terça-feira, 30 de julho de 2019

Silêncio hierárquico


Presidente sem decoro

Jair Bolsonaro nunca respeitou a memória das vítimas da ditadura. O capitão se projetou na política como porta-voz dos porões. Notabilizou-se por defender a tortura, insultar os mortos, mentir sobre fatos históricos.

Quando a Câmara homenageou Rubens Paiva, o então deputado cuspiu no busto diante da família. Quando a Justiça Federal ordenou a busca por restos mortais no Araguaia, ele disse que “quem procura osso é cachorro”.

Na votação do impeachment, Bolsonaro exaltou um torturador em rede nacional. Na campanha presidencial, ironizou o assassinato de Vladimir Herzog. “Suicídio acontece”, debochou.

O jornalista foi morto numa cela do DOI-Codi, e os militares alteraram a cena do crime para simular um enforcamento.


No fim de 2018, houve quem apostasse numa guinada do presidente rumo ao equilíbrio e à moderação. Ao assumir o poder, ele abandonaria o radicalismo e passaria a respeitar a liturgia do cargo. Os fatos têm demonstra do que essa previsão era furada.

Quase todos os dias, o presidente tem disseminado ódio e preconceito. Ontem, ao ofendera memória de Fernando Santa Cruz, voltou a cruzar o limite da decência. O então estudante tinha 26 anos quando foi capturado pela repressão.

Era pai de um bebê de 2 anos, hoje presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Sua mãe, Elzita Santa Cruz, peregrinou por mais de quatro décadas em busca da verdade. Ela não mudou de endereço nem de número de telefone, à espera de notícias que nunca chegaram. Morreu no mês passado, aos 105 anos, sem conhecer o paradeiro do filho.

Ontem Bolsonaro falou duas vezes sobre o caso. De manhã, para atingir o presidente da OAB, disse saber como o pai dele desapareceu. “Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”, provocou.

À tarde, afirmou que Santa Cruz foi morto por outros militantes de esquerda. A versão é desmentida por documentos oficiais: ele estava sob custódia do regime quando desapareceu.

A lei 1.079, de 1950, tipifica os crimes de responsabilidade passíveis de impeachment do presidente da República. Diz o artigo 9º, VII: “Proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.

Desprezo ao brasileiro

Todos tiveram problemas com corrupção, Sarney, Collor, Fernando Henrique, Lula, Dilma. Mas nenhum deles valorizou a violência ou desprezou os direitos humanos
Carlos Fico

Um país intelectualmente castrado

Sexta-feira passada o Jornal Nacional comemorou o “reconhecimento pela ONU” da “eficácia” da “campanha antitabagismo” do Brasil. É “a maior redução de número de fumantes do mundo”. A dúvida que remanesce é se isso se deve à ilustração dos brasileiros sobre os malefícios do fumo ou ao imposto de 87%, saudado em tom de conquista, com que Brasília gravou cada cigarro fumado no país, o que tornou impossível ao pobre dar-se o luxo do vício nos legalizados e, como sempre, proporcionou ao governo mais alguns bilhões para serem transformados em mordomias, salários, “ajudas” e aposentadorias com correções anuais por “produtividade” para aquele punhado de brasileiros “especiais” com quem ele gasta quase integralmente os 35% do PIB (R$ 2,9 trilhões) que arranca ao favelão nacional todo ano.

Por acaso assisti essa notícia na hora em que, pela internet, informava-me sobre o balanço parcial das leis e alterações constitucionais que já preencheram os requisitos para subir às cédulas da eleição de novembro de 2020 pedindo o veredicto dos eleitores norte-americanos. O estado do Oregon, coincidentemente, vai votar uma emenda à constituição local propondo um aumento do imposto sobre cigarros e dispositivos eletrônicos de fumar, todo ele destinado ao sistema de saúde. A proposta veio do governador que, para ser autorizado a submetê-la ao povo teve, antes, de aprovar o pedido de licença com um quórum superior a 60% na Assembleia Legislativa e no Senado estaduais.


O último estado americano a votar a taxação de cigarros foi Montana, em 2018. A proposta foi recusada por 52,7% a 47,3%. Entre 2008 e 2018 os eleitores de nove estados votaram impostos sobre cigarros naquele país onde por a mão no bolso dos contribuintes requer uma corrida de obstáculos, o que explica porque o PIB de apenas um dos seus 50 estados – o de Nova York – equivale ao do Brasil e os dos outros 49 são “lambuja”.

Até 25 de julho 22 propostas de leis ou alterações constitucionais estaduais tinham-se qualificado para subir às cédulas em 2020. Milhares de outras de alcance municipal ou menos que municipal (vindas dos conselhos gestores de escolas públicas de cada bairro, por exemplo) já estão nessa fila. Entre 2010 e 2020 uma média de 15 referendos por estado apareceram nas cédulas nas eleições de anos pares. Esta do cigarro do Oregon é um “referendo constitucional proposto pelo legislativo” (legislatively referred constitutional amendment), um dispositivo usado em 49 estados. Mas há também as “emendas constitucionais por iniciativa popular” (iniciated constitucional amendment) que qualquer cidadão pode propor e qualificar para submeter ao eleitorado colhendo um determinado número de assinaturas. Existem ainda os “referendos automáticos” (automatic ballot referral), quando os legislativos, obrigados por leis de iniciativa popular anteriores, têm de submeter ao povo qualquer lei abordando determinados temas (alterações de impostos, notadamente, entre outros à escolha de cada comunidade).

Já os bond issues, muito comuns no país todo, acompanham obras públicas e gastos fora do orçamento. De escolas para cima, melhoramentos e obras envolvendo emissão de dívida têm de ser aprovados no voto pelas comunidades que vão usar o bem e pagar por ele.

Sobem às cédulas para voto direto do povo até mesmo as “advisory questions” que qualquer um pode propor para acabar com aquelas “verdades estabelecidas” que em países como o Brasil bastam para sustentar legislações inteiras e privilégios mil só no papo furado. Pergunta-se diretamente ao eleitor se concorda ou não com aquela “verdade” (a “impopularidade” da reforma da previdência ou da reforma trabalhista, por exemplo). O resultado não vira lei mas serve para “orientar” legisladores que são, todos eles, sujeitos a recall.

Desde que o direito de referendo foi adotado pelo primeiro estado, em 1906, 521 subiram às cédulas de 23 estados e 340 leis estaduais (65,3% das desafiadas) foram anuladas pelo povo. Milhares de outras tiveram o mesmo destino no nível municipal. Mesmo assim é bem pouco, o que prova que dispor da arma induz automaticamente os representantes eleitos ao bom comportamento, tornando desnecessário usá-la a toda hora.

Já o recall é bem mais “popular”. Até 27 de junho 72 processos atingindo 115 políticos e funcionários públicos tinham sido abertos em 2019. Os recall são frequentemente decididos em “eleições especiais” convocadas só para isso. 37% dos disparados em 2019 ainda dependem de qualificação, 11% já têm votação marcada, 15% já foram votados e aprovados e 10% foram votados e recusados. 41 vereadores, 28 membros de conselhos de gestão de escolas públicas e 22 prefeitos estiveram entre os alvos.

Foi desse ponto que voltei, naquela sexta-feira, para o eterno “Como resolver nossos problemas sem remover suas causas”, “como sobreviver à nossa doença sem curá-la” dos doutos luminares que falam e agem pelos brasileiros. Este jornal, invocando o FMI, torcia para que a montanha cuspa o camundongozinho de sempre para “voltarmos a um crescimento de 2,2% podendo chegar a 3% se e somente se dobrar a taxa de investimento de hoje” (o que é totalmente impossível, recordo eu, mantidos os “direitos adquiridos” dos brasileiros “especiais”). Na outra ponta The Intercept Brasil e suas estações repetidoras, a Folha de S. Paulo e a Veja, batalhavam a volta ao rumo da venezuelização começando pela libertação dos bandidos e a prisão dos mocinhos, a bandeira que a vice-presidenta da chapa que disputou com Bolsonaro pelo PT trouxe do outro lado da lei e tenta plantar no centro do debate nacional. E entre os dois, mais do mesmo em dosagens variadas.

Como último recurso saltei para a internet, mas em vão. Ali o mais longe que vai o futuro do Brasil é onde pode levar-nos a revolucionária discussão sobre quem a polícia (que se pôs fora da reforma da previdência quase pela força das armas) deve ou não deve prender. Mudar o “Sistema” que é bom, nem uma palavra…

O Brasil é um país intelectualmente castrado.

Presidência subversiva

O termo “subversão” foi muito usado no século 20. Nas grandes potências, subversivos eram os coletivos, grupos ou indivíduos que pusessem o Estado em perigo. Eles poderiam estar à direita ideológica ou à esquerda. Um inimigo na URSS era campeão democrático no Ocidente. No Brasil, desde Vargas a palavra indica os setores liberais que não aceitam regimes de exceção (foi o caso do jornal O Estado de S. Paulo, após as ditaduras mostrarem a face efetiva) e as correntes de esquerda, armadas ou não. Singularidades semânticas ajudaram a impor, em 1964, um Estado oposto ao direito. Para não o confundir com os golpes sofridos na América do Sul, os dirigentes nomeiam o seu movimento como “revolução”. O desmonte do Estado de Direito recebe nome certo – revolução –, mas unido ao complemento que o atenua: a revolução é “redentora” porque o Estado e a sociedade retornariam à lei e à ordem, sem desafios ao poder constituído.

“Subversão” já aparece em decreto de Henrique VIII contra os católicos que desejariam “restaurar o reinado usurpador e o poder do bispo de Roma”. A desobediência ao monarca significaria “subverter e derrubar os sacramentos da Santa Igreja e o poder e autoridade dos príncipes e magistrados” (P. Hughes e J. Larkin, Tudor Royal Proclamations). Na Alemanha surgem choques sangrentos, mesmo após os acordos sobre ocuius regio, eius religio. Na França, cidadelas são concedidas aos protestantes. Mas as tensões aumentam até a Noite de São Bartolomeu. O rei, pouco seguro no poder, arma o ataque. O evento é elogiado por Gabriel Naudé como um bom golpe de Estado: o medo da violência real leva o s beligerantes à obediência. Governos prudentes não solapam a própria autoridade, pois ela depende de um cálculo complexo. Nenhuma ditadura unipessoal, nem sequer a de César, permanece incólume mesmo tendo apoio cúmplice do Parlamento ou Justiça.

O atual presidente da República brasileira ignora o pretérito que define o Estado. O primeiro valor de toda forma estatal reside na hierarquia de funções e autoridade no emprego de pelo menos três monopólios: o da força, da norma jurídica, dos impostos. A partir daí seguem as prerrogativas do poder na vida pública, da educação à saúde, desta à soberania sobre a sociedade civil. O presidente minou a autoridade dos encarregados pela força, os generais que aceitaram integrar o seu governo. Elias Canetti fornece uma chave para a compreensão das Forças Armadas: a sentinela exemplifica a constituição psíquica do soldado. Os motivos habituais de ação, como os desejos, o temor e a inquietude, são nele reprimidos. Todo ato seu vem de uma ordem. O momento vital no militar é a postura atenta diante do superior. Para ele, a ordem tem valor supremo. O uniforme evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência às ordens.

A disciplina define a honra do soldado, na ordem e na promoção. Esta última responde à capacidade de um militar para ser movido pela ordem. Em cada ordem obedecida fica nele um espinho. Se é soldado raso, não pode desfazer-se dos espinhos. Para sair desse estado espera a promoção. No plano superior ele se desfaz - nos outros - dos espinhos/ordens. O alto comando é o que menos ordens recebe, mas é submetido à máxima autoridade estatal. É absurdo para o soldado que chega ao posto de general imaginar que suas próprias ordens não serão acatadas. Se o chefe supremo tolera ataques contra generais (mesmo os que deixaram a ativa), a instituição desliza para a indisciplina. Em prazo curto as Forças Armadas sentem que a dissolução da autoridade as leva ao ponto zero. Perde-se o controle do monopólio da força pelo Estado. A subversão vinda de cima cumpre o seu papel desagregador.

No relativo à norma jurídica, o presidente assume atitude subversora. Ao proclamar como seu candidato ao STF um “terrível evangélico”, ele põe abaixo a disciplina republicana. Esta exige dos candidatos aos postos oficiais “os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (Constituição, artigo 37). Em nenhum desses itens lemos “crença religiosa”. Ao optar por um candidato pela sua fé, algo subjetivo, o presidente objetivamente subtrai de todos os não evangélicos o direito de exercer cargos públicos. A subversão em favor de seitas leva os Estados às guerras civis, ao ódio desagregador.

Subversão da ordem pública vem na escolha de Eduardo Bolsonaro para o cargo de embaixador. Os mandamentos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência são estraçalhados num só golpe. Como as Forças Armadas, o Itamaraty segue a disciplina em ritos e regras de acesso à carreira e à promoção. Quebrado o comando surge a anomia em setor estratégico do Estado. Aristóteles indica a família como um passo na constituição política. Com o presidente do Brasil, a sua família paira sobre o Estado, gerando subversão. Nem o regime Vargas e menos ainda o de 1964 ousaram tal façanha.

No caso dos generais, poucos apoios notamos a eles quando humilhados pelos fiéis do presidente, dirigidos por seu filho vereador. No STF a ordem é agredida em detrimento da cidadania. A proclamação do candidato evangélico foi efetivada em culto religioso no edifício do Legislativo. Uso contrário à lei, próprio de subversivos. No Itamaraty o feito mostra que a disciplina desaparece. Recordemos: foram tão lenientes os senadores de Roma diante dos abusos subversivos de César, que eles foram eliminados sem respeito algum, apesar de suas alvas togas. O mesmo acontece com as nossas togas verde-oliva ou negras.

Para finalizar, o presidente subverte o pacto federativo ao dizer que certos dirigentes de Estado devem ser excluídos dos benefício s a que têm direito. Juízes, militares, governadores, universidades: instituições fundadas na hierarquia e na autoridade. Se quem deve preservar tais valores os corrói, surge o caos. E do caos ninguém retorna.

Brasil em nova escultura


O terceiro turno

O presidente Jair Bolsonaro, ao insistir numa agenda motivada por razões ideológicas e religiosas, mas descolada dos problemas prioritários da população, está protagonizando um debate político no qual sua imagem de presidente da República pode sair desgastada. Bolsonaro foi eleito sem debater suas ideias, ficou fora da campanha depois da facada que levou em Juiz de Fora (MG). A partir daquele trágico episódio, o “mito” se tornou imbatível, mesmo num leito de hospital. Afora os seguidores de carteirinha, porém, a maioria dos seus eleitores não conhecia as ideias polêmicas do presidente da República sobre assuntos em há um amplo consenso na sociedade, como a questão do desmatamento, por exemplo.

Com o Congresso Nacional e o Judiciário em recesso, Bolsonaro ficou absoluto na cena política, sem que nenhuma outra personalidade disputasse espaço na mídia. Nesse período, no jargão jornalístico, florescem as “flores do recesso”, temas que tomam conta do noticiário político e morrem quando o Parlamento e os tribunais voltam a funcionar. Ocupava a cena a divulgação de conversas entre o ministro da Justiça, Sérgio Moro, quando era juiz em Curitiba, e os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, pelo site The Intercept Brasil, do jornalista americano Green Grenwald.

Essa seria a mais exuberante “flor do recesso”, mas o presidente Bolsonaro irrompeu em cena, diariamente, com declarações e atitudes polêmicas a cada entrevista ou tuitada. Ontem, Bolsonaro afirmou em uma rede social que o estudante de direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi morto pelo “grupo terrorista” da Ação Popular do Rio de Janeiro, e não pelos militares, uma afirmação no mínimo leviana. Segundo a Comissão da Verdade, Santa Cruz foi morto por agentes dos órgãos de segurança do regime militar.

Mais cedo, ao criticar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, filho do estudante desaparecido, Bolsonaro havia chocado a opinião pública com a seguinte declaração: “Um dia, se o presidente da OAB [Felipe Santa Cruz] quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”. Sua declaração gerou repulsa nos meios jurídicos e políticos. O governador de São Paulo, João Doria, por exemplo, filho de um parlamentar cassado e obrigado a se exilar, considerou a declaração inaceitável.

Bolsonaro já chamou a jornalista Miriam Leitão de terrorista e os nordestinos de “paraíba”; anunciou que discriminaria o Maranhão, porque o governador Flávio Dino (PcdoB) é comunista; garantiu que ninguém passa fome no Brasil; desqualificou os dados sobre desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), voltou a dizer que só os veganos se preocupam com a questão ambiental e voltou a defender a transformação da Baía de Angra numa nova Cancún.

Entre uma declaração e outra sobre Fernando Santa Cruz, Bolsonaro também defendeu a prisão do jornalista americano Grenn Greenwald, que divulgou as mensagens trocadas pelo ex-juiz Moro e os procuradores da Lava-Jato. Bolsonaro já havia feito referência à possível prisão do diretor do The Intercept Brasil, ao negar a intenção do governo de deportá-lo. A ligação de Greenwald com os quatro hackers presos suspeitos de invadir celulares de Moro, procuradores e outras autoridades dos três poderes está sendo investigada pela Polícia Federal. O inquérito foi prorrogado por mais 60 dias. Greenwald alega que recebeu os documentos anonimamente e sem nenhuma compensação financeira.

Para completar o dia, Bolsonaro cancelou uma audiência com o chanceler da França, Jean-Yves Le Drian, e foi cortar o cabelo. A França é uma grande parceira no acordo do Mercosul com a União Europeia. Talvez o presidente da República não tenha se dado conta, ainda, de que está promovendo uma espécie de terceiro turno das eleições, no qual oferece à crítica ideias que sempre defendeu, mas que não foram apresentadas à sociedade na campanha eleitoral, muito menos confrontadas pelos adversários. Cada declaração polêmica provoca uma onda de protestos na sociedade civil e no exterior, além de frustrar uma parcela dos eleitores que esperavam um presidente mais focado nos problemas do país, mais moderado na política e eficiente na gestão administrativa.

Amazônia: no centro do mundo e na periferia do Brasil

Janeiro de 2019. O Governo de Jair Bolsonaro acabava de começar e, numa sala fechada de um hotel de luxo de Davos, o chanceler Ernesto Araújo explicava a interlocutores que o Brasil precisava dar uma resposta aos ataques que o país sofria por conta do desmatamento. A estratégia diante da pressão internacional não era a de incrementar os controles na floresta. Mas sim mostrar a competitividade do modelo agrícola brasileiro.

Nos sete meses que se passaram desde então, o Governo deu demonstrações de que área ambiental não será sua prioridade, que um desmonte dos mecanismos de monitoramento está em andamento e que, de forma velada, sinais estão sendo enviados a garimpeiros, madereiros e agricultores de que a impunidade reinará.


Parte desses sinais foram dados quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, questionou o papel de Chico Mendes. Mas o chefe da pasta foi muito além. Assim que assumiu, extinguiu a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas e a substituiu pela Secretaria de Florestas e Desenvolvimento Sustentável. Para a surpresa mundial, o Brasil ainda desistiu de sediar a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-25).

O mesmo ministro disse que o Governo precisava se preocupar com coisas mais tangíveis e que o assunto das mudanças climáticas era para "acadêmicos" sobre como estará o planeta "daqui a 500 anos". Sua pasta ainda contingenciou 96% dos recursos que existiam para a Política Nacional sobre Mudanças Climáticas.

A onda de ataques a ambientalistas continua também no alto escalão do Governo. Para o presidente brasileiro, apenas “veganos que só comem vegetais” se importam com a questão ambiental, enquanto o chefe da diplomacia colocou em questão o fenômeno do aquecimento global.

A ofensiva não se limitou a frases que beiram ao ridículo. Bolsonaro prometeu asfaltar a rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, e abriu uma guerra contra os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Respeitada internacionalmente, a entidade revelou uma ampliação do ritmo do desmatamento de 68% em comparação a julho de 2018.

Para Bolsonaro, porém, informações do órgão não correspondem à realidade, disse que os funcionários da entidade tem “fidelidade às ONGs internacionais” e alertou que tais publicações “atrapalhariam” a relação comercial do Brasil com o mundo. A solução? Censurar a publicação dos dados.

Pelo interior do país e nas áreas de proteção, líderes indígenas e ambientalistas relatam como a tensão ganha força a cada dia. Em algumas regiões, os sinais de flexibilização de porte de armas por parte do Governo levaram a uma corrida por munição. Em outros lugares, milícias armadas e grupos se organizam, com o sentimento de respaldo da impunidade do Estado.

O mesmo ministro que questionou Chico Mendes viajou até a região amazônica para ouvir os pedidos de madeireiros, duas semanas depois de um veículo do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) ser incendiado. A Polícia Federal suspeita que o ataque ocorreu por milícias armadas pelos próprios madeireiros.

“Vamos ver um aumento de conflitos”, teme Almir Suruí, um dos principais líderes indígenas. “Nos defendemos com flechas. O que significa que, nesses confrontos, vamos ver índios mortos”, disse, há poucas semanas.

Almir parecia saber do que estava falando. Nesta semana, um índio foi assassinado durante a invasão de garimpeiros no estado do Amapá, o que levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a pedir uma resposta por parte do Estado brasileiro, o que por enquanto não ocorreu.

Mas a recusa do Governo em lidar com a realidade se contrasta com a prioridade que a floresta ganha pelo mundo. Hoje, em diferentes fóruns internacionais, a Amazônia está no centro dos debates e a questão ambiental já é o maior obstáculo internacional para Bolsonaro.

Nesta semana, em Genebra, cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas se reúnem para aprovar um novo documento que promete colocar ambientalistas em uma rota de choque com o Brasil. No texto, ficará escancarado que o atual modelo agrícola é insustentável e que as florestas terão de ser protegidas se o planeta quiser evitar o desastre sócio-ambiental.

Em Nova York, há poucos meses, o movimento que conseguiu que Bolsonaro optasse por evitar a cidade foi lançado justamente por cientistas e ambientalistas do museu natural que seria palco de uma homenagem ao brasileiro.

Os protestos contra sua presença se contrastavam com a forma pela qual o cacique Raoní foi, em maio deste ano, recebido por chefes de estado da Europa. Um abraço fraterno do papa Francisco ao líder indígena mais pareceu uma sinal de demonstração de que aqueles povos ameaçados e suas florestam contavam com o amparo mundial contra as políticas de Bolsonaro.

Pelas ruas europeias, a Amazônia também dominou a agenda de crianças que passaram a exigir de seus governos ações ambientais reais a cada sexta-feira.

No Parlamento Europeu, o debate que deu início ao processo de consultas para a ratificação do acordo comercial entre Mercosul e UE foi dominado por um só tema: a proteção da floresta. Eurodeputados pressionaram a Comissão Europeia por duas horas sobre como o bloco poderia agir para garantir que Bolsonaro mantenha seus compromissos ambientais.

Enquanto alguns sugeriam a criação de um “botão vermelho” para suspender o acordo em caso de desmatamento flagrante, outros insistiam que não se poderia premiar as exportações brasileiras num momento de destruição da floresta.

Pressionados pelas ruas, por parlamentares e por cientistas, líderes europeus assumiram a questão ambiental em suas agendas políticas como poucas vezes ocorreu. “É dramático o que está ocorrendo no Brasil”, disse a chanceler Angela Merkel, pressionada pelo avanço de partidos verdes nas últimas eleições.

Não faltam ainda os governos, como o de Emmanuel Macron, que disfarçam seu protecionismo agrícola em “luta ambiental”. Paris, que sempre resistiu a um acordo comercial com o Mercosul, deixou claro que apenas ratifica o tratado se o Brasil der demonstrações claras sobre suas intenções na Amazônia.

Mas, manipulado como escudo ou não, o tema ambiental permanece como uma pedra no caminho do Brasil.

Assim, quando Bolsonaro proclama que a Amazônia é brasileira, ele tem razão. O problema é que essa soberania soberba não protegerá nem a floresta e nem os interesses do país pelo mundo. O Brasil pode tentar enganar a humanidade sobre sua capacidade de controlar o que ocorre na floresta. Mas não terá como asfixiar o debate internacional.

Um país que mata sua floresta mata sua alma. Mas, no século 21, um país que mata sua floresta também mina seu interesse nacional.

Para uma nova geração mundial, a preservação está no centro do debate internacional. Mas, nos tristes trópicos, o combate ao desmatamento da Amazônia está apenas na periferia das prioridades políticas. E o impacto disso será o enfraquecimento da influência diplomática do Brasil, inclusive com prejuízos econômicos.

Hoje, o maior ato de soberania que o Brasil poderia fazer seria o de proteger a floresta, transformando-a em seu maior ativo. Seu maior instrumento de barganha.

De pé, as árvores dessa imensa região do mundo garantirão respeito – e lucros – a uma nação em busca de um reencontro com seu destino. No chão, aprofundarão a cova onde estará enterrada a reputação do único país com nome de árvore.

Escalada autoritária

Justiça seja feita: se Bolsonaro não tentasse destruir a democracia brasileira, teria praticado estelionato eleitoral. Foi isso que passou a campanha inteira dizendo que faria.

Durante todo o ano de 2018, Bolsonaro repetiu que não reconheceria uma derrota —isto é, que tentaria um golpe de Estado se Fernando Haddad tivesse sido eleito.

Seu filho Eduardo Bolsonaro, nosso futuro embaixador em Washington, declarou que, para fechar o STF, bastariam um soldado e um cabo.

Quando indagado, no programa Roda Viva, sobre seu livro de cabeceira, Bolsonaro citou, às gargalhadas, as memórias falsificadas do torturador Brilhante Ustra, que já havia homenageado na votação do impeachment.

Faltando uma semana para a eleição, com 20 pontos de vantagem sobre o opositor, Bolsonaro discursou dizendo que para a esquerda só restariam o exílio ou a prisão.

Sinceramente, vocês acharam que a Presidência desse sujeito ia ser o quê?

Nesses seis meses, não houve nenhum gesto de moderação. A deputada bolsonarista Bia Kicis propôs revogar a PEC da Bengala para permitir que Bolsonaro nomeasse mais ministros para o STF —um entre vários movimentos extraídos do repertório do ditador húngaro Viktor Orban.

Militares filmaram ostensivamente uma palestra na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência porque o palestrante tinha críticas à política ambiental de Bolsonaro.

O general Santos Cruz foi demitido de maneira humilhante porque entrou em conflito com a extrema direita bolsonarista.

Os ataques à imprensa começaram contra a Folha; prosseguiram —sempre sórdidos, sempre imundos— contra jornalistas do Estado de S. Paulo, da Globo e de toda a imprensa independente.

As universidades estão sob cerco, e toda a máquina governamental brasileira está engajada em uma guerra contra a ciência.

O Brasil passou a votar com a Arábia Saudita na ONU em todas as questões relativas a direitos humanos. Olavo de Carvalho começou a fazer doutrinação de graça para policiais, para a eventualidade de os militares se provarem democratas.

Depois da votação da reforma da Previdência, a escalada autoritária se acelerou.

Convicto de que a elite agora estava devidamente comprada, Bolsonaro tornou-se mais ousado. Os ataques contra Míriam Leitão foram o começo dessa ofensiva.

Mas foi com a guerra à Vaza Jato que Bolsonaro percebeu a possibilidade de destruir a democracia em nome do combate à corrupção. Não há combate nenhum, é claro: há, sim, um acordão para livrar Flávio Bolsonaro, com Supremo, com tudo. Mas, na falta de uma reputação de honestidade própria, Bolsonaro parasitou a de Moro, que, coitado, acha que isso tudo é para defendê-lo.

Como parte dessa escalada, no último sábado, Bolsonaro cruzou uma linha: sugeriu que Glenn Greenwald, fundador do Intercept, havia se casado e adotado duas crianças para não ser deportado, acrescentando que o jornalista poderia “pegar uma cana” no Brasil.

É inaceitável e é mais um esforço bolsonarista de nos fazer cansar sob o peso do nojo.

Quanto antes os brasileiros entenderem que o bolsonarismo odeia tudo que neles é livre, maiores serão as chances de preservarmos a liberdade que nos resta. A escalada autoritária prossegue e é cada vez mais acelerada.
Celso Rocha de Barros

Imagem do Dia

Costa Quebrada, Cantábria (Espanha)

Muito além de Noronha

Jair Bolsonaro errou o alvo quando insurgiu-se contra o valor da taxa de ingresso no Parque Marinho de Fernando de Noronha. O erro tem, para usar o mantra do governo, “viés ideológico”: evidencia um programa de destruição das políticas de preservação ambiental.

O arquipélago de Noronha está administrativamente bipartido. A Área de Proteção Ambiental (APA) abrange 30% da extensão da ilha principal, inclusive a Vila dos Remédios. Na APA são permitidas atividades econômicas, que se sujeitam a certas restrições ambientais. Nela, encontram-se hotéis, restaurantes, comércio, escolas, residências etc. Já o Parque Marinho (Parnamar-FN), que ocupa 70% da ilha principal e todas as ilhas menores, funciona como santuário natural. Nele, são vetadas a construção e as atividades econômicas.

O visitante de Noronha paga duas taxas: uma perfeitamente legal, outra inconstitucional. A primeira é a “taxa do parque”, cobrada pelo ingresso no Parnamar. Para brasileiros, custa R$ 106,00 (cerca de US$ 28) por dez dias. No parque de Yosemite, nos EUA, um carro paga US$ 35 por sete dias e um visitante de bicicleta, US$ 20 pelo mesmo período. No Kruger (África do Sul), um sul-africano paga US$ 47 por sete dias. Bolsonaro quer cortar o valor de uma taxa razoável porque odeia a noção de proteção ambiental.

A segunda é a “taxa da ilha”, cobrada pelo estado de Pernambuco e cinicamente batizada como Taxa de Proteção Ambiental (TPA). Sem o pagamento, não se passa pela “imigração” no aeroporto da ilha. É inconstitucional, pois restringe o acesso a uma APA, que é parte normal do território brasileiro. O “argumento” para a cobrança concentra-se nos custos logísticos do provimento de serviços públicos no arquipélago. Sob argumento similar, centenas de municípios afastados das principais artérias rodoviárias poderiam cobrar taxas de visitação de suas APAs.

Pernambuco beneficia-se fortemente dos impostos arrecadados pelo negócio do turismo em Noronha. Mas, não contente, assalta os turistas brasileiros, impondo a cada um deles o pagamento ilegal de R$ 467,59 (cerca de US$ 124!!!) por sete dias de estadia. Por que Bolsonaro não contesta a taxa abusiva cobrada por um governo desinteressado em controlar a urbanização irregular ou evitar a proliferação de lixo na APA de Noronha?

O presidente associou a “taxa do parque” ao baixo fluxo de turismo no Brasil. Mas, de fato, o turismo no arquipélago cresce em ritmo ambientalmente insustentável, ultrapassou a marca de 100 mil visitantes/ano, e só poderia ser contido por severas limitações no número de voos semanais.

Tudo indica que Bolsonaro quer aumentar ainda mais a visitação. Nisso, alinha-se com o desejo do governo pernambucano, que já arrecada mais de R$ 35 milhões/ano só pela cobrança da TPA.

O presidente acertaria um alvo crucial se girasse a mira para a visitação do conjunto de nossos parques nacionais. Nos EUA, em 2017, os parques nacionais receberam 331 milhões de visitantes. No Brasil faltam estatísticas decentes, mas estima-se grosseiramente que foram 10,7 milhões. Na África do Sul, que tem um quarto de nossa população, foram 6,7 milhões. O fracasso tem causas facilmente identificáveis — mas nenhuma delas mantém relação com o valor das taxas de ingresso.

As taxas de ingresso de nossos parques são bastante baixas, quando existem. Parques icônicos como a Chapada Diamantina, a Chapada dos Guimarães, os Lençóis Maranhenses e os Aparados da Serra nada cobram —e, exceto suas belezas naturais, quase nada oferecem aos visitantes. Inúmeros parques brasileiros não dispõem de portaria, centro de visitantes ou infraestruturas básicas. São áreas tão hostis ao turismo quanto acolhedoras a madeireiros, palmiteiros, caçadores e pescadores ilegais. São monumentos ao primitivismo ideológico de fundamentalistas do ICMBio que contrapõem, genericamente, a visitação pública à preservação ambiental.

Bolsonaro e seu ministro do Turismo, triste figura cravada num laranjal, não enxergam nenhum problema nisso. Eles pretendem apenas demolir os raros parques que funcionam tão bem como seus similares nos EUA ou na África do Sul.

Democracia de conveniência

Depois do 25 de Abril, por exemplo, tornámo-nos todos democratas. Não nos tornámos democratas por acreditar-mos na democracia, por odiarmos a guerra colonial, a polícia política, a censura, a simples proibição de raciocinar: tornámo-nos democratas por medo, medos dos doentes, do pessoal menor, dos enfermeiros, medo do nosso estatuto de carrascos, e até ao fim da Revolução, até 76, fomos indefectíveis democratas, fomos socialistas, diminuímos o tempo de espera nas consultas, chegámos a horas, conversámos atenciosamente com as famílias, preocupámo-nos com os internados, protestamos contra a alimentação, os percevejos, a humidade, os sanitários, a falta de higiene.
Fomos democratas, Joana, por cobardia, pensou ele vendo um bando de rolas poisar num olival, agitar a tranquilidade do olival com o rebuliço do seu voo, tínhamos pânico de que nos acusassem como os pides, nos prendessem, nos apontassem na rua, pusessem os nossos nomes no jornal. E demorámos a entender que mesmo em 74, em 75, em 76, as pessoas continuavam a respeitar-nos como respeitam os abades nas aldeias, continuavam a ver em nós o único auxílio possível contra a solidão. E sossegámos. E passámos a trazer dobrados no sovaco jornais de direita. E sorríamos de sarcasmo ao escutar a palavra socialismo, a palavra democracia, a palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, Joana, porque haviam abolido a guilhotina
António Lobo Antunes

Bolsonaro se apequena ao dizer que sabe como se matava e torturava na ditadura

Não sei se os brasileiros e o mundo se interessam em saber que o presidente Jair Bolsonaro conhece até os mínimos detalhes de como torturavam e matavam na ditadura. Não se trata de um segredo. Foi ele mesmo quem revelou. Sabia-se que era um defensor da ditadura militar e dos seus mortos, do mesmo jeito que era conhecida a sua admiração pelos torturadores. O que ele próprio agora acaba de dizer é que conhece as minúcias de como se torturava e matava no Brasil durante aquele período obscuro.

A revelação da sua intimidade com os métodos de tortura e execução durante na ditadura veio da própria boca de Bolsonaro por ocasião de seu entrevero com o atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”, afirmou Bolsonaro.

Santa Cruz tinha dois anos quando seu pai desapareceu para sempre, levado, como tantos outros, pela ditadura militar, acusado de ter participado da luta armada — embora não figure como membro de grupos armados no registro da Comissão da Verdade, responsável pela análise dos fatos daquele período.

Agora, os brasileiros sabem não apenas que Bolsonaro nunca escondeu suas simpatias pela ditadura e seus métodos, mas que também conhece muito além do que se imaginava sobre as atrocidades cometidas. Cabe perguntar como e por que ele conhece os horrores de um tempo que a grande maioria dos brasileiros preferiria que nunca tivesse existido. Não é difícil imaginar o que o presidente da OAB, que tinha dois anos quando seu pai foi torturado e morto, teria sentido ao ouvir dos lábios do presidente da República que ele sabe como seu pai morreu. E que pode lhe contar.

No livro Memórias de Uma Guerra Suja, do ex-policial do DOPS Cláudio Guerra, lê-se que o pai do presidente da OAB foi “incinerado no forno de uma fábrica de açúcar em Campos”. Agora Bolsonaro insinua que sabe mais sobre aquele assassinato e ameaça contar ao filho, o que causa aflição e revela uma veia de desumanidade em quem deveria, por seu cargo, dar, ao contrário, um exemplo de defesa da paz e da harmonia entre todos os brasileiros.

Continuar com a política suicida de dividir os cidadãos, apresentando-se sempre como próximo de tudo o que cheira a violência, desafio e uso das armas, só pode fazer com que até as pessoas que um dia confiaram nele para conduzir o destino do país hoje se sintam arrependidas e escandalizadas.

Se um presidente da República não entende que, uma vez eleito, deve ser não só o responsável pelo país, mas também por todos os brasileiros, e que deve propiciar paz ao invés de semear discórdias, os resultados podem ser perversos.

Minha esperança é que o desafio de Bolsonaro ao presidente da OAB, de revelar a forma atroz como mataram seu pai, possa criar um calafrio de medo e desilusão na grande maioria dos brasileiros que nunca teriam querido que alguém brincasse de desafiá-los contando como torturaram seus pais. Há sentimentos humanos que devem superar todas as ideologias. Quando, na luta política, perdemos o senso de dignidade e respeito pelo outro, abrimos o caminho que, ao longo da história, forjou os monstros da crueldade.

A revelação macabra de Bolsonaro ao presidente da OAB, de que ele sabe como eliminaram seu pai e pode contar se quiser, me fez lembrar de uma história ocorrida durante a ditadura do general Franco, na Espanha, quando se torturava e matava. Terminada a refeição, apresentaram ao Generalíssimo a lista dos que seriam fuzilados no dia seguinte. Franco aprovava e se divertia desenhando uma flor em nome de cada um. Em Madri, um advogado amigo meu me contou que uma vez tinham lhe avisado que naquela manhã torturariam uma pessoa com quem ele um dia havia discutido e desfeito a amizade. Ofereciam-lhe a oportunidade de presenciar a tortura e, se quisesse, “até participar dela”. Meu amigo me disse apenas: “São uns canalhas.” Sempre sonhei em ter um dia um presidente capaz de chamar de canalhas os que desfrutam da dor alheia, da vingança e da crueldade.

A melancolia das baratas

Fazer a gestão de pessoas por meio do medo, da desestabilização do cotidiano de trabalho e da valorização do medíocre e do lambe-botas é uma boa? Sim, pensa o pequeno líder que veste ternos baratos.

O mundo corporativo é a distopia perfeita. Observando-o, você pode vê-lo com os olhos de Gregor Samsa, famoso personagem que vira um inseto em “A Metamorfose”, escrito por Franz Kafka (1883-1924), que, aliás, saiu em nova e belíssima edição pela editora Antofágica. A fortuna crítica vê nessa história de horror um libelo contra a animalização do ser humano na modernidade e sua obsessão pela produtividade e eficácia. Famosa é a passagem em que, num dos seus primeiros pensamentos, Gregor se angustia por perder o bonde e faltar no emprego. A pergunta é: tendo acabado de virar uma barata (não é dito que seja uma barata, mas é mais legal pensar que seja), você pensaria logo que perdera o emprego?

A resposta é “sim”, principalmente, se você for objeto de um gestor que dirija seu corpo de “colaboradores” (acho fofa essa expressão) por meio do medo, da desestabilização do cotidiano de trabalho e da valorização do medíocre e do lambe-botas.

Mas, o mais radical é pensar que, apesar de jurar que se está animalizando as pessoas em nome do aperfeiçoamento da gestão (portanto, em nome da “causa da modernidade”), esteja-se, na verdade, animalizando as pessoas, apenas, pelo simples gosto de vê-las correndo de uma lado para o outro como baratas. Sempre suspeito, como todo niilista, que o gozo estético vem antes da justificativa ética, racional ou política.

Este é o olhar de Gregor, ver no mundo a melancolia das baratas. O “último Gregor” na novela “A Metamorfose”, o melancólico, é o Gregor mais contemporâneo de todos nós.

Ricardo Cammarota
A filosofia do utilitarista John Stuart Mill (1806-1873), entre outros, já suspeitava que dimensões a ver com o bem-estar impactasse a vida social, moral e política —e, portanto, o trabalho. E lembremos que, sem dúvida, os utilitaristas ingleses eram filósofos radicalmente implicados com a “causa da modernidade”.

Há em John Stuart Mill quatro chaves muito interessantes que podem nos ajudar a entender o processo moral através do qual um “fazedor de humanos-baratas” realize seu objetivo. Vejamos. A ordem de apresentação não implica nenhuma hierarquia de valor entre elas.

A primeira é o terreno da racionalidade ou coerência. Tratar as pessoas com coerência ou racionalidade, fazendo elas sentirem que o ambiente em que respiram é um ambiente em que ser racional vale a pena, evita a produção de baratas. A ideia de reconhecimento dos méritos num local de trabalho passa por aqui. Reconheço o quão utópico é essa ideia de meritocracia. A esquerda não deixa de ter razão quanto aponta para este fato. É muito raro se chegar a identificação do que é, de fato, mérito, ou mesmo chegando a ele, chegar a justa aplicação do reconhecimento pelo mérito. Mas, ainda assim, Mill acerta quando diz que somos seres racionais e, portanto, a pura e simples irracionalidade e incoerência na gestão de pessoas destrói o tecido moral onde elas vivem e trabalham.

A segunda é a liberdade. Sentir-se autônomo em alguma medida e não uma barata perseguida é essencial para a vida ética numa corporação, e não apenas nesta, mas estou pensando especificamente no mundo corporativo hoje. Negar a liberdade de pensamento, ação e resposta, é valorizar a metamorfose de Gregor. Punir quem age livremente causando medo no tecido corporativo é trabalhar pela “causa das baratas”.

A terceira é a imaginação. Seres humanos que têm sua capacidade imaginativa destruída, rapidamente degeneram em baratas. O medo, a instabilidade, a irracionalidade nas decisões por conta da sua impenetrabilidade destrói a capacidade imaginativa das pessoas, negando a elas a percepção de futuro próximo. E pessoas sem essa percepção degeneram em baratas. A experiência de sentido na vida, que é uma experiência que brota da nossa relação concreta com as coisas a nossa volta, depende profundamente da nossa capacidade imaginativa. Tente você ai pensar no seu futuro, sem a possibilidade de imaginá-lo melhor do que hoje é o seu presente. Como se sentirá e qual o impacto que essa sensação negativa terá na sua participação na “causa da modernidade”, isto é, no progresso calculado da vida?

Por último, o afeto moral. Sem afeto, finalmente, nossa barata chega a melancolia. Os idiotas da gestão adoram um mundo do trabalho sem afetos.
Luiz Felipe Pondé

Pensamento do Dia


Humanidade já esgotou os recursos renováveis de 2019

A humanidade atingiu nesta segunda-feira o limite do uso sustentável de recursos naturais disponíveis para 2019. A data, chamada Dia da Sobrecarga da Terra, é calculada pela organização internacional Global Footprint Network (GFN).

A cada ano, a população mundial consome mais terras aráveis, pastagens, áreas de pesca e florestas do que as disponíveis realmente. Além disso, emite muito mais CO2 do que as florestas e oceanos do mundo podem absorver. Por isso, o Dia da Sobrecarga acontece cada ano mais cedo. No ano passado, havia sido em 1º de agosto e, em 1971, o primeiro ano de sobreconsumo global, foi em 21 de dezembro.

A Global Footprint Network, sediada na Califórnia, explicou que os custos desse consumo são cada vez mais visíveis, por exemplo, através do desmatamento, da erosão do solo, da perda de biodiversidade ou do aumento do CO2 na atmosfera terrestre. Segundo o GFN, "este último leva a eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes".



O dia da exaustão de reservas naturais resulta de uma média global, já que alguns países consomem seus recursos mais rápido que outros. A organização de proteção ambiental WWF afirmou que no Catar, por exemplo, o Dia da Sobrecarga foi atingido nos primeiros 42 dias deste ano. Já em Cuba, Nicarágua, Iraque, Equador e Indonésia, só acontecerá em dezembro. A Alemanha havia esgotado em 3 de maio os seus recursos naturalmente disponíveis para 2019. No caso do Brasil, será neste 31 de julho.

De acordo com as organizações ambientalistas, a população mundial consome hoje em dia o correspondente a 1,75 Terra, em termos puramente matemáticos. Se todos os humanos vivessem como os alemães, seriam necessários três planetas iguais ao nosso. Se toda a humanidade tivesse os mesmos hábitos de consumo dos cidadãos dos Estados Unidos, teriam de ser cinco Terras. Nessa mesma conta, os brasileiros precisariam de 1,7 planeta para suprir todas as necessidades.

Os déficits ecológicos anuais começaram na década de 1970, segundo o GFN, comprometendo a futura capacidade regenerativa do planeta. Em 1993, o Dia da Sobrecarga da Terra caíra em 21 de outubro. Dez anos depois, em 2003, foi em 22 de setembro.

Atualmente, as emissões de carbono da queima de combustíveis fósseis constituem 60% da pegada ecológica da humanidade. Se o Dia da Sobrecarga fosse adiado cinco dias por ano, até 2050, o consumo global poderia se igualar aos recursos disponíveis no planeta, informa o GFN. Substituir, por exemplo, 50% do consumo de carne por comida vegetariana iria mudar o Dia da Sobrecarga em 15 dias (10 dias somente pela redução das emissões de metano pelo gado).

Para ajudar a humanidade a diminuir o consumo para níveis sustentáveis, a GFN oferece uma calculadora de pegada ecológica nos idiomas hindi, inglês, chinês, francês, alemão, português, espanhol e italiano.

"Temos apenas uma Terra – este é o contexto final que define a existência humana", diz o fundador da GFN, Mathis Wackernagel. "Não podemos usar 1,75 planeta sem consequências destrutivas. Em última análise, a atividade humana será equilibrada com os recursos ecológicos da Terra", afirma Wackernagel. "A questão é se escolhemos chegar lá por acidente ou por projeto – a miséria de um planeta ou sua prosperidade."
Deutsche Welle

Brasil verde

Em tempos de obscurantismo afloram sentimentos que vão da indignação à profunda solidariedade. São emoções que alimentam a resistência. O estresse ativa defesas que nos levam a sonhar, ora como fuga, ora como projeto. Neste espírito escrevo a coluna de hoje.

Imaginem um país onde as praias, lagoas e rios são limpos. Onde todos têm acesso a esgoto e água corrente. Onde o ar que se respira é puro. Onde os alimentos são saudáveis. Onde a natureza é preservada e apreciada. Que tal? Um país assim melhoraria nossa saúde, qualidade de vida e autoestima, atrairia muito mais turismo, de maior poder aquisitivo, e viabilizaria a abertura de mais e melhores mercados para exportações.

A Costa Rica e a Nova Zelândia são exemplos de que, em tese, se trata de um futuro a nosso alcance. Uma forma de mobilizar apoios e coordenar ações nessa direção seria a criação de um projeto intitulado Brasil Verde, que definisse como metas os sonhos listados acima. Para que elas fossem atingidas, a cada uma estariam associados planos de ação.

Uma primeira meta deveria ser desmatamento negativo, ou seja, parar de desmatar e ao mesmo tempo recuperar áreas desmatadas e abandonadas.

Esta é a proposta dos respeitados cientistas Thomas Lovejoy e Carlos Nobre e de especialistas como Tasso Azevedo e Beto Veríssimo.


Eles avaliam que há risco relevante de a Amazônia atingir um ponto sem retorno (um “tipping point”): a partir de um certo grau de desmatamento, a floresta perde sua capacidade de regeneração. As consequências de tal evento seriam catastróficas para o clima do Brasil e do mundo. Desapareceriam os famosos rios voadores que irrigam a produção agrícola mais ao sul e haveria perda de biodiversidade, com seu imenso potencial inexplorado. A floresta precisa ficar de pé.

Vale lembrar aqui que estudos econômicos coordenados por Juliano Assunção, da Climate Policy Initiative, demonstram que a produção da agropecuária brasileira tem imenso espaço para crescer sem derrubar uma árvore mais sequer, apenas reaproveitando áreas degradadas ou subutilizadas. Logo não há qualquer vantagem para a sociedade como um todo em seguir desmatando.

Há quem imagine que em algum momento o resto do mundo nos pagará pela função de reserva ambiental do planeta. Melhor esperarmos sentados.

Como a emergência já está próxima, é de nosso interesse agirmos logo, por conta própria. Se assim o fizermos, além de cuidar de nossa própria qualidade de vida, estaremos ocupando uma posição de liderança iluminada no contexto internacional, que nos traria preciosos respeito e poder de natureza “soft”.

Uma segunda meta seria a despoluição de nossas águas. Banho de mar sem língua de esgoto, pesca e lazer nos rios, menor incidência de toda sorte de doença recomendam uma blitz no front do saneamento, hoje uma vergonha, carente há décadas de uma resposta competente. Os ganhos em termos de saúde e bem-estar seriam enormes, muito maiores do que os custos.

No campo dos alimentos estaria a terceira meta. Aqui há grande espaço para queimarmos etapas. O mundo caminha cada vez mais para produtos saudáveis, não processados, que eliminem ou pelo menos minimizem os riscos de contato com agrotóxicos, antibióticos e hormônios. O Brasil pouco acordou para essa tendência, parecendo caminhar na direção oposta. Todo cuidado é pouco. Cabe uma guinada radical, o quanto antes, melhor.

Caberia falar também de poluição atmosférica, energia limpa, poluição sonora. Brasil Verde poderia virar uma marca de qualidade, que seria a nossa cara.

Esse sonho pode ser transformado em realidade. Mas quando? A tempo?

Governabilidade de insano

Nós estamos dentro de um quadro de insanidade, a mais absoluta. Não é mais caso de impeachment, é caso de interdição.
O que não estiver de acordo com sua rasa compreensão tem que ser queimado. Por isso é que eu digo: ele é um ‘Bolsonero’
Miguel Reale Jr.

O risco de o país acostumar-se ao capitão

Sob o impacto da publicação pelos jornais de segredos de Estado sobre a guerra do Vietnã, o governo americano da época ameaçou com tudo – recursos à justiça para censurar a imprensa, pressão de ordem econômica sobre as empresas de comunicação e seus maiores anunciantes, cassação de credenciais de repórteres que cobriam a Casa Branca, e sabe-se mais lá o quê.

Uma coisa, porém, o governo não fez: ameaçar prender os jornalistas responsáveis pela publicação incômoda. Foi assim também em Porto Rico, onde o governo enfrentou recentemente uma onda de acusações a partir de documentos hackeados. Ali, o povo foi às ruas indignado e só voltou para casa depois que o governo caiu. Os jornalistas foram deixados em paz.

Não espanta a falta de povo nas ruas brasileiras em consequência das conversas que vem sendo reveladas a conta gotas entre os procuradores da Lava Jato e de alguns desses com o então juiz Sérgio Moro. A própria imprensa está dividida a respeito. Moro é o ministro mais popular do governo. E tem contado até aqui com o apoio irrestrito do presidente da República.

Espanta a tímida reação dos meios de comunicação, das entidades de classe e dos partidos das mais variadas cores ao anúncio feito pelo capitão Bolsonaro de que o jornalista Glenn Greenwald, autor das reportagens publicadas pelo site The Intercept Brasil e seus parceiros, possa "tirar uma cana". Esse seria o desejo do capitão, mas não é ele que detém o poder de prender ninguém.

É conhecida a ojeriza de Bolsonaro à democracia e aos direitos assegurados por sua simples existência – entre eles, o da manifestação de pensamento a salvo de restrições que não sejam as estipuladas em lei. Nem todas as afirmações estridentes e levianas do capitão devem ser levadas a sério como ele quer. Mas algumas certamente não devem ser engolidas em silêncio.

Uma vez que aspira a um novo mandato com apenas sete meses de governo, o capitão parece sentir-se cada vez mais à vontade para resgatar tudo o que dizia antes de se eleger – e por isso tem tudo para tornar-se mais perigoso do que já é.
Ricardo Noblat