para o futuro. Eles diziam, batendo no peito: “Erramos no stalinismo, na Hungria, em Praga, aqui erramos em 1935, 1964, em 1968, mas continuaremos lutando”. Merquior respondeu na lata: “Por que vocês não desistem?”
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