quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Brasil cada vez mais rico




 

Os cegos, juízes das cores

Sabemos que nos começos da fundação dos Quinze-Vintes eles eram todos iguais, e que os seus pequenos problemas eram resolvidos pela pluralidade das vozes. Distinguiam perfeitamente pelo toque a moeda de cobre da de prata; nenhum deles tomava alguma vez o vinho de Brie pelo vinho de Borgonha. O seu olfato era mais apurado do que o dos seus vizinhos que tinham dois olhos. 

Argumentavam perfeitamente sobre os quatro sentidos, o mesmo é dizer que eles conheciam tudo o que é permitido saber. E viviam tão tranquila e afortunadamente quanto seria de esperar.

Infelizmente, um dos seus professores afirmou ter noções claras sobre o sentido da vista; fez-se escutar, intrigou, formou entusiastas: foi, por fim, reconhecido como o líder da comunidade. Pôs-se a deliberar soberanamente sobre as cores, e tudo se perdeu.

O primeiro ditador dos Quinze-Vinte formou a princípio um pequeno conselho, através do qual se fez senhor de todas as esmolas. Pelo que ninguém ousava resistir-lhe. Decidiu que todos os hábitos dos Quinze-Vintes eram brancos: os cegos acreditaram nele; não falavam senão dos seus belos hábitos brancos, ainda que nem um só tivesse essa cor.

Toda a gente troçou deles, e o grupo foi queixar-se ao ditador, que os recebeu muito mal: apelidou-os de inovadores, de livre-pensadores, de rebeldes, que se deixavam seduzir pelas opiniões errôneas daqueles que tinham dois olhos, e ousavam duvidar da infalibilidade do seu mestre.

Esta disputa deu origem a dois partidos. O ditador, para os apaziguar, decretou um acórdão segundo o qual todos os seus hábitos eram vermelhos. Não havia um único hábito vermelho entre os Quinze-Vintes. Foram alvo de troça ainda maior: novas queixas da parte da comunidade.

O ditador enfureceu-se, os outros cegos também: debateram-se longamente, e a concórdia só foi restabelecida quando foi permitido a todos os Quinze-Vintes suspender o juízo sobre a cor dos seus hábitos.

Um surdo, ao ler esta pequena história, reconheceu que os cegos tinham procedido mal ao julgar as cores. Mas manteve-se firme na opinião de que é aos surdos que cabe julgar a música.

Voltaire (François-Marie Arouet, (1694 - 1778)

'Eu não sou brasileiro?'

Ao assistir pela televisão um homem negro sendo espancado até à morte, imaginei-o gritando: “eu não sou brasileiro?”. Foi o grito de um negro perguntando “eu não sou um ser humano?” que despertou o movimento contra a escravidão, na Inglaterra, no século XIX. Se ele era um ser humano, como puderam arrancá-lo de sua família e de sua vila na África, forçando-o a caminhar por centenas de quilômetros, jogando-o em um navio fétido, por meses no mar, através do Atlântico, vendendo-o como animal e obrigando-o ao trabalho forçado por toda sua vida, assim como a seus filhos e netos? Milhões de pessoas negras viveram e morreram nessas condições, sob a aceitação dos brancos.

Aquela pergunta ajudou a despertar os ingleses para a indecência da escravidão, a incentivar a luta abolicionista e a provocar a emancipação dos escravos em 1834, em todas as colônias inglesas. No Brasil, a pergunta não foi ouvida. Esperamos ainda meio século, para sermos o último país do Ocidente a abolir a legalidade da escravidão. A Lei Áurea proibiu, em 1888, a venda e a compra de pessoas, impedindo que negros fossem propriedade de brancos.

Mas quando, em 2020, olhamos as estatísticas de assassinatos, pobreza, violência, renda, desemprego, moradia, saúde, educação, um brasileiro negro tem razão em perguntar: “eu não sou brasileiro?”. Igualmente se justifica a pergunta de milhões de crianças pobres, brancas ou negras: “se sou brasileira, como podem me negar escola com a mesma qualidade da escola de outras crianças brasileiras?”.



A escravidão se faz sob a forma do cativeiro ou negando-se educação; a primeira escraviza o corpo, a outra o intelecto. De qualquer forma é escravidão, porque o ser humano tem corpo e mente: a liberdade exige o fim da escravidão do corpo e o acesso da mente à educação.

A Lei Áurea proibiu a comercialização de vidas negras, mas manteve as algemas do analfabetismo e da baixa educação que ainda aprisionam, devido à falta de conhecimento e consequente desemprego, forçando trabalhos em condições desumanas com salários insuficientes, impedindo a liberdade plena para todos os pobres, cuja imensa maioria é descendente dos escravos. Impede também o Brasil de se beneficiar do trabalho com alta produtividade graças à educação da mão de obra. Por isso, cada adulto pode se perguntar: “se eu também sou brasileiro, por que me negaram uma educação de qualidade no passado, e no presente fazem o mesmo com meus filhos? Por que 132 anos depois da Abolição, Escolas-Casa-Grande para uns e Escola-Senzala para nós?”

“Eu não sou brasileiro?” pode ser perguntado por cada um dos 12 milhões que não sabem ler o lema na bandeira do Brasil e por dezenas de milhões que sabem ler palavras, mas não conseguem entender plenamente um livro com a história do país; e pelos milhões sem coleta de esgoto em suas casas, sem comida para seus filhos.

Ao ver a fartura nos bairros ricos, o pobre brasileiro tem razão em perguntar “eu não sou brasileiro?”, tanto quanto os negros da África do Sul se perguntavam “eu não sou sul-africano?”, ou os judeus, durante o holocausto, indagavam “eu não sou ser humano?”. Na ótica da escravidão, do apartheid e do nazismo, nem todos eram considerados seres humanos. Na hipocrisia da nossa democracia, dizemos que todos os brasileiros têm o mesmo direito, mas as crianças que ficam em Escolas-Senzalas, que aprisionam o futuro delas, têm direito à pergunta de todos os que sofrem holocaustos – na escravidão, no apartheid, no nazismo, ou no holocausto educacional que incinera cérebros no Brasil, dizendo que são cérebros de brasileiros.

Essas perguntas se justificam do ponto de vista moral, por alguns, mas também do ponto de vista patriótico, por todos nós. Porque negar escola de qualidade é deixar milhões de cérebros para trás, sem desenvolver o potencial de cada um deles; é imoral, como última trincheira da escravidão, e é uma estupidez por ser um muro contra o progresso nacional.

Educação é um direito de cada brasileiro e também o vetor para o progresso de todos os brasileiros. “Eu não sou brasileiro?” é um grito tão importante moralmente quanto “vidas negras importam”, e tão relevante politicamente quanto “independência ou morte”, “viva a República”, “queremos democracia”. Ela pode despertar a consciência, tanto do ponto de vista moral do direito de cada criança, quanto do ponto de vista político do interesse nacional, do conjunto de todos os brasileiros.

Pena que ainda não descobrimos a força dessa pergunta, feita por um escravo na Inglaterra, 200 anos atrás.

A dura travessia até 2022

No meio de uma pandemia e de uma recessão, o Brasil ficou com um presidente sem partido, sem projeto e sem aliados. Para quem não gosta dele, pode ser motivo de alegria, mas daqui a pouco vai se perceber como é perigosa essa situação. 

O capitão Bolsonaro nunca foi um admirador das instituições democráticas. Em dois anos, falando em “minhas Forças Armadas”, tentou armar conflitos com o Supremo Tribunal Federal e com o Congresso. Foi dissuadido, mas tentou. Tem um chanceler que se sente bem como “pária”. Sempre que pode, arruma confusão com a China. Atravessou a linha do Equador para escorregar na casca de banana da política americana. Falava em “menos Brasília e mais Brasil”, e nem a estatal do trem-bala conseguiu fechar. Prometia combater a corrupção, e até hoje seu governo não explicou a origem do edital que torraria R$ 3 bilhões, mandando computadores para escolas públicas. Uma delas receberia 117 laptops para cada um de seus 255 alunos. Registre-se que a girafa foi denunciada pela Controladoria-Geral de seu o próprio governo.

O que seria uma nova política tornou-se um reaparecimento do Centrão. É mais do mesmo. O novo resume-se ao fingimento daqueles que dizem acreditar na sua fidelidade.

A crise sanitária, os números da economia e o resultado da urnas mostraram que o negacionismo de Bolsonaro foi além das derrotas. Ele saiu de moda, mas ficará no Planalto, sem rumo. Presidente desorientado é coisa perigosa. Em julho de 1961, o tresloucado Jânio Quadros cogitava alguma aventura nas Guianas, onde existiria “intenso trabalho autonomista ou de emancipação nacional, com a presença de fortes correntes de esquerda, algumas, reconhecidamente, comunistas”.

Nos dias 23 e 24 de agosto, voltou à questão, dirigindo-se aos três ministros militares, referiu-se à ameaça do surgimento de uma “estrutura soviética” na Guiana Inglesa. No dia seguinte tentou a maluquice da renúncia. 

Bolsonaro disse que a Covid era “gripezinha”, não acredita nas urnas eletrônicas e admitiu que uma empresa americana fosse capaz de desenvolver um projeto de transmissão de energia elétrica sem fios. Lá atrás, ele teve uma ideia que permitiria ao governo arrecadar bilhões. Era a legalização da jogatina e, em abril passado, o economista Paulo Guedes, com seu currículo de Chicago, endossou a sugestão. (Eles a ouviram de um bilionário americano numa suíte do Copacabana Palace, à qual chegaram entrando pela cozinha do hotel.)

A onda de 2018 tinha um componente de irracionalismo, que foi tolerado diante da soberba do comissariado petista. Em dois anos, Bolsonaro radicalizou a onda, tirou-lhe plumagem e saiu de moda, mas ainda não se produziu uma alternativa sólida. Apareceram sinais esparsos, mas eles só se juntam no respeito às instituições democráticas. É pouco, mas é o suficiente para conter aventuras e crises artificiais, até porque, em matéria de problemas, o Brasil tornou-se uma vitrine.

As crises artificiais podem ser barulhentas, mas destinam-se sempre a esconder os verdadeiros problemas. Como capitão e deputado do baixo clero, Jair Bolsonaro foi um mestre na fabricação desse tipo de episódios e, graças a isso, chegou aonde chegou e lá deverá continuar até o final de 2022.

A guerra civil brasileira

Uma das mais lamentáveis e equivocadas tentativas de explicar o fracasso do Brasil é a ideia de que o país não deu certo porque não enfrentou guerras. Trata-se de mistificação concebida a partir da história de países como os Estados Unidos, que, além das batalhas travadas com outras nações para conquistar o território que tem hoje, amargou sangrenta guerra civil entre 1861 e 1865, quando se estima que mais de 600 mil pessoas morreram.

Entre 1979, quando a série começou a ser apurada, e 2018, último dado disponível, 1.583.026 brasileiros foram assassinados, segundo o “Atlas da Violência”, elaborado pelo Ipea. A violência não para de crescer. O número de homicídios tem mudado de patamar a cada dez anos - em 1979, 11.217 pessoas foram assassinadas; em 1990, 32.015; no ano 2000, 45.433; em 2010, 53.016; em 2018, 57.956 perderam suas vidas em decorrência do arbítrio de outrem (e ainda há quem defenda a adoção da pena de morte nestes tristes trópicos).



Alguém notará que o ritmo de crescimento de homicídios está diminuindo. Em 2017, 65.602 cidadãos foram mortos de maneira violenta, a maioria, por arma de fogo (71% dos casos). Portanto, houve queda de 11,7% no número de assassinatos no ano seguinte. O problema, mostra o “Atlas da Violência 2020”, é que não se pode mais confiar cegamente no “termômetro” usado para contabilizar as mortes.

O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, é a única fonte de dados com abrangência nacional, consistência e confiabilidade metodológica sobre a evolução da violência letal desde 1979. Ocorre que o SIM é alimentado por informações repassadas pelos Estados, e a qualidade desses dados tem caído de forma assombrosa.

“Entre 2017 e 2018, o número de MVCI (mortes violentas com causa indeterminada) aumentou 25,6%. A perda de qualidade das informações em alguns estados chega a ser escandalosa, como no caso de São Paulo, que, em 2018, registrou 4.265 MVCI, das quais, 549 pessoas vitimadas por armas de fogo, 168 por instrumentos cortantes e 1.428 por objetos contundentes. Nesse estado, a taxa de MVCI foi de 9,4 por 100 mil habitantes, superior à taxa de homicídios, que foi de 8,2”, diz o último “Atlas da Violência 2020”.

No total, 12.310 brasileiros foram assassinados em 2018, mas as autoridades não sabem quem os matou nem o porquê. Estes são os cidadãos invisíveis cuja existência só interessou a quem lhes tirou a vida. São dispensados nas ruas como se faz com o lixo de casa. Na maioria dos casos, são enterrados como indigentes, sem identidade ou o conhecimento da família. Fazem número na estatística MVCI.

Pesquisa feita em 2013 por Daniel Cerqueira, coordenador do Atlas da Violência, estima que 73,9% das mortes violentas causa indeterminada são, na verdade, homicídios ocultos. Conclusão: o número de assassinatos cometidos neste gigantesco território pode ser até 20% superior ao número informado.

Definitivamente, no Brasil viver não é preciso. De 2008 a 2018, 628.595 brasileiros foram mortos de forma violenta. Do total, 437.976 eram negros (70%), a maioria, jovem e pobre. Enquanto o número de negros vitimados pela violência vem escalando - em 2018, eles foram 75,7% dos casos de homicídio -, o de não negros está cedendo. Entre 2008 e 2018, houve alta de 11,5% no número de negros vítimas de assassinato e declínio, no caso dos não negros, de 15,4%.

Mais uma estatística aterradora: desde o ano 2000, 660.252 negros foram assassinados no Brasil. Não calcule a média anual do período porque, como o número casos está em franca expansão, o percentual encontrado não refletirá a realidade indisfarçável: vivemos num país onde a maioria da população é negra (56%, segundo o IBGE), mas onde também predomina o racismo estrutural, que, como os números mostram, tem aumentado de forma veloz.

Apenas em 2018, os negros (soma de pretos e pardos, conforme classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios - taxa de assassinatos por 100 mil habitantes de 37,8. Comparativamente, entre os não-negros (soma de brancos, amarelos e indígenas), a taxa foi de 13,9, o que significa que para cada indivíduo não-negro morto em 2018, 2,7 negros foram assassinados.

Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não-negras (ver gráfico).

“Este cenário de aprofundamento das desigualdades raciais nos indicadores sociais da violência fica mais evidente quando constatamos que a redução de 12% da taxa de homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou mais entre a população não negra do que na população negra. Entre não negros a diminuição da taxa de homicídios foi igual a 13,2%, enquanto entre negros foi de 12,2%, isto é, 7,6% menor”, informa o Atlas da Violência.

O Brasil está promovendo há décadas um verdadeiro genocídio, um crime contra a humanidade. A guerra civil americana foi deflagrada porque os produtores rurais do Sul não aceitavam o fim da escravidão dosa negros. No Brasil, a escravidão chegou bem antes e se tornou a principal característica de nossa sociedade. Aqui, a guerra civil nunca acabou.