terça-feira, 3 de outubro de 2023

Pensamento do Dia

 


Sons do silêncio

"As pessoas ficam, as instituições passam." Este penoso ato falho do procurador-geral da República em seu discurso de despedida no STF pode trazer alguma luz também para as ruminações do ministro da Defesa sobre a relutância de militares em saírem de cena. Na insuperável autoapoteose do procurador, o silêncio vestiu capa de super-herói. Se houvesse algum grau de realidade, não faltariam, num ambiente próprio a latinórios, interjeições do tipo "valete et plaudite!" (amém!, assim seja!). O protocolo, porém, foi sóbrio.

Ato falho é uma espécie de fala silenciada, que transparece num equívoco e pode resultar em acerto. Décadas atrás, já pública a intenção da ditadura de devolver o poder aos civis, determinado ministro militar declarou na tevê que "sim, era hora de voltar à caverna". Lapso de língua, inequívoco ato falho freudiano, sujeito a interpretação diversa daquela em que incorreu o procurador.


Esse tipo de deslize, que a psicanálise circunscreve ao singular, ganha alcance coletivo quando o falante se faz porta-voz involuntário de algo mais amplo. Individualmente, a interpretação mostra que o desejo do procurador não era realmente despedir-se. Seu silêncio, amortecedor segundo ele, teria sido o fiel da balança democrática. Mas o desejo de permanecer era conjunturalmente afim ao estado de espírito do grupo militar refratário ao resultado das urnas, conforme o ministro da Defesa.

Questão aberta é a natureza desse grupo: clubes, oficiais de pijamas, colegas de caserna, trambiqueiros, esparsos brucutus na ativa. Numa republiqueta de meia-sola, isso periga constituir esfera de ação superior à da fala. Num país continental, uma das maiores economias do mundo, pagando em dia a dívida externa, a coisa muda de figura. Em suma, não há golpe de Estado sem consentimento americano. Foi assim em 64 no Brasil, assim foi em 73 no Chile.

Mas há subgolpes (em 68, um deles) e sempre em suspenso a ameaça de rupturas democráticas. A velha guarda palaciana, que pontua a história do país com intervenções, acha-se dona da bola. Na dividida se conhece o ciúme do jogador. Uma queda de braços: guerra mesmo não há, o ministro da Defesa é árbitro conciliador em campo, administrando humores e negociando orçamentos.

Na crise orgânica de consenso das classes dirigentes, o que realmente se defende com estatuto ministerial é o status-quo bem-nutrido contra a imprevisibilidade dos precarizados de tudo. Daí não sai desenvolvimento nacional pacífico. A verdadeira paz passa hoje por formas moleculares de uma guerra social, da qual, em seu silêncio operativo, nada parecem saber ministros e generais. Uma coisa apenas é certa em golpismos e atos falhos: os donos da bola fazem o diabo para permanecer no gramado.

Nossas cidades

Meus leitores com mais de 50 anos de idade nasceram em um país rural. Hoje somos uma nação urbana, cheia de cidades, algumas delas enormes. Brasília, que acaba de se tornar a terceira maior, batida apenas por São Paulo e Rio de Janeiro, é uma exceção, pois começou a ser construída após ser planejada. A regra, em nosso país, é não planejar nada, ou só planejar alguma coisa depois que as cidades estão de pé, cresceram e incharam, trazendo problemas insolúveis. Basta ver o problema da Cracolândia, em pleno centro de São Paulo. Uma parte importante da cidade é subutilizada porque algumas centenas de dependentes de drogas se instalaram em ruas, estimulados por um comércio que supostamente não deveria existir e impedindo a vida normal de milhares de cidadãos.

Por conta do crescimento desorganizado temos muitas cidades com populações incompatíveis com sua estrutura de serviços. Enquanto Lisboa (almejada por muitos brasileiros), Manchester (que tem o melhor time de futebol do mundo) e Lyon, a terceira maior cidade da França não registram mais de 500 ou 600 mil habitantes, temos numerosas cidades com população bem maior do que elas no Brasil. O êxodo rural, fenômeno concomitante com o desenvolvimento industrial (não por acaso), em diferentes fases da nossa história, tornou-se mais intenso em nosso país a partir dos anos 1970 e provocou o crescimento, geralmente desordenado de nossas cidades. E o que as pessoas buscam nas cidades, desde a Antiguidade? Ora, gente procura gente, não apenas ocupação e segurança, gente procura liberdade e direitos, não apenas um cantinho para construir sua casa.

Não por acaso a palavra cidade tem a ver com cidadão, o que habita nela e participa de sua vida.


A cidade é o espaço em que buscamos nos realizar, mostrar nosso potencial, usufruir nossos direitos, nos locomover com liberdade. É nela, e somente nela, que vivemos a nossa vida real, cotidiana, integral. Por mais que mantenhamos um espaço de sonho recheado de uma casa na colina, lua e violão, é na cidade que mostramos o que valemos. Mas, muitas vezes, na pressa em que vivemos, não nos damos conta de que estamos apenas vivendo um dia depois do outro, não usufruindo de nossa cidade, não exercendo nossa cidadania, não prestando atenção no próximo, nem nas ferramentas que a cidade tem, ou devia ter, a nosso favor. Afinal, se damos tanto a ela, não seria razoável esperar que ela retribua esse nosso esforço?

De uma forma, ou de outra, o fato é que somos um país predominantemente urbano, mesmo tendo nos tornado um dos grandes fornecedores de produtos agropecuários do mundo. E não podemos deixar de notar que a falta de planificação e o desrespeito pelas construções antigas fizeram com que a maior parte de nossas urbes não tenham personalidade, ganharam uma feiura parecida com a das cidades vizinhas. São aglomerações caóticas. Cidades grandes tornaram-se gigantescas e cidades médias são hoje cidades grandes. Cerca de 20 municípios brasileiros possuem mais de 1 milhão de habitantes e acima de 200 contam com mais de 150 mil habitantes! Administrá-los tornou-se tarefa dificílima, mesmo quando há trabalho e boa vontade, mas o mais frequente, infelizmente, é constatar incompetência e desonestidade por parte de muitos prefeitos e vereadores.

Em cidades maiores não há contato entre cidadãos e dirigentes. Secretários municipais não ficam próximos dos cidadãos. As pessoas, por seu lado, não sentem as cidades como sendo suas. Edifícios com guaritas, vigilantes guardando a entrada de condomínios, muros altos tentando isolar os cidadãos "de bem" de outros cidadãos, por medo, fazem dos habitantes das cidades prisioneiros que respiram aliviados ao voltar para trás dos muros e grades no final do dia, seja para conviver com sua família, seja para simplesmente esparramar-se em uma poltrona para assistir TV (cada membro da família na sua, se possível), ou ainda para navegar pelas mídias sociais, a partir de onde poderá ofender quem quiser sem risco…

As pessoas desenvolveram também o hábito de ir ao shopping. Lá, elas até fazem compras, mas utilizam-no mais para passear, ir ao cinema, lanchar, levar os filhotes, encontrar amigos. O shopping é uma instituição curiosamente classista. Suas lojas são determinadas, por especialistas, a partir do perfil econômico de cada bairro. Depende do bairro em que se instala, abriga diferentes lojas, tem diferentes restaurantes, toca diferentes músicas (o volume cresce nos bairros populares), as vagas do estacionamento têm diferentes dimensões. Com raras exceções as pessoas encontram centros de venda adequados à sua renda, aspirações etc. Cada um na sua tribo, como se vivêssemos em uma sociedade estamental. Vivemos?

O poder invisível

As cenas não deixam dúvidas: grupos de traficantes e milicianos fazem treinamento de guerrilha em um dos maiores conjuntos comunitários do Rio de Janeiro, o Complexo da Maré. As imagens, captadas por drones e mostradas no programa Fantástico, da TV Globo, mostram pessoas aprendendo a se locomover, portando armas de grande porte, algumas capazes de derrubar aviões.

O Rio de Janeiro é o mais vistoso e bonito cartão postal do Brasil (desculpem os leitores, não me refiro às paisagens belíssimas dos outros territórios brasileiros, mas ao postal que remete imediatamente ao RJ). Ao correr das últimas décadas, a imagem de Cristo, no Corcovado, não mitiga a visão do espaço mais identificado com gangues, tráfico de drogas, balas perdidas, morte de crianças, milícias, guerra entre facções. Não tem sido fácil o combate à criminalidade no Rio. Há um imenso poderio no topo dos morros, onde os criminosos formam seu “Estado informal”. Espraia-se uma cultura de ilegalidade.

Analisemos. O poder informal, o da criminalidade, das máfias criminosas, desafia o poder formal do Estado. A coletividade se sente insegura. Os governos não têm tido condições de desbaratar os bandos milicianos que se estabelecem à margem da lei e da ordem. E que se expandem no arco das democracias.


Assim, aflora a questão central descrita por Norberto Bobbio, no seu clássico “O Futuro da Democracia”: a eliminação do poder invisível, uma das promessas não cumpridas da democracia. A criminalidade assola a Humanidade. O poder informal age nas entranhas da administração pública, aqui e alhures, “peitando” a estrutura formal de mando.

Como nasce e cresce tal mazela? As máfias agem nas sombras do Estado, difíceis de serem completamente mapeadas. É como cobra de duas cabeças. Corta-se uma, a outra entra em ação. Nasceu no intestino dos Estados absolutos, onde as decisões eram tomadas pelos arcana imperii, autoridades ocultas que se amparavam no direito de avocar grandes decisões políticas, encobrindo suas manobras e evitando a transparência do poder. Nas ditaduras, o esconderijo firma-se como um dos eixos do poder.

Ora, um dos princípios basilares da democracia é o jogo aberto das ideias, o debate, a publicização dos atos governamentais, forma de controle dos limites do poder estatuído. No absolutismo, o princípio é: o que é lícito ao Estado não é lícito aos cidadãos.

As democracias modernas, ditas representativas, conservam mazelas do autoritarismo, entre as quais a capacidade de confundir o interesse geral com o interesse individual ou de grupos, a preservação de oligarquias e a consequente extensão das redes invisíveis de poder.

Os malefícios gerados pelas distorções do sistema se assemelham ao efeito-espuma. Os fenômenos se expandem e criam nova modelagem de ilegalidade, gerando uma aética nas relações políticas, fomentando o clientelismo, impulsionando o voto fisiológico e, como resultante, a apatia das massas. Que se tornam silentes e medrosas. As taxas de credibilidade na política e nos governantes decrescem, os valores éticos se estiolam, os fundamentos morais da sociedade se abalam e o impacto se faz presente no atraso da modernização política e social. A civilização não avança no ritmo desejado.

As reformas que se pretendem promover nos sistemas administrativo, judiciário, tributário e político não propiciam, sob essa moldura, a extinção dos vícios que fragilizam a democracia.

O fato é que iremos conviver, por muito tempo, com o poder invisível e suas nefastas consequências. É triste constatar que os nossos índices educacionais puxam o país para o caminho do atraso. A educação é a locomotiva que pode assegurar a uma Nação seu lugar no painel do progresso. Povos dóceis, indiferentes, ignorantes, passivos são aqueles de preferência dos governantes, mas a democracia necessita de cidadãos ativos, conscientes, participativos.

É o que John Stuart Mill, em suas Considerações sobre o Governo Representativo, chama de cidadania ativa, um valor umbilicalmente ligado à educação. Não adianta fazer reforma política – mudar sistema de voto, de representação, exigir fidelidade partidária, conferir aos partidos densidade doutrinária – se os súditos, na simbologia de Bobbio, se assemelham a um bando de ovelhas pastando capim. A educação para a cidadania é, infelizmente, outra promessa não cumprida pela democracia.

Em suma, o Brasil somente sairá da era das grandes necessidades em que se encontra, quando o grau de cidadania atingir índices de elevação educacional. Quando todos os brasileiros estiverem comendo do mesmo prato cultural e educacional, inseridos no banquete da maior igualdade social, suas mazelas serão gradativamente eliminadas com doses de racionalidade, consciência política, respeito aos contrários e ética. Nesse momento, os braços de Cristo no Corcovado serão associados a um país mais justo, harmônico e solidário.

Desigualdade deve indignar

O aumento da desigualdade de renda em países ocidentais está demonstrado em estudos de prestigiosos economistas, como o francês Thomas Piketty. No Brasil, esse aumento se potencializa desde os anos 1980, evidenciado por pesquisas do IBGE.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han tem afirmado que a desigualdade de renda e a deterioração dos empregos e profissões têm sido responsáveis pelo que considera a doença do século, a depressão.

Em recente discurso na ONU, o presidente Lula colocou o clima e a desigualdade como questões centrais destes tempos, chamando a atenção dos países ricos para suas responsabilidades — eles que são os maiores causadores dos danos ambientais.


Em reunião bilateral, os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos concordaram em fazer esforços para enfrentar os desafios das desigualdades e da precariedade de empregos, demonstrando a centralidade desses temas.

Porém: tais questões fundamentais estão espacializadas? Em que território?

Num mundo majoritariamente urbano, como dissociar as mudanças climáticas do tema das cidades? Onde estão as cidades na pauta política mundial?

No Brasil, precisamos ampliar a compreensão também para o vínculo entre a desigualdade de renda e o espaço da cidade, sobretudo das grandes cidades. Com a quase totalidade da população urbana, o Brasil não precisa — e não pode — esperar uma mudança nas políticas do mundo para enfrentar o drama urbano nacional.

Aqui, milhões de brasileiros a cada dia enfrentam um transporte público ineficiente que implica tempos excessivos para o deslocamento casa-trabalho e que exalta a desigualdade de renda, dificulta o emprego e abala a saúde.

Desde meados do século passado, o país só financiou 20% das moradias urbanas, o que empurrou as famílias pobres para a irregularidade urbanística, fundiária e precariedade construtiva. Persistindo nesse modelo, evidencia-se uma desigualdade que “precisa inspirar indignação” (Lula, ONU). Mas não basta, pois o Brasil tem capacidade econômica suficiente para tratar de modo mais equânime essa questão.

O tema habitacional tem implicações sanitárias imensas. Ao faltar saneamento para metade da população, a saúde pública fica impactada; crescentes recursos precisam ser aplicados na medicina curativa, ao mesmo tempo que a poluição das águas tem larga repercussão no planeta.

A violência urbana é vivida pela população no dia a dia, que, sentindo crescente insegurança, não precisa esperar pela confirmação dos indicadores oficiais, como condiciona importante autoridade. É no modo como o Estado brasileiro trata (ou destrata) favelas e bairros de periferia que cresce o ovo de serpente da violência e da bandidagem armada. É na desigualdade intraurbana, invisível aos olhares do poder e de parte da sociedade, que se instala esse ofidiário.

Mobilidade, moradia, saneamento, segurança são temas que, maltratados entre nós, potencializam a gigantesca e crescente desigualdade de renda. São temas fora da agenda política.

— Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que lideram o mundo.

Quem sabe essa expressão do presidente na ONU possa nos ser inspiradora no Brasil?