terça-feira, 21 de abril de 2020

Nos tempos de Pinochet

Evitei sempre tocar no tema da prisão durante a ditadura chilena. Evitei, porque, por um lado , a vida sempre foi apaixonante e digna de ser vivida até ao último suspiro, pelo que tocar num acidente tão obsceno era uma vil forma de a ofender. E, por outro lado, porque se escreveram demasiados - infelizmente, na sua maioria , muito maus - testemunhos a esse respeito.
Dois anos e meio da minha juventude passei-os encerrado numa das mais miseráveis prisões chilenas , a de Temuco.

O pior de tudo não era o encerramento em si mesmo, pois lá dentro a vida continuava, e às vezes mais interessante do que fora. Os " prigué" - prisioneiros de guerra - com mais preparação- e lá estava todo o corpo docente das universidades do sul - formaram várias academias , e assim muitos de nós aprenderam línguas, matemáticas, física quântica, história universal, história de arte, história da filosofia. Um professor de apelido Iriarte orientou durante duas semanas um magnífico seminário sobre Keynes e o pensamento político dos economistas contemporâneos, a que assistiram, além de uma centena de presos , vários oficiais do exército. Andrés Müller, jornalista e escritor , dissertou sobre os erros tácticos dos comunards de Paris perante a estupefacção da soldadesca que guardava a oficina de calçado, baptizada por nós como Gran Salón del Ateneo de Temuco. Outro ilustre prigué, Genaro Avendaño - " desapareceram-no" em 1979 -, emocionou presos com uma dramatização de Unamuno em Salamanca.

O meu grande orgulho é saber que não esqueço nem perdoo aos seus verdugos






Até chegámos a ter uma pequena biblioteca com títulos que lá fora eram proibidíssimos, graças à curiosa censura praticada pelo sargento encarregado de filtrar os livros que nos mandavam os familiares e amigos. Nunca deixámos de lhe agradecer que catalogasse entre os livros de primeiros socorros o exemplar de Las venas abiertas de América Latina que ornamentava a biblioteca. Até aulas de alta cozinha nós tivemos. Como esquecer a paixão de Julio Garcês , ex-cozinheiro do Club de La Unión, a Meca da aristocracia chilena, quando defendia a subtil gordura do coelho como insubstituível na preparação de um bom molho de fígado do mesmo animal, e insistia que era fundamental cozinhar o molho de congro com o mesmo vinho branco que depois alegraria a mesa. Anos depois encontrei Garcés na Bélgica. Era o chef de um prestigiado restaurante de Bruxelas, e mostrou-me com orgulho os dois diplomas com que o guia Michelin premiara a sua arte culinária.

(...)Novecentos e quarenta e dois dias durou a permanência naquela terra de todos e de ninguém. Estar dentro não era o pior que nos podia acontecer. Era mais uma forma de estar de pé na vida. O pior vinha quando, mais ou menos de quinze em quinze dias, nos levavam ao regimento de Tucapel para os interrogatórios. Então compreendíamos que por fim chegávamos a lado nenhum.

*


Os militares tinham um conceito bastante elevado da nossa capacidade destruidora. Perguntavam-nos acerca de planos para assassinar todos os oficiais da história militar da América para fazer ir pelos ares pontes e sepultar túneis , e para preparar o desembarque de um temível exército exterior que não podiam identificar.

Temuco é uma cidade triste, cinzenta e chuvosa. Ninguém diria que é apta para o turismo, e no entanto o regimento de Tucapel chegou a ser uma coisa assim como uma permanente convenção internacional de sádicos. Nos interrogatórios, além de militares chilenos que mal por mal eram os anfitriões , participavam também símios da inteligência militar brasileira - eram os piores -, norte-americanos do Departamento de Estado, paramilitares argentinos , neofascistas italianos e até uns agentes do Mossad.

Como esquecer Rudi Weismann, chileno, amantes do sul e dos veleiros, que foi torturado e interrogado no doce idioma das sinagogas? Rudi que arriscou tudo por Israel - participou num Kibutz mas foi mais forte a saudade da Terra do Fogo e regressou ao Chile -, não foi capaz de suportar aquela infâmia. Não conseguiu entender que Israel apoiasse aquela pandilha de criminosos, e Rudi Weismann, que sempre foi um monumento ao bom humor, tornou-se seco como uma planta esquecida. Certo amanhecer encontrámo-lo morto no saco de dormir. A sua expressão tornou desnecessária qualquer autópsia: Rudi Weismann morrera de tristeza.

O comandante do regimento de Tucapel - e não cito o seu nome por um elementar respeito ao papel - era um fanático admirador do marechal Rommel. Quando simpatizava com um prisioneiro convidava-o a restabelecer-se dos interrogatórios no seu escritório. Lá, depois de lhe garantir que tudo o que acontecia no regimento servia os sacrossantos interesses da pátria , oferecia-lhe um cálice de Korn - alguém lhe mandava da Alemanha o insípido licor de trigo e obrigava-o a ouvir uma conferência sobre o Africakorps. O tipo era filho ou neto de alemães, mas o seu aspecto não podia ser mais chileno: rechonchudo, pernas curtas, cabelo escuro e rebelde. Podia muito bem passar por camionista ou vendedor de frutas , mas ao falar de Rommel transformava-se na caricatura de um guarda hitleriano.

(...) Regimento Tucapel. Intendência. No fundo verde do monte Ñielol, sagrado para os Mapuches. A sala de interrogatórios era precedida por uma sala de espera , como numa consulta médica. Sentavam-nos num banco com as mãos atadas nas costas e um capuz preto na cabeça. Nunca percebi a razão do capuz, porque uma vez lá dentro, tiravam-no e podíamos ver interrogadores, os soldaditos que, com expressão de pânico giravam a manivela do gerador eléctrico, os enfermeiros que colavam os electrodos no anus, nos testículos , nas gengivas na língua , e depois auscultavam para decidir quem fingira e quem desmaiara realmente na grelha.
(...)

*
Num dia de Junho de 1976 acabou a viagem a lado nenhum. Graças às diligências da Amnistia Internacional saí da prisão e, embora rapado e com menos vinte quilos, enchi os pulmões com o ar denso de uma liberdade limitada pelo medo de a perder novamente. Muitos dos camaradas que ficaram lá dentro foram assassinados pelos militares . O meu grande orgulho é saber que não esqueço nem perdoo aos seus verdugos.
Luís Sepúlveda, "Patagónia Express". O escritor chileno morreu na semana passada pelo coronavírus 

E como trabalham!!!

As Forças Armadas trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal
Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa

O ar do vírus e do golpismo

Bolsonarismo aula zero: técnica desviante. Apertou aqui, abre-se outro pasto para o gado mugir ali. O presidente é mestre em lançar o que se chama de cortina de fumaça. Sob forte pressão, acuado pelas consequências de suas escolhas irresponsáveis ante a peste, informado de que seu comportamento sociopata no curso de crise sem precedentes lhe esvazia a base social, Jair Bolsonaro reage cultivando modalidade de conflito que o coloque em zona de conforto e atraia a atenção da sociedade a um ponto distante daquele em que se dá seu grotesco chamamento a que o povo vá às ruas respirar o vírus.

Bolsonaro é um girassol publicitário cujo sol é o pulso das redes. Esse é o termômetro do populista do século XXI. Ele decerto se baliza em pesquisas. Não apenas as que apontam perda de apoio em decorrência de haver se referido à Covid-19 como gripezinha; mas também as que lhe indicam o remédio para minimizar o estrago: o discurso lavajatista de combate à corrupção, de criminalização da atividade política e de luta contra o sistema “patife”.

O lavajatismo é o mais eficaz agente aglutinador que atua no país. É o próprio espírito do tempo. A melhor materialização da mentalidade autoritária a que vamos submetidos sem nem sequer perceber — a mesma que concorreu decisivamente para a eleição de Bolsonaro. Ele sabe que a sociedade tem raiva da figura do político e aversão à ideia de elite política. De modo que, quando ante a mais mínima desmobilização de sua militância, logo sopra o apito lavajatista. Opera assim com maestria.


Não é, portanto, que seja o popular, o amado, centro irradiador de popularidade e atração. Não. Com rara capacidade para identificar oportunidades e com extraordinária vocação para interpretar, Bolsonaro se associa a demandas populares, aquelas que disparam o gatilho da comoção,e as incorpora. Faz isso há décadas — e, sob todos os holofotes, diariamente, há 16 meses.

Fico perplexo com a constatação de que haja alguém ainda surpreso com o comportamento revolucionário — palavra que, registro, tenho na pior conta — do presidente no último domingo. O sujeito procede dessa maneira desde que assumiu, líder escancarado de um fenômeno reacionário de ímpeto para a ruptura. Alegoricamente, está sobre um carro (poderia ser boleia de caminhão), diante de quartel, projetando discurso autocrático a uma plateia que pede intervenção militar e ostenta pregações por fechamento do Congresso e do Supremo, desde que assumiu.

A fala de domingo expõe — novamente — a noção precária e inconformada do bolsonarismo sobre o que seja a democracia liberal. Vontade popular, para Bolsonaro, é a vontade de seus apoiadores — e a isto se reduz o povo: a seus apoiadores. Essa vontade popular compreende o fato de o sujeito haver sido eleito como ordem, mandato mesmo, para que os demais Poderes se submetam aos desejos do que seria, pois, um imperador.

O bolsonarismo é campanha permanente — campanha no sentido de guerra. Campanha para submissão.

Sob essa lógica totalitária, num mecanismo de espantosa inversão de valores, o exercício garantidor dos freios e dos contrapesos — símbolo da ponderação republicana que controla a força excessiva — torna-se uma espécie de traição, de conspiração do sistema contra o presidente; o presidente, que se confunde com a vontade popular até se converter mesmo na vontade popular. O presidente: o povo no poder. O presidente: eu sou a Constituição.

Por isso Bolsonaro (diz que) não negocia. Não negocia (é mentira) porque se impõe. Essa é a fantasia do populista autoritário.

O bolsonarismo aposta pesadamente no estabelecimento de uma cultura plebiscitária entre nós. Puro chavismo. O objetivo é minar o edifício da democracia representativa para tornar descartável a ideia de Parlamento. Qual seria a necessidade desse tipo de intermediação, se o líder pode falar diretamente a seu povo?

Bolsonaro é forja de inimigos, usina de conflitos — o gerador de instabilidades. Era assim antes da peste, em tempos de paz. Se o tempo vira e é de crise, será a crise dentro da crise. Nunca houve dúvida de que radicalizaria. Quer o choque e investe na desordem.

Não me surpreenderei se, instalada a depressão econômica, afundado o Brasil enfim na ingovernabilidade que ele próprio forja, de resto propagando teorias conspiratórias e acusando até a Corte Máxima de tramar golpe contra si, Bolsonaro decretar medida extrema, como estado de sítio. Uma provocação para que o Congresso reaja, derrube o decreto, promova o que seria choque institucional violento — daí irrompendo o caos social, a desobediência civil, a anomia em meio à pandemia. O golpismo está no ar tanto quanto o vírus.

Aliás, tendo falado sobre chavismo, alerto para a possibilidade de o apoio armado com que conta o bolsonarismo não ser o militar; mas o de milícias como aquelas que se amotinaram, contra o Estado, no Ceará. Atenção a isso.

Crise pode jogar 15 milhões na pobreza extrema no país

Com o período de confinamento afetando emprego e renda, o novo coronavírus pode empurrar mais 5,7 milhões de brasileiros para a pobreza extrema caso o governo não consiga efetivamente ampliar seus programas sociais e não consiga apoiar as empresas a manter empregos.

Isso representaria elevação de 60% na pobreza extrema no país, para 15 milhões de pessoas vivendo com menos de US$ 1,90 per capita por dia, segundo cálculos do Banco Mundial obtidos pelo Valor. Essa é a linha de pobreza usada para países de renda média como o Brasil. Dessa forma, a taxa de pobreza extrema (proporção em relação ao total da população) cresceria de 4,4% no ano passado para 7% neste ano.

O Banco Mundial também estimou o potencial aumento de uma linha de pobreza mais “branda”, de US$ 5,50 per capita por dia. Por esse recorte, a taxa de pobreza cresceria de 19,5% em 2019 para 22,4% em 2020. Seriam 6,2 milhões a mais de brasileiros pobres por esse recorte.


Francisco Ferreira, pesquisador sênior e coordenador do Programa de Pesquisa em Pobreza e Desigualdade do Banco Mundial, afirma que os cálculos estão baseados no cenário de queda de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020, atual projeção da entidade para o Brasil.

“Não se pode menosprezar o tamanho do desafio. Uma queda de produto e renda de 5% obviamente é um choque colossal, principalmente porque não tínhamos sequer recuperado o que perdemos em 2015-16”, diz Ferreira, economista que fica sediado em Washington.

Ele explica que esse impacto econômico da crise do novo coronavírus afeta mais o trabalhador informal, principalmente no setor de serviços. Sem trabalho e sem receber seguro-desemprego, esse trabalhador e sua família estão numa situação de altíssimo risco, afirma o economista.

“Sem uma resposta de política pública, que felizmente aconteceu, teria muito mais gente passando fome mesmo. Não tenho a menor dúvida que a pandemia contribui para um aumento da desigualdade de renda, no Brasil e no mundo. A questão é quanto tempo esse aumento vai durar.”

O governo anunciou pagamento de R$ 600 para trabalhadores sem emprego formal com renda per capita de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou familiar de até três salários mínimos (R$ 3.135). A Caixa pagou em auxílio emergencial R$ 12,2 bilhões a 17,9 milhões de pessoas em operações realizadas até às 12 horas de ontem.

Além disso, o governo anunciou medidas para evitar perdas de empregos com carteira de assinada, como a diminuição da jornada de trabalho, com redução de salário de até 70%. A antecipação do seguro-desemprego vai recompor parte da redução dos salários de trabalhadores.

Ferreira destaca a importância do capacidade institucional de política social desenvolvida a partir da implantação do programa Bolsa Família e da criação do Cadastro Único de programas sociais, há 18 anos. Sem isso, seria impossível, ele diz, fazer a renda chegar rapidamente às pessoas mais pobres.

“Felizmente, o governo reagiu de várias maneiras, inclusive com o fim da fila de espera do Bolsa Família e a renda básica de R$ 600 por mês. Se efetivamente distribuída, essa transferência pode ser muito eficaz no combate a esse aumento de pobreza, podendo até neutralizá-lo.”

A rápida operacionalização dessas políticas, porém, é um grande desafio. Cuidadora de idosos, Mayara da Silva Fernandes, moradora do Complexo do Lins, favela do Rio, aguarda há mais de duas semanas a aprovação de seu nome pela Caixa para receber o benefício de R$ 600.

“Estou sem renda do trabalho de cuidar de idosos. Meu marido vendia minipizza nas ruas do Rio e está também sem renda. Temos uma filha de 11 anos. Estamos sem nada. Pegamos um cesta básica na comunidade. Estamos agora pela misericórdia”, disse.

Além do aumento da pobreza, a crise econômica provocada pelas medidas de enfrentamento ao coronavírus deve aumentar a desigualdade de renda no Brasil - assim como no restante do mundo. Ferreira diz que a o vírus afeta de forma desigual a parcela mais pobre e mais rica da população.

“Há quem chame as pestes europeias da Idade Média de ‘grandes niveladoras’ já que, supostamente, matavam reis e camponeses indiscriminadamente. Não sei se era verdade naquela época, mas infelizmente sabemos que não é verdade no caso do novo coronavírus”, afirma o pesquisador.

Ele explica que o trabalhador mais qualificado - em geral mais rico - tem mais condições de usar o trabalho remoto para continuar empregado e com renda, apesar da paralisação da economia. Além de ter maiores reservas financeiras para atravessar períodos ruins.

Para ele, a crise do coronavírus tornou muito clara a necessidade de um programa voltado para o risco de renda e trabalho do trabalhador informal e de conta própria (como o MEI). São trabalhadores sem a proteção e benefício do emprego formal.
 Bruno Villas Bôas

'Governo' do Brasil


O risco Bolsonaro sobre a democracia

O presidente Bolsonaro tentou consertar ontem o que havia feito na véspera, como é de seu estilo. Mas, ao fazer isso, mostrou de novo que de democracia ele não entende. “A Constituição sou eu.” Não é não. A Lei Maior está sobre todos nós, e a ela todos devemos respeito, inclusive o presidente. O ato ao qual compareceu no domingo na prática pedia o fim da Constituição como foi pactuada entre os brasileiros em 1988, porque o que estava em faixas, cartazes e palavras de ordem era a defesa do fechamento do Congresso, do Supremo e a edição de um novo AI-5.

As Forças Armadas ficaram em silêncio durante um dia inteiro. No começo da noite de ontem, o Ministério da Defesa disse que as Forças Armadas trabalham “com o propósito de manter a paz e a estabilidade” e disse que são obedientes à Constituição. Em seguida, a nota passa a falar do assunto que deveria concentrar todas as atenções de Bolsonaro, a pandemia para a qual “nenhum país estava preparado”. Eu falei com dois generais que participam do governo. Um deles disse que o Estado Democrático de Direito é o pilar desta geração que está agora no comando das Forças Armadas. “Não existe a mínima possibilidade de aventuras golpistas.” Mas esse integrante do governo acha que o único reparo a fazer é o local. “Foi ruim o local, nada além disso.” Outro general disse que Bolsonaro é “um ex-militar que virou político” e completou que tem absoluta certeza de que as “Forças Armadas não se prestam a aventuras”.


O problema é que há muita ambiguidade. A ordem do dia de 31 de março exaltava o golpe, dizendo que ele fora feito para defender a democracia. O presidente usa símbolos do Exército – o dia, o local – para passar a mensagem de pedido de intervenção militar. Portanto, era hora mesmo de as Forças Armadas falarem oficialmente sobre o seu compromisso com a ordem democrática.

Ontem, Bolsonaro se fez de desentendido. Alegou que nada falou contra a democracia na manifestação e que o ato foi pela volta ao trabalho. Ora, presidente, não faça tão pouco da inteligência alheia. A presença física do chefe do Executivo, comandante em chefe das Forças Armadas, já era suficiente. Significa endosso ao que estava escrito nas faixas e ao motivo da convocação.

Desde domingo, houve fortes declarações de repúdio ao que o presidente disse. De ministros do Supremo, do presidente da Câmara dos Deputados, dos órgãos da sociedade civil. É preciso mais que palavras, porque Bolsonaro não pode mais continuar brincando com as instituições. Ele não pode continuar sendo leviano como tem sido. Essa não é a primeira manifestação antidemocrática da qual ele participa e não será a última. A menos que o sistema de freios e contrapesos demonstre de forma mais clara que ele não pode mais ferir os limites constitucionais.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, conseguiu a proeza de iniciar um inquérito sobre as manifestações, mas, de cara, afastando qualquer risco para o presidente. Vai investigar o evento em si, sua organização, e alguns “cidadãos e deputados”. Pede para fazer um inquérito contra pessoa indeterminada, mas já indicou que o presidente não é alvo. O que um procurador que eu ouvi explica é que houve vários erros na decisão do PGR:

– A petição não pode ser sigilosa. Há interesse público na divulgação. E o fato é público, praticado à luz do dia e filmado. A boa investigação seria apurar o que o presidente foi fazer lá e o que fez e apurar quem organizou essa manifestação. A investigação não pode ser genérica, tem que ser contra uma autoridade determinada.

As democracias não morrem mais como antes, com militares, tanques e blindados desfilando nas avenidas das grandes cidades. Eles morrem aos poucos, quando um chefe de governo sem apreço pela democracia vai minando diariamente a força dos poderes, como foi feito pelo coronel Hugo Chávez na Venezuela. Em reportagem que fiz na Venezuela, sobre a qual já falei aqui algumas vezes, me impressionava exatamente a falta de reação das instituições. O coronel se cercou de militares e era isso que se via em Miraflores, uma presidência militarizada. Chávez atacava diariamente a imprensa, os partidos que não se submetiam a ele, a Justiça e estimulava a polarização. Nos seus discursos, ele dizia falar pelo povo. Chávez dizia que, com ele, o povo estava no poder. O populismo é assim.

Nem em se plantando ...

Descobrir o Brasil é finalmente fazer como o Dr. João de Barros, que nos conta, a respeito da nossa terra, coisas de que nunca ouvimos falar. Ainda ontem nos dizia ele, com o seu sibilante sotaque alfacinha, que no Rio de Janeiro "a inteligência, o talento e o gênio tomam as mais fascinantes formas". Ora aí está uma grande novidade para nós, porque a inteligência aqui é relativa, como em toda parte; o talento é raríssimo; quanto ao gênio, ainda está por aparecer, a não ser que o Sr. Barros nos tenha trazido aí um pouco da mercadoria nalgum "barrilote dovos mol's d'Aveiro" 
Antônio Torres, "O descobrimento do Brasil" 

Bolsonaro, comorbidade brasileira

O presidente da República sabotava abertamente o esforço dos governadores contra a epidemia. Não havia tempo para impeachment. Um Bolsonaro que ao menos não atrapalhasse parecia ser o melhor cenário possível. Um dia nos perguntaremos como foi que isso virou o melhor cenário possível e quem bloqueou os outros cenários.

Quando, 15 dias atrás, Bolsonaro foi impedido de demitir o então ministro da Saúde Henrique Mandetta, pareceu que a estratégia daria certo. E talvez ela tenha nos garantido semanas importantes, em que o combate dos governadores pode ter feito diferença.

Mas parou de dar certo, ou está dando bem menos certo. Nem tanto pela substituição do ministro —ainda não estão claras as posições de Nelson Teich— mas pelo desastre que é ter Bolsonaro e seu ódio à ciência de volta à conversa em uma hora dessas.

Mandetta foi demitido porque os militares no governo o abandonaram. Os generais haviam sido decisivos para que não fosse demitido 15 dias antes. Diz-se que a mudança de posição dos militares se deu pela entrevista do agora ex-ministro ao Fantástico, que teria caracterizado "quebra de hierarquia".

O argumento é ridículo. A hierarquia foi quebrada porque o topo da hierarquia enlouqueceu.


Em tempos normais, a entrevista de Mandetta talvez justificasse a demissão. Mas não são tempos normais.

Estamos na pior crise do milênio, e o presidente do Brasil é internacionalmente reconhecido como o pior gestor da crise entre os líderes dos grandes países.

Nós só não somos piada mundo afora porque ninguém acha que o que vai acontecer no Brasil vai ser engraçado.

Se há tempo para nos preocuparmos com a honra ferida de Jair Bolsonaro, certamente deveria haver tempo para discutirmos seus inúmeros e bem documentados crimes de responsabilidade.

Se a oposição aceita não propor impeachment durante a crise, é intolerável que o governo aceite perder tempo com presidente sabotando ministro.

Bolsonaro, como sempre, interpretou a concessão como sinal de fraqueza do adversário e redobrou o ataque.

Poderia ter reagido à queda de Mandetta com sobriedade e aproveitado a vitória. Em vez disso, imediatamente lançou uma nova onda de acusações contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, criando um cenário de pesadelo de crise institucional durante a pandemia.

É o pior presidente do mundo. É o pior presidente da história. E não conseguimos contê-lo a tempo de salvar as vidas dos brasileiros.

Mesmo se o novo ministro for competente, vai levar tempo para tomar pé da situação. Mesmo se uma nova acomodação com Congresso e Supremo Tribunal Federal for negociada, não vai ser em dois dias. E essas semanas que perderemos são exatamente as que, no início do processo, prevíamos que seriam as piores.

O que é possível fazer nesse quadro?

A pandemia sempre seria difícil para um país pobre como o Brasil, mas muitas forças se mostraram dispostas a combatê-la: governadores, parlamentares, ministros do Supremo Tribunal Federal, imprensa profissional, associações comunitárias, universidades e centros de pesquisa.

Nosso sistema imunológico institucional tinha chances razoáveis, e ainda está na briga. Mas enquanto enfrentarmos a comorbidade do bolsonarismo, o otimismo é difícil.
Celso Rocha de Barros

Chance zero?

Enquanto Jair Bolsonaro fazia discurso inflamado em manifestação não só contra o Supremo e o Congresso, mas a favor de um golpe militar e a volta do famigerado AI-5, um de seus filhos divulgava o vídeo de uma fila de sujeitos praticando tiro, alguns metidos em camisetas pretas com o rosto do presidente e todos gritando: Bolsonaro!(Nota: O vídeo, divulgado no domingo, era de 29 de outubro de 2018, para comemorar a vitória de Bolsonaro

No mesmo domingo, o presidente e seus três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado, postavam a foto do café da manhã familiar com uma curiosidade: o quadro na parede não era de uma natureza morta ou da tradicional Santa Ceia, tão comuns nos lares brasileiros, mas de uma metralhadora AK-47, deveras inspiradora.

No dia seguinte, circulava um vídeo em que várias dezenas de soldados corriam num calçadão da zona sul do Rio e no fim se aglomeravam, ainda na praia, à luz do dia, gritando “Bolsonaro” e “mito”. Fariam isso sem orientação de superiores? Esses superiores pediram autorização ao Comando Militar do Leste? O comandante consultou o Comando do Exército em Brasília? Afinal, pode?


O que mais impressionou civis e até militares, porém, foi o local onde Bolsonaro discursou para militantes pró-golpe e AI-5: o Setor Militar Urbano, com o Quartel-General do Exército ao fundo. Um oficial pergunta: e se os políticos decidirem fazer protesto ali? Eu acrescento: e se a CUT e o MST também?

Aboletado na carroceria de uma caminhonete, vestido e agindo como vereador em campanha para a prefeitura de Cabrobó e liderando um ato ostensivamente antidemocrático, Jair Bolsonaro esquecia-se de que, além de presidente da República, eleito por 57 milhões de brasileiros, ele é também comandante em chefe das Forças Armadas - ambas as funções exigem decoro e compostura.

O episódio - que estressou o domingo e que o ministro do STF Luís Roberto Barroso chamou de “assustador” - deixou uma dúvida perturbadora: os comandos militares compactuam com pedidos de golpe e AI-5? Acham normal o uso do SMU e do QG - ou seja, da imagem das FFAA - para atos golpistas? Na primeira reação, generais do governo demonstraram “desconforto”, depois falaram em “saia-justa” e no fim do dia passaram a admitir “irritação”, enquanto discutiam como “reduzir danos”.

E os danos são muitos. As Forças Armadas, instituições de Estado, não de governo, durante décadas mantiveram-se profissionais e imunes à política e a governos que vêm e vão. Consolidaram-se assim no primeiro lugar de prestígio junto à sociedade, sem concorrentes. Vão jogar tudo fora em favor de um presidente, e logo de um que só faz o que lhe dá na veneta?

Há, ainda, a questão da hierarquia. Bolsonaro expõe Exército, Marinha e Aeronáutica a um velho fantasma: as divisões internas. Como já me ensinava o general Ernesto Geisel, quando a política entra por uma porta nos quartéis, a hierarquia se vai pela outra. Tendo como fato que a cúpula militar realmente considerou “péssimo” o teatro antidemocrático de Bolsonaro no domingo, a pergunta seguinte é: e as bases, os capitães, majores, sargentos - e suas famílias - acharam o quê?

O vice Hamilton Mourão já disse marotamente que “está tudo sob controle, só não sabe de quem” e nós, meros mortais, ficamos sem entender nada. É uma grande enrascada e remete à entrevista do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, em dezembro de 2016, em que ele me relatou como respondia aos civis “tresloucados” que vinham bater à sua porta pedindo intervenção militar: “Chance zero!” Em nota, nesta segunda-feira, o Ministério da Defesa foi mais suave, mas disse que as FFAA trabalham pela “paz e a estabilidade”, “sempre obedientes à Constituição”. Logo, contra o golpe. É o que se espera dos líderes militares, diante não apenas da Nação, mas da história.

Pensamento do Dia

Os cúmplices

Perplexos, políticos não sabem como lidar com Jair Bolsonaro. Apelo ao bom senso, de nunca adiantou. Impeachment ainda não tem força para decolar, avaliam. Ignorá-lo? Mandetta está aí para provar que não dá. Sobram as notas de repúdio que, feitas por quem parece estar pisando em ovos, já merecem todas elas uma nota de repúdio.

Como agir? Ficar como os engravatados da brilhante charge de João Montanaro, a refletir sobre o limite do tolerável até que nenhum mais haja?

Um bom começo poderia ser parar de tratar o sr. Jair Messias Bolsonaro, 65 anos, cinco filhos, mais de 30 anos de velha política nas costas, como um mero moleque travesso.

O método é o mesmo. Avanço, choque, recuo tático. Num dia, ele trepa numa caçamba para estimular ato pró-ditadura de um bando de delinquentes idiotizados. No outro, dá uma amenizada, por assim dizer.

Ufa, suspiram as polianas. Suspiram também seres rastejantes no centrão, suspira Paulo Guedes —essa pessoa que parece habitar a Disneylândia—, suspiram os militares, que emprestam honorabilidade ao moleque travesso. Suspira até Sergio Moro, que se escondeu durante todo o domingo atrás do Fuminho, o traficante, e ainda levou bronca do filhote do presidente —Carlos Bolsonaro cobrou defesa pública do pai sem nominar de quem cobrava, mas tirem suas conclusões.

E nessa toada os limites vão caindo feito dominó. Notem. Há alguns meses, a pornochanchada golpista seria inaceitável. O que será aceitável daqui a alguns meses?

Inglaterra e França não tinham nem de longe certeza de vitória quando decidiram, enfim, delimitar a Hitler o "daqui você não passa". Agiram como adultos, não moleques. A França caiu num primeiro momento, mas a história é sabida. Para quem acha clichê a comparação, penso não ser demais tirar lições de uma catástrofe que custou a vida de mais de 50 milhões de pessoas.

Não defendo que ninguém saque a pistola ao próximo limite rompido. Apenas que faça valer sua dignidade.

Tudo mudou

De tempos em tempos as sociedades são sacudidas por violentos eventos naturais. De repente, o tempo muda de maneira dramática, uma epidemia mata milhares de pessoas ou se rompe uma placa tectônica, de que resulta terremoto, maremoto e incêndio. Isto aconteceu às 09h40 do Dia de Finados, 1º de novembro de 1755, quando a terra tremeu e sacudiu Lisboa. As águas invadiram a parte baixa da cidade e os incêndios duraram seis dias.

A tragédia produziu um líder, um novo homem forte na política portuguesa: Sebastião José de Carvalho e Mello, o duque de Oeiras, depois Marques de Pombal. Ele com poucas palavras reduziu seu plano de enfrentamento do gigantesco problema que tinha pela frente. ‘Enterrar os mortos e alimentar os vivos’. Assim foi feito. Providenciou severas medidas de segurança para julgar e punir, até com pena de morte, salteadores, ladrões e desordeiros. Também fechou a cidade para impedir que pessoas indesejáveis entrassem e homens em boa condição física deixassem a área.

A ocasião fez o líder. O Marques de Pombal deu ordens, organizou a reconstrução de Lisboa e arredores, providenciou o enterro de cerca de vinte mil mortos, hierarquizou providencias e enfrentou o problema com olhar certeiro. Expulsou os jesuítas de Portugal e de todas as colônias. Como se diz hoje manteve o foco. Solucionou seus problemas em tempo razoável. Ele entendeu a gravidade da situação. É um exemplo muito oportuno para o Brasil de hoje. O presidente Bolsonaro parece não compreender que o mal já está feito. Não fará muita diferença retomar atividades do comércio a da indústria hoje, na semana próxima ou no final do mês.



A tragédia econômica já aconteceu. A profunda queda no produto interno bruto está contratada. O ano de 2020 acabou. Quem tinha que demitir, já demitiu. Os próximos meses serão dedicados a cuidar de feridas, feridos, tratar dos enfermos e refazer o tecido social. Discussões políticas, a esta altura da vida, são desprezíveis e inoportunas. Trata-se de salvar a vida e a economia do Brasil.

Este é o xis do problema. O presidente pensa na sua sucessão como se ela fosse acontecer na próxima semana. Trabalha com olhos postos em 2022. Sugere remédios milagrosos para conter a pandemia e pretende até abrir fronteiras fechadas pelos governos vizinhos. Sua diplomacia de apoio explícito a Donald Trump foi para o espaço. Na hora de maior necessidade, o governo dos Estados Unidos desviou encomendas brasileiras que transitavam pelo aeroporto de Miami. O governador do Maranhão (PC do B) foi mais esperto. Fretou aviões que fizeram escala na Etiópia para fugir dos olhos gulosos dos norte-americanos.

E o mundo descobriu por intermédio da pandemia a incrível dependência de todos os países do ocidente da produção da China. Aviões cargueiros de várias nacionalidades estão na fila em aeroportos chineses para comprar equipamentos de proteção individual, respiradouros e outros implementos. A economia chinesa é praticamente o único provedor deste tipo de material para todo o mundo. Trump, que tentou ridicularizar os chineses, foi obrigado a esquecer tudo e mandar cheques para comprar em regime de urgência do único provedor mundial.

A política ultra liberal do ministro Paulo Guedes também subiu no telhado. O capitalismo precisa, de tempos em tempos, de verbas governamentais. Na crise de 2008, o governo dos Estados Unidos foi obrigado a socorrer bancos e grandes empresas. A crise de 1929 gerou a eleição de Franklin Roosevelt que por sua vez produziu o New Deal, programa do governo norte-americano de fantásticos investimentos governamentais (O Tennessee Valley Act foi um deles). É a fórmula imaginada pelo economista John Maynard Keynes: ’o governo deve criar empregos nem que seja para enterrar e desenterrar garrafas’. Neste momento, o liberalismo econômico também está completamente fora da pauta. Ou seja, tudo mudou. Só Bolsonaro não percebeu.

E o pós-Brasil?

Muito se pode dizer sobre o furacão covid-19, menos que seja uma crise inesperada. No passado recente tivemos H1N1, SARS, gripes sazonais, outras tantas doenças e pandemias. Mas, ao que parece, embora muitas, tiveram pouca influência sobre a condução da saúde pública ao redor do mundo, imerso no receituário individualista neoliberal ao longo das últimas décadas. De fato, a tendência no Brasil e em outros países seriamente afetados pelo coronavírus, como Itália, Reino Unido e EUA, tem sido a de transformar saúde em questão privada e deixar que cada um cuide de si. Trágica ironia quando se trata de uma doença cuja profilaxia requer ação conjunta da população e intervenção firme dos governos em nome da sociedade. A covid-19 é um problema complexo que vai muito além da virologia e da medicina. É uma questão multifacetada, localizado no centro da integração dos dos mercados, que demonstra, de maneira contundente os muitos e graves equívocos políticos, econômicos e científicos de uma globalização focada quase que exclusivamente nas finanças e em extensas redes de produção e comercialização, mas não na dimensão coletiva e muito menos na inclusão social.


A analogia da covid-19 com um furação é mais estreita do que parece. Assim como nos desastres ditos naturais, pandemias são tragédias que afetam diferentes grupos de forma totalmente diferenciada. Risco é uma realidade socialmente construída e as respostas aos riscos têm relação direta com o balanço de poder e desigualdades sociais e espaciais acumuladas ao longo do tempo. Mais do que uma questão técnica relacionada à propagação de um novo vírus com fator de contágio e letalidade maiores do que a gripe comum, a chegada do coronavírus ao Brasil tem sido envolta pela profunda polarização política e ideológica que tomou conta da sintaxe política e social do país nos últimos anos. Assim, o que teria que ser tratado como uma questão de saúde pública em uma nação com sérias dificuldades materiais e humanas para implementar políticas que se demonstraram eficazes em outros países (por exemplo, testes em grande escala, como na Coreia), vem, na prática, se demonstrando como uma nova etapa no acelerado processo de erosão tanto das instituições do Estado, como da própria institucionalidade democrática, dentro de um processo que tenderá a se agravar nas próximas semanas, com consequências gravíssimas para milhares ou milhões de pessoas.

Como em astronomia, há aqui uma paralaxe evidente quanto à visão do mesmo fenômeno por observadores posicionados em locais distintos. Assim foi no caso da chamada Gripe Espanhola, que começou nos Estados Unidos e foi trazida ao Brasil por um navio dos correios ingleses. Quem mais sofreu foram justamente as comunidades que viviam nas áreas periféricas do Rio de Janeiro e em outros centros urbanos. Durante a crise, a partir do final de 1918, a elite político-econômica e muitas autoridades médicas tomaram uma posição cética e preferiram ignorar as mortes que se somavam exponencialmente, culminando com o falecimento do presidente eleito Rodrigues Alves. O fato de o atual governo brasileiro totalmente desconhecer a condição da população pobre e, por isso mesmo, ter um ministro da fazenda incapaz de formular as mais simples estratégias de alívio momentâneo infelizmente não é novidade. Lembremos que em 1940, durante os terríveis bombardeios alemães a Londres, a elite britânica não queria aceitar que o metro londrino fosse usado como abrigo anti-aéreo, apenas cedendo depois de muita pressão política.

No caso atual, apesar de importantes medidas de isolamento social que vêm sendo implementadas por vários governadores ao redor do país, o combate à expansão da covid-19 no Brasil tem se definido por duas muito preocupantes dinâmicas. Por um lado, o constante confronto entre os poucos membros do governo que trabalham com dados científicos na formulação de políticas públicas —entre eles o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que foi demitido após ser permanentemente ameaçado pelo presidente Jair Bolsonaro, apesar se sua militância anterior em favor da privatização do SUS e destruição do sistema de saúde pública. Por outro, a resistente, talvez mesmo crescente, narrativa de que a ameaça não é tão grave, que o isolamento social não é necessário ou que fará mais mal do que a própria doença; ou ainda que tudo não passaria de uma conspiração internacional, liderada pela inteligência chinesa, para acabar com a economia brasileira (afirmação que carece totalmente de lógica dado o impacto enorme da covid-19 naquele país). Essa visão irracional e perigosa vem sendo vergonhosamente propagada por lideranças empresariais e religiosas neo-pentecostais, especialmente por meio de carreatas de luxo ao redor do país, que exigem o fim das medidas de isolamento —sob o slogan “O Brasil não pode parar!”— processo de culminou no dia de jejum e orações (como medidas, ou bruxarias, de saúde pública) lideradas pelo próprio presidente da República no último dia 5 de abril.

Entre os muitos grupos e áreas afetadas, as populações indígenas parecem estar ainda mais no centro do furacão. Estes grupos já vinham sendo exterminados pela ação deliberada pelo (des)governo atual, em sua defesa incondicional das atividades do agronegócio, mineração e extração de madeira com incentivos à degradação ambiental e um descomissionamento em larga escala de serviços públicos. Líderes indígenas vêm morrendo em um número crescente, enquanto a polícia protege justamente os criminosos; áreas reconhecidas como terras indígenas vêm sendo administradas por militares completamente despreparados e instruídos a não fazer nada para garantir o o atendimento às comunidades; adultos e crianças ficam cada vez mais doentes devido à falta de comida, água, abrigo e assistência médica, mas o governo lhes nega os direitos mais básicos. Essas diferentes estratégias demonstram que a administração federal tem um plano claro para facilitar novas rodadas de aniquilação étnica que relacionadas diretamente ao favorecimento dos setores econômicos mais violentos e atrasados ​​do país, em particular o agronegócio. Assim como no caso de muitos outros grupos brasileiros carentes na periferia das grandes cidades e em áreas dominadas pelo agronegócio exportador, a mobilização de grupos indígenas contra os riscos da pandemia de covid-19 é uma luta árdua pela inclusão social e influência política.

Mesmo após parecer ter sido convencido de que a pandemia seria, sim, um problema real e greve no país, Bolsonaro continua a insistir no discurso negacionista, mais que tudo fornecido pelo guru des-intelectual do Governo, o astrólogo Olavo de Carvalho, quem vem afirmando que trata-se de um grande complô, ao passo que os números oficias (certamente sub-representados) de infecções aumenta rapidamente. Dentro desse contexto de crescente polarização ideológica e deslegitimação da ciência e mesmo do papel do Estado, quais cenários poderiam ser vislumbrados a curto e médio prazos?

Um primeiro cenário ou tendência possível, talvez o mais provável, é que, ao fim da fase mais aguda da crise (entre seis e doze meses), haja um retorno, ou mesmo um aprofundamento, da política econômica neoliberal e anti-povo que vem sendo implementada no país ao longo dos últimos 5 anos. Como no pós-2008, a resposta dominante para a crise do neoliberalismo seria pois mais do mesmo. Com ou sem Bolsonaro, com ou sem Guedes, um governo pós-crise, novamente legitimado pelo controle da retórica e conivência da mídia poderia retomar com ainda com mais força midiática e empresarial a plataforma neo-liberal que, afinal, foi o que legitimou a candidatura de Bolsonaro em 2018. Esse processo frustraria as ambições e receitas neo-kenesianas que em diferentes partes do mundo tentam lidar com os excessos neoliberais, evidentemente sem enfrentar as questões de fundo relacionadas ao poder do capital financeiro, glorificação da acumulação privada e padrões suicidas de produção, consumo e desperdício. Esse cenário levaria, evidentemente, ao aprofundamento da recessão, desemprego e colapso de diversos setores econômicos, inclusive boa parte do agronegócio, cúmplice de primeira hora do neoliberalismo-de-estado. Tais contradições seriam providencialmente negadas, sufocadas pela ação coordenada das milícias estaduais (com a omissão do Exército ou sua ajuda explícita, como foi o caso durante a intervenção recente no Rio de Janeiro, quando o exército foi instrumental para a limpeza de muitas favelas em favor de milicianos) e suas consequências transferidas de forma leviana a governos futuros.

Uma segunda tendência, também bastante provável, é a do aprofundamento do viés autoritário do atual governo. Esse aprofundamento, uma espécie de Leviatã Tropical 2.0, seria feito por um ainda maior (não legítimo) protagonismo das Forças Armadas na política, reencarnadas na tarefa auto-atribuída de manter a lei e a ordem a fim de garantir a manutenção dos ciclos produtivos do capital. Essa processo implicaria numa maior repressão de grupos sociais marginalizados, um ainda maior ataque aos direitos sociais que ainda restam e mesmo a diminuição das liberdades civis e talvez mesmo políticas (vide a ameaça do cancelamento da eleição de outubro), e certamente um aumento cada vez maior dos serviços de inteligência e monitoramento das pessoas —algo que talvez seja necessário na condições atuais e que seria assim promovido como aceitável ou mesmo inevitável no momento pós-crise. A implementação dessa tendência poderia se dar de diferentes formas. Alguns tem aventado a possibilidade vindoura de um auto-golpe (a la Fujimori), com o fechamento do Congresso e uma censura forte da mídia e de qualquer oposição. Cabe ressaltar que esse curso não é necessário já que, com ou sem a tomada direta do governo pelos grupos militares, fica cada dia mais difícil distinguir em que setor a caserna já não está no comando da nação. Diretamente ou indiretamente, um governo militarizado, como atual, seria o mais indicado para implementar concomitantemente as duas tendências apresentadas. Teríamos pois um aumento da repressão estatal contra toda e qualquer resistência ao aprofundamento do receituário neoliberal que estaria, assim, garantido em sua implantação. De maneira sinérgica, veríamos um relacionado aprofundamento das desigualdades sociais e uma erosão ainda maior das noções de cidadania.

Uma terceira tendência, diretamente relacionada ao aprofundamento dos cenários anteriores, envolveria uma crise crônica da autoridade e da intervenção estatal talvez nunca vista no Brasil. Vivenciaríamos uma escalada de protestos ao redor do país —derivados da deterioração acelerada das condições de vida, desemprego elevado, economia fragmentada e violência generalizada—, sem, contudo, que esse processo consiga ser organizar de modo a oferecer uma alternativa viável de organização social e política ao país.Apenas alguns setores extrativistas diretamente ligados aos interesses internacionais teriam alguma capacidade de atuação, situação hoje presente no Delta do Rio Niger, no Iraque e na Amazônia peruana. As elites nacionais perderiam influência em favor de elites regionais, ainda mais obscurantistas, em aliança com fundamentalistas evangélicos, grupos neo-fascistas e milicianos em posições de mando ainda mais importantes que nos cenários anteriores. O estado nacional seria mantido nominalmente e o emblema ‘Brasil’ seria mantido para consumo externo (manter a bandeirinha na frente das Nações Unidas e participação em jogos de futebol, por exemplo), mas o território seria na prática fragmentado entre as elites nacionais e parceiros internacionais. Em alguma medida, este cenário já se manifesta hoje, com a crescente presença dos interesses chineses na Amazônia e na soja do centro-oeste, o turismo europeu no nordeste e a decadência pronunciada dos estados sulinos, e não seria pois nada surpreendente que se aprofunde nos próximos tempos.
O Pós-Brasil

A lógica individualista e o neoliberalismo-Talibã disseminados no país com uma voz monocórdica nos últimos anos ajudaram, em muito, a viabilização eleitoral do reacionarismo de viés fascista em 2018. Como em todo discurso negacionista e falacioso, especialmente sob o manto de um patriotismo maniqueísta, essa narrativa ainda tem a capacidade de atrair simpatizantes entre diversos grupos sociais, notadamente entre os mais desmobilizados e com baixíssimo nível de informação além das chamadas bolhas. Bolsonaro representa, pois, um movimento mais amplo que tomou conta do país em favor de fanatismo econômico e medievalismo intelectual.

Muitos ainda apostam que a crise de saúde nas próximas semanas será algo administrável pela ação governamental montada, ainda que de maneira esquizofrênica, na capital federal. A depender do tamanho da dor da perda de algum ente querido, os níveis de apoio ao status quo serão maiores ou menores. De todo modo, a crise institucional em curso tenderá a se aprofundar em qualquer cenário vindouro, onde as tendências acima apontadas parecem adquirir capacidade quase autônoma de continuar a definir o caráter anti-democrático, anti-popular e anti-natureza dos rumos em curso. É fundamental, pois, pensarmos de maneira crítica e corajosa não somente no Brasil pós-crise, mas nas consequências mais profundas de um Pós-Brasil distópico que se configura no horizonte.
Rafael R. Ioris (Universidade de Denver) e Antonio A. R. Ioris (Universidade de Cardiff)

Apesar de você

A música de Chico Buarque, lançada há 50 anos, sob a presidência militar de Emílio Garrastazu Médici, volta a ser 50 anos depois o hino nacional. Se lá atrás condenava a ditadura, agora serve de denúncia à estupidez militarizada de um ex-capitão expulso da corporação.

Contra o mortal vírus da ignorância, da sanha ditatorial e do milicianismo, pipocam felizmente cada vez mais movimentações independentes em contraponto à ignorância governamental.

Diante do Quartel General do Exército, em Brasília, no Dia do Exército, numa afronta às Forças Armadas, como deveria ser vista, a manifestação de domingo faz parecer, aos olhos de quem viveu aqueles duros anos, uma parada militar sob a continência complacente, pois apenas se ouviu o toque de silêncio.

 Quando a ditadura percebeu o deslize da censura, com o sucesso 
da música, as lojas e a gravadora tiveram seus estoques destruídos

Quando o país, como todo o mundo, tenta sobreviver à pandemia do coronavírus, um ex-capitão, expulso da corporação, conclama a intervenção militar e o fechamento do Congresso, não é mero gesto político de conclamação de sua base eleitoral. É uma declaração ditatorial com ou sem apoio de seu gabinete militarizado, que merece repúdio hoje e sempre, porque despreza a morte, a fome e o sofrimento de milhões de brasileiros, que não recebem nenhuma continência. 

Aos brasileiros, com que enche a boca, o eleito Messias já avisou que não deverá ser responsabilizado pelo que acontecerá ao país depois da pandemia. Esquece que em vez de passeatas antidemocráticas, que só objetivam a glorificação de um desavergonhado governo, deveria dar o exemplo de abnegação, trabalho e respeito ao povo que tanto se orgulha de "governar". 

Quase um ano e meio depois de empossado na imagem mais desrespeitosa de todos os tempos na história do Brasil - o desfile presidencial com um dos filhos enganchado no encosto do banco traseiro do carro oficial -, esse mesmo eleito se arvora em novo ineditismo histórico: conclama massa de manobra eleitoreira para entronar de vez sua incapacidade e ignorância como um novo ditador, seguindo uma "dinastia" ditatorial. 

É um tapa na cara da população se ver desgovernada num momento tão angustioso de doença, morte e fome, quando precisaria de liderança. Conta apenas com um pretenso mito arrotando a valentia de idólatra dos torturadores, com asseclas do mesmo calibre sempre dispostos à subserviência hierárquica em defesa de uma democracia de bananas.

Restará apenas aos sobreviventes construir um amanhã independente de quem preside com tanta incompetência, insensatez e desprezo pela vida (dos outros).
Luiz Gadelha

Paisagem brasileira (agora um quadro na parede)

Paisagem rural (1946), José Marques Campão

Um novo normal

A Natureza tem sido clara desde o primeiro dia de crise: basta a produção abrandar para que o planeta aplauda. Fábricas a meio gás, uma quebra no consumo de petróleo e a redução do tráfego aéreo chegam para que emitamos menos um milhão de toneladas de CO2 por dia. Nos canais de Veneza, cidade-fantasma desde que o vírus assolou Itália, avistámos patos e alegres cardumes de peixes – cenário inédito desde há décadas, devido à poluição, aos cruzeiros e ao trânsito de gôndolas. Mas mais do que retirar conclusões místicas, importa deixarmos que estas fábulas de La Corona nos despertem para a ciência.


“Não podemos esquecer que a crise climática continua a ser o maior desafio que a Humanidade já enfrentou”, pode ler-se no site do movimento ambientalista português Climáximo. De facto, é irónico que a Humanidade precise de enfrentar uma terrível pandemia para cumprir, involuntariamente, grande parte daquilo para o qual a comunidade científica vem a alertar há décadas: temos de consumir menos, produzir menos e encontrar fontes de energia alternativas aos combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão), ou estamos todos tramados. Alice Stocco, do departamento de Ciências Ambientais da Universidade de Veneza, pretende usar este momento atípico enquanto exemplo no projeto de investigação que propõe a recuperação dos canais e da qualidade do ar da cidade – o que resultaria, ao mesmo tempo, no resgate da beleza romântica da velha sereníssima. Nesta linha, à escala planetária, a Greenpeace, entre outras organizações e movimentos ambientalistas, faz apelo a que se aproveite a infeliz oportunidade para sonhar com um mundo diferente. Mas o que podemos nós, cidadãos comuns, fazer em relação a isto?

Em primeiro lugar, é fundamental não encararmos a pandemia enquanto fenómeno externo, fruto do castigo divino ou acaso natural. Nas palavras do professor Soromenho-Marques, não podemos fingir que nada disto tem a ver com “a forma como está organizada a sociedade, a produção e a economia, mas pelo contrário: é exatamente por estar organizada da forma que está que nós chegámos aqui”. Mais de 75% das novas doenças na última década tiveram, segundo a Organização Mundial de Saúde, origem em animais, sendo consequência direta do comércio e consumo de carne, aliados à destruição pela indústria dos habitats naturais. O novo coronavírus não é exceção: surgiu nos mercados de animais exóticos na China e já são vários os apelos a que este comércio seja proibido.

Todavia, o problema não acaba aí, nem devemos perder-nos em discursos chauvinistas. É o sistema global que tem de mudar, se queremos durar enquanto espécie. O alastramento de novas doenças é uma de várias consequências previstas há muito pela comunidade científica, fruto de um sistema económico cego e híperconsumista que destrói o equilíbrio dos ecossistemas. As fabulosas imagens do reino animal, flagrantes desde que o COVID-19 se instalou – veados e corsas a saltitar no Japão, leões a passear no alcatrão sul-africano, elefantes a marchar nas ruas de Yunnan ou os bandos de macacos em protesto na Tailândia – não vêm, portanto, dizer-nos que os humanos são o vírus, mas sim que os humanos são responsáveis por este vírus. É um facto. Independentemente do poder poético e metafórico destas imagens, são fenómenos esplêndidos que devem relembrar-nos o nosso papel na Terra, como sinais subtis para uma urgência óbvia. Fazemos parte de um ecossistema cuja força e beleza nos ultrapassa. Seria suicida regressarmos ao mesmo, depois de Corona.

De seguida é, mais do que nunca, essencial exigir aos governos medidas sérias para a mitigação da crise climática, enquanto é tempo. O regresso à tão-aclamada normalidade dará compreensivelmente um foco muito grande à recuperação da economia global, mas é essencial não retomar o caminho do cataclismo. Não podemos regressar ao normal sem conceber um novo normal. O bloqueio industrial não é viável no sistema económico atual, claro, mas a habitual espiral de consumo e produção irresponsável também não, diz-nos ciência. A adaptação será complexa, mas vital e, como se vê, conseguimos perfeitamente organizar-nos em defesa do bem comum quando tem de ser. A crise pode e deve ser um primeiro passo no processo de transição justa: a passagem para um sistema económico verde, baseada na salvaguarda da coesão e justiça social. Há vários projectos em desenvolvimento neste âmbito. É fundamental renovar fontes de energia, reformular transportes, estudar alternativas, construir novas redes de comércio e criar novos empregos: empregos verdes. Tudo isto depende da nossa pressão e do nosso envolvimento. Agora.

O despertar para a importância de preservarmos o planeta é a única arma válida no meio do braço-de-ferro contra a doença: garantir que saímos da crise para um mundo diferente, mais belo, mais justo e mais respirável.

Covid-19

Ontem era destino, fado, sina,
E estava escrito antes de se nascer.
Hoje se morre à toa, por morrer,
Morrer é agora um fato de rotina.

Presidentes que não governam

Diante do drama humanitário e econômico causado pelo novo coronavírus, tem sido frequente a constatação de que faltam líderes no cenário mundial à altura da crise. Uma das raras exceções é a Alemanha, em que até políticos da oposição têm reconhecido o privilégio de poder contar, em momento tão delicado, com a liderança da chanceler Angela Merkel.

O caso brasileiro é de outra ordem. Não se trata de lamentar a ausência de lideranças magnânimas e altruístas. Aqui, o problema é básico. Desde 2003 o País tem assistido a uma sucessão de presidentes que, eleitos para governar, não governam, preferindo fazer do mandato uma contínua campanha eleitoral, seja para sua reeleição, seja para a eleição de seu sucessor.

A exceção foi o presidente Michel Temer, que buscou de fato governar, sem submeter o interesse público a questões eleitorais. No entanto, o interregno durou pouco. Tão logo assumiu o cargo, o presidente Jair Bolsonaro mostrou, sem maiores pudores, que reinstalaria a prática petista de não descer do palanque.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi exímio manobrista da cadeira presidencial para fins eleitoreiros. Nos oito anos em que esteve no Palácio do Planalto, Lula orientou toda a ação do governo, em seus mais variados âmbitos, em benefício da empreitada eleitoral do PT.


São abundantes, nos dois mandatos de Lula, os exemplos de captura do Estado para fins partidários. Ainda que contasse com o apoio da maioria do Congresso, Lula não realizou nenhuma reforma estruturante, receoso de que eventual aprovação poderia trazer riscos para sua reeleição ou para a eleição de seu sucessor. Com esse critério eleitoral a guiar o governo, Lula também não fez nenhuma ação que contrariasse, por exemplo, os interesses das corporações do funcionalismo. Os privilégios foram mantidos intactos. Além disso, valeu-se amplamente de nomeações nas estatais, agências reguladoras e cargos comissionados para o aparelhamento do Estado.

Candidata inventada a partir dessa lógica eleitoreira, a presidente Dilma Rousseff, uma vez no cargo, deu continuidade ao estilo petista de não governar. Sem enfrentar os problemas nacionais, ela optou por medidas populistas, em cópia piorada do voluntarismo de seu criador.

Quando começaram a aparecer os efeitos nefastos de sua política econômica, Dilma Rousseff temeu por sua reeleição e, em vez de fazer as devidas correções, fez o diabo para esconder a realidade dos olhos da população. Colocava em prática, assim, sua famosa frase, dita em 2013, de que “nós podemos fazer o diabo quando é a hora da eleição”. Reelegeu-se em 2014, mas pouco depois o País inteiro tomou conhecimento não apenas do tamanho da crise, mas da gravidade de suas pedaladas fiscais, o que lhe rendeu o devido processo de impeachment.

Durante a campanha de 2018, o candidato Jair Bolsonaro prometeu romper com a lógica eleitoreira. Disse até que pretendia “fazer uma excelente reforma política, acabando com o instituto da reeleição, que começa comigo, caso seja eleito”. Tudo isso foi logo esquecido. Desde o início do ano passado, Jair Bolsonaro imita à risca a estratégia de Lula de não governar, estando em contínua campanha eleitoral. Além de aprofundar a divisão do País – há sempre um inimigo a inventar, até mesmo dentro do próprio Ministério –, Bolsonaro esquiva-se de tudo o que possa representar algum risco eleitoral, como é o caso da reforma administrativa.

Prometida várias vezes, até agora a proposta do Executivo não saiu do forno. Além disso, o presidente comporta-se no pior estilo da propaganda eleitoral, falsificando a realidade. “Nosso time está ganhando de goleada”, disse Bolsonaro, em coletiva no mês passado para tratar da pandemia do novo coronavírus. Maior alheamento, impossível.

Como escreveu Rosângela Bittar no Estado, “ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas”. Que o eleitor, nas próximas eleições, não se esqueça dessa irresponsabilidade e indiferença em relação ao País. É preciso eleger quem queira de fato governar.

A peleja entre Bolsonaro e o coronavírus

Corte! Recuemos 10 ou 14 anos. O presidente da República chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. Com dificuldades para governar, ele autoriza militantes do PT a irem às ruas em seu socorro. No dia marcado, um grupo numeroso de militantes, empunhando bandeiras vermelhas e vociferando contra o Congresso e a Justiça, se concentra diante do Quartel-General do Exército, em Brasília. Lula aparece, discursa e prega a ascensão do povo ao poder.

Como reagiriam os militares? Soltariam uma nota condenando o ato de natureza claramente golpista? Pelo menos uma nota para garantirem que nada tiveram a ver com o que assistiram tão de perto? Renovariam seu compromisso em respeitar a Constituição? Ou nada fariam, recolhendo-se ao silêncio? O “povo no poder” dito por Lula soaria à provocação, coisa de esquerdista? O de Bolsonaro, um extremista de direita, como coisa normal?

O Grande Mudo, como é conhecido o Exército, foi dormir calado. Políticos de todos os matizes foram dormir apreensivos. Quando se pensa que Bolsonaro ultrapassou todos os limites da irresponsabilidade, ele vai adiante. No seu caso, por desespero, mas não incoerência. Bolsonaro enveredou há muito tempo pela Avenida da Irrelevância. Perdeu o bonde da História quando subestimou o coronavírus. Não soube ou não quis corrigir o passo.


Por incoerência não morrerá. Foi um mau militar, como dele disse o ex-presidente Ernesto Geisel. Afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, alojou-se durante 28 anos na Câmara e, ali, foi um deputado sem nenhuma importância. Acidentalmente eleito presidente, o que se poderia esperar dele se não que fosse um presidente medíocre? Muita gente, mesmo assim, ainda acha que valeu a pena porque derrotou o PT.

A situação terá que piorar muito para que só depois comece a melhorar, ouvi de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Em meio a uma pandemia, não se depõe presidente. Sirva de consolo que em meio a uma pandemia também não se aplica golpe. Impeachment não é golpe. É instrumento previsto na Constituição para remover governantes ineptos que perdem o apoio político necessário para governar. A hora de Bolsonaro chegará.

Ninguém, mais do que ele, se empenha tanto para que chegue a hora da verdade. Bolsonaro compete com o coronavírus para ver quem causará maior estrago ao Brasil.

Brasília, túmulo da ética e da moral no Brasil, comemora o Jubileu de Diamante

Nesta terça-feira. 21 de abril de 2020, ocorre o “Jubileu de Diamante” de Brasília. Sessenta anos do poder distante do povo. A lonjura da opinião pública resultou na implantação de uma ordem política corrompida, baseada no ganho fácil, no antitrabalho e na corrupção. E isso veio e vem ocorrendo desde a sua construção e inauguração.

Para que os funcionários trabalhassem em, o governo dobrou-lhes os salários e os presenteou com os apartamento funcionais. De lá para cá, os “penduricalhos” nas remunerações foram se expandindo.

Em Brasília, longe do povo, a classe política passou a legislar em causa própria e para os agentes públicos dos demais poderes; além dos salários altíssimos, criou para si verba de gabinete; auxílio terno; auxílio moradia; “cotão” inclui passagens aéreas, fretamento de aeronaves, alimentação do parlamentar, cota postal e telefônica, combustíveis e lubrificantes, consultorias, divulgação do mandato, aluguel e demais despesas de escritórios políticos, assinatura de publicações e serviços de TV e internet, contratação de serviços de segurança, além dos telefones dos imóveis funcionais, de uso livre e sem franquia, que estão fora do “cotão”.

Os agentes públicos dos demais poderes também foram beneficiados com significativa soma de “penduricalhos”. O corporativismo é como um vírus contagiante.


No Rio de Janeiro todos os deputados federais e senadores residiam na cidade, com suas famílias, em imóveis urbanos comuns como os demais moradores. E com eles se integravam socialmente, o que era um possante estimulante para que tivessem perfeita conduta cívica e honesta, pois seria muito desagradável que suas fotos saíssem nos jornais ilustrando matérias referentes a atos de corrupção.

De fato, a interação social existente no Rio de Janeiro era um forte elemento disciplinador, que alcançava a todos os agentes públicos dos demais poderes.

No Poder Judiciário, vamos tomar por exemplo o Supremo Tribunal Federal, instituição que enquanto esteve sediada no Rio de Janeiro (1829-1960) permaneceu protegida pelo manto da discrição. Seus ministros caminhavam a pé pelo centro da cidade, sem guarda-costas (hoje apelidados de “seguranças”) e eram respeitados por toda a população.

A vida recatada do Supremo sofreu brusca alteração após a mudança da capital para Brasília. Hoje há até transmissão ao vivo das sessões, nas quais ministras e ministros, que deveriam se recatar sob a liturgia exigida pela toga, envolvem-se em exibições de soberba, poder e erudição e não titubeiam nas frequentes manifestações de rivalidade, ira e orgulho.

E não raro tomando decisões das quais até Deus duvida, sempre com base nas leis aprovadas pelo Congresso Nacional, cujos componentes atuam contra a vontade do povo, fingem que não escutam o grito desesperado das ruas, desprezam os urgentes anseios de probidade da sociedade e aprovam leis que inibem a punição dos ladrões do dinheiro público.

No Rio de Janeiro, capital da República, a sentença condenatória emitida por juiz de primeiro grau, mesmo recorrível, tinha dupla consequência: nas infrações inafiançáveis, ser o réu preso ou conservado na prisão; e nas afiançáveis, preso enquanto não prestasse a fiança. E mais, o nome do réu seria lançado no rol dos culpados

Naquele tempo eram raros os crimes de colarinho branco e praticamente impossível advogado criminal ficar milionário. Com a mudança da capital para Brasília, a legislação mudou e hoje, em síntese, permite que processos julgados em segunda instância, em Tribunais de Justiça (estaduais) tenham acesso à terceira e quarta instâncias.

E até que condenados em terceira instância fiquem em liberdade viajando para o exterior, como o ex-presidente Lula.

A impunidade também é garantida por nossa Carta Magna que prevê o Foro Privilegiado, funesto para o Brasil e maldito para os seus cidadãos decentes.

Até aqui foram descritos fatos. Tenho lido muitos textos que afirmam peremptoriamente que Brasília deu errado. Outro dizem, que deu certo. Respeito todos os autores. Fui favorável, quando jovem, à mudança da capital para o Planalto central, mas os fatos me levaram a pensar diferente, pois mostraram que o Império de Brasília foi feito com roubalheira para a roubalheira e marcou o princípio da corrupção do Estado, com obras superfaturadas desde o seu início, cujo objetivo sempre foi estabelecer um governo permanente que escravizaria o povo brasileiro.

O tempo, senhor da razão e pai da verdade, provou exatamente isso. Ratificou que os faraós do Egito construíram túmulos para si e o faraó-cigano tupiniquim os bateu em apoteose mental, construiu um túmulo para a ética e a moral de seu país, um túmulo para o Brasil. E Brasília deu mesmo certo, porque foi construída para ser o que é hoje e jamais mudará.